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terça-feira, 28 de maio de 2019

Guiné 61/74 - P19838: (In)citações (132): A cruz de guerra, coletiva, que ainda estou à espera de... receber, mais de meio século depois de um violentíssima emboscada em Darsalame, Baio, subsetor do Xime, em 1965 (João Crisóstomo, ex-alf mil inf, CCAÇ 1439, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67)


Guiné > Região de Bafatá > Setor L1 (Bambadinca) > Enxalé >  CCAÇ 1439 (1965/67) > Algures numa operação no mato, a norte do Enxalé, o João Crisóstomo, ex-alf mil inf, e o seu "guarda-costas".

Foto: © João Crisóstomo (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].



João Crisóstomo (Nova Iorque)

1. Pedimos ao João Crisóstomo para comentar uma informação por email, de hoje, do nosso colaborador permanente José Martins: 

"Ainda sobre a CCAÇ 1439, há várias Cruz de Guerra, entre elas a do João Crisóstomo.  Sabiam?"... 

O João respondeu-nos hoje, logo de manhã,,, Nós sabíamos dessa cruz de guerra, que ele nunca chegara a receber.  Eis a explicação:

Confirmo.

Não fui nenhum herói, apenas quis (fui obrigado pelas circunstâncias a) defender a minha pele e a dos que estavam mesmo comigo. Eu explico:

Numa operação (a minha memória não me diz já o nome de código) (*), já perto do objectivo, fomos "surpreendidos/emboscados": pelo que depreendo, "esperavam-nos" e de repente o meu pelotão que tinha sido escolhido pelo Capitão Pires [, cmdt da CCAÇ 1439, sediada no Enxalé]  como ponta de lança, caiu num fogo cerrado de frente (a uns escassos metros 15 a 20 metros) e de ambos os lados, numa situação verdadeiramente desesperada. (**)

Vi imediatamente, de meus próprios olhos, um dos nossos guias a cair e dois outros logo a seguir gravemente feridos; felizmente que havia um pequena vala à nossa frente onde a coluna da frente na qual eu estava integrado com o Furriel [António Nunes] Lopes,   nos atirámos. 

Estávamos cortados do resto da companhia, e de eventuais reforços, que compunham esta força e nos seguiam mais para trás. O nosso capitão disse-me, mais tarde, que quando nos viu naquela situação, nos deu a todos por perdidos e que nada podia fazer. 

Eu apercebi-me da situação e berrei ao Furriel Lopes, que estava mesmo a meu lado, e ao meu "guarda-costas", que passassem a palavra (tudo isto foi em segundos, quase em simultâneo com o iniciar do fogo cerrado pelo IN) para, aos três,  lançarmos as granadas de mão e correr em cima deles. 

E foi o que nos salvou: Eles não esperavam por esta reação imediata da nossa parte e, ao verem-nos de pé a correr para eles, a lançar  metralha, levantaram-se e foi um fugir desenfreado. Nem as próprias armas que estavam usando levaram… Para eles tinha-se virado o feitiço contra o feiticeiro como depois verificámos pelos vários corpos IN abandonados, e outros "pormenores",  como sucedia sempre em semelhantes ocasiões.

Ao voltarmos à base o nosso Capitão Pires juntou a Companhia para dizer a todos que muitos dos que estavam ali deviam a sua vida e esta "secção de valentes" (, e mencionou vários nomes, incluindo o do furriel Lopes e o meu,) que não só se salvaram a eles mesmos como possivelmente salvaram muitos outros, pois a "emboscada tinha sido bem montada e teria sido uma gaita" se nós não tivéssemos reagido tão rápido e com tanta coragem como fizemos.

Passados tempos vieram louvores (que mais tarde foram transformados em cruzes de guerra) e entre os recipientes estavam o Capitão Pires, eu, o Furriel Lopes, o meu guarda-costas e, a título póstumo, o guia Adão.

Eu estranhei e disse ao Capitão Pires que todo o meu pelotão merecia a mesma cruz de guerra; mas que, se não quisessem dar a todo o pelotão, a dessem pelo menos a toda a secção que ia na frente: todos fizeram o mesmo, não sabia porque só davam a a condecoração a  alguns.

Depois de voltarmos da Guiné, quando me começaram a enviar cartas para eu e mais duas pessoas da minha família irmos receber a condecoração,  e foram várias vezes, do Funchal, Beja, Lisboa… eu respondi sempre que a iria receber se dessem a mesma medalha a todos os membros da secção da frente (, comandada pelo Furriel Lopes). Como nunca me responderam a este meu pedido (os "convites" eram sempre nas mesmas situações, sem mais nada),  eu nunca fui a parte nenhuma e a minha "cruz de guerra" nunca chegou a sair da gaveta.

