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segunda-feira, 20 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24869: (In)citações (260): Ainda os Esquecidos. Para o António Silva, Soldado Paraquedista morto em Angola em 1963 (Juvenal Amado)

Lobão da Beira, Tondela, 2017 > Funeral do Soldado Paraquedista António Silva

1. Em mensagem de 19 de Outubro de 2023, o nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), fala-nos dos (combatentes) Esquecidos, nós todos afinal, mortos ou vivos.


Ainda os Esquecidos

Para o António Silva, Soldado Paraquedista morto em Angola em 1963

Patriotismo é querermos o melhor para o nosso país.
Nacionalismo é querermos o país só para nós.

Os dois foram homenageados na Assembleia da República por diferentes razões a meu ver. Mereceram a homenagem?

Um era esquivo, não tinha travões na língua, discreto quanto à sua vida pessoal, rico dono de uma cadeia de supermercados, que se enchem quase todos os dias de gente que o enriqueceu e promete continuar a enriquecer os seus familiares nos anos mais próximos. Dizem que à custa de salários baixos e de o defender com a boca toda, era responsável pelo fecho de milhares de pequenas empresas, lojas, talhos, mercearias, retrosarias e até ao definhar de mercados tradicionais, onde os produtores vendiam os seus produtos directamente ao consumidor.

Digno de todas a honras, para além de entender que devia pagar o menos possível aos seus trabalhadores, também não estava de acordo com a tributação devida no seu país e passou a sede das suas empresas para a Holanda, onde paga menos. Era comendador pelos serviços prestados ao nosso país, aliás como muitos que o merecem, e outros tantos ou mais que o não merecem, como se veio a comprovar-se nos anos seguintes.

Quanto ao outro que vi actuar desde cedo como músico, era como dizem, um gajo porreiro, amigo do seu amigo, que integrado numa banda primeiramente punk e depois rock, que quer se goste ou não, marcou trinta e tal anos das nossas vidas, pois a sua música não nos atingiu a nós, atingiu os nossos filhos e também netos. Na verdade ele não explorou ninguém, não enriqueceu (quem é que enriquece pela música em Portugal?) mas levava milhares de apreciadores atrás dele para onde fosse, como eu fui testemunha disso. Quando ele estava no palco sabíamos que conhecia muita gente que ali estava e nós, tínhamos a sensação de pertencermos ao seu núcleo de amigos sem nunca termos estado a menos de trinta metros dele. Tenho pena que ele tenha morrido, do outro tenho uma dualidade entre o lamento e a embirração.

No dia que eram homenageados na AR, chegava a Portugal finalmente o soldado paraquedista António Silva morto em combate Angola 1963. Morreu por uma Pátria que já não existe.

Essa Pária alterou no seu conceito, já não tem guerra, modernizou-se, encheu-se autoestradas, dos tais supermercados, de temas musicais que não lhe diriam possivelmente nada, tem uma juventude que não sabe o que é ter guerra estar longe de casa sem telefone por vezes sem água e com uma alimentação que faria torcer o nariz a qualquer jovem frequentador de centros comerciais de hoje.

O soldado António Silva por lá esteve morto e enterrado 11 anos antes da viragem do seu país e, se voltou no dia 6 de Dezembro de 2017 a pisar solo pela Pátria, pela qual deu a vida, não foi o Estado que lhe prestou esse derradeiro e devido serviço.

No dia em que homenagearam dois, talvez, discutíveis portugueses na AR, esqueceram aquele que morreu pela Pátria, lamentavelmente não lhes mereceu uma só palavra, que era indiscutível.

Os esquecidos, continuam isso mesmo, esquecidos.

Feliz Natal e um Grande Ano para todos os camaradas.

Escrevi em 2017 mas como continua actual cá vai.
Juvenal Amado

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Foto: Nuno André Ferreira - Com a devida vénia ao Correio da Manhã
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Nota do editor

Último poste da série de 18 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24860: (In)citações (259): Depois da "mina A/P" que me atirou, em 29/10/2023, para um leito de hospital, com o fémur partido, estou de regresso à vida, à luta, a escrita, enquanto a a recuperação prossegue (José Saúde, Beja)

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P23022: A nossa guerra em números (14): Até 1966, as despesas com o transporte, até Lisboa, de uma urna de chumbo com os restos mortais de um militar, a suportar pela família, variavam entre 10 e 15 contos, conforme a província (Angola, Guiné ou Moçambique)





Telegrama, assinado pelo Comandante do DGA (Depósito Geral de Adidos, quartel da Ajuda, Lisboa), com data de 27 de novembro de 1962:

"6797 - E informo foi recebida comunicação Angola informando ser possível  traslação Metrópole restos mortais seu esposo 2.º sargento Justino Teixeira Mota. Caso deseje informar urgentemente este Depósito e depositar dez contos ou indicar  fiador idóneo. Comandante DGA.".

O 2.º Sargento de Transmissões  Justino Teixeira da Mota tinha embarcado no navio Vera Cruz, com destino a Angola, em 12 de Agosto de 1961, integrado na CCAÇ Esp. 266. Era casado, pai de um menino com dois meses de vida (o António) e de uma menina um pouco mais velha. A família vivia em Avintes, V. N. Gaia. Quis o destino que, num acidente de viação, em 18 de Outubro de 1962, perto de Maquela do Zombo, perdesse a vida. Em resposta ao telegrama do DGA, a família pediu, em 28/12/1962, que não se efectuasse a transladação dos restos mortais, certamente pro carência económica. Em 1962, 10 contos equivaleria, a preços de hoje, a 4.318,49 € (conversor da Pordata).

Fonte: Poste P2651 (*)


1. Um dos capítulos mais pungentes da guerra de África ou guerra colonial, para além das baixas por morte (em combate, acidente ou doença), era a transladação (ou trasladação), o transporte dos restos mortais dos militares, sepultados em África para os cemitérios das suas terras natais.

Só com a utlização de urnas de chumbo, começou a ser possível a transladação para a Metrópole, embora a expensas da família. 

Até 1966, as despesas com o transporte, até Lisboa, de um urna de chumbo com os restos mortais de um militar, a suportar pela família, variavam entre 10 e 15 contos, conforme a província (Angola, Guiné ou Moçambique). A preços atuais, seria qualquer coisa como 3.687,81 € e 5.531,72 €, respeticamente (de acordo com o conversor da Pordata).  Estas quantias eram incomportáveis para a generalidade das famílias portuguesas de então.

Com o Regulamento de Transladações, publicado em 2 de março de 1967, o transporte dos corpos dos militares falecidos em África passou a ser assegurado pelo Estado, utilizando-se então o sistema de transportes militares. 

Como este era moroso, havia famílias que preferiam optar pelas carreiras áereas regulares, neste caso a TAP: em 1967, os encargos para as famílias era de 5.250$00, 10.580$00 e 2.180$00, a partir de Angola, Moçambioque e Guiné, respetivamente. (**) 

A preços de hoje, esses valores supra corresponderiam a 1.852,73 €, 3.733,69 € e 769,32 €, respetivamente. 

