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domingo, 24 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27148: Felizmente ainda há verão em 2025 (22): Am Angola, nem todos os sobas eram régulos e nem todos os régulos eram sobas


Foto de capa da página do Facebook do FAAT-Fórum Angolano das Autoridades Tradicionais (com a devida vénia...). A página foi criada em setembro de 2021 mas parece náo estar ativa.  

"Quimbo", no português de Angola, é o equivalente a tabanca (na Guiné): conjunto de casas que formam uma aglomeração rural (termo que vem do umbundo, kimbo).



1. Angola, a joia da coroa do "império colonial português", merece que o blogue da Tabanca Grande fale dela de vez em quando. Tem, de resto, mais de 600 referências... Afinal, fomos parar à Guiné...por causa de Angola!

O tema de hoje,  ainda em pleno verão (*), é sobre:


Sobas e Régulos: Autoridades Coloniais Locais, em Angola


António Rosinha, Patrício Ribeiro, Fernando Ribeiro, Jaime Silva e "outros angolanos" da Tabanca Grande não precisam de ser convidados: a sua experiência vivida de Angola dá-lhes autoridade para "meter a sua colherada"  na discussão deste tema que também interessa aos "amigos e camaradas da Guiné"... É um tema da área da antropologia e da história da administração colonial... Alguns de nós, como eu, gostariam de saber mais. (**) 

Havia uma diferença semântica e conceptual entre sobas e régulos, na Angola do tempo colonial. Embora muitas vezes fossem usados  indevidamente como se fossem sinónimos.

Na Angola do período colonial, os termos soba e régulo eram frequentemente utilizados para designar as autoridades tradicionais africanas, mas existia uma diferença fundamental entre eles, assente na origem da figura e na relação com a administração portuguesa. 

Soba vem do quimbundo "soba"... Essencialmente, soba era a designação endógena e ancestral,  enquanto régulo era a terminologia colonial que implicava uma integração no sistema colonial e nap subordinação ao poder português.

O soba era a figura de autoridade tradicional, um chefe que já existia nas estruturas sociais e políticas dos diversos reinos e povos de Angola muito antes da chegada dos portugueses. 

O seu poder emanava de linhagens ancestrais, do controlo da terra e de uma legitimidade cultural e espiritual reconhecida pela sua comunidade. 

Os sobas desempenhavam um papel crucial na:
  • administração da justiça, 
  • distribuição de terras, 
  • condução de rituais;
  • defesa e segurança do seu povo. 

A sua autoridade era intrínseca à organização social local. Existia uma hierarquia entre eles, com a figura do "soba grande", que detinha poder sobre um conjunto de  outros sobas e sobados (territórios governados por um soba).

Por outro lado, sabe-se que em determinadas regiões de Angola há (ou havia no passado) um conselho de sobas que escolhe o soba: noutras a sucessão é (ou erra)  realizada por linhagem em que o sobrinho, filho de uma irmã, toma(va) o lugar do seu tio por morte deste. Não sabemnos como as coisas se passam hoje, cinquenat anos depois da independência de Angola.

 Por outro lado, o termo régulo, que deriva do latim  regulu(m)  (da palavra regulus, -i, rei jovem, rei de um pequeno estado)  era a designação que a administração colonial portuguesa atribuía aos chefes locais que eram incorporados na sua estrutura administrativa.

Ao se referir a um soba como "régulo" (como , de resto, ainda vem nos dicionários portugueses!), o poder colonial não só traduzia a sua função para a sua própria compreensão hierárquica, mas também o diminuía simbolicamente, em termos de estatuto: de líder soberano tradicional, carismático,  passava a "pequeno rei" subalterno...

A transformação de um soba em régulo ocorria, na prática, quando este passava a atuar como um intermediário da administração colonial. As suas principais funções enquanto régulos incluíam;

  •  a cobrança de impostos:
  • o recrutamento de mão de obra forçada (o "chibalo") (***):
  •  e a manutenção da ordem, de acordo com os interesses portugueses. 

Em troca, o régulo podia receber certos privilégios, como uma pequena remuneração, uniformes ou o reconhecimento e apoio militar da administração colonial contra rivais.

