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segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26088: Notas de leitura (1738): Quando se ensinava a literatura da Guiné-Bissau nas escolas portuguesas (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Julho de 2023:

Queridos amigos,
Foi uma agradável surpresa ter encontrado esta iniciativa de apresentação aos alunos do 3.º ciclo, isto em 1997 e 1998, de uma apresentação de escritores africanos lusófonos, a escolha que recaiu para a Guiné-Bissau foi a de o primeiro romance de Abdulai Silá e uma novela de Fausto Duarte, que obteve em 1934 o primeiro prémio de literatura colonial, e os elogios do escritor Aquilino Ribeiro. Tudo leva a querer que a iniciativa não teve continuidade e, entretanto, desapareceu a comissão nacional dos Descobrimentos portugueses.

Um abraço do
Mário


Quando se ensinava a literatura da Guiné-Bissau nas escolas portuguesas

Mário Beja Santos

Nos anos 1990, o Ministério de Educação criara um grupo de trabalho para as comemorações dos Descobrimentos portugueses. A coordenação científica coubera a Aldónio Gomes e Fernanda Cavacas, os autores eram Ana Maria Matos e Maria Ofélia Medeiros. Foram concebidos materiais dentro de uma linha editorial que procurou garantir uma prática docente multidisciplinar, sobretudo no ensino básico, como continuidade de um encontro de culturas que a história marcou e de que as literaturas em língua portuguesa são repositórios férteis. Adquiri o material destinado ao 3.º ciclo sobre as novas literaturas africanas. Primeiro Angola, com outros escritores Pepetela e José Luandino Vieira; depois, Cabo Verde com os escritores Teixeira de Sousa e Germano de Almeida; segue-se a Guiné-Bissau com Abdulai Silá e Fausto Duarte; quanto a Moçambique, a escolha recai em Mia Couto e Calane da Silva; por último, São Tomé e Príncipe com Albertino Bragança.

Há primeiro um texto extraído da obra de Abdulai Silá, Eterna Paixão, uma obra literária de indesmentível valor, seguem-se alguns extratos de Dúvida absoluta:
“Subitamente, sem ter reduzido a velocidade, encetou uma série de movimentos com ambos os braços, torcendo o volante do carro sem piedade. Deixou a estrada principal e meteu-se na estrada secundária que nascia logo ali, sem se anunciar.
Dando prova de grande perícia e habilidade, conseguiu manter o veículo sob controle, conduzindo-o no centro da estrada estreita, recentemente alcatroada.
(…) Depois de ter fechado a porta do carro, começou a caminhar em passos lentos, em direção à vivenda. Era alto e aparentava andar na casa dos 35 anos. Vestia um fato castanho elegante, com uma gravata preta com riscas oblíquas de cores diferentes que ia amarrada a uma camisa toda branca.
Depois de ter carregado mais vezes o botão da campainha, o homem aproximou-se mais da porta da entrada, num gesto de quem espera que ela seja aberta de imediato.
– Ah, é o senhor! – exclamou, algo surpreendida, a mulher que, entretanto, acabara de abrir a porta e se prontificava a tomar do recém-chegado o maço de documentos que este trazia na mão. – Mas voltou hoje muito cedo, ehh!

Mbubi era uma senhora que, apesar do corpo e da idade que aparentava ter, era muito ágil e solícita.
Apesar da sua popularidade, ninguém conhecia ao certo quantos anos é que tinha. A sua idade era avaliada a partir da filha mais velha, uma menina mulata que se dizia ser fruto da incapacidade do primeiro patrão branco de resistir aos encantos da cozinheira negra, cuja compleição física considerava uma flagrante injustiça divina em relação à sua esposa branca.
Estava naquela casa fazia mais de três anos, desde que a mãe da Senhora, a quem servira durante muito tempo, resolvera ir de vez para a Europa.”


O escritor vai tornar Mbubi uma figura pivô da narrativa, pouco sabe deste seu patrão Daniel, há ali alguém ligado ao aparelho do Estado, escutara fortes discussões entre o casal, deduziu que algo de grave tinha acontecido. E o leitor é confrontado com Daniel que percorre a sua sala de visitas examinando as peças. “Recordava-se da avidez que tinha em descobrir e manifestar a sua africanidade, de explorar e valorizar tudo o que a seus olhos se apresentava como genuinamente africano.” Mbubi prepara para o patrão uma refeição, este só quer um chá, e anuncia que vai conversar sobre um assunto com a empregada. Toca o telefone, era a Senhora a anunciar que não iria chegar tão cedo. Somos confrontados com um clima de tensão, chega, entretanto, a mulher de Daniel, Ruth, de quem o autor faz um retrato, segue-se uma curta troca de palavras desta com Mbubi, esta volta aos seus trabalhos, mas houve uma nova discussão entre o casal:
“Vinda provavelmente de trás de si, Mbubi ouviu uma amálgama de vozes ásperas e recordou-se das discussões entre o casal. Discussões que eram cada vez mais frequentes, cada vez mais longas, cada vez mais violentas. Viu, então, a cara de Ruth, carregada de maldade. Aquela mesma maldade que despejara sobre si, negando o combinado, recusando deixá-la ir à sua tabanca de origem, onde esperava encontrar toda aquela gente que tão raramente via, de que tinha muita saudade e com quem precisava tanto confraternizar…
Com a cara de Ruth na memória, Mbubi sentiu subitamente a dúvida absoluta transformar-se em certeza. Uma certeza absoluta.”


Segue-se um comentário destinado ao professor. Uma condução frenética, desenha-se a primeira personagem, apresenta-se Mbubi, esta prepara-se para tratar do patrão branco; introduz-se Ruth, a mulher do patrão, que exerce prepotência sobre Mbubi. “Na sua mente a transposição da figura masculina, do patrão, pela imposição da figura feminina da patroa vai provocar em Mbubi uma certeza absoluta. A casa não voltará a ser a mesma. E adivinha-se que o pano que cai sobre o ecrã do cinema em linguagem fílmica de narrativa aberta.”

Auá, é um romance de Fausto Duarte que recebeu o primeiro prémio da literatura colonial em 1934, centra-se numa jovem que conhecerá a tragédia do amor numa sociedade em que o destino da mulher era um negócio dos pais. O episódio escolhido é uma ida à feira, lá vão duas mulheres levando cabaças na mão a caminho da cidade:
“Bissau era um novo espetáculo para os olhos dessa rapariga habituada ainda à paisagem uniforme do mato e à vida de Sare-Sincham. Contemplava admirada os grandes armazéns, escassamente iluminados, sempre no mesmo estilo de igrejas provisórias, onde trabalhavam dezenas de indígenas, limpando a mancarra, ensacando o coconote para carregar em potentes camiões. Automóveis fugiam velozes, e Auá, receosa de tanto bulício, agarrava-se a Farió, que lhe indicava a melhor forma de caminhar pela rua, que se tornara quase intransitável. Mais adiante, num retângulo murado, vinha um rumor confuso de vozes. Era o mercado, romaria de naturais vindos de todos os recantos. Mulheres mancanhas, de carapinha oleosa, expunham em grandes cabaças produtos de uma indústria doméstica ainda rudimentar.

Ali, acocoradas, Papéis chegadas de Boi, esguias, de lábios pendentes, vendiam grandes bolas de sabão negro e pequenas pirâmides de bananas dispostas sobre o pavimento sujo do mercado. Acolá, um cabo-verdiano, de mangas arregaçadas, retalhava uma perna de porco, enquanto a mulher apregoava torresmos. Djilabês mandingas esperavam, sossegadamente, os compradores de colas guardadas em grandes frascos.
“(…) Auá seguia, curiosamente, o movimento dos carros. Por elas passavam grupos de indígenas descalços, que vestiam pitorescas indumentárias. Bijagós com calções de serapilheira e tronco nu; Papéis de Biombo, com perfis de mulheres de grandes tranças cobertas por lenços de seda, e que seguiam rua fora de mãos dadas; mancanhas que vendiam leite, deixando ver os dentes pontiagudos e grandes seios enrugados.
Auá e Farió, feitas as compras, regressaram a Morcunda.”


Segue-se o comentário, a referência à riqueza vocabular, a viagem a um mercado graças a Auá, a multiplicidade de etnias e línguas e o contraste entre aquele bulício e o silêncio local por onde caminham: “As lojas de panos e os alfaiates maravilham os olhos e provocam o desejo de comprar o que está nas montras. Auá e Farió, voltam ao seu bairro, onde o silêncio, agora, deve ser mais sentido depois do bulício da cidade.” Enunciam-se estratégias a utilizar para o tratamento do texto e comentários e dá-se algum vocabulário para que o leitor saiba o que é uma cabaça, o que é o capim, o chabéu, o coconote, um doloquê (camisa), a mancarra, o poilão, a tintamarre (barulheira.