Não temos dados sobre o número de transladações efetuadas antes e depois de 1967.

Fonte: Adapt. de Pedro Marquês de Sousa - "Os números da Guerra de África". Lisboa, Guerra & Paz Editores, 2021, pág. 320

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Guiné 61/74 - P21365: (De)Caras (161): Cecília Supico Pinto e o MNF: entrevista realizada em 16/7/2005, aos 84 anos, no Hospital de Santa Maria em Lisboa, onde se encontrava internada, pelo cor inf Manuel Amaro Bernardo, da revista "Combatente": " A guerra em Angola estava ganha. A Guiné era um problema. Em Moçambique, o problema era também complicado"...




Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Setor L1 > Bambadinca > CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) > Meados de Maio de 1969 >  Parada do quartel de Bambadinca: visita da presidente do Movimento Nacional Feminino, Cecília Supico Pinto (1921-2011), mais conhecida por Cilinha... 

Todas as guerras têm a sua Pasionaria... A Cilinha terá sido a nossa, a da "guerra do ultramar" ... Infantilizava os combatentes tratando-os por "os seus meninos"... Em entrevista ao Expresso, de 18/2/2008, aos 86 anos, não esconde, antes pelo contrário, que tinha uma relação de grande intimidade e cumplicidade com Salazar. E dá a entender que havia gente do Estado Novo mas também comandantes militares, no mato,  que a odiavam... Talvez pelo seu excessivo protagonismo e acesso privilegiado a Salazar (que ela tratava como "príncipe" e nunca como "ditador").  Amiga do seu amigo, era capaz de interceder junto de Salazar em caso de "excessos da PIDE" (que ela diz que detestava, tal como a censura), de que foram vítimas por exemplo o casal Sousa Tavares (o advogado Francisco Sousa Tavares, "o Tareco", e a a poetisa Sophia de Mello Breyner Andresen).

A promiscuidade com o regime, a par do elitismo e classismo da direcção  do MNF, acabou por retirar-lhe credibilidade e aceitação social. Durante a guerra colonial, foi um mulher do regime, poderosa, colunável: a RTP dava-lhe honras de telejornal, as suas partidas para África eram tratadas quase como viagens de Estado...
 
Como seria natural, a lider do Movimento  branqueou o regime e a guerra, dando provas de dissonância cognitiva ... Apesar da sua frontalidade e até coragem... 

Terá dado apenas duas entrevistas à Comunicação Social no pós-25 de Abril: ao Expresso, em 2008, e à revista Combatente, em 2005, cujo  teor abaixo se reproduz, por cortesia do cor inf ref Manuel Amaro Bernardo. 

Quanto às  fotos do José Carlos Lopes, que acima reproduzimos,  são absolutamente notáveis...  A primeira é mesmo uma  foto de antologia, (O José Carlos Lopes, do meu tempo de Bambadica, foi fur mil amanuense do conselho adminitrativo da CCS/BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70). (LG)




Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Setor L1 > Bambadinca > CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) > Maio de 1969 > Ponte do Rio Udunduma, afluente do Rio Geba, na estrada Xime-Bambadinca > Possivelmente no(s) dia(s) seguinte(s) ao ataque (em força) ao quartel de Bambadinca, em 28 de maio de 1969,, já ddepois da visita da Cilinha. Nessa noite, esta ponte, vital para as comunicações com todo o leste da província, foi objeto do "trabalho" dos sapadores do PAIGC... Os estragos, embora visíveis, não abalaram a sua estrutura. Era uma bela ponte, em cimento armado, construída no início dos anos 50. Esta foto é "histórica". O José Carlos Lopes posou aqui para... a "posteridade", talvez na véspera de eu passar aqui  em 2/6/1969, a caminho de Contuboel... (LG)


Fotos: © José Carlos Lopes (2013). Todos os direitos reservados. (Editação e e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Do nosso leitor e camarada cor inf ref Manuel Amaral Bernardo (n. Faro, 1939; tem 4 comissões de serviço, no ultramar, em Angola e Moçambique; é autor do livro, entre outros, «Guerra, Paz e Fuzilamentos dos Guerreiros; Guiné 1970-1980»,  Lisboa, Editora Prefácio, 2007, 410 pp.; tem mais de uma dezena e meia de referências no nosso blogue)

Data - 15 set 2020 16:45

Assnto - Cecília Supico Pinto

Caro Prof.:

Como no site têm falado na Cilinha, para o caso de querer lá postar, junto em anexo.
Boa saúde
Ab M B

2. Entrevista com Cecília Supico Pinto, para a revista "Combatente", em  16/7/2005 (*)

por Cor Manuel Bernardo


De seu nome completo Cecília Maria de Castro Pereira de Carvalho Supico Pinto, era mulher de Luís Supico Pinto, antigo ministro da Economia e Presidente da Câmara Corporativa. É Sócia de Honra da Liga dos Combatentes, para que foi eleita, por aclamação, na reunião da Assembleia Geral de 21 de Junho de 1971.


P.: Na sua qualidade de ex-Presidente do Movimento Nacional Feminino [, MNF], extinto em 25 de Abril de 1974, prestou um depoimento a José Freire Antunes, que foi incluído em "A Guerra de África", vol. I (1995). Gostaria de aprofundar alguns assuntos nele abordados, tal como colocar-lhe outras questões. Uma das inovações lançadas em 1961 foi a dos aerogramas. Pode clarificar melhor a concretização desta ideia?

R.: De facto lançámos essa ideia e conseguimos concretizá-la apesar das dificuldades surgidas. Ainda recentemente fui visitada pelo General Oliveira Pinto, que me ofereceu um livro sobre esse tema, resultante de um trabalho que levou a efeito. Nele lá vem referido que foi o MNF a fazer todas a edições dos aerogramas. Conseguimos a isenção da franquia postal, mas também nos disseram que tal apenas podia ir para a frente se fossemos nós a tomar conta do desenvolvimento desse projecto. 

Na altura tínhamos somente mil e quinhentos escudos em caixa ], o equivalente, a preços de hoje, em 16/9/2020, a 663,63 €...]  , mas, através da venda de publicidade nos próprios aerogramas, conseguimos editar milhões de exemplares. Vendíamos às famílias a vinte centavos [, nove cênti,os, hoje], sendo grátis para os militares. Nessa época arcámos com toda a responsabilidade e as despesas inerentes. 


E não vieram a receber subsídios do Estado para esse efeito?

Apenas cerca de quatro anos antes de 1974, face ao alargamento das três frentes de guerra, é que passámos a receber subsídios do Ministério da Defesa Nacional, assim como apoio jurídico e de contabilidade. 