Espero que fique explicada a situação. Isto não é "modéstia fingida" da minha parte: trata-se apenas de uma "questão de igualdade" que deve ser respeitada. (***).

Permito-me aproveitar este para dizer que esta reunião [, o XIV Encontro Nacional  da ] Tabanca Grande em 25 de Maio, em Monte Real, foi uma grande experiência para mim. Entre outros motivos, por ver soldados e generais no mesmo nível como simples seres humanos. Um "Bem hajam" a todos estes grandes camaradas com

Um abraço do
João de Nova Iorque.
________________

Notas do editor:

(*) Op Avante, 30 de agosto de 1965, acrescenta o "consultor militar" e colaborador permanente José Martins.

(**) Vd. poste de 14 de julho de  2015 > Guiné 63/74 - P14874: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (3): Convívio da Tabanca de Porto Dinheiro, 12 de julho de 2015 (Parte II): João Crisóstomo e António Nunes Lopes, do mesmo pelotão, da CCAÇ 1439, encontram-se 50 anos depois e falam, com emoção e dramatismo, da violenta emboscada que uma vez sofreram em Darsalame (Baio), no subsetor do Xime

(...) Vídeo (7' 31''). Alojado em You Tube > Luís Graça

Lourinhã > Ribamar > Praia de Porto Dinheiro > Convívio da Tabanca de Porto Dinheiro > 12 de julho de 2015 > O João Crisóstomo e o António Nunes Lopes encontram-se ao fim de 50 anos... Pertenceram à mesma companhia e ao mesmo pelotão... E evocam aqui, com uma espantosa precisão de detalhes, e grande emoção, uma dos mais duros episódios de guerra por que passaram, em 1966, em Darsalame (Baio), na zona de Baio/Buruntoni, no Xime, que o PAIGC sempre "controlou" durante toda a guerra, e onde era inevitável haver "contacto" com as NT... Qual o nome verdadeiro do místico soldado, de alcunha "Penálti", de aqui se fala ? Pode ser que alguém saiba mais sobre este homem, que foi herói e desertor...

João Crisóstomo, que é natural de uma freguesia vizinha, A-dos-Cunhados, do concelho de Torres Vedras, fez-se à vida depois do regresso da guerra. Andou pela Europa e Brasil, até se fixar em 1975, nos EUA, onde hoje vive (em Nova Iorque) e que é a sua segunda pátria.

(***) Último poste da série > 16 de maio de  2019 > Guiné 61/74 - P19794: (In)citações (131): A dureza da nossa infância e a guerra (Juvenal Amado, ex-1.º Cabo Condutor Auto do BCAÇ 3872)

terça-feira, 14 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14874: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (3): Convívio da Tabanca de Porto Dinheiro, 12 de julho de 2015 (Parte II): João Crisóstomo e António Nunes Lopes, do mesmo pelotão, da CCAÇ 1439, encontram-se 50 anos depois e falam, com emoção e dramatismo, da violenta emboscada que uma vez sofreram em Darsalame (Baio), no subsetor do Xime



Vídeo (7' 31''). Alojado em You Tube > Luís Graça 

Lourinhã > Ribamar > Praia de Porto Dinheiro > Convívio da Tabanca de Porto Dinheiro > 12 de julho de 2015 > (*) O João Crisóstomo e o António Nunes Lopes encontram-se ao fim de 50 anos... Pertenceram à mesma companhia e ao mesmo pelotão... E evocam aqui, com uma espantosa precisão de detalhes, e grande emoção,  uma dos mais duros episódios de guerra por que passaram, em 1966, em Darsalame (Baio), na zona de Baio/Buruntoni, no Xime, que o PAIGC sempre "controlou" durante toda a guerra, e onde era inevitável haver "contacto" com as NT... Qual o nome verdadeiro do místico soldado, de alcunha "Penálti", de aqui se fala ? Pode ser que alguém saiba mais sobre este homem, que foi herói e desertor...

João Crisóstomo, que é natural de uma freguesia vizinha, A-dos-Cunhados, do concelho de Torres Vedras, fez-se à vida depois do regresso da guerra. Andou pela Europa e Brasil, até se fixar em 1975, nos EUA, onde hoje vive (em Nova Ioprque) e que é a sua segunda pátria.



Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca) > Susetor do Xime > Carta do Xime  (1961) > Escala de 1/50 mil > Posição relativa do Xime e Darsalame (Baio) onde o pelotão do João Crisóstomo (alferes) e do António Nunes Lopes (furriel) sofreram uma violenta emboscada, em 1966, e tiveram um comportamento heroico... Na zona de Poindom / Ponta do Inglês, havia população que cultivava as bolanhas, na margem direita do R Corubal e que "apoiava" a guerrilha... Também eu ali conheci o inferno, três ou quatro anos mais tarde, em 1969/71... (LG).