Uma recordação dos tempos em que estas novas literaturas africanas podiam ser versadas nos bancos das escolas portuguesas.


Abdulai Silá
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Nota do editor

Último post da série de 25 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26077: Notas de leitura (1737): Notícia de um conflito interétnico sangrento na ilha de Bissau, em 1931 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 10 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25628: Notas de leitura (1699): Kangalutas, por Abdulai Sila; Ku Si Mon Editora, 2018 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Novembro de 2022:

Queridos amigos,
Abdulai Sila mergulha-nos num mundo de recônditas, inconfessáveis vicissitudes, há reveses bem guardados que o arrependimento daquele militar que deixou mulher amada e filha na Guiné vem até à boca de cena e põe três mulheres a multiplicarem as dúvidas, as desconfianças, até, com total surpresa, e depois de algumas tropelias, se chegar a uma vitória eleitoral, estrondosa, floresce a esperança numa Guiné mais justa, e quem veio de Portugal exclusivamente para fazer a vontade ao defunto marido irá mergulhar na causa de acordar um país entorpecido, um país que perdera o sentido, numa causa em que o país se reconcilia consigo próprio e se supera do seu passado colonial e de todas aquelas feridas de um país em estado de injustiça. Parábola, alegoria, qual é a essência da mensagem didática que nos deixa um dos mais conceituados escritores guineenses? Ao leitor cabe resolver, é uma peça de teatro magnífica.

Um abraço do
Mário



Aprender com as feridas do passado, descobrir o fundo da amizade luso-guineense

Mário Beja Santos

É uma peça de teatro, o seu autor é um dos mais renomados escritores da Guiné-Bissau, engenheiro eletrotécnico, empreendedor, associativista dinâmico. As suas tramas centram-se no quadro colonial, nas sanhas do poder (tem uma peça onde alude a Macbeth e os triunfos sanguinários para ganhar o trono) e nunca se escusa a dizer que escreve sobre um país à procura de si próprio.


"Kangalutas", por Abdulai Sila, Ku Si Mon Editora, 2018, põe em cena três mulheres, uma delas vem de Portugal à procura da filha guineense do seu falecido marido que não a esqueceu no testamento; as outras duas, a filha do branco e a mulher repudiada pelo branco, que por ele fora muito amada, vão terças armas, desconfiadas ou mesmo desinteressadas daquela generosidade da última hora. Não é uma tragicomédia, mesmo que haja, como há, apontamentos dignos de farsa; é uma dramaturgia lírica, tem três mulheres em cena, entre lágrimas e suspiros vão barafustando entre si até se chegar a um desfecho desconcertante: aquela Guiné que procura a democracia, o desenvolvimento e a justiça leva à mobilização daquelas três mulheres, a causa delas não será uma herança baseada numa história do passado colonial, mas o futuro da liberdade daquele país em permanente tormenta, desorientado e sem mobilização coletiva.

O título prende-se com as vicissitudes do amor, a multiplicidade dos reveses, os danos por reparar. A branca chama-se Mariana, veio até à Guiné dar cumprimento a um desejo do falecido marido; a filha chama-se Mbissalangani, acha que pai é uma coisa que não existe, diz sentir-se muito bem no seu país, desconfia de tal herança, não aceita que a tratem por ingrata, parece estar literalmente nas tintas para a promessa do defunto pai de que Mariana é porta-voz; e temos Mariama, a mãe de Mbissalangani, a mulher amada por Luís, que a repudiou. Bem áspero é o primeiro encontro entre Mariama e Mariana, a guineense está determinada: “A filha é minha, só minha. Cuidei dela sempre sozinha, sem a ajuda de ninguém, e agora que ela criou asas e está pronta para voar sozinha, eis que aparece do nada uma milagreira a reivindicar direitos de propriedade, de paternidade ou lá o raio que o parta!”

Mariama tem os seus trunfos, era contatada pelo Luís, surpreende Mariana. Mãe e filha procuram entender o que na verdade trouxe Mariana à Guiné, a mãe diz à filha que deixou a branca arrelampada, que nem pensasse em tirar-lhe a filha, rogou-lhe pragas, a mãe é insidiosa, diz à filha que peça a Mariana o testamento, que deve mesmo exigir as contas bancárias, o clima de intriga está montado, haverá discussão brava entre Mbissalangani e Mariana, ainda não sabemos o teor do testamento, Mariana quer apressar o regresso e levar a filha de Luís, insiste que é preciso um visto e dá a saber que já bateu à porta do consulado, é nisto que se fala na preparação de uma campanha eleitoral para breve, Mbissalangani tem partido político, irá participar, sonha com um país próspero, justo, onde o precário não seja o pão nosso de cada dia.

Depois, Mbissalangani finge ceder junto da mulher de Luís, mas exige-lhe um contrato, prepara uma chantagem junto do responsável pela máquina eleitoral, a branca será o isco, assim se espera obter a vitória do seu partido, adulterando a contagem dos votos, Mariana será o isco, a sedutora… No final haverá vitória, e nós, leitores ou espectadores, até poderemos questionar se não foi a um preço aviltante. A relação entre aquelas duas rivais que amaram Luís estreita-se, Mariana vai mesmo viver para a casa de Mariama, Mbissalangani, com modos sinceros, começa a estimar aquela rival da sua mãe que pretendia vir buscá-la. O plano para que o tal partido venha a ter acesso a uma adulteração dos dados que lhe permita uma vitória inequívoca e até consensualmente aceite entra em marcha, haverá uma intrusão no computador, lança-se um vírus destinado a sequestrar informação do partido rival, há mesmo promessas de Mbissalangani de oferecer computadores àquelas duas infoexcluídas.

E chega o dia da vitória, a jovem anuncia que a juventude acordou, que o país está heroicamente a renascer das cinzas, o que vai a passar a contar é a competência e a dignidade. Algo de estranho, talvez contraditório se irá passar, Mariama e Mariana anunciam ter tomado uma decisão, nada de ir ao consulado, o visto que se lixe, a herança perdeu sentido, a viagem até Portugal fica para a próxima, quem veio para anunciar, e bem contrafeita vinha, dá a saber que é ali na Guiné que se sente útil, agarrada a uma causa.

São vicissitudes da vida. Luís ter-se-ia arrependido de ter deixado uma filha ao abandono, e queria agora recompensá-la, são kangalutas, o destino virou-se do avesso, quem veio anunciar a herança, e que diz vezes sem fim que está farta daquela terra grita bem alto que se há uma juventude que quer limpar o país da corrupção e do desdém internacional, ela fica, tem uma causa, aquele país precisa dela.

Será metáfora, alegoria, parábola? A ferida do passado colonial sarou, chegou a hora da reconciliação, na cena teatral aquelas mulheres de dois países mostram ao público que estão de mãos dadas. É esta a bela lição para guineenses e portugueses que o grande escritor Abdulai Sila nos oferece.

Para saber mais, recomenda-se o artigo de Ianes Augusto Cá e Maria Sousa Assis, intitulado “Kangalutas e espinhoso mistidas: estético e político nas peças de Abdulai Sila”: https://repositorio.unilab.edu.br/jspui/bitstream/123456789/2690/1/1.%20TCC%20-%20Vers%c3%a3o%20Final.%20Ianes.%2014012022.pdf publicado pela UNILAB – Universidade de Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira.

Imagem da peça de teatro Kangalutas, de Abdulai Sila
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Nota do editor

Último post da série de 7 DE JUNHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25614: Notas de leitura (1698): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, anos 1855 a 1857) (6) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 3 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25599: Notas de leitura (1697): "Quando os Cravos Vermelhos Cruzaram o Geba", por Tony Tcheka (nome literário de António Soares Lopes Júnior); Editorial Novembro, 2022 (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Novembro de 2022:

Queridos amigos,
Só apetece dizer que desejo as maiores felicidades para este livro, que seja profundamente conhecido na Guiné-Bissau e amplamente refletido por todos os que prezam a construção da liberdade e da modernidade para aquele belo país. Tony Tcheka tem a coragem de apontar quais os caminhos percorridos pelo mal-estar guineense, logo a incapacidade de se gerar um ambiente sincero de reconciliação e fala-nos daqueles que foram deitados fora pela independência, um potencial atirado para o lixo ou para a diáspora; e quando se põe à frente do pelotão denunciar a monstruosidade da mutilação genital feminina escolhe com precisão um cenário daquele Antoninho que se debotou de alma e coração à luta pela independência, sempre apoiado pela mãe, e a tremenda controvérsia, o choque de mentalidades com o pai, um muçulmano ainda envolvido por tradições obscuras no desprezo pela mulher, a ponto de querer as suas filhas puras e dignas desde que fisicamente mutiladas. Não me cansarei de dizer que é um livro admirável e todas as linhas de combate que ali avultam revelam um escritor de coragem, amante do seu país e do seu progresso.

