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sábado, 30 de agosto de 2025

Guiné 61/74 – P27169: (Ex)citações (437): Por aí, ouvindo, vendo, lendo, analisando e concluindo. (José Saúde)


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.


Por aí, ouvindo, vendo, lendo, analisando e concluindo

Camaradas,

Não fomos, com o devido respeito para com todos os camaradas, combatentes que desafiávamos a temperatura do ar condicionado, ou onde a “calma” das esferográficas e das velhas máquinas de escrever que ditavam narrativas para os superiores hierárquicos, lá longe, analisarem, concluírem e decidirem. Não fomos, por isso, semidivindades de uma guerra onde a luta pela sobrevivência se circunscrevia na velha expressão: “matar para não morrer”. Fomos, somente, rapazes, melhor, miúdos que desfiávamos o imprevisto do momento seguinte pelo interior de um denso mato. Cada um de nós tem as suas histórias, ou estórias para contar. Tudo ficou, como é evidente, registado em memórias que ainda hoje mexem connosco. Importa não menosprezar opiniões de camaradas que contam as suas realidades, mas nunca alicerçando em depoimentos de outros que, numa posição de autodefesa, “estraçalham mato” e partem para as mais vituperas e vácuas apreciações.

Neste contexto, revejo factualidades por nós conhecidas nos três palcos de guerra; vendo histórias de gentes africanas que ao longo das suas vidas se confrontaram com diversos problemas impostos por etnias que os olhavam de esgueira; lendo sobre modos de vida de sementes que por lá deixámos e como alguns eram, e são, vistos pelo meio comunitário onde convivem; analisando o sofrimento daqueles cujos espermatozoides que fecundaram um óvulo de uma jovem e geraram um ser humano; analisando a forma como, passados muitos anos, é possível constatar uma inequívoca veracidade que todos, ou quase todos, conhecemos, ou seja, o sexo em tempos de guerra; concluindo, afinal pelo mais invulgar e decrépito lugar por onde passámos lá ficaram as marcas que, entretanto, ousámos desvendar, tendo em conta a minha força moral que me incutiu trazer à estampa veracidades que tendiam ficar amorfas numa prateleira onde o bicho da madeira cria um casulo onde os segredos tombariam em saco roto.

Do efeito desta conversa espadaúda, ficam as avestruzes que enterram a cabeça na areia e quebro a veracidade de um silêncio que fora verdadeiramente real.

A propósito, retirei, com a devida vénia, do texto escrito pelo camarada Zé Teixeira, em humor da caserna, que a “Maria tira di brancu”, acrescentando o seguinte: “Houve cenas engraçadas com a Maria-tira-cabaço. Um camarada e amigo, encabaçado, tinha vontade e… inexperiência, vergonha, medo, falta de jeito, etc. Este foi, meteu a cunha e gozou… de borla. O outro pagou a dobrar, isso de tirar cabaço a branco tinha de ser bem pago”.

Obrigado, Zé, pois, com coragem e brio, tocas num tema tabu, mas literalmente verdadeiro. Acho que não deves levar a mal este meu atrevimento, mas achei o texto deveras interessante, daí que me deu vontade em ir buscar um outro por mim já levantado: Sexo na guerra. Tabu? Abraço, Zé Teixeira,

Camaradas, reconheço que o tema não é de nada generoso, mas é real. Deixo um dos muitos textos que fica narrado no meu livro – “UM RANGER NA GUERRA COLONIAL GUINÉ-BISSAU 1973/1974”. Editado pela Colibri, Lisboa.


Sexo na guerra
Tabu?

Indolente, obesa e com um falar melodioso a mulher grande impunha respeito à plebe que por norma a rodeava. A sua tabanca, simples e despida de preconceitos, situava-se entre o quartel novo onde estava instalada a CCS do BART 6523 e Nova Lamego. Um passeio noturno da rapaziada levava o pessoal a uma visita espontânea a casa da mulher grande.

Noites que procediam ao recebimento do fresco pré eram, normalmente, sinais evidentes para uma emboscada dos soldados à porta da idosa senhora.

É do conhecimento geral, e não vamos escamotear a inequívoca verdade porque se sabe que o contraditório de opiniões existentes obedece a uma vénia e profunda reflexão, que o sexo foi sempre uma evidente prática comum entre os seres viventes.

Desde os primórdios da humanidade que o ato se pratica em toda a sua extensão. Refere a Bíblia, património universal da Religião Cristã, que já Adão e Eva assumiram o sexo, ainda que virtualmente escondido, mas que no momento de calor e compaixão uniram os seus órgãos genitais e consumaram uma relação sexual.

Neste contexto, importa assumir o ato com frontalidade e não optar pela surdez, procurando o eventual pecador espontâneo imitar a velha avestruz num austero deserto australiano, isto é, esconder a cabeça na areia para passar em seguida como um ser imaculado. Nos tempos de guerra, está provado cientificamente, que são propícios a encontros amorosos. A guerra do ex-Ultramar não passou incólume a desvarios praticados e não assumidos.

A Guiné não foi um caso à parte. Em Nova Lamego, independentemente de encontros amorosos sob um silêncio colossal, havia quem fizesse render as aventuras de jovens em plena ascensão sexual a troco de patacão. Os pesos (escudos) na Guiné eram bênçãos divinas. Na minha conceção, embora discutível, admito que o ato sexual praticado pela mulher não passava exclusivamente por uma mera venda do corpo, mas pela maneira mais prática, e simples, em realizar uns magros pesos para sustentar inadiáveis compromissos familiares.

Negócio? Isso eram ajustes de gentes feitas com o sistema. A mulher grande que eu conheci em Gabu tratava o assunto com uma ligeireza perversa. “Arranjava” bajudas e a malta despejava os seus espermatozóides em vaginas dilaceradas pelos muitos serviços prestados. Consequências? Tudo era tabu! Há quem se refugie numa mítica opção tentando a todo o custo tapar o sol com uma peneira.

Tímidos e envergonhados afirmavam que voltaram virgens. As mãos arrogaram-se às brincadeiras das crianças. Parafraseando um velho político, já falecido, num momento áureo da Revolução de Abril, dizia ele para o camarada ao lado: “Olhe que não!”

Não constringiremos cenas passadas. Verídicas! Assumo que não fui imaculado. Hoje, tal como sempre, dou a cara. Deixo em prosa uma etapa da vida que não me passou ao lado. Pratiquei atos sexuais, sim senhor, como tantos outros camaradas de armas.

Afirmo, com segurança, que numa noite quente eu e um outro camarada, furriel miliciano da minha Companhia, ousámos desafiar a escuridão da tabanca e fomos parar junto a um casal de idosos que gentilmente nos recebeu propondo-nos, de seguida, uma visita à casa do lado, onde uma bajuda, feita a favores sexuais, nos recebeu.

Discutimos o valor, acertámos o custo final e, isoladamente, lá fomos fazer o respetivo serviço. Depois de pagarmos, e no meio de uma franca cavaqueira, apareceu-nos a bajuda, aquela que tinha saciado os nossos eternos anseios carnais, com uma deficiência descomunal numa das pernas. Infelizmente era coxa.

Ressalve-se, porém, que a rapariga era de facto bonita, mas a contingência da vida carimbou-a com um enorme defeito físico. Olhámos um para o outro e em mansinho comentámos: “A nossa amante foi mesmo esta bajuda? Muito bem, o serviço está feito e nada a comentar”, ficou a experiência.

Chegados ao quartel, como era hábito, tomámos um aprazível banho com água barrenta e introduzimos na uretra do pénis uma milagrosa pomada que, ao que tudo indicava, queimava o mais atrevido intruso verme que procurava poiso numa outra superfície humana desconhecida.

Numa outra noite e com a luz ténue de uma candeia à meia haste, fui ter com a mulher grande e perguntei-lhe se por acaso havia bajuda nova, a mulher, experimentada nestas andanças e com um olhar vazio, olhou-me de alto a baixo e atitou-me com esta: “ei furrie você é comando… manga di mau”.