A Administração Militar passou cerca de seis meses no Movimento a verificar toda a nossa documentação administrativa. Deste modo, quando acabou, o MNF tinha todas as suas contas em ordem. 

Nos primeiros anos o SPM (Serviço Postal Militar) funcionava mal, dentro de uma grande balbúrdia, onde nós ajudávamos no serviço, com várias senhoras. A certa altura colocaram lá o Major Tavares, que conseguiu dar eficiência ao serviço. Depois, ele queixava-se que nunca mais ia para o Ultramar, pois o MNF não o libertava. De facto, nós com o receio de que tudo voltasse à confusão anterior, fazíamos com que ele não seguisse para o Ultramar quando foi mobilizado. Ficou assim "demorado" por algum tempo.


Quais eram a vossas principais preocupações?

Uma das principais era o facto dos Serviços Sociais das Forças Armadas não funcionarem devidamente. Acabámos por sermos nós a empenharmo-nos nas soluções de determinadas questões. 

Uma delas era a subvenção de família, que estava prevista numa lei que não era executada. Ela estipulava que os pais dos militares mobilizados, com mais de 60 anos, tinham direito a esta subvenção. No entanto a lei não era cumprida por desconhecimento das Unidades Militares. Chegou a realizar-se uma reunião, no Governo Militar de Lisboa, com uma nossa delegada, para esclarecer a maneira como a lei devia ser interpretada.


O vosso Movimento nasceu em 1961 ligado às "vicentinas", uma obra da Igreja Católica.

Sim. Ligámo-nos às "vicentinas" cuja presidente nacional era a D. Maria da Glória Barros e Castro. Era uma obra fantástica espalhada por todo o território nacional. Foi essa a principal razão da nossa ligação e cooperação, com a finalidade de conseguirmos chegar a todas as regiões. 

Como sabe, o MNF nasceu oficialmente em Junho de 1961, quando levámos a efeito uma sessão pública na Sociedade de Geografia, com a difusão do nosso programa através da RTP e de outros órgão de Comunicação Social.


No entanto, na parte final da guerra, houve uma evolução negativa da parte de alguns sectores d Igreja em relação ao Ultramar...

Claro que nessas ocasiões acabam por surgir alguns elementos oposicionistas. No entanto, sempre tivemos óptimas relações com os elementos da Igreja, nomeadamente com os capelães militares que prestavam com eficiência o seu serviço de assistência religiosa nas Forças Armadas. Eram uns grandes "pedinchões", como nós dizíamos. Mas era tudo em defesa da melhoria das condições de vida dos militares no mato. 

Recordo que chegámos a espalhar por grande parte das cantinas e bares das três frentes de guerra aqueles jogos de bola com bonecos, os designados "matraquilhos", que eram muito apreciados. Isto além de livros, revistas e material didáctico.


Editaram também a revista "Presença"?

Sim. Começou sendo directora a Luísa Manoel de Vilhena, em meados da década de sessenta. Era uma boa revista, muito bem paginada e com bons colaboradores. 

Mais tarde editámos igualmente a "Guerrilha", um jornal mensal, que teve como directores o Martinho Simões e, depois, o Mário Matos e Lemos.


Uma das vossas preocupações foi também resolver o problema das trasladações dos militares falecidos no Ultramar...

Claro. Inicialmente tínhamos a preocupação de fotografar as campas onde eles eram enterrados para enviar às famílias e, em Angola, chegou a existir um movimento das senhoras locais para manterem as campas com flores. 

Recordo ainda que havia uma lei em relação à Guiné, em que o militar, antes de seguir para lá, tinha que assinar um documento onde afirmava que, em caso de morte, a família tinha que se ocupar da trasladação do corpo para o Continente. Telefonei ao Ministro da Defesa, General Luz Cunha e disse­-lhe: “Eu tenho aqui um documento que diz isto e eu não posso acreditar que seja verdade.” Respondeu-me: “Mande-me imediatamente esse papel!” Assim foi e nunca mais tal sucedeu.


A partir de 1967 o Exército passou a ocupar-se das trasladações para o Continente.

Sim e foi devido à pressão que fizemos nesse sentido. Nós estávamos sempre de "olho aberto". De tal modo que o Dr. Franco Nogueira afirmava que a verdadeira oposição no País éramos nós, porque chamávamos a atenção para tudo o que estava errado. E é verdade. 

Outro aspecto que também corrigimos foi o caso da vacina contra a febre amarela, que era aplicada na altura do embarque, o que era contra-producedente. Tinha que passar algum tempo para depois fazer marchar os militares para o seu destino.


Nos seus contactos pessoais com o Professor Salazar, não se apercebeu das razões por que ele nunca quis ir ao U1tramar?

Não sei porquê, já que ele tinha a paixão do Ultramar. Cheguei a dizer-lhe: “Olhe, Sr. Dr., se eu fosse a si, fazia assim, Portugal com a capital em Luanda”. Riu-se e disse. “Tenho que ir lá...; tenho todo o interesse em lá ir.”


Mas tinha receio de andar de avião...

Ele não gostava. Foi uma vez de avião, com uma senhora muito amiga, conhecida desde miúdos, que era a Geny Aragão Teixeira, mais tarde esposa do Prof. Francisco Leite Pinto, que foi Ministro da Educação Nacional. Ocorreu num 28 de Maio, em que fomos todos a Braga. Depois ela perguntou-lhe: “Então que tal?”. Resposta dele: “Foi o que fiz toda a vida, não fumar e apertar o cinto...”


Não notou uma grande diferença entre a liderança de Salazar e a de Marcello Caetano?

Claro! Julgo que o segundo não esteve à altura do que o País precisava dele, naquela época.


E a sua opinião sobre o General António de Spínola?

Foi um valente guerreiro, patriota e um bom militar em Angola e na Guiné. Nada mais do que isso. Como escritor e político deixou muito a desejar...

Para terminar poderá fazer um ponto de situação em relação à guerra no Ultramar, em 1974?

A guerra em Angola estava ganha. A Guiné era um problema e sendo ela perdida, seria muito complicado para o resto. 

Também acho que faltavam muitos meios nas Unidades, incluindo o armamento. A Guiné foi grave. A minha "Guinezinha" como eu costumo dizer, tão pobrezinha... Olhe que tenho a camisola amarela de zonas de intervenção visitadas. Cheguei a ir umas quatro vezes a Madina do Boé, a Buruntuma, a Nova Lamego e a muitas outras zonas de combate. Nunca virei a cara e posso andar em qualquer sítio de cabeça bem levantada. Muitas vezes ia à frente das colunas e cheguei inclusivamente a "picar" a estrada.

Sobre Moçambique, que era muito grande, o problema era também complicado... De qualquer maneira devia ter-se enveredado por outros rumos. Por exemplo, por que não se fizeram novos Brasis? 