Um abraço do
Mário



Tony Tcheka, um corajoso denunciador de segredos e mentiras (3)

Mário Beja Santos

A obra intitula-se "Quando os Cravos Vermelhos Cruzaram o Geba", o seu autor é o jornalista e escritor Tony Tcheka (nome literário de António Soares Lopes Júnior), nascido em Bissau em 1951, Editorial Novembro, 2022. É muito mais do que uma surpresa literária, ficamos assombrados com a ousadia deste guineense que rompe com mitos, palavras de ordem e dogmas de fé em que a política bissau-guineense é exuberante. 

Como escreve Pires Laranjeira no prefácio, “Trata-se de um livro corajoso, com seus contos estéticos, contos-ensaios, contos-testemunhos, contos-de-casos sociológicos – e – ontológicos, para ler de um fôlego e entrar numa área da vida guineense que a literatura nunca tocou, a dos guineenses que assumiam identidade portuguesa e dela não queriam abdicar, mesmo mergulhados em grandes infortúnios. Com conhecimento, compreensão e ternura contando a amargura de destinos malparados. Em última instância, todo o livro aborda o Estado-Nação formado por competências antigas e modernas, herdadas das colonizações (dos impérios antigos do oeste africano e do oeste europeu) e da revolução independentista, em que o valor consuetudinário continua a ter muita força e a revigorar na terra branku".

Mas o último conto deste admirável livro tem a ver com outro assunto, a mutilação genital feminina, que Tony Tcheka designa por “Excisadas na flor da vida”. É uma narrativa preciosa, dispõe de um cunho didático que agarra o leitor do princípio ao fim, deixa bem esculpido o contraste entre a modernidade (entenda-se o universo dos direitos humanos, aqui incluído o direito à integridade do corpo) e preconceitos arreigados, hoje inequivocamente associados ao obscurantismo e à falência de um sistema educativo. A figura pivô é Antoninho Sory Dansó, nascido na tabanca de Começada, fez os estudos universitários em Portugal, apoiado pela mãe e desdenhados pelo pai, um Aladje, detentor deste título por ter feito a peregrinação a Meca, implacável opositor à instituição escola.

Progenitores que vieram do Sul, da tabanca de Campeane; Antoninho foi crescendo num mundo de pacatez até que começou a subversão que conduziu à luta armada, os pais deixaram a tabanca, mas os sonhos de progredir nos estudos passaram a realidade, concluiu o ensino secundário, juntou-se a um movimento de libertação, veio depois estudar em Portugal, era um tempo de deslumbramento, “havia um clima contagiante de magia pairando no ar. Independência, hino, bandeira, comícios em kriol, primeiras aparições públicas dos novos dirigentes titulados de Combatentes da Liberdade da Pátria, anunciando programas e projetos de desenvolvimento. Promessa era a palavra-chave nos palanques de longos e patrióticos comícios”. 

Impunham-se músicos nacionais, a programação radiofónica era vibrante, chegavam cooperantes. E surgiu a tensão de que as raparigas deviam ir à escola, protestos do pai, Antoninho sente no ar as ameaças, felizmente que ganhou um bolsa para vir estudar para Lisboa. Não foi fácil a sua inserção na sociedade portuguesa.

O tempo passa, convive com os seus patrícios na Quinta do Mocho. 

“O que mais o afligia era a forma como esses patrícios trouxeram na bagagem as maneiras de pensar do antigamente e uma postura anti-independência”

E uma noite, enquanto estudava por baixo de uma lâmpada de luz mortiça, foi-lhe dado ouvir uma conversa em que se falava da excisão. Arrepiou-se com o que ouviu: 

“Estão a crescer, a crescer, e continuam impuras; chegada a hora do casamento, quem vai querer uma esposa nestas condições. Estarmos fora da terra não é justificação para não se cumprir um ritual sagrado. Os nossos pais e avós cumpriram sempre e transmitiram-nos essa sabedoria: temos de arranjar uma Fanateca (mulher que se dedica à mutilação genital feminina) e um local seguro para o fanado.” 

Meteu-se na conversa, provocou a ira dos seus compatriotas. Percorreu a via sacra dos anúncios à procura de um quarto, descobriu que os brancos mantinham preconceitos raciais e mentalidades retrógradas, graças a uma boa amiga, Rosa Linda, lá conseguiu quarto em casa de um casal de meia idade, ali viveu 5 anos.

Falar com os seus conterrâneos continuava a não ser fácil, tanto por razões políticas como pelo tema da excisão. Voltou ao país, sentia-se muito prestável, vinha entusiasmado pela reconstrução nacional. Leu e assimilou Amílcar Cabral. Estava a ser bem-sucedido no plano profissional, mas havias as discussões bem azedas com o pai, havia a prometida esposa negociada por este. De início respeitador das crenças tradicionais, Antoninho estava cada vez mais agnóstico, não se conformava com a decisão do pai de impedir as duas irmãs de frequentarem a escola. E não escondia discordar da segregação por sexo, idade, cor da pele, religião e situação social na vida. Havia discussões acaloradas, procurava fazer ver que o Corão não fazia apologia da excisão. Mas parecia uma luta perdida.

Numa das suas visitas semanais a Começada, descobriu que as irmãs não estavam em casa, a mãe lá lhe confessou que tinham sido levadas para a barraca do fanado por ordem do pai. A escrita de Tony Tcheka torna-se ainda mais precisa e comporta a fluidez de um incêndio, traça armas pelos os direitos humanos, Antoninho avança para a barraca do fanado e estala uma grande discussão com as fanatecas. Mas parece batalha perdida, as crianças cumprem o fanado e quando consideradas limpas e purificadas, é-lhes dada a possibilidade de integrar a comunidade, descem à povoação, é como se estivessem a estar preparadas para uma vida digna. Fervem as discussões, quando Antoninho lembra que nos Bijagós não se pratica tal crueldade, o pai responde: 

“Nem mais uma palavra! Respeita-me. Exijo respeito. Essa gente é bárbara, não creem em Deus. Não têm um livro sagrado. Nada há a aprender com eles e escusas de vir com essas conversas fiadas. Aqui não, fazemos o nosso caminho como fomos ensinados”.

Antoninho regressa a Bissau, deixa a sua mãe triste. E é esta mãe, de nome Trisia Cady Baldé, a quem cabe a derradeira mensagem:

“Nada do acontecido na barraca do fanado varreu o seu sentimento de vitória. Sentia-se invadida por uma mistura de sentimentos. Lá dentro de si, sem o poder demonstrar ou dizer, sentia-se orgulhosa pela atitude e coragem do seu menino. O seu orgulho, moldado num sentimento de porfia ganha que lhe enchia o peito. A sua grande vitória agarrada momentaneamente num mar turbulento com marinheiros que não sonham. O oposto ao seu sonho difícil, mas feito de realidade. Um sonho vivido de olhos abertos, alinhavado ponto por ponto com linhas finas, mas de perseverança. Uma aposta fêmea de coragem e amor imenso de mãe, também alimentada por cada moeda poupada no seu dia-a-dia, sempre suado, e de contrariedades teimosas”.

De leitura obrigatória, para conhecer a Guiné-Bissau atual, os seus dramas, os sonhos da liberdade e desenvolvimento, sonhos que tardam a ser realidade.
Uma imagem que vale por 10 mil palavras
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Notas do editor:

Vd. post anterior de 27 DE MAIO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25570: Notas de leitura (1695): "Quando os Cravos Vermelhos Cruzaram o Geba", por Tony Tcheka (nome literário de António Soares Lopes Júnior); Editorial Novembro, 2022 (2) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 31 DE MAIO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25589: Notas de leitura (1696): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, anos 1855 a 1856) (5) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 27 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25570: Notas de leitura (1695): "Quando os Cravos Vermelhos Cruzaram o Geba", por Tony Tcheka (nome literário de António Soares Lopes Júnior); Editorial Novembro, 2022 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Novembro de 2022:

Queridos amigos,
É sempre com satisfação que vos dou conta das boas surpresas que a literatura luso-guineense oferece. Este livro de Tony Tcheka é de leitura indispensável. Como escreve Pires Laranjeira no prefácio acerca destes contos aguerridos, há na escrita de Tony Tcheka, no seu processo produtivo uma matriz que lhe foi dada por ter vivido a pré-independência e agarrado com ambas as mãos a raiz patriótica, daí estar amplamente dotado para abordar, como desassombradamente aborda os sobressaltos provocados pelo 25 de Abril em gente com convicções que eram próprias dos assimilados, gente que acabará condenada a certas formas de autismo e dissolução, desencontradas com a história, inadaptados e rejeitados. Uma belíssima escrita, um tratamento delicado para um mundo de espectros bem incómodos para a história das primeiras décadas da Guiné-Bissau independente.