Sinceramente não me apercebi da sua ligeireza ao detetar no camuflado os dísticos que sempre transportava na farda. Acalmei-a e disse que era na verdade ranger, não comando, mas mau… nunca. Coloquei em solene a minha forma de ser e a cordialidade que sempre marcou a minha amizade para com o próximo. A conversa prolongou-se e num repente a mulher grande brindou-me com o meu desejo. Ficou a certeza de que outros se seguiram.

De outros encontros pseudo amorosos ressalta também uma visita ao bairro do Pilão, em Bissau. Vagueando entre a imprevisibilidade de estreitas ruelas de tabancas nada iluminadas, algumas completamente às escuras, acompanhado de um velho amigo, desafiámos o imprevisto e fomos ao encontro dos nossos desejos sexuais. Confesso que chegámos a temer a aventura. Passavam por nós homens negros, altos, de túnicas compridas, enfim, silhuetas que em determinada altura nos levou a duvidar da fartura. Cumprimentávamos e eles, simpaticamente, respondiam. Tudo ok, comentámos.

O Pilão era um bairro dos subúrbios de Bissau onde a malta da metrópole por norma não passeava. A noite tinha um cunho arrojado. A palavra passava de boca em boca e os tropas arrepiavam caminho.

Todavia, decidimos desafiar essa perigosidade e encontrei uma jovem mulher e de corpo descomunal, a quem me entreguei por alguns momentos de delírio. Paguei e aventura terminou aí. Nunca mais a vi!

Concluindo: porquê escamotear verdades de jovens entregues a elementares gostos sexuais procurando, nalguns casos, tentar passar isento a constrangimentos entretanto criados? Tabu? Ou consequências lógicas dos nossos verdes anos?

Resenha final: assumamos, porque Deus fez o homem e a mulher e projetou os dois seres com um fim comum, amar e procriar.

Abraços, camaradas
José Saúde
Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523

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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em: 

13 de julho de 2025 > Guiné 61/74 - P27014: (Ex)citações (436): "Filhos de Tuga"... e o caso do meu mano, meu amigo, meu herói, militar de carreira, falecido em 2021 (Virgílio Teixeira, ex-alf mil SAM, CCS/BCAÇ 1933, Nova Lamego e São Domingos, 1967/69; Vila do Conde)

Guiné 61/74 - P27168: Os nossos seres, saberes e lazeres (698): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (219): Um novo e belo museu regional, de visita obrigatória, o do Bombarral - 2 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Julho 2025:

Queridos amigos,
Estamos de regresso ao Palácio Gorjão, já se falou da Pré-História, há aqui testemunhos de grande significado, seguiu-se a visita a peças de arte religiosa, onde se destacam artistas com relevância na arte portuguesa, como é o caso de Josefa de Óbidos, Baltazar Gomes Figueira, Leopoldo Almeida e António Lino. Não se quis perder uma exposição sobre a Cerâmica Bombarralense, exposição temporária, deu para disfrutar obras de Júlio Pomar, Maria Barreira e Vasco Pereira da Conceição. Não faltam pedras de armas numa região que desde a Idade Média gozou da presença de uma aristocracia rural influente, a par da presença das ordens religiosas, como a Ordem de Cister; dentro da concepção deste espaço museológico em quatro salas, impressiona até pela qualidade didática a homenagem a dois escritores ligados ao Bombarral, Anrique da Mota e Júlio César Machado. Não tenho dúvidas em que o leitor, podendo, aqui irá deliciar-se com este espaço patrimonial onde só sentia falta da expressão económica, o Bombarral situa-se numa área potencialmente frutícola e vitivinícola, pressinto que mais tarde ou mais cedo a história desse património também aqui terá assento.

Um abraço do
Mário



Um novo e belo museu regional, de visita obrigatória, o do Bombarral - 2

Mário Beja Santos

Continuamos a visita ao museu do Bombarral que reabriu no fim do mês de junho. Situa-se no Palácio Gorjão, deu-se uma súmula da sua história, vale agora a pena reproduzir uma chamada de atenção sobre o Bombarral, como aqui se pode ler. Área rural diretamente influenciada pela reorganização territorial inerente ao processo de Reconquista Cristã. Em terras próximas daqui houve a presença de ordens militares ou religiosas, como a Ordem de Cister. Região essencialmente agrícola há muitos séculos. É nesse contexto que devemos apreciar o Palácio Gorjão, um doa certificados da fidalguia rural. Não é por acaso que no museu se encontra um conjunto de pedras de armas destas nobres famílias, a dos Henriques, a dos Motas e a dos Gorjões. Durante a Idade Média, entre os séculos V e XV, o brasão de armas era colocado nos elmos e nos escudos como forma de reconhecimento em batalhas ou torneios. Primeiro como identificação pessoal, depois como distinção de família, era conquistado por dedicação à Coroa por feitos ilustres ou por tarefas administrativas. Os brasões eram usados nos pertences pessoais, em edifícios, gravados em pedra.
Início do Século XX, sendo visível a Sul uma habitação, o muro da propriedade e a mata ali existente. A Norte são visíveis o muro e um portão de entrada. Em frente do Palácio é visível a Ermida do Espírito Santo demolida em 1932 para alargamento da estrada.
Frente do Palácio Gorjão (década de 1960)
Pedra de armas dos Henriques e dos Motas. Andou pelo Palácio dos Henriques, esteve depois colocada na antiga Igreja Matriz do Bombarral e, mais tarde, no museu. É do século XVIII.
Exemplos da cerâmica bombarralense

Está patente uma exposição temporária no museu do Bombarral intitulada “Ecos da Cerâmica, produção artística no Bombarral”, poderá ser visitada até 26 de outubro. O móbil da exposição é recuperar e valorizar uma memória fundamental da vila: a sua história na produção cerâmica. Aqui se monstram peças reunidas por colecionadores, celebra-se a interligação entre arte, indústria e comunidade, revisitando um tempo em que o Bombarral se destacou como centro de criatividade, técnica e saber-fazer no panorama da cerâmica nacional. É no decurso da exposição que se dão informações importantes ao visitante:
“O nome Bombarral terá origem no termo medieval Mons Barralis, que significa monte de barro, o que reflete uma característica do território – os solos argilosos, que terão motivado outros topónimos, como Barrocalvo, Barro Lobo, Barreiras. Além do forno romano-lusitano e de olarias mais antigas, nomeadamente no Barrocalvo, existem fornos de tijolo e telha canuda ou mourisca no Salgueiro. Em 1920, o concelho do Bombarral noticiava a entrada em funcionamento de uma fábrica no Bombarral, destinada à produção de tijolo e telha Marselha. A Cerâmica Bombarralense (1944-1954) ganhou substancial relevo a nível local. Durante a segunda metade do século XX, laboraram as empresas Olaria dos Matinhos, Ceramarte, Bomcer.
A Cerâmica Bombarralense teve entre os seus acionistas dois artistas de renome, Júlio Pomar e Vasco Pereira da Conceição. A fábrica produzia louça doméstica, faiança artística, azulejos de vários estilos e louças comuns e sanitárias. Aqui se acolheram nomes importantes das artes e da cerâmica como Júlio Pomar, Luís Ferreira da Silva, Margarida Tengarrinha, Alice Jorge, Maria Barreira e Vasco Pereira da Conceição.”