Depois do 25 de Abril e durante muito tempo recebia cartas de naturais desses países, onde me diziam que gostariam de receber de volta os portugueses. O que sucedeu foi o pior que poderia ter acontecido. Foi uma tristeza. E até uma vergonha. 


Sabe que também havia muitos oficiais descontentes com a maneira como foi tratado, pelo regime, o caso da Índia...

Sim e não só. Havia também o problema das mulheres dos oficiais que faziam comissões seguidas, assim como o caso dos brancos lá residentes, que não se portaram da melhor maneira. Eu assisti a muitos desses problemas e tentava apaziguar dentro das minhas possibilidades. Mas já era uma situação demasiado complicada...


(*) Entrevista realizada em 16-7-2005, no Hospital de Santa Maria em Lisboa, onde se encontrava internada, pelo Coronel Manuel Amaro Bernardo


2. Nota do cor Manuel Bernardo dobre o falecimento de Cecília Supico Pinto (1921-2011): 


Caros combatentes:

Sobre esta Senhora, quero referir que apenas a conheci em Julho de 2005, quando fui encarregado pela revista Combatente,  da Liga dos Combatentes, de a entrevistar quando estava com baixa no Hospital de St. Maria. 

Além de ter sido publicada nessa revista, também faria parte do conteúdo do livro "A Mulher Portuguesa na Guerra (...)", editado por aquela Liga em 2008.

Desse texto realço alguns pontos importantes, nomeadamente em relação às suas diligências sobre a solução de problemas dos combatentes.

Sobre os aerogramas afirmou: 

"De facto foi o MNF a fazer todas as edições dos aerogramas. Conseguimos a isenção da franquia postal, mas também nos disseram que tal apenas podia ir para a frente se fossemos nós a tomar conta do desenvolvimento desse projecto. Nessa altura tínhamos apenas mil e quinhentos escudos em caixa, mas, através da venda de publicidade nos próprios aerogramas, conseguimos editar milhões de exemplares. Vendíamos ás famílias a vinte centavos, sendo grátis para os militares. Nessa época arcámos com toda a responsabilidade e as despesas inerentes."

Sobre as trasladações dos militares falecidos afirmou:

"(...) Recordo que havia uma lei em relação à Guiné, em que o militar, antes de seguir para lá, tinha que assinar um documento onde afirmava que, em caso de morte, a família tinha que se ocupar da trasladação do corpo para o Continente. Telefonei ao Ministro Silva Cunha e disse-lhe: «Eu tenho aqui um documento que diz isto e eu não posso acreditar que seja verdade». Respondeu-me «Mande imediatamente esse papel!». Assim foi, e nunca mais tal sucedeu. (...)"

Sobre as suas idas à Guiné, disse:

 "(...) Cheguei a ir umas quatro vezes a Madina do Boé, a Buruntuma, a Nova Lamego e a muitas outras zonas de combate. Nunca virei a cara e posso andar em qualquer sítio de cabeça bem levantada. (...)"

Cecília Supico Pinto ainda deu mais uma entrevista em 2008,que foi publicada na revista do Expresso, em 16 de Fevereiro.

Com estes destaques pretendi, nesta sua despedida, homenagear o grande esforço despendido por esta Senhora no apoio aos combatentes do Ultramar

Que descanse em paz!

Cor Manuel Bernardo
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Nota do editor:

quinta-feira, 21 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P20995: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (72): Mesmo depois de mortos, ou ainda em vida! (José Martins)

1. Mais um excelente trabalho do nosso camarada José Martins (ex-Fur Mil TRMS, CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), enviado ao Blogue em mensagem de 2 de Maio de 2020, subordinado ao tema "Mesmo depois de mortos, ou ainda em vida!", que nos traz alguns esclarecimentos/informações sobre as sepulturas dos nossos militares caídos em campanha na I Grande Guerra e Guerra do Ultramar, espalhadas em cemitérios por todo o mundo e, sobre as trasladações dos restos mortais levadas a efeito durante e depois das guerras terminadas.


Mesmo depois de mortos, ou ainda em vida!

Monumento ao Valor do Infante, em Mafra


Até às Lutas Liberais, em 1834, os soldados mortos nas batalhas ficavam insepultos, acabando mais tarde, pela generosidade das populações, por serem sepultados em valas comuns.
No caso das mortes ocorridas, no então Ultramar, a morte dava-se em território nacional; os soldados morriam pelo Rei, depois pela Republica, e mais tarde em nome de Portugal; portanto ficavam enterrados em solo Pátrio. Só a pedido e a custas da família, seriam trasladados.

O texto escrito, vai já para oito anos, sob o título "Os soldados não morrem, apenas tombam no campo da honra!", refere, no terceiro post [*] publicado no blogue, alguma da legislação que havia e que ao longo dos anos da guerra foi sendo alterada, além da forma como deviam ser tratados os corpos dos que tombaram.
Até a instauração do Regime Liberal, os mortos civis, militares ou eclesiásticos eram sepultados nas criptas das igrejas, ou, os nobres ou mais abastados, teriam o seu lugar em túmulos nas igrejas ou panteões, construídos ou adaptados para o efeito.

É pelo Decreto de 21 de Setembro de 1835, que o rei ordena a construção de cemitérios em todas as localidades mas, perante a continuidade do uso, já ancestral, de sepultar dentro das igrejas, por Decreto do Governo datado de 28 de Setembro de 1844, é imposto à população a proibição de sepultamento no interior das igrejas, e novas normas sobre os locais de enterramento.
É a altura de se iniciar a construção de cemitérios, primeiro nas imediações dos templos e, mais tarde, fora das localidades. É por esta altura que foi emitida uma Circular do Ministério do Reino, datada de 16 de Dezembro de 1890, que traz novas orientações a esta matéria. Só volta a aparecer nova legislação o Decreto 44220 de 03/03/1962 e o Decreto-lei 48770 de 18/12/1968.

Procurei estas peças legislativas, na tentativa de encontrar algo acerca das sepulturas dos militares que, tombados em África durante as últimas campanhas (1961/1974), foram trasladados para a Metrópole. Tinha a ideia de que essas sepulturas seriam perpétuas, não existindo o levantamento das ossadas dos mesmos, mas vim a constatar que, em vários locais, havia militares inumados desde a sua chegada, enquanto outros tinham sido trasladados para ossários ou, mesmo, os seus restos mortais tinham sido dados como abandonados.
Apesar dos cemitérios serem construídos a distância considerada bastante, para se manterem a certa distância das localidades, algumas foram crescendo e expandido a sua malha urbana, que acabaram os cemitérios por ficar envolvidos pelas habitações.
O espaço que, inicialmente, se vendia a título perpétuo, foi escasseando, uma vez que muitas famílias adquiriam o terreno para que se perpetuasse nas famílias e nelas se reunissem as futuras gerações, e faltavam terrenos que favorecessem o seu alargamento.