Um abraço do
Mário



Tony Tcheka, um corajoso denunciador de segredos e mentiras (2)

Mário Beja Santos

A obra intitula-se "Quando os Cravos Vermelhos Cruzaram o Geba", o seu autor é o jornalista e escritor Tony Tcheka (nome literário de António Soares Lopes Júnior), nascido em Bissau em 1951, Editorial Novembro, 2022. É muito mais do que uma surpresa literária, ficamos assombrados com a ousadia deste guineense que rompe com mitos, palavras de ordem e dogmas de fé em que a política bissau-guineense é exuberante. 

Como escreve Pires Laranjeira no prefácio, “Trata-se de um livro corajoso, com seus contos estéticos, contos-ensaios, contos-testemunhos, contos-de-casos sociológicos – e – ontológicos, para ler de um fôlego e entrar numa área da vida guineense que a literatura nunca tocou, a dos guineenses que assumiam identidade portuguesa e dela não queriam abdicar, mesmo mergulhados em grandes infortúnios. Com conhecimento, compreensão e ternura contando a amargura de destinos malparados. Em última instância, todo o livro aborda o Estado-Nação formado por competências antigas e modernas, herdadas das colonizações (dos impérios antigos do oeste africano e do oeste europeu) e da revolução independentista, em que o valor consuetudinário continua a ter muita força e a revigorar na terra branku".

Se o conto "Pekadur di Sambasabi" é arrepiante por nos revelar uma história de ódio, de abominável ajuste de contas e expor com total evidência que não houve vontade em criar uma atmosfera de reconciliação entre a força independentista dominante e aqueles que tinham servido a causa portuguesa (como se contou no texto anterior), vamos agora conhecer outra dimensão, discretamente ocultada, em torno daqueles que acreditavam estar a prestar serviço do lado justo, como se comportaram depois da independência. Tony Tcheka assombra-nos com descrições de tal modo verosímeis de degradação e aniquilamento, que nos deixa amargor pela descoberta, ou confirmação, de que muita gente, nascida ou não na Guiné, pagou bem caro pelo desprezo a que foram votados ou pela atmosfera de indiferença e humilhação a que foram sujeitos depois da independência.

Primeiro, o conto "Manito, O Patriota". Estamos em abril de 1974, Manito Ribeirinho, cidadão temido na cidade e arredores pela sua dureza de trato, teve sono agitado, e pela rádio chegam-lhe notícias indesejáveis, há reboliço em Lisboa, o escritor socorre-se de uma imagem onomatopeica: “Uma forte trovoada em tempo seco estoirando na sua cabeça”

O inacreditável aconteceu, mas à sua volta tudo parece seguir na normalidade. É um homem que acredita num Portugal uno e indivisível, é adjunto do subchefe da terceira secção postal, nado e criado naquela terra (filho legítimo do gã-Ribeirinho de Cacheu). Confuso e desfeiteado, depois de lançar reprimendas a quem trabalha lá em casa põe-se a caminho, foi até à central telefónica dos CTT para telefonar ao sr. Administrador do concelho, não está, recomendam-lhe que fuja enquanto puder. Nem sossegou com o telefonema ao sr. Inspetor da PIDE, encontra a cidade em ebulição, para seu pavor a cidade de Bissau fervilhava de euforia, a PIDE em silêncio. 

E enquanto Lisboa e Bissau preparam a independência da Guiné o casal Ribeirinho desembarcou em Lisboa. Vai começar uma via sacra, começa a beber uma pinga a mais, a família desintegra-se, “ao ponto de o genro chamar o sogro de catingoso”. Ribas, ou o Manito Ribeirinho, e a sua mulher, vão viver para a Quinta dos Mochos, isolam-se, os amigos de outras eras fecham-lhes a porta. É a descrição de um espectro, entre as recordações do salazarismo e os estímulos do álcool, é um fantasma do passado, um inadequado, anda para ali perdido, tem momentos de levitação patriótica.

Inevitavelmente, será engolido pelo alheamento, restam-lhe sombras e solidão.

Outro conto bem pungente é "Camarada, Melhor Amanhã". Tudo acontece num prédio bem situado no centro da cidade de Bissau, vive-se nos tempos de uma Guiné-Melhor, depois deu-se o recrudescer da guerra que provocou a debandada de muitas famílias metropolitanas e algumas guineenses, as de maior posse, o prédio conhece um novo quadro de mobilidade social, surgem tensões, “as desavenças só terminaram quando os novos passaram à situação de maioria, impondo as suas normas aos poucos sobreviventes da mudança. E de premeio também chegou a independência”

Vamos conhecer outro espectro, Epuíno Ermelindo Mendonça, um entusiasta confesso da Guiné-Melhor, expedito a datilografar, tratando todo aquele maquinismo com desvelo, é um homem marcado pela religião e pela tradição, Tony Tcheka, em admirável arquitetura da escrita, dá-nos conta do definhamento, aos poucos vão desaparecendo as joias, os bibelots, ficaram as fotografias, as lembranças de almoçaradas e jantaradas. 

Resta a Epuíno a cadeira antiga de balouçar, estrategicamente colocada na varanda do sobrado. Recusou sempre as propostas de trabalho na antiga metrópole, lá se foi adaptando aos novos tempos da independência, ele pertencera ao pessoal civil da manutenção militar, procurou desenrascar-se, trabalhou na câmara municipal, revoltou-se quando passaram a tratá-lo por camarada, foi depois trabalhar na área das pescas, foi uma época feliz: 

“Todas as semanas, caixas e caixas de peixe, moluscos e crustáceos, davam entrada na casa dos Mendonça. A vida estava a mudar. O camarada inspetor partiu para Portugal beneficiando de um estágio.”

Aqui permaneceu um ano e quatro meses e desembarcou em Bissau rigorosamente uniformizado, com crachá ao peito: “Camarada Comandante Inspetor Geral”

A seguir deu-se o grotesco e o burlesco, meteu-se numa lancha patrulha, foi tudo enjoos e vómitos. Morre a mulher, a espinha dorsal da casa, os filhos vão partindo para outros rumos, desapareceram os desempregados, veio a reforma, ainda procurou socorrer-se de expedientes, biscates, era insuportável viver com uma reforma de miséria: 

“Passou a ser visto na zona do Registo Civil e dos tribunais de Comarca de Bissau, sempre munido da sua maquineta. Safava alguns casos, aconselhava procedimentos, escrevia cartas, preenchia documentos e com isto, no final do dia, recolhia algum dinheirito.” 

Ainda escreveu cartas de amor para um comandante militar, plagiou Camões e Florbela Espanca, escreveu que havia neve na Guiné, tudo acabou bem para os arrulhados, menos para Epuíno que nem para o casamento foi convidado.

Foi vendendo o que restava lá em casa, ficou reduzido ao indispensável, acabou por vender a máquina de escrever e o final desta dolorosa trama é pungente que se farta:

“Ao não entrar mais em casa, a maquineta parece ter levado a alma do seu dono. Entristeceu-se mais. Dobrou-se. Não voltou a descer os degraus do sobrado. Confinou-se a um cantinho da varanda que alternava com a cama de lençóis sebentos já sem cor. E o último a sair foi o camarada Melhor Amanhã. Antes do suspiro final, ainda se queixou da dor da ingratidão no coração magoado ruidoso – a sua maior doença, aquela que lhe apertava o peito e secava a alma. Numa das últimas visitas do médico que foi seu colega no liceu Honório Barreto, antes de ingressar nas fileiras dos nacionalistas e ser enviado para a URSS estudar medicina, e à pergunta sobre o que lhe doía, respondeu secamente: A vida. Hoje é a vida que mais me dói.”

Fora deste contexto de dolorosas mudanças que revelaram a incapacidade de reconciliação guineense e a transformação de gente em espectros, devido a complexidades da inadaptação, Tony Tcheka aborda no seu último conto algo que tem a ver com o peso da tradição em duro confronto com este novo mundo de direitos humanos: a excisão genital feminina, que aqui se reportará no termo da leitura desta admirável obra.