Pratos fabricados por Júlio Pomar
Reprodução de painel cerâmico de Júlio Pomar, 1950. É um painel de uma das paredes do Botequim do Lago, no Campo Grande, em Lisboa. Foi aplicado em 1950, aquando da restruturação da zona segundo um projeto do arquiteto Keil do Amaral. O painel foi a primeira experiência de Júlio Pomar com azulejos, produzido na Cerâmica Bombarralense
Mulheres na lota, Júlio Pomar, 1952, linogravura, empréstimo de Alexandre Pomar
Nazarena por Maria Barreira, 1968

Maria Barreira foi bolseira da Fundação Gulbenkian em Paris, marcou presença nas várias Exposições Gerais de Artes Plásticas, como artista e organizadora. Realizou desenho, ilustração, cerâmica e medalhística, mas foi a escultura que lhe conferiu maior notoriedade.
Busto de Júlio César Machado, por Cesare Sighinolfi

Estamos agora na última das salas, a Sala Palavras, aqui se homenageiam dois escritores ligados ao Bombarral, Anrique da Mota (cerca de 1470 - cerca de 1545) e Júlio César Machado (1835-1890), notabilizado pela sua paixão pelo teatro. A organização museológica e museográfica da sala propõe um encontro com dois tempos e dois estilos, revelando como a escrita, nas suas várias formas, reflete, não só a individualidade dos autores, mas também o espírito do tempo e a identidade de um território.
No edifício requalificado temos aqui a entrada do belo museu do Bombarral, numa das pontas de uma praça desafogada onde se ergue a Câmara Municipal. Foi uma visita inesquecível, não hesito em recomendá-la a todas e todos.
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Nota do editor

Último post da série de 23 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27146: Os nossos seres, saberes e lazeres (697): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (218): Um novo e belo museu regional, de visita obrigatória, o do Bombarral - 1 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P27167: Felizmente ainda há verão em 2025 (27): Meter o "chico" (Juvenal Amado, ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas)

1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo CAR da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), com data de 28 de Agosto de 2025:


METER O CHICO

No tempo em que estive na tropa, havia dois termos depreciativos, se não ofensivos, Chico e Básico

Na recruta cedo travei conhecimento com os dois postos militares.

O Básico era um indivíduo sem qualquer especialidade, incapaz de marchar e manusear armas, enfim, servia para limpezas e recados dentro do quartel. Mandava em nós recrutas pois ainda éramos menos que básicos. Lidei mais de dois anos com um básico, que o era, vá se lá saber porquê.

O Santos de Grijó, esperto, desenfiado, bom de bola, indisciplinado, pronto para a malandragem, enfim figura incontornável. Estava ao serviço do Tenente Raposo que invariavelmente o mandava à procura de alguém. Esse alguém nunca aparecia, nem o Santos, e quando o tenente lhe perguntava por onde tinha andado, ele respondia que tinha andado à procura do fulano, mas que o não tinha encontrado.

Tantas vezes a bilha foi à fonte que um dia deixou lá a asa, e o Santos acabou preso na barbearia/prisão com uma porrada do Tenente-Coronel, que depois foi agravada pelo Comando-Chefe, e assim o também conhecido por Grijó, esteve praticamente um mês livre de fazer recados e de encostar a barriga ao balcão da cantina seu lugar preferido. Durante a noite fazia companhia aos camaradas na porta de armas, pois todos lhe abriam a porta e assim tirá-lo do calor horroroso que aquelas paredes do exíguo cubículo absorviam durante ar horas de sol escaldante. Um dia fez uma maldade, a jogar a bola, ao furriel Fernandes e levou logo uma chapada e, embora a contragosto, teve que ficar com ela.

Os chicos eram uma espécie imprescindível. Por cá eram eficazes em secretarias e tudo que dissesse respeito a orgânica militar. Os primeiros-sargentos eram na verdade os comandantes de companhia, os amanuenses, os que compravam e distribuíam. Era um posto invejável com benesses e lucros.

Também eram seres humanos, embora a malta desconfiasse da fartura. Na recruta, ia eu todo bem fardado a preparar-me para ir a casa pela primeira e vez faço continência a um sargento de cigarro na boca. O homem ainda me deixou passar, mas depois chamou-me e lá levei uma ensinadela.

Mas na CCS do 3872 todos os oficiais do quadro eram oriundos da GNR ou Guarda Fiscal. O tenente-coronel e o capitão já em fim de carreira, e dois sargentos promovidos a tenentes em duas passadas, acabando o tenente Raposo em comandante da companhia, nem seis meses após a nossa chegada a Galomaro.

Pródigo em ameaças, nunca castigou ninguém e maldisse a sua sorte de estar entregue a semelhante canalha. Era também conhecido por tentar aliciar para as meninas dos seus olhos, a GF e a GNR, todos os apanhava a jeito. A maior parte mantiveram as promessas em lume brando e outros aceitaram integrar essas forças onde fizeram carreira. Nunca me convidou a mim, vá-se lá saber porquê.

O outro chamava-se Moscoso, nunca o conheci bem embora fosse voz corrente que não era flor que se cheirasse.

Devem ter morrido pois já não eram jovens e já se passaram mais de cinquenta anos. O Caramba ainda se encontrou com o já Capitão Raposo ainda de serviço na sua amada Guarda Fiscal.

Que a terra lhes seja leve bem como ao Santos que morreu pouco tempo depois de cá chegar.

Juvenal Amado
28/08/2025


Na foto o nosso Tenente Raposo e do Caramba.
Na foto estão: de pé, o Caramba; o Aljustrel; o sargento Silva e outro que não me lembro o nome pois esteve quase sempre em Bissau; o Tenente Raposo e o Santos Grijó. À janela o Ermesinde, já falecido.
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Nota do editor

Último post da série de 28 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27163: Felizmente ainda há verão em 2025 (26): O Meu Poema Azul (Versão do fim da tarde) (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

Guiné 61/74 - P27166: Os 50 anos da independência de Cabo Verde (9): Secas e fomes levaram ao longo do séc. XX à morte de mais de 100 mil pessoas


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1. "30 pessoas morriam por dia, no Mindelo", em São Vicente, no auge da fome que grassou em Cabo Verde... A cidade do Mindelo, cuja economia era muito dependente do tráfego marítimo, foi profundamente afectada pela guerra, e  não escapou aos horrores da seca e da fome. Aí estavam estacionados alguns milhares (c. de 3300)  expedicionários portugueses, como o 1º  cabo Luís Henriques, nº 188/41 (1º Pelotão, 3º Companhia, 1º Batalhão, RI 5).

Os mortos eram levados em esquife e enterrados em vala comum, no cemitério de Monte Sossego. Não se sabe qual foi a morbimortalidade entre os soldados, mas também deve ter sido elevada (por turbeculose, doenças diarreicas, e outras). (No total, em mais de 6 mil homens mobilizados para Cabo Verde, nesta época, terá  morrido  circa 1 %.)

Foi, só mais tarde,  ao ler o romance Hora di Bai (editado pela Vértice em 1962), do Manuel Ferreira (1917-1992), expedicionário como o meu pai (esteve no Mindelo entre 1941 e 1947), que eu me apercebi  dessa tragédia imensa, a seca e  a fome que assolou, em 1941/43,  o arquipélago de Cabo Verde (e depois de novo, no pós-guerra em 1947/48). 

E que matou meninos como o Joãozinho, que rondavam o quartel e que o meu pai protegia, dando-lhe os restos de comida. Era o seu 'impedido".

Recordo-me de o meu pai, à beira de completar 90 anos, em 2010,  já não ser capaz de dar, com precisão, as datas em que terá ocorrido o pico da epidemia de fome. Muitos de nós ainda não tiveram  a consciência dessa tragédia que, de resto, também não foi conhecida pela população portuguesa metropolitana da epoca. Cabo Verde ficava longe... Até por que em no Portugal metropolitano a morte, nomeadamente a mortalidade infantil (mais de 120 casos por 1000!) era banal, a par da mortalidade por tuberculose entre os jovens (10% de todas as mortes!). 
 