É importante notar que nem todos os sobas se tornaram régulos. Muitos resistiram à dominação portuguesa e foram, por isso, combatidos e, por vezes, substituídos por indivíduos mais dóceis à administração colonial, que eram então empossados como régulos.

Em suma, a principal diferença residia na origem e na legitimação do poder:

(i) Soba:  

  • termo de origem africana, já existente antes da colonização;
  • designava um líder com autoridade tradicional e legitimidade interna na sua comunidade ou grupo étnico, anterior e, em muitos casos, independente do poder colonial;
  • o cargo era hereditário e estava ligado às tradições, linhagens e rituais locais;
  • tinha funções políticas, jurídicas (resolução de conflitos), espirituais e sociais, sendo uma figura central na organização das comunidades.
(ii) Régulo: 
  • termo de origem portuguesa (também se usava na Guiné e em Moçambique);
  • derivado de regulu(m) e usado em contexto colonial para traduzir ou reinterpretar a figura dos chefes locais africanos;
  • designava um líder local a quem a administração colonial reconhecia e delegava certas funções, inserindo-o na sua estrutura de poder e tornando-o, na prática, um funcionário subalterno do Estado colonial;
  •  não era necessariamente o mesmo que o soba, mas no terreno, muitas vezes, os colonizadores usavam o termo para designar esses chefes;
  • no fundo, era  uma categoria administrativa colonial.

  • o Estado colonial reconhecia oficialmente alguns chefes como régulos e subordinava-os à sua hierarquia, atribuindo-lhes funções de autoridade local no quadro da administração indireta.


Portanto, embora na prática um mesmo indivíduo pudesse ser um soba para o seu povo e um régulo para os portugueses, os termos carregam conotações e realidades políticas distintas que refletem a complexa e, muitas vezes, contraditória e tensa relação entre as autoridades tradicionais angolanas e o poder colonial português.

 Em resumo:
  • Soba = conceito autóctone, com legitimidade tradicional.

  • Régulo = conceito colonial, oficializado para fins administrativos, podendo coincidir ou não com a figura do soba.

Muitos sobas foram convertidos em régulos pela administração portuguesa, mas nem todos os régulos eram vistos como verdadeiros sobas pelas comunidades, o que gerava tensões e até conflitos.

Apresenta-se a seguir um quadro comparativo simples  para se perceber melhor a distinção entre soba e régulo na Angola colonial (que passou a ser "província ultramarina" com a reforma de 1951):


AspetoSoba (conceito autóctone)Régulo (conceito colonial)


Origem do termo
Línguas banto (ex.: umbundo, quimbundo)Português, derivado de regulu(m) (pequeno rei)
Natureza
Cargo tradicional e espiritual, enraizado na cultura local
Categoria administrativa criada pelo poder colonial
Legitimidade
Hereditária, baseada em linhagem, tradição e rituais
Reconhecimento e nomeação pela administração colonial
Funções
Mediação de conflitos, chefia política, autoridade espiritual, guardião dos costumes
Autoridade local no quadro da “administração indireta”, recolha de impostos, apoio ao controlo colonial
Reconhecimento
Pela comunidade, segundo costumes próprios
Pelo Estado colonial, como “autoridade indígena” oficial
Perceção localFigura respeitada, parte integrante da identidade culturalMuitas vezes visto como uma imposição externa (quando o régulo não coincidia com o verdadeiro soba)


Em suma: o soba representava a continuidade da tradição, a legitimidade pré-colonial; o régulo representava a adaptação (e em muitos casos apropriação) dessa autoridade ao sistema colonial.

Vejamos como a distinção entre sobas e régulos afetou as relações entre colonizadores e populações em Angola durante o período colonial:

(i) Administração indireta
  • o Estado colonial português não tinha capacidade para controlar diretamente todas as regiões  (por exemplo Angola, com 1,2 milhões de km2 era cerca de 14 vezes maior que a "metrópole", o "Puto", como lhe chamavam os colonos);

  • por isso, utilizava os sobas já existentes, reconhecendo-os (ou substituindo-os) como régulos;

  • isso permitia que a autoridade colonial chegasse ao nível local através de figuras tradicionais, mas com funções adaptadas aos interesses coloniais.