Bissau-Velho na atualidade
O centro de Bissau no tempo colonial

(continua)
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Notas do editor:

Vd. post anterior de 20 DE MAIO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25543: Notas de leitura (1693): "Quando os Cravos Vermelhos Cruzaram o Geba", por Tony Tcheka (nome literário de António Soares Lopes Júnior); Editorial Novembro, 2022 (1) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 24 DE MAIO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25558: Notas de leitura (1694): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, anos 1853 a 1854) (4) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 20 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25543: Notas de leitura (1693): "Quando os Cravos Vermelhos Cruzaram o Geba", por Tony Tcheka (nome literário de António Soares Lopes Júnior); Editorial Novembro, 2022 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Outubro de 2022:

Queridos amigos,
Foi com imensa alegria que estive com o Tony Tcheka, ele honrou-me participando na sessão de lançamento de Rua do Eclipse. E deu-me este livro extraordinário "Quando Os Cravos Vermelhos Cruzaram o Geba", quatro contos, todos eles invulgares, habituados como estamos a ver os portugueses a falar da tropa africana que combateu do lado português e foi execrada por quem se comprometera honrá-la, como manda a reconciliação; habituados que estamos a ver os portugueses a abordar o 25 de Abril na Guiné, é completamente inesperado, e merece ser saudado com ambas as mãos esta prosa ousada, desmistificadora, que só me parece possível a quem viveu todas estas situações de um fim de Império e sonhou pôr-se ao serviço do seu país, que tanto o dececionou. Como escreve o editor, Tony Tcheka é o escritor da madrugada, do dia inicial inteiro e limpo, com os pés e o coração divididos entre Lisboa e Bissau.

Um abraço do
Mário



Tony Tcheka, um corajoso denunciador de segredos e mentiras (1)

Mário Beja Santos

A obra intitula-se "Quando os Cravos Vermelhos Cruzaram o Geba", o seu autor é o jornalista e escritor Tony Tcheka (nome literário de António Soares Lopes Júnior), nascido em Bissau em 1951, Editorial Novembro, 2022. É muito mais do que uma surpresa literária, ficamos assombrados com a ousadia deste guineense que rompe com mitos, palavras de ordem e dogmas de fé em que a política bissau-guineense é exuberante. 

Como escreve Pires Laranjeira no prefácio, “Trata-se de um livro corajoso, com seus contos estéticos, contos-ensaios, contos-testemunhos, contos-de-casos sociológicos – e – ontológicos, para ler de um fôlego e entrar numa área da vida guineense que a literatura nunca tocou, a dos guineenses que assumiam identidade portuguesa e dela não queriam abdicar, mesmo mergulhados em grandes infortúnios. Com conhecimento, compreensão e ternura contando a amargura de destinos malparados. Em última instância, todo o livro aborda o Estado-Nação formado por competências antigas e modernas, herdadas das colonizações (dos impérios antigos do oeste africano e do oeste europeu) e da revolução independentista, em que o valor consuetudinário continua a ter muita força e a revigorar na terra branku”.

Não é uma prosa de lamber as feridas, não há aqui qualquer manipulação a tirar esqueletos do armário, são contos de quem experimentou duas realidades, a colonial e a independentista, esventra agora os tiques, sopesa os arquétipos de cada uma das situações, e expõe a dura realidade de como o 25 de Abril de Portugal e a independência da Guiné-Bissau revolveram mentes, expuseram contradições e paradoxos, fomentaram silêncios imperativos, forjaram golpes de Estado indocumentados e interditos de discussão pública, montaram cavalas, os ajustes de contas mais ignóbeis, o que Tony Tcheka nos vem dizer é que os cravos vermelhos chegaram ao Geba e os vencedores mostraram uma total inabilidade em gerar uma reconciliação após tão dolorosa guerra, fratricida e divisora.

É arrepiante a leitura do primeiro conto Pekadur di Sambasabi, esta Sambasabi é uma tabanca onde depois do 25 de Abril regressa o seu filho de nome mais notável, Capiton Basinho Bikas ou Alferes Mon di Ferro. Logo o seu nascimento dá que pensar, ele veio ao mundo mas morreu o seu irmão gémeo. Nos anos em que decorreu aquela guerra, as suas façanhas galvanizavam os serões, até se esquecia o seu verdadeiro nome, João Bicanka Sory Bá. Quis ser enfermeiro, houve mesmo promessa de padre missionário, sonho gorado. Alistou-se no Gabu, os seus feitos heroicos deram condecorações. 

E um dia aconteceu o 25 de Abril, andou por reuniões, tudo lhe parecia estranho, sentia não ter lugar naquele espaço novo em reconfiguração, estava a viver num cenário jamais pensado. Esteve na reza na Mesquita Grande de Pilum, depois foi rezar o Pai-Nosso e o Credo na Sé Catedral de Bissau. Confuso com tudo quanto aqui se passava, voltou à terra natal, à sua tabanca acolhedora, bem no Leste recôndito da Guiné. Em Sambasabi, o Capiton discorre todo o fio daquela memória, o poder dos ancestrais, o despotismo do progenitor, o não ter tido oportunidade de estudar, ter-se tornado num destemido combatente, voltava agora pronto a trabalhar a terra, tem uma plantação frondosa com bananeiras, laranjais, mangueirais. O seu passatempo guarda-o numa sacola, histórias aos quadradinhos.

Tony Tcheka é luminescente a descrever-nos a sua infância no Leste, a sua formatação militar, o seu património religioso. Na tropa, começou por baixo, guia e batedor, fez recruta em Bolama, foi depois selecionado para um curso especial, ainda pertenceu a uma unidade especial de comandos que viria a ser a génese dos comandos africanos. Ele e os seus homens eram um verdadeiro caterpillar de limpeza, ganhou estatuto de figura mítica. Agora, tudo acabou.

Em Sambasabi recebe uma visita inesperada, é alguém que vai em fuga, um fuzileiro guineense de nome Musna Na Faiõe, avisa-o de que é tempo de perigos, chegaram os ajustes de contas, Capiton decide ficar, tem uma explicação: 

“Se não posso fugir de mim mesmo, como e porquê fugir dos outros? Se não me reencontrar aqui onde tenho o meu umbigo enterrado, jamais serei eu. São muitos anos à procura de mim mesmo”. 

E apareceram 30 guerrilheiros, vieram-no buscar, ficará detido no quartel de Mansoa, conversará com um amigo, Djondjon di Nha Maria Benta, falam da literatura aos quadradinhos, desabafa: 

“Sou um homem a quem na adolescência arrancaram a alma. Nunca me encontrei. Pensei ter despertado, mas não. Não pude viver os meus sonhos. Nunca fui eu. Nesta vida, fui o que os outros de mim fizeram”.

Tony Tcheka não necessita de falar dos fuzilamentos nem das patranhas que foram inventadas de uma sublevação absurda de tropa especial e outra, o mais ridículo de tudo é que nenhum daqueles homens não detinha uma só arma, uma só bazuca, uma só granada. E desses fuzilamentos que mais pareciam aplacar o descontentamento interno forjando um inimigo fantasmático que atrasava o progresso do país, passa-se para quase o tempo presente. 

Já estamos em 2017, o septuagenário de Musna Na Faiõe, sentado na sua casa de construção precária, na zona da Amadora, assiste a uma notícia da RTP-África, é o protesto de uma centena de membros da Associação de Antigos Combatentes, filhos e familiares das Forças Armadas Portuguesas, frente à Embaixada de Portugal em Bissau, reivindicando o cumprimento do acordo celebrado depois do 25 de Abril e não cumprido. O antigo fuzileiro pega no telemóvel e liga para um camarada das matas da Guiné, fala-lhe da notícia, mas qual cumprimento de acordo, quem se dignou a respeitar tanto sacrifício consentido e sangue derramado? 

“Nós somos os mortos-vivos navegando num rio sem água. E o que somos nós hoje? Digo-te já: Entrudos! Fomos promovidos a entrudos… Sem esperar por qualquer reação, num gesto brusco Musna Na Faiõe desligou o telefone, enterrando-se no velho cadeirão”.

O leitor que se prepare para mais, como nos adverte o editor, temos pela frente “um entrelaçamento de culturas; aprendemos com os dialetos, as lendas, as tradições e os costumes, desta narrativa histórica romanceada, que nos adverte para o quanto é necessário ‘pensar o passado para compreender o presente e idealizar o futuro’”.

Se Tony Tcheka já nos surpreendera por ser o estro mais flamejante e dolorido desta impenitente Guiné-Bissau, revela-se nesta obra um artista de mil prodígios.