Luís Henriques
 (1920 - 2012).
Faria 105 anos
em 19 de agosto de 2025.
Os números que o meu pai cita (30 mortes por dia no Mindelo), devem referir-se ao 1º semestre de 1943. Ele diz que "não viu,  ouvia dizer",  
quando esteve internado ("quatro meses"), no hospital militar (ou anexo, um estabelecimento de repouso,  a nordeste da cidade do Mindelo), já na parte final da sua comissão. Ele esteve 26 meses na Ilha, como expedicionário entre julho de 1941 e setembro de 1943. 'Farto de engolir pó ". Teve alta da junta médica hospitalar em 17/8/1943. 

De qualquer modo, trinta mortos por dia era muita gente, numa ilha que não teria mais do que 15 mil habitantes (em 1940), e contou com a presença de mais de 3300 (!) expedicionários, entre meados de 1941 e finais de 1943 (o que dava um elevada densidade militar na ilha: 4,5 habitantes por cada expedicionário).

Os "expedicionários" fizeram o que puderam,  organizando esquemas de socorros à vítimas nas zonas onde estavam aquartelados (Lazareto, etc.).

Mais de 2/3  dos do total dos efetivos  (c. 6500 homens) estavam afetos à defesa do Mindelo (ou seja, do porto atlântico,  Porto Grande,  ligando a Europa com a América Latina, a par dos cabos submarinos).

Só havia “vapor” (barco), com mantimentos e correio, de três em três meses…  A seca e a fome que assolaram Cabo Verde nessa época, e que fizeram milhares e milhares de mortos (c.  20 mil em todo o arquipélago) tiveram impacto na consciência de bom português,  bom cristão e bom lourinhanense, que era o 1º cabo Luís Henriques, órfão de mãe aos dois anos (vítima de tuberculose, na sequência ainda da pneumónica ou "gripe espanhola" que matou 2% da população portuguesa, que era então de 6 milhões).

O seu "impedido", o Joãozinho, de 5/6 anos (se bem recordo), que ele alimentava com as suas próprias sobras do rancho, também ele morreu, de fome e de doença, em meados de 1943. Estava o meu pai  no hospital. Deu todo o dinheiro que ali tinha (c. 16 escudos) para o enterro do seu "Joãozinho". Ouvi muitas vezes esta história dolorosa na minha infância...


Secas e fomes em Cabo Verde no séc. XX: uma tragédia quase ignorada ainda hoje pelos portugueses


O século XX em Cabo Verde foi marcado por uma trágica sucessão de secas e fomes que dizimaram a população, forçaram a emigração em massa e deixaram cicatrizes profundas na memória coletiva do arquipélago.

Estes períodos de crise, longe de serem meros desastres naturais, foram exacerbados por 3 factores principais:

  • negligência da administração colonial portuguesa;
  • políticas agrárias inadequadas;
  • vulnerabilidade estrutural de um território semiárido.

(i) Causas (estruturais e conjunturais)

  • Clima saheliano, muito variável: precipitação baixa e irregular, concentrada em poucas semanas (sobretudo ago-set), com longos períodos secos; anos sucessivos sem “água grande” provocavam quebras de safra em cadeia; o regime de chuvas depende do posicionamento/força da Frente/Zona Intertropical e de variações atlânticas, o que amplifica a irregularidade anual;
  • Base alimentar frágil:  forte dependência do milho (e feijões) que, quando falhava(m) seguia-se fome, doença e mortalidade;
  • Degradação ambiental: solos insulares delgados , erosão, sobrepastoreio e arborização insuficiente, limitando retenção de água e resiliência agrícola;
  • Fatores político-económicos coloniais:  fraco  investimento público, prioridades orçamentais restritivas no Estado Novo, falhas de abastecimento/armazenamento de água, mercado (inclusive especulação), e uma resposta tardia à crise.

(ii) Principais crises de secas e fomes no séc. XX

As crises mais devastadoras ocorreram em três vagas principais: no início do século, nos anos 20 e, de forma particularmente brutal, na década de 1940.

(i) A Viragem do Século: 1901/04

O início do século XX já anunciava as dificuldades que estariam por vir. Um ciclo de seca severa entre 1901 e 1904 provocou uma fome generalizada, resultando em mais de 20 mil mortos.

As três razões que explicam a situação de total desproteção da população:

  • falta de investimento em infraestruturas de armazenamento de água,
  • dependência de uma agricultura de sequeiro;
  • ausência de um plano de contingência por parte do governo colonial.

A resposta tardia e insuficiente, focada em trabalhos públicos de pouco impacto, não foi capaz de mitigar a mortalidade e o sofrimento.


(ii) A Crise dos Anos 20: 1921/22

Duas décadas depois, a história repetiu-se com contornos ainda mais dramáticos. A fome de 1921/22, novamente desencadeada por uma seca prolongada, ceifou a vida a dezenas de milhares de cabo-verdianos.

A situação foi agravada pela crise económica que Portugal atravessava, durante a I República, e a seguir ao fim da I Grande Guerra, o que limitou ainda mais a capacidade e a vontade de prestar auxílio à colónia.

A emigração, principalmente para São Tomé e Príncipe em condições de trabalho análogas à escravatura, tornou-se a única via de escape para muitos, desestruturando famílias e comunidades inteiras.


(iii) A Grande Fome dos Anos 40: O Auge da Tragédia


A década de 1940 representa o período mais sombrio da história contemporânea de Cabo Verde, com duas vagas de fome de uma violência inaudita. Em 1943 estavam no Mindelo o meu pai, como expedicionário, e o Amílcar Cabral, como estudante do liceu.

1941/43: uma seca implacável mergulhou o arquipélago numa crise alimentar sem precedentes; a produção agrícola colapsou; as reservas de alimentos esgotaram-se rapidamente; a resposta do governo de Salazar foi notoriamente inadequada, com a ajuda a chegar a conta-gotas e a ser distribuída de forma ineficaz;  cerca de 20 mil pessoas morreram de inanição e de doenças associadas à subnutrição.

1947/49: mal refeito do choque anterior, o arquipélago foi atingido por um novo e ainda mais mortífero período de seca e fome; esta crise, que ficou gravada a fogo na memória popular, resultou numa catástrofe demográfica: Ilhas como Fogo e Santiago foram particularmente afetadas, com relatos de aldeias inteiras dizimadas.

Foi neste contexto de desespero que ocorreu o "Desastre da Assistência", a 20 de fevereiro de 1949, na cidade da Praia. Centenas de famintos que aguardavam a distribuição de comida junto a um centro de assistência, morreram quando um muro desabou sobre a multidão. Matou oficialmente 232 pessoas (há quem estime em 3 centenas ou mais)

Este evento trágico tornou-se um símbolo da inépcia e da desumanidade da resposta colonial à fome.


(iv) Mortalidade estimada

Estudos demográficos clássicos (António Carreira, compilados e discutidos por trabalhos recentes da Universidade Nova de Lisboa) estimam as seguintes perdas populacionais líquidas em termos de mortes (e alguma emigração de crise), superiores a 100 mil;
  • 1902–1903: –21 899 pessoas (≈ 12,5% da população)
  • 1920–1921: –22 886 (≈ 10,0%).
  • 1941–1943: –18 679 (≈ 6,2%).
  • 1947–1948 (“o Flagelo de 47”): –44 600 (≈ 16,3%).

Observação: estes números são estimativas robustas usadas na historiografia cabo-verdiana; variam ligeiramente por fonte, mas dão a ordem de grandeza das perdas humanas.