Entrada do Cemitério de Santo António do Carrascal, Leiria
Inaugurado em 1871

O Decreto-Lei 411/98 de 30 de Dezembro, define os termos para a elaboração dos regulamentos de funcionamento dos cemitérios, fossem administrados pelas Juntas de Freguesia ou Municípios, sendo estabelecidos os emolumentos para os serviços a prestar por aquelas estruturas.
Mesmo que, nesses cemitérios, haja talhões e/ou campas privativas de organizações ou associações civis ou irmandades religiosas, essas ficavam sujeitas aos regulamentos instituídos, assim como ao pagamento das taxas a aplicar.

O caso que nos foi apresentado, para comentar, é o seguinte:
No cemitério paroquial de uma freguesia, existia um local onde foi inumado o corpo de um militar, natural ou residente na freguesia, em 1967. É muito provável que tenham destinado parte do terreno anexo para, eventualmente, serem inumados outros militares tombados no Ultramar. Até ao final da guerra só houve, nessa freguesia e com enterramento nesse espaço do cemitério local, mais um combatente, em 1968.
Constava que esse espaço, era um talhão pertença das Forças Armadas. Não tenho conhecimento de que tal aconteça, na medida em que os talhões privativos que existem nos cemitérios, são cedidos a Associações de Bombeiros, Liga dos Combatentes ou confissões religiosas que não católicas e, todos eles, além de cumprir as normas do próprio cemitério, cumprem, também, as normas da entidade a quem foram cedidas a título perpetuo ou temporal.

Estava em curso a Guerra do Ultramar e, desde sempre foram consideradas parte integrante do território nacional, tese defendida durante a Monarquia e a Republica, razão pela qual o país travou as Campanhas de Ocupação, entrou na Grande Guerra e reforçou os territórios durante a II Grande Guerra. Por igual razão respondeu aos Movimentos de Libertação guarnecendo, entre 1961 e 1974, com mais de um milhão de militares aqueles territórios
É provável que, após o primeiro funeral em 1967, tenha havido a intenção de se proporcionar um local com alguma dignidade, não só a este, mas aos que eventualmente “fossem escolhidos pela morte”, um local onde ficassem todos juntos, seguindo o lema de “unidos na guerra, unidos na paz”.
Se anotarmos as causas das mortes ocorridas, no caso do Exército, nos Teatros de Operações – Angola, Guiné e Moçambique – vamos encontrar muitas causas, causas essas que ocorrem muitas vezes numa sociedade civil: doença, com as mais variadas causas; acidentes, desde os de viação, em ambiente ferroviário, até aos de aviação, porque havia transporte de tropas de uma zona para outra; afogamentos, em rios ou mar; e outras causas, que podiam ser comparados a “acidentes de trabalho” como queda do cimo de árvores, electrocussão, queimaduras nas cozinhas ou na trasfega de líquidos inflamáveis, etc. As outras causas, mais violentas, foram os mortos em combate e os acidentados com arma de fogo.

Se, nas causas apontadas na primeira abordagem, podiam provocar deformações no corpo dos combatentes, as segundas, as mais violentas, poderiam provocar, não só deformações muito acentuadas, como até a sua dispersão.

Efeitos de mina num Unimog 411
Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados

Durante o tempo em que a guerra durou, e mesmo para além desse tempo, houve como que um pacto de silêncio entre os que lá estiveram. Porque, no regresso, era tempo de esquecer; era tempo de reavaliar os projectos que se tinham, de acordo com as perspectivas que nos se apresentavam; era tempo de voltar a aprender a viver. Mesmo entre os que lá estiveram, levaram muito tempo a abrir o “baú”, e começar a partilhar memórias, vivências e factos.
E quando os “baús” se foram abrindo, foi com alguma discrição. Cada um ia retirando aquilo que era menos doloroso; aquilo que estava já mais assumido; aquilo que não colocasse em risco a memória dos camaradas. Ou seja: vai surgindo, para os que estavam ávidos de “bombas relógio a explodir”, aquilo que não dava para um estoiro de bomba de santos populares.
Só havia uma possibilidade: abrir os baús que se mantinham fechados. Aqueles que chegaram entre lágrimas e gritos sufocados e encerrados a sete palmos abaixo do chão. Foi uma “corrida” desenfreada. Todos, os que não estiveram na guerra e que não tinham ninguém entre os que tombaram, queriam arrancar “esqueletos do armário”, para “reabilitar a verdade”

Muitas urnas não continham partes ósseas identificáveis. Continham pequenos fragmentos e pedras. Tudo o resto já tinha desaparecido. Outras, a parte óssea, apenas.
Faltavam a muitos o conhecimento do que é a “pensão de sangue”.
Não é um prémio, não é uma condecoração, não é uma reparação. Muitos dos que a receberam, preferiam mil vezes não a ter recebido. A “pensão de sangue” que, com outra designação já existia há muito tempo no nosso país, era uma reparação, pequena e muitas vezes simbólica, para tentar suavizar as necessidades, não a dor, daqueles que tinham perdido alguém na guerra: viúvos, filhos e pais.
Mas havia, e assim continua a haver, pressupostos que são indispensáveis para a sua concessão seja possível.
Um documento que justifique o infausto acontecimento, as condições em que ocorreu e, mais importante para a família, um corpo. Sem o corpo, não há morte; sem o corpo não há luto; sem o corpo, não há enterro.

Não há ninguém, desde o soldado ao general, que não saiba que a guerra vai gerar mortos; mas não há ninguém, desde o general ao soldado, que o deseje.
Pelos pressupostos citados, quando havia uma morte mais violenta, causada por engenhos explosivos, em que os corpos se tornavam irreconhecíveis, que todos tentavam que nada ficasse na terreno, buscando e recolhendo num espaço único, o que restava de camaradas seus, de que só saberiam a quantidade e identidade, após a chamada aos presentes. Muitos não responderam à chamada, não porque não estivessem vivos, mas porque tinham sido aprisionados.
A tropa, no seu sentido mais genérico, não formava especialistas em todos os serviços de que necessitava. Muito menos nos serviços funerários.

Não pretendo historiar os casos que real e/ou hipoteticamente aconteceram, ampliados por uma comunicação social que procura “manchetes bombásticas”, esquecendo que, para que muitas famílias não ficassem desamparadas, foram dados como mortos muitos militares que, mais tarde se veio a verificar estarem prisioneiros. Se surgissem dúvidas, caso fosse feita uma declaração de desaparecimento, anos levaria a que os mesmos fossem considerados “desaparecidos” ou “falecidos” por um tribunal. Isto sem colocar a hipótese de o juiz que julgasse o caso, decidisse considerar o militar “desaparecido” como desertor, por insuficiência de provas.