Tony Tcheka
Antigos combatentes das Forças Armadas portuguesas na Guiné Bissau, Global Imagens, com a devida vénia
Lançamento do livro “Quando os cravos vermelhos cruzaram o Geba”, de Tony Tcheka, no Centro Cultura Português em Bissau, maio de 2022

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 17 DE MAIO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25536: Notas de leitura (1692): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, anos 1850 e 1851) (3) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 6 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25487: Notas de leitura (1689): Não há tesouro literário como este na Guiné-Bissau: uma criança, uma guerra, uma bicicleta (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Outubro de 2022:

Queridos amigos,
Lê-se sempre esta joia e descobre-se mais um ângulo iridescente, este feliz acaso de escrever uma fábula que é capaz de iluminar o mundo pela inocência de uma criança que se transforma num estafeta da guerra, mas sempre sem perder de vista que soterrou a sua tão querida bicicleta, uma amizade inquebrantável. Aquela guerra de horrores inenarráveis não lhe subtraiu a alegria do sonho, o desejo de partilhar a felicidade com a malta fixe de Porto dos Batuquinhos, se bem que todos ficassem muito mais crescidos depois de tanto ódio e tanta destruição, danos incalculáveis na sua formação. E termina a fábula porque o sonho vai ser reavivado, tudo termina como numa ode triunfal: "Quando se sentou no selim sentiu-se de novo dono do mundo. E os dois pedalaram para a eternindade".

Um abraço do
Mário



Não há tesouro literário como este na Guiné-Bissau: uma criança, uma guerra, uma bicicleta

Mário Beja Santos

Custa-me entender como esta obra não conhece reedição, em Portugal ou na Guiné-Bissau, não é um conto para crianças, embora o herói seja um jovem que se vê envolvido naquele pesadelo do conflito político-militar de 1998-1999, é uma fábula a quatro mãos, um escritor prodigioso e um desenhador exímio, Jorge Araújo e Pedro Sousa Pereira. Como escreve José Vegar na nota introdutória desta crónica de guerra para leitura dos adultos, o que aqui preside é uma luminosidade própria de crianças, a geografia e o tempo são brutalmente reais e ali o menino consegue manter vivo o seu mundo, a sua carga afetiva é uma lição para a humanidade.

O discurso encantatório enleia-nos naquela história que começa num domingo, dia de missa e futebol, de carne ao almoço e tolerância de ponto ao acordar, mas nesse dia explodiu uma guerra. Se é fábula, temos que saber se é de opulências ou de agruras redentoras, o melhor é começarmos por conhecer a família Sissé que vive em Porto dos Batuquinhos, na margem de um rio que a seca engoliu: “Vivia numa casa com paredes de cartão, telhados de colmo, alcatifa de terra batida. As camas eram esteiras que, enroladas durante o dia, serviam de cadeiras. A cozinha, bem no centro da palhota, não passava de meia dúzia de pedras calcinadas dispostas em círculo, a casa de banho, um buraco aberto no quintal. A única mobília era um calendário de Nossa Senhora de Fátima que a madrinha de Hussi ofereceu à mãe no dia do seu nascimento.” O pai de Hussi chama-se Abdelei Sissé, vai partir para a guerra ao lado do brigadeiro Raio de Sol. A mãe é dona Geca, e há três irmãos, todos mais novos do que ele. Ora, naquele dia de futebol em que o senhor do apito era o dito brigadeiro, primou pela ausência. Acontece que o brigadeiro se saturou das prepotências do comandante Trovão, o tirano da terra, juntou os veteranos na guerra colonial e partiram todos para a Guerra do Balão.

O pai Abedelei ordena à família que regressem à aldeia dos antepassados, logo se pôs a questão da bicicleta, descobrimos que Hussi tem uma bicicleta que fala, ele sossega a bicicleta que tem medo, enterra-a, prometendo que logo a guerra acabe a irá buscar. Lá se põem todos a caminho, as saudades da bicicleta são imensas, Hussi vai fugir, apresenta-se ao pai, este furioso, enfim, Hussi vai intervir no confronto. “Transportou armas e munições para a linha da frente, fez de pombo-correio, foi ajudante de cozinheiro. Aprendeu a cozinhar arroz de todas as maneiras e feitios, mas durante quase um ano o prato principal foi uma mão-cheia de nada. Não matou mas viu morrer. Conviveu com o cheiro nauseabundo dos cadáveres em decomposição, partilhou o dia-a-dia de combatentes com nomes estranhos como Capacete de Ferro ou Rambo das Facas, assistiu ao espetáculo dos abutres a depenicarem restos de corpos de mercenários estrangeiros, tropeçou em esqueletos de soldados que não tiveram direito a última morada. Caminhou entre os horrores de uma guerra fratricida com a mesma inocência com que antes pedalava na sua bicicleta pelas ruas da cidade de asfalto.”

E assim se arrastou a Guerra do Balão. O comandante Trovão acreditava que aquela guerra eram favas contadas, todos aqueles sublevados iam ser atirados à água, no seu círculo de cortesãos mentia-se sobre a realidade da guerra, houve mesmo quem se atrevesse a dizer que estavam empatados, o chefe de Estado-Maior deu explicações: “Nós controlamos a cidade do asfalto, o inimigo a cidade de terra. Quando conquistamos uma alfeia do litoral, eles tomam logo conta de uma no interior. Mandamos no mar, eles no rio. A frente norte é nossa, a leste é deles”. A fúria do comandante Trovão não tinha medida, fulminou o chefe de Estado-Maior com um tiro de pistola. Como tudo é fábula, não faltam bruxos, profecias, fala-se mesmo numa bicicleta que ajuda muito a causa dos sublevados, o comandante Trovão dá mesmo essa ordem, é preciso destruir tal bicicleta, pôr termo ao feitiço.

Até que num domingo, as forças do brigadeiro Raio de Sol fizeram um assalto ao Palácio, Trovão teve que fugir, Hussi assistiu ao fogo-de-artifício da artilharia, viu o Palácio ser pilhado, livros queimados, saqueado, o menino anda eufórico pela cidade, ele é a mascote dos revoltosos, a guerra de Hussi ainda não terminou, tem que pôr a sua bicicleta em funcionamento, o coração aperta-se quando ele vê a casa destruída. Teve uma visão, o talismã que colocara sobre as cinzas para proteger a bicicleta na altura da fuga deu-lhe o sinal onde devia cavar, não há mais belo reencontro neste arremedo de literatura infantojuvenil para gente que padeceu de uma guerra sanguinolenta, que deixou brechas ainda hoje por colmatar como este, Hussi vai cavando as entranhas da terra e conversa com a sua bem-amada bicicleta, emocionam-se, a bicicleta sempre soube que Hussi iria voltar.

E o final desta magia ou desta pérola da literatura luso-guineense é mesmo assim:

“Hussi e a sua bicicleta ainda tinham muito para falar. Era toda a conversa de uma guerra para pôr em dia. Havia algumas coisas boas mas sobretudo muito más para partilhar. À luz do dia, olhos nos olhos, sem transmissão de pensamento. Hussi limpou o retrovisor com o seu velho lenço amarelado, sacudiu o pó que asfixiava o cachecol do Barcelona, colocou a fitinha tricolor do outro lado do guião, ajustou os pedais com a sola das sandálias. Quando se sentou no selim sentiu-se de novo dono do mundo. E os dois pedalaram para a eternidade.”

Dizem os autores que Hussi existe, nasceu em Bissau, de uma família pobre e tem três irmãos, andará hoje pela casa dos 35/36 anos. Insisto que não entendo como é que esta lição de vida, esta inocência tão resiliente não anda na boca do mundo, como fábula e como monumento literário. Coisas do destino – será?