(v) Consequências e Legado

  • Elevada Morbimortalidade por inanição e epidemias associadas (disenterias, etc.):  estima-se que as fomes do século XX tenham causado a morte a uma parte significativa  da população cabo-verdiana (mais de 100 mil no séc. XX);
  • Emigração forçada/contratada como válvula de escape: dezenas de milhares de cabo-verdianos seguiram para as roças de cacau e café de São Tomé e Príncipe ao longo do século (primeiras vagas desde 1903; picos nas décadas de 1930–50); as condições foram duras e marcaram a memória coletiva: muitos cabo-verdianos foram enviados à força, em condições desumanas, para trabalhar nas plantações de cacau e café, numa forma de trabalho forçado que deixou um legado de trauma e exploração;
  • Desestruturação Social: a perda de vidas e a emigração massiva desestruturaram a sociedade cabo-verdiana, com um profundo impacto nas estruturas familiares e comunitáriasm
  • Reconfiguração social e cultural: reforço da diáspora e das remessas; trauma coletivo refletido em obras como Chiquinho (Baltasar Lopes) e em canções de resistência sobre “Fome 47” ou a "Hora di Bai", de Maniuel Ferreira;
  • Consciência Política / Mudança política a longo prazo: a gestão desastrosa das crises de seca e fome por parte do regime colonial português alimentou o contestação ao imobilismo do Estado colonial; refiorçou o sentimento nacionalista e foi um dos catalisadores para a luta pela independência, que seria alcançada em 1975; no pós-independência o país investiu em dessalinização, açudes/valas e redes de abastecimento para reduzir a vulnerabilidade (embora a variabilidade climática permaneça); te,-.se procuradeo também reflorestar as ilhas.

As memórias destas tragédias continuam vivas na cultura cabo-verdiana, presentes na música, na literatura e na tradição oral, servindo como um lembrete constante da resiliência de um povo que, apesar de abandonado à sua sorte, soube sobreviver e reconstruir o seu futuro.

Em resumo choques climáticos recorrentes atingiam uma agricultura de sequeiro muito dependente do milho, sobre solos frágeis e com infraestruturas e políticas coloniais inadequadas. Quando a chuva falhava um ou dois anos seguidos, a produção ruía e o arquipélago, com pouca capacidade de armazenar/redistribuir alimentos, entrava rapidamente em crise de subsistência com mortalidade e êxodos significativos.

Apresenta-ae a seguyir um ronologia das grandes secas e fomes em Cabo Verde no séc. XX, com referência às ilhas mais afetadas e alguns elementos de contexto (chuva, mortalidade, emigração).

Cronologia resumida – Secas e Fomes em Cabo Verde (séc. XX)

1902/03
  • Contexto: 2 anos seguidos de “fome de sequeiro” (chuvas quase nulas).
  • Ilhas mais afetadas: Santiago, São Nicolau, Santo Antão.
  • Consequências: ~22 mil mortos (12,5% da população).
  • Início de emigração em massa para roças de São Tomé (contratados).

1920/21
  • Contexto: nova falha de chuvas após ligeira recuperação.
  • Ilhas: Santiago e Fogo muito castigadas; escassez generalizada.
  • Consequências: ~23 mil mortos (10%).
  • Aumenta fluxo emigratório para São Tomé e EUA.
  • “Milho do Brasil” (importado) foi crucial, mas tardio.

1941/43
  • Contexto: falhas de safra coincidentes com restrições da Segunda Guerra Mundial (importações limitadasm dificuldades de transprote marítimo).
  • Ilhas: quase todo o arquipélago, mas Santo Antão e São Nicolau registam graves perdas.
  • Consequências: ~19 mil mortos (6%).
  • Epidemias de disenteria e malnutrição.

1947/48 – “O Flagelo de 47”
  • Contexto: seca prolongada, colheitas de milho quase nulas.
  • Ilhas: todas afetadas, com gravidade em Santiago, Fogo e São Nicolau.
  • Consequências: ~44,6 mil mortos (16%). Grande mortandade em povoados do interior.
  • 20/02/1949, Praia – “Desastre da Assistência”: colapso de muro numa distribuição de alimentos → 232 mortos oficiais. Aumento dramático da emigração contratada para São Tomé e clandestina para América. Trauma coletivo cristalizado em música, literatura (Chiquinho).
  • Distribuição geográfica dos impactos: Santiago: historicamente a mais vulnerável (densidade populacional alta, pouca resiliência) | Santo Antão e São Nicolau: também muito afetadas, devido ao peso da agricultura de sequeiro ! Fogo e Brava: alternância entre boas colheitas e fome, mas sempre fortemente dependentes do milho | al, Boavista e Maio: menos agrícolas, mais dependentes de importação → crises por falta de abastecimento, não tanto por seca direta.

Notas finais:
  • Perdas humanas totais (1900/50): ~100 mil mortos em crises de fome — cerca de 1/3 da população média do período.
  • Emigração de crise: estima-se que dezenas de milhares saíram como contratados para São Tomé (1903–1970), e muitos outros emigraram clandestinamente para EUA, Senegal, Guiné, Portugal.
  • Após 1950s: melhores redes de abastecimento, socorros externos (ajuda alimentar), dessalinização e obras hidráulicas reduziram a mortalidade em secas, mas não eliminaram a dependência externa.

Fionte: Pesquisa LG | Assistente de IA (Gemini, ChatGPT)
(Revisão / fixação de texto, negritos: LG)

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sexta-feira, 29 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27165: Notas de leitura (1833): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 9 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Agosto de 2025:

Queridos amigos,
A despeito de confirmadas imprecisões e erros, as navegações de Cadamosto e Usodimare constituem um documento do mais alto significado: pelo quadro elogioso do Infante D. Henrique e por uma certa cronologia de acontecimentos que levam à exploração da costa ocidental africana; por revelarem designações em termos geográficos comuns na época, caso da baixa Etiópia e da Terra dos Negros; pela descrição do rio chamado Senegal, "antigamente Níger" e pela preciosa descrição que se faz do reino do Senegal, das crenças, trages e costumes, guerras e armamento destes povos. Veremos nos próximos textos o que nos dizem sobre a descoberta de três ilhas de Cabo Verde, assunto polémico, veremos em toda a extensão a navegação segunda e a exploração do litoral africano desde o rio Geba. Não hesito em dizer que se trata de documento fundamental para a história de três países: Portugal, Guiné-Bissau e Cabo Verde.

Abraço do
Mário



Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 9

Mário Beja Santos

Este terceiro e último volume de Documentos Sobre a Expansão Portuguesa, por Vitorino Magalhães Godinho, dá um especial realce às navegações de Usodimare e de Cadamosto. Vimos no texto anterior como Cadamosto escreve o encontro com o Infante D. Henrique, segue-se a Navegação Primeira e como chega ao reino do Senegal, escrevendo o seguinte:
“O Primeiro Reino de Negros da baixa Etiópia é este que fica sobre o rio do Senegal; os povos que habitam as suas margens chamam-se Jalofos, e toda esta costa e países acima declarados, é terra baixa, até Cabo Verde, que é a terra mais alta de toda aquela costa. Segundo eu pude perceber, este reino do Senegal confina pela terra a parte de Levante com o país dito Tucurol, da parte do sul com o reino de Gâmbia, do poente com o mar oceano e do norte com o reino acima dito, que extrema os amulatados destes primeiros negros. Neste reino do Senegal não se sucede por herança; mas há diversos Senhores, os quais às vezes por ciúme que têm uns dos outros se ajuntam três ou quatro e elegem um rei a seu modo. Este rei dura o tempo que apraz aos ditos Senhores; e às vezes o depõem à força, e outras ele se torna tão poderoso que se defende deles; o seu Estado não é permanente e firme como é o do Sultão do Cairo; antes está sempre em suspeitas de ser morto, ou expulso. Este rei não é semelhante aos dos cristãos, porque o seu reino é de gente selvagem, e pobríssima, e não é nele cidade alguma murada, senão aldeias com casas de palha.

O rei não tem rendimento certo de tributos, mas os Senhores deste país em cada um ano para o terem amigo lhe fazem presente de alguns cavalos, que são muito estimados por haver falta deles; e não só tem este fornecimento, mas também outros de animais, como vacas e cabras. Mantém-se também este rei com roubos, que manda fazer de muitos escravos, tanto no seu país, como nos vizinhos, dos quais se serve por muitos modos; também vende escravos aos Azenegues e marcadores árabes, que os trocam por cavalos, e igualmente aos cristãos. É lícito a este rei ter quantas mulheres quer, e assim também a todos os Senhores, o rei tem sempre de trinta para cima
[descreve com detalhe a vida familiar e a alimentação daquele povo].