Que estes parágrafos, ou notas, não sejam consideradas “libelo”, nem de acusação nem de defesa de ninguém. A guerra é feita por humanos, e por isso é cruel e imperfeita.
Portugal, desde a sua fundação até à actualidade, esta mesma actualidade que estamos a viver, sempre teve mortes geradas pelas mais diversas razões.
Poderia terminar, aqui e agora, o texto que estou a redigir, mas, mais uma nota que se prende com os que ficaram, e outra com os que ainda estão entre nós.
Após a Grande Guerra, houve alguns concelhos que pensaram em trasladar e juntar num único local, os seus mortos. Rápido se constatou que seria uma operação que, além de dispendiosa era quase impraticável. Havia militares sepultados por vários cemitérios de vários países, onde se tinham dado os combates. Muitos estariam “desaparecidos” ou mal identificados.
Foi então que, e pela primeira vez, os estados promoveram a construção de Cemitérios Nacionais, reunindo num só local os seus militares mortos.


É criada a Comissão Portuguesa das Sepulturas de Guerra que entre o ano de 1924 e 1938, através do Serviço de Sepulturas de Guerra no Estrangeiro, composta por oficiais do Exército e com a colaboração do Cônsul Português, em Arras, Louis Lantoine, reúne no Cemitério de Richebourg, os corpos de 1831 militares (238 não estão identificados) e provenientes dos cemitérios franceses de Le Touret, Ambleteuse, Brest, e Tournai (Bélgica) e os corpos dos militares que morreram na Alemanha, durante o cativeiro. Não foi possível trasladar todos os corpos para Richebourg, havendo campas de militares portugueses na Alemanha, Bélgica, Espanha, Holanda e Inglaterra, não só por questões sanitárias mas, também, por constrangimentos orçamentais. Para substituir as cruzes que ficavam nas cabeceiras das campas, foram colocadas lápides que apenas indicam o nome dos combatentes, quando conhecido.

Em 4 de Fevereiro de 1966, aprovadas que foram as "Normas Reguladoras de Trasladação de Ossadas de Militares", estabelecendo a gratuitidade do transporte das ossadas dos militares, da Metrópole e Ilhas, falecidos no então ultramar, as trasladações poderiam ser efectuadas, ou a pedido das famílias a quem seriam entregues ou, por outro lado, por iniciativa do Exército que, neste caso, as recolheria num Ossário Militar Central, localizado em Lisboa. Os militares falecidos dos então Teatros de Operações de Angola, Guiné e Moçambique, teriam também, em cada ex-província, o seu Ossário em local a definir, provavelmente, nas respectivas capitais.


Os Ossários não saíram do papel e, por isso mesmo, foi sendo protelado o cumprimento das normas aprovadas e, oito anos após a sua aprovação, quando chegou a altura de iniciar as negociações de paz, ninguém, quer os militares que tinham tomado a decisão e aprovado as normas, quer os militares que tinham assumido o poder, nem sequer se “lembraram” de que, sob a terra que pisavam, estavam os corpos de militares que aguardavam a sua trasladação.

Agora, mais de quarenta anos depois de ter terminado a guerra, os que foram e regressaram, os combatentes, é que não esquecemos os camaradas que lá ficaram e temos uma ténue ideia das condições em que estarão as suas campas. Na altura o Estado Português podia delegar no Exército a tarefa de trasladar os mortos, mas presentemente é quase impraticável. Os antigos territórios são hoje países independentes; têm os seus governantes, que já não são os que negociaram a independência; as regras do jogo são diferentes e, as leis que regulam esta matéria, também já não são as mesmas. Hoje só é possível proceder a uma trasladação, caso a caso, e por decisão de cada família, tomar a decisão de abrir o processo.

Os pais dos nossos camaradas que tombaram, muitos já não existem ou já terão uma idade avançada; os outros familiares dos que caíram – viúvas, filhos, irmãos – que tomaram a decisão de recuperar os restos mortais dos seus entes queridos e puderam, já os foram lá recolher, apesar dos custos financeiros e de alguns desagradáveis casos, pois só procediam à exumação na presença dos mesmos, quando pensavam que estariam já na capital do antigo território, e ali tratariam de tudo.
Apesar de não ser essa a vontade, senão de todos, dum a grande parte dos combatentes, os nossos camaradas ficarão por lá, juntando o seu destino ao de muitos outros combatentes, que tombaram, ao longo dos séculos, em África.

Como última questão, mas não menos importante, é o número de combatentes que ainda se encontram entre nós. Não só o seu número, mas também a sua distribuição geográfica, etária e condições de vida, a fim de que, quem entregou a sua juventude à Pátria, agora pudesse receber o apoio, e não só o agradecimento, de que é credor. Quantos somos, efectivamente? Como se poderá obter essa informação?
Pois bem.
Nem todos os combatentes são membros da Liga dos Combatentes; muitos nunca se inscreveram na mesma, por não encontrarem razões para tal; outros nem sequer imaginam fazê-lo. Portanto, por aqui, não é o caminho.
Talvez fosse possível obter esse número através dos pagamentos efectuados pela Caixa Nacional de Pensões, Caixa Geral de Aposentações ou outros organismos (bancários, advogados, etc), mas estariam em falta os oficiais e sargentos do quadro permanente assim como as forças de segurança, assim como os combatentes que optaram pela emigração e por lá se encontram.
Poderia ser através das Associações de Combatentes, de âmbito local ou nacional mas, nem todos os combatentes estarão inscritos nessas associações e, alguns, poderão estar inscritos em mais do que uma associação.
As autarquias poderiam dar uma ajuda (sugestão que vi no facebook), mas não teriam pessoal para desenvolver um trabalho destes, mesmo com a ajuda de voluntários e, não sei se o poderiam fazer. Mantêm as listagens para as eleições, que não referem se o eleitor foi ou não combatente. Nas localidades com mais habitantes, muitos residentes nem sequer são conhecidos dos autarcas eleitos.

Como no próximo ano (2021) é ano dedicado aos censos da população. Poderia ser uma oportunidade mas, neste momento é tarde. Os folhetos do recenseamento já foram aprovados e não são susceptíveis de serem alterados.
Mesmo que pudessem, será que todos responderiam? Muitos combatentes não revelariam esse facto ou mesmo o ocultaria por questões pessoais.
Além do mais, existe desde 1994, uma Comissão Nacional de Protecção de Dados que colocaria decerto algumas objecções.
Perece que, como até agora, só podemos basear-nos em “projecções”, porque o direito à privacidade impede que, por muito boa vontade de muitos, possamos acudir com o necessário para que muitos camaradas nossos possam terminar os seus dias com a dignidade que todo o ser humano – homem ou mulher, velho ou novo – merecem.