Pedro Sousa Pereira e Jorge Araújo
Fotografia de João Francisco Vilhena no semanário “O Independente”, maio de 1999
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Nota do editor

Último post da série de 3 DE MAIO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25474: Notas de leitura (1688): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Oficial do Governo Geral de Cabo Verde, anos 1850 e 1851) (1) (Mário Beja Santos)

sábado, 24 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24428: Os nossos seres, saberes e lazeres (578): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (108): Com sangue d’África, com ossos d’Europa: visita a Xôxô e à Ponta do Sol, e subida até ao Paúl (7) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Maio de 2023:

Queridos amigos,
Aproxima-se o termo da viagem, tenho o coração contrito, dou comigo a pensar que Santo Antão merecia uma mais longa permanência, a velha estrada dos tempos coloniais é de uma insofismável beleza, percorrerei a ilha a cerca de metade, há quem me dissesse que visitei o que há de mais surpreendente, que não me esquecesse que há paisagens lunares, acredito que sim, aliás vindo de Porto Novo para a Ribeira Grande cerca de metade da paisagem só ganha realce por termos os penhascos do lado esquerdo e os desfiladeiros sobre o mar no lado esquerdo, mas houve oportunidade de ver o contraste entre o árido e o frondoso entre Corda e Esponjeira. Prometo seguidamente falar do trapiche e do grogue, das visitas destes dois últimos dias, meteram até dragoeiros e passeios no Paúl, aqui comi a melhor cachupa rica da visita, com o mar amistoso pela frente. E depois a viagem de regresso para S. Vicente e a despedida do Mindelo, o mínimo que eu posso dizer é que foram férias inesquecíveis, haja saúde e em tempos vindouros a viagem continuará, o viajante continua à escuta.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (108):
Com sangue d’África, com ossos d’Europa: visita a Xôxô e à Ponta do Sol, e subida até ao Paúl (7)


Mário Beja Santos

Só tarde e a más horas é que descobri umas folhas de apontamentos que precederam à organização desta viagem. Talvez valha a pena fazer aqui um bosquejo do que transcrevi, parecia-me dados de referência para estudar o homem e o lugar:
“Geologicamente, historicamente, culturalmente e até etnográfica e etnologicamente, as ilhas de Cabo Verde voltam as costas ao continente africano. Abismos submarinos de 2 a 3 mil metros as separam da África negra.” – Padre António Brásio, 1962.
“(…) No geral, a opinião que ainda hoje se forma destas ilhas não é nada favorável: terras desarborizadas, agrestes, com muitos montes e vales, assoladas por frequentes secas e fomes, ocupadas por muitos mestiços e pretos, e por alguma gente branca – naturais e imigrantes.” – António Carreira, Cabo Verde, Formação e Extinção de uma Sociedade Escravocrata, 1983.

Deu-me também para tentar perceber em que se baseia o potencial literário do país, para ser honesto lera há dezenas de anos um livro com assunto passado em Santo Antão que muito me impressionara, "Os Flagelados do Vento Leste", de Manuel Lopes, 1960. Os estudiosos consideram que a literatura cabo-verdiana se pode dividir em dois períodos: antes e depois da Claridade, o suplemento cultural que teria revolucionado a mentalidade destes insulares. Cabo Verde teve o seu Liceu das Humanidades em 1848, depois tornado em Liceu Seminário de S. Vicente, os jornais sucederam-se uns aos outros, na segunda metade do século XIX havia só na Praia 13 associações recreativas e culturais; fora do espaço ilhéu havia manifestações jornalísticas, caso do semanário "A Alvorada", em New Bradford (EUA), o seu diretor, Eugénio Tavares não só fazia críticas à política norte-americana nas Filipinas, como clamava pela autonomia das colónias portuguesas. "A Claridade" surgiu em 1936, é dada como ponto de partida de uma visão específica sobre os problemas da região, a revista foi lançada por Baltasar Lopes, Jorge Barbosa e Manuel Lopes, aberta à literatura brasileira, a revistas portuguesas como a "Presença", etc.
E voltei a ler "Os Flagelados do Vento Leste" que tanto me impressionara enquanto jovem adulto, com as suas secas e as suas chuvas e a lestada – o harmatão, o vento leste, a dádiva do deserto do africano, e depois os problemas humanos, o amor e a morte.

Edição de 1960, Ulisseia, capa de Marcelino Vespeira
Encontrei as folhas do circuito em Santo Antão, bem mal garatujadas, por sinal. Saio de Porto Novo num coletivo para a Ribeira Grande, o apartamento tem vista, a proprietária é italiana de Bolzano, fala fluentemente crioulo, o marido é o sr. António, pescador e músico; fica prometida uma refeição de peixe, tudo apanhado ao amanhecer. Depois de laboriosa conversação telefónica entre esta charmosa senhora italiana e o senhor Adelino, e definido o preço, amanhã o passeio, saindo daqui, é rumar para a velha estrada de Ribeira Grande para Porto Novo, segue-se para Corda, as vistas das montanhas são de cortar o fôlego, impressiona-me muito Esponjeira, Lagoa, a visão ao longe da Cova do Paúl, parece um emaranhado de montanhas, almoçamos na ribeira do Paúl, depois Xôxô, o sr. Adelino chama a atenção que o cemitério da Ribeira Grande fica no alto da montanha sobre o mar. Estamos agora na Ponta do Sol, conheço estes barcos de pesca como se estivesse em Sesimbra ou noutro porto português, vê-se bem que o turismo aqui é muito influente; Ponta do Sol teve aeroporto, houve um enorme desastre aéreo, acabou-se o aeroporto.
Outra imagem da Ponta do Sol
Andava a bisbilhotar a abandonada pista do aeroporto, então vi gente a avançar para estas rochas de balde e faca na mão, temos lapas pela certa, o importante é que o mar é lindo, o céu azul pintalgado de nuvens brancas, e dou comigo a pensar nesta versatilidade que estas ilhas oferecem.
Da Ribeira Grande faz-se transbordo para o vale do Paúl, via sinuosa, entre pedregulhos, extensões de cana, milheirais, palmeiras, por mim esta subida íngreme podia ir até aos céus. A visão que se tem do apartamento é como se estivéssemos num balcão a ver a falda da montanha, muito gretada, cheia de caminhos, terraços cultivados, gente a subir e a descer, o mais impressionante será a noite, ouvir gente a subir e a descer em conversa em alta voz, até tremo a pensar o que seria uma queda por aqueles precipícios. A segunda imagem mostra o Chão de João Vaz, ao fundo em tons amarelos, a Aldeia Panorâmica, toda esta região é apreciada por gente que gosta de passeios pedestres e que vem de todo o mundo para aqui.
Subindo do Paúl para Chão de João Vaz encontrou-se um sítio bem pitoresco, O Curral, comida vegetariana muito bem elaborada, depois foi subir e descer a embasbacar-me com a paisagem, conversando com a malta que gosta de passeios pelos trilhos, alguns bem afogueados pelo calor, apeteceu-me voltar para casa, sentar-me ao balcão a saborear a paisagem.
Sinto-me no dever de alertar o leitor que esta imagem em que se vê lá no vale casario amarelo foi captada quando se descia para O Curral, esta última imagem sim é que avisto do meu balcão e que tanto me impressiona, e é por esta altura que ganho a noção de que há um odor penetrante no ar, alguém lá em casa até alvitra que pode andar por ali um incêndio, saio porta fora e vou falar com a D. Joana, dona de uma mercearia pegada à minha casa, que eu não me preocupasse, era o trapiche a funcionar, olhe, aproveite, vá lá beber um grogue, não abuse, para não ficar contente demais. Lá fui e pelo adiante vos contarei o que é isto do trapiche e do grogue, marcas genéticas de Santo Antão.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 17 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24407: Os nossos seres, saberes e lazeres (577): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (107): Com sangue d’África, com ossos d’Europa: Ribeira Grande à noite, no dia seguinte em excursão com o sr. Adelino, não faltará Xôxô nem a Ponta do Sol (6) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 10 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24215: Notas de leitura (1571): "A Revolta!", por Fausto Duarte; Porto, 1945; O drama do régulo Monjur num belo romance (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Setembro de 2020:

Queridos amigos,
"Revolta!" não é uma obra-prima, é um romance bem urdido, possui os ingredientes adequados daquele formato da literatura colonial que fazia o mister da observação, o mostrar da vida de mato, o deslumbramento das belezas naturais, incluindo na urdidura a presença das autoridades, e Fausto Duarte esteve sempre disponível para nos seus romances de teor guineense pôr paixões de autóctones, carregadas de drama. O que nos diz do régulo Monjur Jorge Vellez Caroço, bem como o trabalho de investigação de Eduardo Costa Dias, ambos aqui já tratados, acompanha de certo modo o que era a nova lógica da administração colonial, o Gabú tinha enorme peso, os Fulas, após os acontecimentos do Forreá, a submissão dos Mandingas, aceitaram na plenitude o poder da administração colonial, esta apercebeu-se rapidamente que o território do Gabú era estratégico, Monjur foi um aliado que acabou secundarizado e esquecido. Esquecido não, a descrição do seu funeral, o valor da sua bravura, jamais foi esquecido por todos aqueles que acompanharam o féretro ao longo dos quilómetros, era a despedida do herói deitado no caixote do lixo da nova filosofia colonial.