A religião destes primeiros Negros em Maometana; mas não estão bem firmes na sua crença, como os mouros brancos, e principalmente o povo miúdo. Os Magnates passam por Maometanos têm junto de si alguns dos ditos Azenegues, ou Árabes, que acaso aí chegam, e lhes dão alguma instrução, dizendo-lhes que seria grande vergonha serem eles Senhores e viverem sem nenhuma lei de Deus.

Quase toda esta gente anda continuamente nua, e todo o seu vestuário consiste em um couro de cabra posto em forma de bragas, com que se cobrem; porém os Magnates, e aqueles que podem, vestem camisas de pano de algodão, porque naqueles países nascem algodoeiros, e as suas mulheres vestiam algodão, e fazem panos da largura de um palmo, e não sabem fazê-los mais largos, por não terem pentes para tecê-los, e assim cosem quatro ou cinco daqueles panos juntos quando querem fazer algum trabalho largo.

Os homens destes países fazem muitos serviços femininos; como são fiar, lavar panos e outras coisas. Sente-se continuamente um grande calor e quanto mais se caminha para além, tanto maior é; e comparativamente em janeiro não faz tanto frio naquele reino que o não faça maior no mês de abril nestas nossas terras. Os homens, e mulheres deste país são limpos de si, porque lavam todo o corpo quatro ou cinco vezes cada dia; mas no comer são porcos, e sem nenhuma decência; nas coisas de que não têm prática são simples e pouco sagazes: mas nas coisas de que a têm são espertos como qualquer de nós. São de muitas palavras, e nunca acabam de falar, e comummente são mentirosos e enganadores em extremo; apesar disso são caritativos, porque dão de comer e beber a qualquer forasteiro que chegue a sua casa por um jantar, ou uma noite; e isto sem estipêndio algum.

Estes Senhores Negros guerreiam muitas vezes uns com os outros, e também algumas vezes com os seus vizinhos; as suas guerras são a pé, porque há pouquíssimos cavalos que lá não podem viver pelo grande calor; não trazem vestidura de armas pelas não terem, e mesmo pelo grande calor não poderiam suportá-las, somente têm escudos redondos e largos, os quais são feitos de couro de um animal chamado anta, que é duríssimo de penetrar; e para ofender têm quantidades das azagaias, que são uma espécie de dardos ligeiros, e atiram-nos com muita velocidade, porque são grandes mestres disso; têm estes dardos um palmo de ferro lavrado, com barbas miúdas, postas muito subtilmente por diversos modos; e onde entram, ao puxar para fora rasgam as carnes, com aquelas barbas, de maneira que são muito más para ofender; também trazem alguns alfanges mouriscos, à maneira de meia espada turca, isto é, voltadas como arco, e são feitas de ferro sem nenhum aço, porque no reino de Gâmbia de Negros, que jaz mais além, tiram o ferro, de que fabricam estas armas; mas não tem aço como já disse, ou verdadeiramente, se o há onde há ferro não o conhecem, ou não têm indústria para fazê-lo. Usam também de outra arma cravada em uma haste, à maneira de um espontão dos nossos, e não têm outras. As suas guerras são muito mortíferas, por estarem desarmados, e os seus golpes nunca são dados em falso, matando-se como se fossem feras; são muito atrevidos e bestiais, e em qualquer pequeno perigo deixar-se-ão antes matar que fugir, ainda podendo.

Não têm navios, nem nunca os viram, salvo depois que tiveram conhecimento dos portugueses. É verdade que aqueles que habitam sobre este rio, e alguns dos que estão junto ao mar têm umas canoas, isto é, almadias de um pau só, as maiores das quais levam três ou quatro homens quando muito; e com estas vão às vezes a pescar, e atravessam o rio, indo de um a outro lugar; e estes tais Negros são os melhores nadadores do mundo pela experiência do que vi fazer.”


A seguir, Cadamosto vai descrever ao pormenor o país de Budomel.

Passando para outra matéria, iremos nos próximos textos fazer referência às ilhas descobertas de Cabo Verde, à Navegação Segunda de Cadamosto e Usodimare, terminando com a exploração do litoral africano desde o rio Geba até à Mata de Santa Maria.


Vitorino Magalhães Godinho
Alvise Cadamosto apresentado ao Infante D. Henrique
Mapa das Ilhas de Cabo Verde e da Costa da Guiné, 1771
Mapa do Rio Gâmbia e arredores, cerca de 1732

(continua)
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Notas do editor:

Vd. post de 22 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27142: Notas de leitura (1831): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 8 (Mário Beja Santos)

Último post da série de 25 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27151: Notas de leitura (1832): "A Corja de Batoteiros", por Rui Sérgio; 5livros.pt, 2019 (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P27164: Os 50 anos da independência de Cabo Verde (8): a pequena burguesia urbana guineense, de origem cabo-verdiana, na génese e desenvolvimento do PAI / PAIGC e do PAICV

 


Capa do livro de memórias de Luís Cabral (Bissau, 1931 - Torres Vedras, 2009), "Crónica da Libertação", Lisboa, "O Jornal", 1984, 464 pp. (Capa: de João Segurado segundo foto de Bruna Polimeni)

 Capa do livro  de Daniel dos Santos, "Amílcar Cabral:   um outro olhar" (Lisboa, Chiado Editora, 2014). Com a devida vénia ao blogue "Baía da Lusofonia"



1. Cremos que está por estudar o papel  dos  cabo-verdianos na colonização e administração da Guiné...A frase é dita com cautela: não somos especialistas nesta matéria, e muito menos na história do PAIGC, da Guiné-Bissau, de Cabo Verde...

Além de comerciantes, os "colonos" cabo-verdianos foram "ponteiros" (donos de pontas, pequenas explorações agrícolas nas zonas férteis das bacias hidrográficas, outrora postos comerciais...), mas também, um ou outro,  grandes proprietários agrícolas (produção de arroz), fabricantes de aguardente de cana,  donos de embarcações que faziam as ligações fluviais, pequenos e médios funcionários públicos (em áreas como a administração civil, o ensino, a saúde,  os correios, a banca, etc.).

Enfim, fizeram parte também da elite intelectual e social do território (por exemplo, foram dirigentes associativos), mesmo tratando-se  de uma pequena comunidade que nos anos 50/60 não devia ultrapassar as 1500 pessoas, mas que era maior e tinha mais importância do que a dos sírio-libaneses (*).

Com base no nosso blogue e e com ajuda da IA (Gemini, Perplexity, ChatGPT), vamos explorar  algumas  pistas e identificar alguns exemplos, sobretudo no século XX. 

É um pequeno contributo para a série "Os 50 anos da independência de Cabo Verde"(**), país lusófono a que nos ligam fortíssimos laços históricos e afetivos, tal como a Guiné- Bissau.
 
  • muitas famílias cabo-verdianas ocupavam empregos intermédios nas grandes casas comerciais (como a Casa Gouveia, do grupo CUF, a Sociedade Comercial  Ultramarina, do grupo BNU, a Barbosas & Cia, e Ed. Guedes Lda, e outras firmas de importação/exportação instaladas em Bissau e Bolama, incluindo as francesas SCOA e NOSOCO);
  • eram também funcionários administrativos (chefes de serviços, administradores, chefes de posto), bancários, professores primários, empregados dos correios, etc, nomeadamente em setores onde a oferta local guineense era muito mais reduzida devido às barreiras coloniais no acesso à educação ( até tarde, não havia ensino médio nem secundário no território).
  • este grupo  formava uma pequena burguesia urbana, com maior escolaridade, que servia de “almofada” entre os colonizadores portugueses e a maioria da população guineense;
  •  até 1961 o guineense ("não- assimilado") tinha o estatuto de "indígena", enquanto o cabo-verdiano era cidadão português; 
  • curiosamente não sabemos se os comerciantes sírio-libaneses, ou de origem sírio-libanesa, já tinham nos anos 50/60, a cidadania portuguesa; parece-nos que sim, pelo menos os já nascidos no território, face à legislação em então em vigor.