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2015).


Praia de Porto Dinheiro

por Luís Graça (*)


Finisterra,
pórtico do tempo,
és gare, 
és algar,
porto dos portos das Atlântidas perdidas!

Foste estaleiro de vasos de guerra,
galeões, naus e caravelas
por haver ou nunca havidas,
diz o livro antigo do almoxarife.

Hoje não se constroem mais catedrais,
nas tuas fossas submarinas,
nem moinhos de vento,
nos teus corais de recife,
nem traineiras de grosso cavername,
nas rampas das tuas arribas fósseis.

Dóceis
são as ondas do teu mar com que afagas
a pele 
e apagas
a púbis das raparigas.

Praia de  Porto Dinheiro:
o irresistível apelo das algas
que são as hormonas do mar,
espigas, valquírias, ninfas, najas, canibais,
que vêm do fundo dos tempos imemoriais
para seduzir os filhos dos homens,
inebriar as suas almas,
enlear os seus corpos.

Há olhos que perscrutam a linha do horizonte
e rasgam a colina de neblina, 
por detrás das Berlengas.
É de lá que vêm corsários,
monstros e mostrengas,
dinossauros,
loucos menestréis,
contadores de lendas,
mouras encantadas,
mercadores, invasores, conquistadores,
vikings, vírus,
e os bretões com o seu barco a vapor,
o Bateau ivre.

É de lá que vêm os portadores da peste, da fome e da guerra…
Mercator ergo pestiferus,
mercador logo portador da peste,
de que Deus nos livre!

Deste nomes de fêmeas
aos teus barcos
que são machos,
máquinas fálicas
de lavrar e violar
o vento, a água, o ar,
Jessica, Mafalda, Sofia,
Inês, Patrícia, Maria.

Formidáveis muralhas de palavras e moluscos
emparedam vivas as gentes, ribeirinhas,
na canícula desta tarde de verão
em que esperamos em vão
as hordas bárbaras,
ou tanto faz,
os soldadinhos de chumbo do Napoleão,
os mercadores fenícios,
ou as legiões romanas,
devidamente equipadas 
e alinhadinhas,
nas suas galeras feitas de legos.


Não sabemos quem devemos mais esperar,
se Drácula ou Drake, 
disfarçado da pérfida deusa Europa,
o deslizamento das placas tectónicas,
a erupção do teu gigantesco dinossauro,
o cobrador de impostos

em nome das tribos teutónicas, 
Moisés e a tábua dos dez mandamentos,
a bela e frágil deusa Atena,
o profeta Jesus Cristo 
ou o profeta Maomé,
o último guru do Vale da Sílica, 
ou simplesmente o carteiro 
que nos há-de trazer a carta a Garcia,
com a solução alquímica da vida,
o elixir da juventude,
o algoritmo da felicidade,

a chave do Euromilhões
ou a password do sítio
da gruta de Alibabá e os 40 ladrões.

Estou sentado na esplanada da tasca da Ti Augusta,
depois de saborear uma sopa de navalheiras,
e comer uma posta de arraia frita,
recuando ao tempo dos meus avoengos Maçaricos,
arrebanhados em terra 
para a demanda, por mar,  das Índias…
E aqui penso em como o mundo às vezes é tão simples,
se descartado das métricas todas
com que nos lixam a vida 
e nos roubam o sonho e a poesia: 
a econometria,
a sociometria,

a psicometria,
a biometria…

Dizem que aqui reinou o rei Midas,
o mesmo que transformava lagostas e algas
em barras de ouro.

Porto Dinheiro,
dos casais por detrás das tuas colinas,
até ao mar imenso,
por aqui andaram, labutaram, penaram, 
amaram, lutaram e naufragaram 
os nossos antepassados


Um dia há de desaparecer nas Américas
o teu último carpinteiro de naus, caravelas e traineiras.
Não sobreviveu à industrialização da construção naval,
nem à crise dos anos 30.
Morreu longe, na Califórnia,
longe, muito longe do teu porto de abrigo.

Maldita pátria,
mil vezes amada, 
e outras tantas odiada,
querida mátria
que tantos filhos pariste,

cruel frátria
que tantos irmãos rejeitaste!


Luís Graça

Lourinhã, Praia do Porto Dinheiro, 18/8/2011



(...) À memória dos meus antepassados Maçaricos,
marinheiros, mareantes, navegantes,
pescadores, mercadores, construtores navais... desde Quinhentos

Ao António Fernandes (Patas),
contrutor naval que morreu na Califórnia
E ao seu neto, e meu primo e camarada, Horácio Fernandes,
capelão militar em Catió e Bambadinca (1967/69). (...)