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4 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10479: Os Soldados não morrem, apenas tombam no campo de honra (1) (José Martins)
5 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10486: Os Soldados não morrem, apenas tombam no campo de honra (2) (José Martins)
e
6 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10490: Os Soldados não morrem, apenas tombam no campo de honra (3) (José Martins)

José Marcelino Martins
Odivelas, 1 de Maio de 2020
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Nota do editor

Último poste da série de 28 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20916: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (71): A história da escultura dedicada ao Soldado Desconhecido de Sacavém (José Martins)

quarta-feira, 3 de abril de 2019

Guiné 61/74 - P19645: Estórias avulsas (100): Resgate de restos mortais do 2º srgt trms Justino Teixeira da Mota, CCAÇ Esp 266 / BCAÇ 262, morto, por acidente de viação, em Angola em 18 de outubro de 1962, e inumado no cemitério de Maquela do Zombo, Angola (João Afonso Bento Soares, maj gen na reforma)

ç

Angola > Maquela do Zombo > 2º srgt trms Justino Teixeira Mota, falecido em 18 de Outubro de 1962, na sequência de acidente de viação,  e enterrado no cemitério local. Pertencia à à Companhia de Caçadores Especiais 266 / BCAÇ  262)



Angola > Maquela do Zombo >   O CEM da UNAVEM (Missão de Verificação das Nações Unidas em Angola),  Coronel João Afonso Bento Soares, junto à campa de Justino Teixeira da Mota, acompanhado de autoridades civis e militares de Maquela do Zombo. 

Fotos (e legendas): © António Teixeira Mota (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




João Afonso Bento Soares,. Quinta do Cubo,
Elvas, Natal de 2006
1. Mensagem do nosso leitor e camarada João Afonso Bento Soares, com data de 19 de março de 2019

Caríssimo Amigo e Prof Luís Graça:

Recebi o habitual mail do seu blog Luís Graça & Camaradas da Guiné, que estiou a seguir,  e encontro logo à entrada o apontamento/post de José Saúde (ex-furriel) que li com todo o interesse e que fala de Restos Mortais abandonados na GU [, Guerra do Ultramar]..(*)

Ocorreu-me então a lembrança de uma saga homérica havida comigo enquanto Coronel, Chefe do Estado Maior da UNAVEM (Missão de Paz das Nações Unidas em Angola) em 1995/96 , em que o Cor Ramiro Correia de Oliveira (que fora professor comigo  no IAEM - Instituto de Altos Estudos Miliatres) me veio pedir, aquando da minha partida, para diligenciar a recuperação dos Restos Mortais de um sargento que a sua companhia (CCE 266) tinha deixado, em 1962, no cemitério de Maquela do Zombo - Norte de Angola.

Como pode imaginar, pensei logo que seria uma missão impossível (para um homem só!)...Mas de facto, encarei o assunto e consegui satisfazer o pedido do Coronel amigo.

Conto em anexo um resumo dessa história. História, da qual um filho do militar de cujos Restos Mortais consegui a remoção, veio e escrever um livro com o título "Luta Incessante".

Carlos Pinheiro
Lembrei-me então de o contactar o Carlos Pinheiro, na sua qualidade de "tabanqueiro", pois foi um excelente Operador de Mensagens no Destacamento do Serviço de Telecomunicações Militares que eu comandei na Guiné como Capitão na minha 1ª comissão, em 1968/70.

Foi ele que me facultou o seu mail e por isso ponho à sua consideração se o Apontamento em anexo terá interesse para publicação no seu blog. É claro que o assunto não diz directamente respeito à Guiné pois passou-se em Angola, mas eu apenas pretenderia dar uma achega modesta à justa preocupação enunciada por José Saúde.

Como não nos conhecemos pessoalmente, tomo também a liberdade de anexar uma Nota Biográfica.

Um forte e sempre amigo abraço

João Afonso Bento Soares
Major General


2. Nota biográfica:

(i) o eng.º João Afonso Bento Soares é Major General do Exército e nasceu na freguesia de Meimoa, concelho de Penamacor, Beira Baixa, em 2 de Janeiro de 1941;

(ii) fez o liceu em Coimbra e ingressou na Academia Militar em Outubro de 1959 onde frequentou o Curso de Engenharia-Transmissões;

(iii) concluiu no Instituto Superior Técnico a Licenciatura em Engenharia Electrotécnica no ano académico de 1965 / 66;

(iv) na sequência da sua promoção a Capitão em Fevereiro de 1967,  foi nomeado como primeiro Director da Estação Portuguesa de Comunicações por Satélite integrada no Sistema SATCOM NATO; durante o desempenho destas funções (1970/74) foi promovido a Major em Dezembro de 1973;

(v) como Tenente-Coronel (promovido em Novembro de 1974) foi Director do Depósito Geral de Material de Transmissões (1976 / 79) e Professor do Instituto de Altos Estudos Militares (1979 / 86); nesta qualidade frequentou nos EUA o “Command and General Staff Course“ (1982 / 83) e seguindo simultaneamente o curso de pós – graduação, “Master of Military Art and Science“, adquiriu o respectivo grau académico (Universidade de Kansas);

(vi) de regresso ao Instituto de Altos Estudos Militares (IAEM), foi posteriormente promovido a Coronel em Setembro de 1984;

(vii) foi seguidamente colocado no EMGFA (1986 / 88) na Divisão de Comunicações e Electrónica e Grupo de Projectos Operacionais onde elaborou o Documento Conceptual do SICOM – Sistema Integrado de Comunicações Militares;

(viii) foi nomeado em 1 de Janeiro de 1989 como primeiro Subdirector do Serviço de Informática do Exército no período em que esta área esteve integrada na Arma de Transmissões;

(ix) concluiu no ano lectivo de 1989/90 o Curso do Instituto Britânico em Portugal onde adquiriu o diploma “Certificate of Proficiency in English” (University of Cambridge);

(x) em 1990 / 91 frequentou, no IAEM, o Curso Superior de Comando e Direcção e sequentemente, como Coronel Tirocinado, foi colocado nos Açores onde desempenhou as funções de 2º. Comandante da ZMA – Zona Militar dos Açores (1992 /93) – e Chefe do Estado Maior do COA - Comando Operacional dos Açores (1993 / 94);

(xi) terminada esta comissão de serviço foi responsável pelo Centro de Operações Conjunto do EMGFA durante cerca de 9 meses;

(xii) por despacho ministerial foi nomeado para Chefe do Estado-Maior Internacional da Missão de Paz da ONU em Angola – UNAVEM III (Março de 1995 a Março de 1996);

(xiii) de regresso a Portugal e ao Exército,  foi colocado como Subdirector dos Serviços de Transmissões, funções que desempenhou de Maio de 1996 a Outubro de 1997;

(xiv) com a sua promoção a Oficial General em 25 de Setembro de 1997, foi nomeado Director do Instituto Militar dos Pupilos do Exército, funções que desempenhou desde 3 de Novembro de 1997 a 11 de Fevereiro de 2000, tendo entretanto passado à situação de reserva em 2 de Janeiro de 2000;

(xv)  no decorrer deste período foi Presidente da Comissão Organizadora da III CIDMT (Conferência Internacional de Doutrina Militar Terrestre) realizada em Portugal de 5 a 8 de Maio de 1998 reunindo 26 países representados por oficiais superiores e oficiais generais incluindo os Chefes do Estado Maior do Exército de Angola, Grécia, Guiné, Itália e Portugal;