(i) Do colonialismo à resistência

Essa mesma camada social irá fornecer os primeiros quadros ao PAI (Partido Africano para a Independência) (até 1962) e depois PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde).

A família Cabral parece ser  o exemplo mais emblemático:

  • Juvenal Cabral (pai de Amílcar e Luís Cabral) era cabo-verdiano, professor primário na Guiné, teve numerosos  filhos )cerca de duas dezenas!), de, pelo menos, 3 mulheres);
  • os filhos Amílcar Cabral (engenheiro agrónomo e fundador do PAI / PAIGC) e Luís Cabral (primeiro presidente da república da Guiné-Bissau) vieram diretamente dessa pequena burguesia urbana,  escolarizada;
  • há um segundo meio-irmão de Amílcar Cabral, mais novo, que também já vimos referenciado no livro de memórias do Luís Cabral como dirigente ou militante do PAIGC, embora de 2ª linha (Tony Cabral ?);
  • as respetivas esposas também eram de origem cabo-verdiana: Ana Cabral (a segunda esposa de Amílcar Cabral); e Lucette Andrade, a esposa do Luís (era uma senegalesa, de origem cabo-verdiana, ou uma filha de pais cabo-verdianos, da ilha de Santiago, a viver em Dacar).
Fica.se com a ideia de que o PAI/PAIGC era, originalmente, um quase "negócio de família" (sob a liderança férrea, autoritária e centralizadora,  do engº Amílcar Cabral, o único que teve acesso ao ensino superior universitário na metrópole, o único teórico, o único estratega, o único diplomata, o único político, etc., do Partido).

Muitos dos primeiros militantes e dirigentes do PAI / PAIGC  (professores, pessoal de saúde, funcionários e comerciantes de origem cabo-verdiana, etc,.) tinham precisamente passado por esta experiência: servir o Estado colonial ou casas comerciais ( os verdadeiros "colonos") e acabar por romper com o sistema que os limitava social, profissional e politicamente.

  • Luís Cabralfilho de pai cabo-verdiano e mãe portuguesa (?), foi contabilista da Casa Gouveia, para onde entrou com uma "cunha" do irmão, conceituado engenheiro agrónomo formado no prestigiado ISA - Instituto Superior de Agronomia, da então Universidade Técnica de Lisboa.

  • Aristides Pereira  foi chefe da Estação Telegráfica dos CTT, e  o Fernando Fortes   o chefe da Estação Postal (na prática os "donos" dos CTT de Bissau, mesmo debaixo de olho da PIDE; se não mesmo "colaborantes" com a polícia política).


Há aqui uma contradição social  interessante:
  • por um lado, os cabo-verdianos foram peças-chave no aparelho colonial português na Guiné (quem eram os europeus que queriam vir para Guiné como administradores e chefes de posto professores, médicos, enfermeiros, bancários, empregados das alfândegas, dos correios,  das finanças, etc. ?)

  • por outro, a sua maior escolarização e contacto com ideias políticas (vindas de Lisboa, Dacar, Conacri,  Paris) deu-lhes ferramentas para enquadrar e  liderar o movimento independentista (não vamos discutir aqui a hegemonia do PAI/PAIGC e como foi conseguida);

  • essa é uma das razões porque o PAI / PAIGC se afirmou com uma liderança inicial fortemente cabo-verdiana, embora depois tenha procurado ampliar a sua base social de apoio (entre camponeses e trabalhadores urbanos guineenses, com destaque para os balantas, que foram os homens do mato. a "carne para canhão").


Faltam-nos dados biográficos e historiográficos, documentados, para identificar todos os "históricos" do PAI/PAIGC.

Uns eram cabo-verdianos ou de origem cabo-verdiana; outros  podiam ter ou não laços de parentesco, por sangue ou casamento,  com famílias cabo-verdianas.

 Ocorre-nos à memória  gente oriunda sobretudo da pequena burguesia escolarizada ou já com alguma qualificação profissiomal, que trabalhou quer na administração pública quer nas casas comerciais, vindo a desempenhar posteriormente funções de relevo, políticas e/ou e militares, no PAI/PAIGC

  • Domingos Ramos: nascido em Bissau, e, ao que parece, trabalhou como auxiliar hospitalar antes de fazer a tropa,. tendo frequentado o 1º Curso de Sargentos Milicianos da província, em 1959, com o nosso camarada Mário Dias); acabou por desertar, e passar pela Guiné-Conacri e pela China, regressando depois como comandante da Frente Leste;  iria morrer em combate em novembro de 1966, em Madina do Boé; tornou-se um dos primeiros "heróis da luta de libertação";
  •  João Bernardo “Nino” Vieira: eletricista, terá aderido ao PAI/PAIGC em 1960; rapidamente se tornou uma figura-chave na luta de guerrilha e também um "mito" ao olhos das NT (que o viam por todo o lado, dotado como Deus do dom da "ubiquidade"); depois da independência seria o primeiro-ministro no regime de Luís Cabral e, em 14 de novembro de 1980, liderou um golpe de Estado que acabou de vez com outro "mito", o da unidade Guiné-Bissau - Cabo Verde (as feridas entre guineenses e cabo-verdianos ainda hoje não estão saradas, 'Nino' foi o histórico carrasco da poderosa facção cabo-verdiana do PAIGC.

(ii) Contexto histórico e papel das casas comerciais como a Casa Gouveia

O "massacre de Pidjiguiti" (1959) teve forte ligação à Casa Gouveia: marinheiros e estivadores em greve muitos deles associados à esta casa comercial, foram repri­midos violentamente, desencadeando uma radicalização política no seio das forças nacionalistas e independentistas. Parece todavia ser um "mito" o papel do PAI (só mais tarde PAIGC)  e a transição definitiva para a luta armada.

Outros  exemplos podem ser apontados para  ilustrar  o duplo percurso de alguns pequenos e médios  quadros cabo-verdianos: inicialmente integrados nas estruturas coloniais,  aproveitando a sua formação e contactos (inclusive com outras diásporas cabo-verdianas) para organizar, enquadrar e comandar a luta política e depois militar contra o domínio português.
 
(iii) Esquema cronológico com o papel dos cabo-verdianos na Guiné

Embora nos faltem muitos detalhes, pode-se dizer que a presença cabo-verdiana na Guiné foi ao mesmo tempo um pilar do sistema  colonial português e viveiro de resistência (ou de "subversão", como dizem as autoridades portuguesas da época),  contradição que pode explicar muitas tensões (e proximidades) entre guineenses e cabo-verdianos, mesmo até hoje.

Uma linha cronológica pode ser organizada passando por:

  • chegada e papel dos cabo-verdianos no comércio e na administração (sécs. XIX-XX),

  • formação da pequena burguesia urbana ligada às casas comerciais (como a Gouveia),

  • a viragem para a luta anti-colonial  (a partir das independências na África Ocidental, mas também do ano-charneira de 1959),

  • e a passagem dessas figuras para a liderança do PAI / PAIGC.

Século XIX

  • Até 1800/50 : cabo-verdianos (sobretudo mestiços) atuam como "lançados", comerciantes e mediadores culturais entre colonos portugueses e populações locais da Guiné;

  • 1852/59:  Honório Barreto, de ascendência cabo-verdiana, governa a Guiné em nome de  Portugal, reforçando o comércio e a presença administrativa.

Final do século XIX – início do século XX

  • 1880/1920: expansão das “pontas” (pequenas propriedades agrícolas) e do cultivo de arroz por cabo-verdianos (e outros) fixados nas margens dos rios.