(ii) Tensões de legitimidade

  • quando o verdadeiro soba era reconhecido como régulo, a comunidade aceitava-o com relativa naturalidade;

  • mas, quando o governo colonial nomeava como régulo alguém que não tinha legitimidade tradicional, isso gerava conflitos internos:

    • uns seguiam o “soba legítimo” (mesmo sem reconhecimento colonial);

    • outros eram obrigados a obedecer ao “régulo oficial”, imposto pela administração.

  • Esse “duplo poder” minava tanto a coesão das comunidades como a própria confiança nas autoridades locais.

(iii) Instrumentalização política
  • Muitos régulos passaram a ser usados como instrumentos do poder colonial:

    • recolha de impostos;

    • organização do trabalho forçado (contratos e recrutamento) (trabalho forçado que existiu até 1961);

    • fiscalização e denúncia de resistências.

  • Isto fez com que alguns régulos fossem vistos como colaboracionistas, perdendo 
    prestígio junto da sua própria comunidade.


(iv) Resistência e negociação
  • houve sobas que se recusaram a aceitar o estatuto de régulo, mantendo apenas a sua autoridade tradicional, mesmo sob risco de represálias;

  • outros souberam negociar: aceitavam o papel de régulo para garantir alguma margem de manobra e proteger a comunidade, mas continuavam a agir como guardiões dos costumes;

  • assim, muitos sobas/régulos desempenhavam uma função ambígua, entre mediadores e representantes do poder colonial;

  • depois da independência, houve ajustes de contas (mais violentos na Guiné e em Moçambique do que em Angola, mas isso é outra história; no caso da Guiné, por exemplo, terá havido uma "militarização" da figura do régulo, que também podia ser um cabo de guerra, comandante de uma companhia de milícias).


Em suma:  a distinção entre soba e régulo criou uma fratura entre legitimidade tradicional e legitimidade colonial. Isso foi explorado pelos colonizadores para controlar as populações, mas também abriu espaço para resistências subtis ou abertas, conforme cada comunidade e cada líder.

(Pesquisa: LG + assistentes de IA / Gemini / Perplexity / ChatGPT)


(**) Vd. poste de 22 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27141: A nossa guerra em números (36): Auxiliares da administração colonial: régulos, sobas e liurais...

(***) Chibalo é o conceito de servidão por dívida ou trabalho forçado no Ultramar Português (...)
 
Em 1869, os portugueses aboliram oficialmente a escravidão, mas, na prática, continuaram assim mesmo. Chibalo foi usado para construir infraestruturas das províncias africanas, pois apenas colonos portugueses e assimilados recebiam educação e estavam isentos deste trabalho forçado. (...)

Sob o regime do Estado Novo (...), o chibalo foi usado em Moçambique, por exemplo,  para cultivar algodão . A Companhia do Niassa é um exemplo do tipo de empresas que poderiam florescer desde que tinham acesso a uma força de trabalho não remunerada.
 O investimento estrangeiro nas províncias ultramarinas portuguesas foi banido para que Portugal se beneficiasse diretamente.

Todos os homens de idade adequada tiveram que trabalhar nos campos de algodão, que se tornaram inúteis para a produção de alimentos, levando à fome e desnutrição.(...) (Fonte: Wikipedia)

chibalo
(chi·ba·lo)

nome masculino

1. [Moçambique] [História] Regime de trabalho forçado através do qual a administração colonial fornecia mão-de-obra barata aos colonos de grandes propriedades (ex.: a duração do chibalo era estipulada pelas autoridades locais). (...)

2. [Moçambique] [História] Trabalhador submetido a esse regime de trabalho.

Sinónimo geral: Xibalo

Origem: do tsonga.

"chibalo", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2025, https://dicionario.priberam.org/chibalo.

Guiné 61/74 - P27147: Parabéns a você (2410): António Fernando Marques, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2590/CCAÇ 12 (Bambadinca, 1968/70)

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Nota do editor

Último post da série de 24 de Agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27144: Parabéns a você (2409): Fernando Cepa, ex-Fur Mil Art da CART 1689 / BART 1913 (Catió, Cabedú, Gandembel e Canquelifá, 1967/69)