Um abraço do
Mário



O drama do régulo Monjur num belo romance de Fausto Duarte (2)

Mário Beja Santos

Fausto Duarte é um nome incontornável na cultura guineense. Cabo-verdiano por nascimento, ganhou as suas habilitações em topografia no Instituto Superior de Agronomia em Lisboa, aparece na Guiné associado à demarcação de fronteiras e mais tarde entra na administração local, revelou-se um divulgador de méritos excecionais, um colaborador profícuo do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, colaborador regular do Boletim Cultural, autor de dois anuários (1946-1948) de irrecusável importância e autor de três romances passados na Guiné, dois deles já aqui alvo de recensão, caso de "Auá" e de "O Negro sem Alma".

"A Revolta!" foi galardoada com o 2.º prémio do Concurso de Literatura Colonial (1942), Fausto Duarte deu o romance por concluído em maio de 1942, foi publicado no Porto em 1945. A trama anda à volta do prestigioso régulo Monjur, um régulo Fula que prestou relevantes serviços à Administração Colonial Portuguesa em termos de campanhas de ocupação, era a figura mais respeitada do Gabú, será enredado numa teia de invejas por régulos menores que ansiavam ver o seu poder diminuído e encontrou pela frente um administrador de Bafatá que lhe retirou o poder. O seu funeral terá sido um acontecimento ímpar em todo o Gabú, morrera o homem, ficara o mito. Recapitulando, um agente leal ao régulo Monjur, disfarçado de viajante, entra em Sare Bane e facilmente deteta que se prepara uma rebelião contra o bravo régulo do Gabú, foge e dirige-se ao posto militar de Geba, conversa com o comandante, tenente Amílcar Teles, e foge de novo, pela calada da noite, para ir a Coiada, onde vive o régulo Monjur.

Fausto Duarte dá-nos uma impressiva nota do que era um presídio militar, descreve o posto de Geba, e aproveita esta autêntica de Suleimane Gadiri para descrever o feitiço florestal guineense. A selva é igualmente brutal, há crocodilos que comem gente, mesmo quando toda a Natureza parece repousar e até um flamingo permanece imóvel enquanto o crocodilo vai desfazendo com as suas fauces uma mulher, é como se estivesse a registar a lei suprema do mato, que ele assim define: “Quando a cobra contrafazendo o cacarejar da galinha consegue iludir a ave e trazê-la ao alcance das suas mandíbulas; quando o caçador imitando o grunhido da fêmea de certos bichos atrai o macho, confiante e talvez orgulhoso da preferência, até que ele sirva de alvo e mostre o ponto mais vulnerável do corpo à arma em espreita, é a lei do mato, a lei da astúcia e do mais forte”.

E assim chega ao seu destino este mensageiro, um habilidoso contador de histórias que deixa as crianças fascinadas, o autor dá-nos aqui páginas de encanto que bem mereciam ser conhecidas por portugueses, tal o poder de riqueza desta literatura luso-guineense. E aqui começa uma história de amor com Iobá, filha de Monjur, o destino de ambos ficará selado por uma tragédia, no final da obra o responsável por esta será severamente punido. Fausto Duarte discreteia sobre os usos e costumes de Fulas, a estranheza que esta etnia sente face às ambições dos brancos, mas percebendo que a administração colonial era de facto a nova lei, não só no Gabú mas como em todo aquele espaço territorial a que chamavam Guiné Portuguesa.

Monjur prepara a defesa e no aceso dos combates surge a coluna de Geba, irá ter lugar a indispensável reunião, uma tentativa de apaziguamento, mas o tenente Amílcar Teles, após ouvir a argumentação dos dois lados confere direitos ao régulo Monjur, assim fica abortada a rebelião. Romance sem tragédia é pão sem sal, há um sargento que sucumbe, impunha-se um parágrafo altamente emotivo:
“ - Dá-me licença, meu tenente? - rogou ele, unindo os calcanhares.
- Dize.
- É que há ali um papel para si, uma carta e uma bolsa que têm destino. - informou Raul. O oficial consentiu com um movimento quase impercetível da cabeça.
Ajoelhou-se o cabo. Tremiam-lhe as mãos. Os soldados mais afastados procuravam compreender a cena. Raul retirou do dólmen dois envelopes dobrados e uma bolsa de coiro. Guardou um dos envelopes depois de ler o endereço, entregou o outro ao oficial e abriu a bolsa para lhe ver o conteúdo. Tinha dentro uma madeixa de cabelos loiros, duas moedas de prata com a efígie dos reis, um recorte de jornal gasto nos vincos e uma pulseira, obra de ourivesaria indígena. Era essa toda a sua fortuna”.


E a coluna regressa com o corpo do sargento Domingues Alves, morte que a todos chocou. Fausto Duarte aproveita a oportunidade para desferir uma dura crítica à sociedade colonial, transpõe-se na pessoa do tenente Amílcar Teles: “Sempre que era obrigado por razões de serviço, inadiáveis, a ir à capital, fazia-o com profundo desgosto. Nas receções oficiais a que casualmente assistia, funcionários untuosos e mesureiros atropelavam-se, procurando chamar sobre si a atenção do governador, e suas mulheres, criaturas banais, muito arrebicadas, ciosas das precedências e da hierarquia dos maridos, temendo o contágio das inferioridades do mundo, faziam-no suspirar pelo mato. Tal como elas, aquela sociedade que se pretendia transplantar para ali com os mesmos ridículos da Europa estava deslocada”. Na recensão, permito-me pequenas alterações, estes apartes vêm antes da conversa conciliatória que só não falha porque o tenente Amílcar Teles profere sentença justa.

Temos de novo drama à vista, Suleimane Gadiri desapareceu, bem como Iobá, o régulo Monjur sente-se desconsiderado, no entanto ele recebera com júbilo a decisão do oficial português, que era verdadeiramente conhecedor das sociedades Fulas, escolhera com equidade entre Alarba Seilu e Monjur Embaló, mas a dor iria persistir durante muitos anos. Entretanto chegou a nova lógica de poder à colónia, Monjur percebia perfeitamente que as autoridades pretendiam retalhar todo o vasto Gabú, esquartejar o território para fazer perder a influência, obrigando os pequenos régulos a sentirem-se altamente dependentes de Bafatá, ou de Bissau. Mas não fora assim, como o autor descreve: “Doze anos dobados, depois que Iobá desaparecera e Alarba Seilu, o seu rival, morrera prematuramente, Monjur sentira crescer com o prestígio do seu nome uma indiscutível autoridade sobre o regulado compreendido por sete territórios. O governador entregara-lhe o de Boé como recompensa dos serviços por ele prestados nas guerras de Xime, de Cuor e de Badora. Alguns tinham sido valiosos. Auxiliara os portugueses com o apoio de Cherno Cali a bater os rebeldes Boncó e Infali Soncó que haviam tido a audácia de obstruir o rio impedindo a passagem das canhoneiras e de prender em uma palhota o comandante militar que substituíra o comandante Amílcar Teles. Fora então promovido a alferes de 2.ª linha. Da sua cabaia, o galão dourado dava-lhe um aspeto mais majestoso”.

Chamado a Bafatá, temendo a fatalidade de ir ser posto em prática a repartição de regulados, Monjur desloca-se com a sua cavalaria. Não ia a Bafatá desde a derrota dos régulos do Cuor e Badora, fora nesta vila que apertara com orgulho a mão do governador Oliveira Muzanty, era o grande momento do seu prestígio. É recebido no gabinete do administrador de Bafatá com visível indiferença e informado que de futuro não deverá deixar a povoação sem o seu prévio consentimento, caberia sempre ao administrador doravante a nomeação de chefes de territórios.

O poder de Monjur definha, e um dia Suleimane regressa e explica ao régulo e à assembleia que começa por receber com duas pedras na mão e que no fim o acolhe com triunfo, toda a verdade do que acontecera naqueles anos. A amizade foi retomada, Suleimane Gadiri assistirá aos últimos momentos de Monjur. E assim termina o romance: “Ficou na memória de todos a cena inolvidável do seu funeral. Ao longo dos três quilómetros que separam Gabú Sara de Oco, colocaram-se milhares de antigos vassalos aguardando a passagem do corpo que foi transportado de mão em mão até à aldeia onde tinham residido os grandes régulos oriundos da família Embaló Cunda. Quanto a Suleimane Gadiri o destino marcou-lhe outro caminho. Enrolou a sua esteira, tomou a chaleira de esmalte que continha água para as abluções e abalou novamente decidido a correr mundo”.

Dir-me-ão que este livro de Fausto Duarte não é literariamente famoso, ao que responderei que é um documento que em caso algum pode ficar no esquecimento, como se procurou destacar.

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Nota do editor

Último poste da série de 7 DE ABRIL DE 2023 > Guiné 61/74 - P24205: Notas de leitura (1570): "A Revolta!", por Fausto Duarte; Porto, 1945; O drama do régulo Monjur num belo romance (1) (Mário Beja Santos)