1900/1930: migração de professores, funcionários públicos, bancários e empregados comerciais cabo-verdianos para a Guiné; surge uma pequena burguesia urbana que ocupa cargos intermédios em casas comerciais (Casa Gouveia, Sociedade Comercial Ultramarina, SCOA, NOSOCO...), bancos, correios e ensino primário


D

écadas de 1930/40
  • Cabo-verdianos passam a constituir a maioria dos quadros intermédios da administração colonial (estima-se mais de 70% dos postos públicos).

  • Famílias como a dos Cabral, destacam-se:

    • Juvenal Cabral, cabo-verdiano, professor primário;

    • Os filhos Amílcar e Luís Cabral recebem formação escolar diferenciada, que lhes abre  caminho para os estudos superiores (Amílcar começa a escola, faz o liceu no Mindelo e consegue uma bolsa para ir para  Lisboa).

Década de 1950
  • A pequena burguesia cabo-verdiana cresce em importância nas cidades (Bolama, Bissau, Bafatá...);

  • 1956: fundação do PAI (Partido Africano da Independência) em Bissau, por Amílcar Cabral e outros, com forte núcleo inicial cabo-verdiano;

  • 3 de agosto de 1959: "massacre de Pidjiguiti", durante uma greve de estivadores ligados à Casa Gouveia (papel controverso do administrador cabo-verdiano António Carreira),


Década de 1960

  • 1961: primeiras ações armadas (o protagonismo ainda não é do PAI/PAIGC);

  • mobilização (clandestina) de militantes e simpatizantes do futuro PAIGC ( trabalho de sapa sobretudo de Rafael Barbosa);

  • 21 de janeiro de 1963: ataque, precipitado,  a Tite (que a propaganda do PAIGC transforma noutro "mito",  o início histórico da luta armada contra Portugal);

  •  Domingos RamosJoão Bernardo “Nino” Vieira e outros futuros "comandantes" formam-se na China.

Década de 1970
  • 1973: assassinato de Amílcar Cabral em Conacri;

  • 24 de setembro de 1973: proclamação  unilateral da independência da Guiné-Bissau alegadamente na região fronteiriça do Boé (uma encenação  com forte apoio logístico e diplomático de Cuba, Guiné -Conacri, Suécia, etc.)

  • Luís Cabral, cabo-verdiano, torna-se o primeiro presidente da Guiné-Bissau;

  • Antigos quadros da administração colonial cabo-verdiana passam a integrar o novo Estado, depois da saída dos portugueses em setembro de 1974; outros "retornam" a Cabo Verde, a Portugal, ou emigram,

Resumo interpretativo
  • Colónia → Cabo-verdianos eram funcionários, comerciantes e pequenos proprietários.

  • Nacionalismo → Essa posição intermédia deu-lhes acesso à educação, redes políticas e contactos (internos e externos) que permitiram a formação do núcleo dirigente do PAI / PAIGC.

  • Independência → Os descendentes dessa pequena burguesia (como a família Cabral) assumiram o comando político e estatal na nova Guiné-Bissau e em Cabo Verde.


Lista (exemplificativa) de militantes e dirigentes cabo-verdianos (ou de origem cabo-verdiana) do PAI / PAIGC

1. Amílcar Cabral

Filho de pais cabo-verdianos, nasceu na Guiné-Bissau. Formou-se engenheiro agrónomo em Lisboa e, em 19 de setembro de 1956 (data controversa), cofundou o PAI, depois transformado em 1962 no PAIGC, juntamente com Aristides Pereira, Luís Cabral, Fernando Fortes, Júlio de Almeida e Elisée Turpin (facto também por documentar com rigor).

2. Luís Cabral

Meio-irmão de Amílcar Cabral, também de origem cabo-verdiana, foi cofundador do PAI / PAIGC e tornou-se o primeiro presidente da Guiné-Bissau independente, em 1973/74.

3. Rafael Paula Barbosa

Nascido em Safim, filho de mãe guineense e pai cabo-verdiano,  participou na formação inicial do PAI, inclusive recrutando membros. Esteve a maior parte do tempo preso, sendo libertado por Spínola em 1969: exerceu ainda funções simbólicas no partido em determinados momentos críticos.

4. Comissão Nacional de Cabo Verde do PAIGC e a criação do PAICV

Após a fundação do PAI / PAIGC , foi criada em Cabo Verde uma comissão com cabo-verdianos como Pedro Pires, Abílio Duarte, Silvino da Luz, Osvaldo Lopes da Silva e Olívio Pires, membros do Conselho Superior da Luta, embora com atuação mais simbólica e clandestina em Cabo Verde (nunca guerrilha nas ilhas).

Silvino da Luz, Osvaldo Lopes da Silva e outros receberam formação militar em Cuba e na URSS antes de serem integrados como altos quadros militares nas FARP (Forças Armadas Revolucionárias do Povo) do PAIGC. 

Mas os cabo-verdianos no mato, de armas na mão, na Guiné,  eram poucos, se os compararmos com os "internacionalistas cubanos": terão morrido 2  cabo-verdianos, contra 17 cubanos...

Em 20 de janeiro de 1981 será criado na Praia, Cabo verde,  o Partido Africano da Independência de Cabo Verde (PAICV)... Diz-se hoje de centro-esquerda, de ideologia social-democrata, depois de ter aderido, em 1990, à "democracia multipartidária" (após a queda do muro de Berlim).

O PAICV nasceu da cisão com o PAIGC (e na sequência do golpe de Estado de 14 de novembro de 1980, em Bissau, liderado por 'Nino' Vieira). O então Secretário-Adjunto do PAIGC (e  Presidente de Cabo Verde) Aristides Pereira tornou-se Secretário-Geral do PAICV.

5. Outros nomes entre os fundadores do PAI / PAIGC

  • Aristides Pereira:  posteriormente tornou-se presidente de Cabo Verde, foi um dos fundadores; de origem cabo-verdiana;

  • Fernando FortesJúlio de Almeida e Elisée Turpin: também mencionados entre os fundadores do PAI/PAIGC, com ligações à comunidade cabo-verdiana e à oposição ao Estado Novo.

6. Outros

Embora não sejam necessariamente cabo-verdianos, eram elementos da pequena burguesia escolarizada, incluindo professores e funcionários,  cedo integraram o PAI / PAIGC como quadros políticos, administrativos e militares. 

Exemplos como Domingos Ramos“Nino” Vieira, e Tiago Aleluia Lopes são sobretudo guineenses, mas surgiram da mesma estrutura social urbana onde muitos cabo-verdianos estavam presentes e interligados, o que ajudou à formação dos primeiros militantes e redes de ação.


Síntese em tabela
NomeOrigem / Vínculo Cabo-VerdianoPapel no PAI / PAIGC
Amílcar CabralPais cabo-verdianos, nascido na GuinéCofundador, líder intelectual e estratégico do PAIGC

Luís CabralIrmão de Amílcar, origem cabo-verdianaCofundador do PAIGC, primeiro Presidente da Guiné-Bissau

Rafael Paula BarbosaPai cabo-verdianoLigado à construção civil, recrutador inicial e dirigente simbólico
Pedro Pires, Abílio Duarte, Silvino da Luz, Osvaldo Lopes da Silva, Olívio PiresCabo-verdianos, fundadores do CNCVProcessos de mobilização e comando militar logo no início

Aristides Pereira, Fortes, Almeida, Irmãos Turpin
Cabo-verdianos (ou de origem cabo-verdiana) nos fundadores do partidoLegitimidade política e binacional da causa


(Pesquisa: Blogue | LG | Assistente de IA (Gemini, ChatGPT, Perplexity)

(Revisão / fixaçãod e texto, negritos: LG)

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Notas do editor LG:

(*) vd. poste 26 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27153: A nossa guerra em números (37): Colonos - Parte II: cabo-verdianos (uma pequena burguesia que, na Guiné, foi viveiro de militantes e dirigentes do PAIGC)