(xvi) ao longo da sua carreira Militar, de 41 anos de serviço no activo, cumpriu duas comissões de serviço no Ultramar: na Guiné (1968 / 70) como Capitão e em Angola (1975) como Tenente-coronel;

(xvii) foi responsável pela elaboração de várias publicações técnicas na área de Transmissões e Guerra Electrónica e é autor das obras:

"The Iberian Peninsula in the Atlantic Community – Problems and Prospects” (1983);
“A Mulher e as Forças Armadas: Igualdade de Oportunidades na Profissão Castrense” (1991);
 “As Transmissões no Exército Português – Resenha Histórica – ” (1999);

(xviii)  tem também Obra Poética publicada: “Chamamentos” (2004); “Dizeres Sentidos…Rimas Perdidas” (2005-07); e é co-autor da “Poiesis” – Antologia de Poesia e Prosa Poética Portuguesa Contemporânea -Volume XVI (2007) e de “Paradigmas” – Colectânea de Poesia e Texto Poético da Lusofonia (2016).

(xix) é condecorado com as Medalhas Militares das Campanhas de África, de Comportamento Exemplar, de Mérito Militar, de Serviços Distintos e com a Medalha das Nações Unidas; é Comendador da Ordem do Infante D. Henrique, condecoração com que foi agraciado pela Presidência da República (1996) por proposta do Embaixador de Portugal em Angola;

(xx) é membro efectivo da Sociedade de Geografia (2003);

(xxi) é  casado com Dª. Maria Delfina F. C. Bento Soares, licenciada em Filologia Germânica e tem três filhos: Maria Cristina (licenciada em Psicologia), João Francisco (licenciado em Informática de Gestão) e Jorge Afonso (Técnico Administrativo). Tem três netos: Maria Carolina, e os gémeos Joana e João Ricardo.


3. Resgate de restos mortais de um antigo combatente [, o Sargento Justino Teixeira da Mota, caído em Angola e enterrado em Maquela do Zombo, em 1962]


Revendo o álbum de memórias dos mais de quarenta anos ao serviço das Forças Armadas no desempenho das mais variadas missões, encontro páginas que sabe bem reviver.

Uma delas é, seguramente, a autêntica saga constituída pelos muitos trabalhos, diligências e canseiras que me viriam a permitir resgatar em 1995/96 os restos mortais do Srgt Justino T. Mota caído em Angola na Guerra do Ultramar e enterrado em Maquela do Zombo em 1962.

Insere-se este episódio na segunda passagem por Angola aquando da minha nomeação, no posto de Coronel, para Chefe do Estado-Maior da Missão de Paz da ONU em apoio daquele país (UNAVEM – United Nations Angola Verification Mission).

Estávamos em fins de Janeiro de 95, e nessa altura participei, com civis e oficiais superiores de vários países, num curso sobre Missões de Paz que decorreu na Dinamarca sob a égide da ONU. Durante esse encontro, o Coronel representante da Bulgária, tendo-me identificado através da “Lista de Participantes/Funções” como próximo responsável pela Chefia do Estado-Maior da Missão de Paz em Angola (UNAVEM), veio confidenciar-me que, ele próprio, se havia candidatado ao cargo de Observador Militar naquela Missão, mas que o pedido de cooperação aberto à Bulgária não incluía o posto de Coronel. 

Referiu-me, inclusivamente, ter-se disponibilizado para aceitar um “down-grading” da sua patente por um ano, mas o Governo do seu país não aceitara a sugestão e nomeara efectivamente um Major. Era para esse oficial seu conhecido, que reputou de excelente militar, que o Coronel búlgaro vinha pedir a minha “protecção”. Não obstante a natureza circunstancial do pedido, solicitei-lhe uma nota identificativa do recomendado. De pronto me entregou um cartão-de-visita, por ele previamente preparado, que guardei.

No final do curso, a organização providenciou transportes diversificados para o aeroporto a grupos de oficiais de acordo com os seus voos. Deu-se novamente a coincidência, de me ter deslocado na viatura onde ia também e apenas o referido Coronel búlgaro. Lá retomámos a conversa sobre o seu “protegido” – Major Alexander Alexandrov, de sua graça.

De regresso a Lisboa, pouco antes do embarque e já embrenhado nos últimos preparativos, a dois ou três dias da partida, recebo um telefonema do meu querido amigo Coronel Ramiro Correia de Oliveira. Dizia precisar de um grande favor da minha parte. Resumidamente, tratava-se de tentar diligenciar em Angola a trasladação dos restos mortais de um militar então pertencente à Companhia de Caçadores Especiais nº 266 sob seu comando em Maquela do Zombo, que ficara sepultado no cemitério daquela localidade em 1961!

Embora apercebendo-me da dificuldade, ou mesmo impossibilidade, do teor de um tal pedido, senti uma forte emoção interior. É que uma outra missão similar, também do foro sagrado, me tinha cometido a mim próprio: localizar e trazer um punhado de terra da campa do Tenente Francisco Pires Bento, meu avô materno, caído no Norte de Angola ao serviço da Pátria “combatendo o gentio rebelde” a 4 de Julho de 1918, na plenitude da vida, com apenas 43 anos de idade. Comandava, na altura, o Posto Militar do Cauale pertencente à Capitania-Mor do Pombo. 

Esse distinto e valoroso oficial tinha já perdido a jovem esposa e deixara na aldeia natal - Meimôa -, ao cuidado de uma avó, duas crianças de tenra idade: minha mãe Alda e seu irmão Mário, os quais ficando tão prematuramente órfãos de pai e mãe viriam a estudar, com pensão de sangue, no Instituto de Odivelas e no Instituto dos Pupilos do Exército, respectivamente.

O telefonema do meu Amigo tinha assim para mim, neste contexto, uma ressonância muito profunda, mas simultaneamente vislumbrava no meu espírito dificuldades, quiçá insuperáveis, de qualquer das missões.

Mas voltando ao tema inicial que aqui nos traz, uma coisa, porém, era certa: haveria de esgotar todos os meios ao meu alcance para atender o Coronel Correia de Oliveira, por quem já então nutria verdadeira estima e enorme consideração.

Sem o tempo mínimo para juntos analisarmos o problema, pedi-lhe que me fizesse chegar às mãos toda a documentação útil sobre o assunto. Ele assim fez. Em 17 de Março de 1995 chego à cidade de S. Paulo da Assunção de Luanda e tomo posse do espinhoso cargo que me aguardava. As múltiplas tarefas da minha responsabilidade exigiram-me um trabalho diário de 16 a 18 horas ao longo de todo o ano que a comissão durou.

Só decorrido mais de um mês sobre a posse, consegui um mínimo de disponibilidade para me debruçar sobre a referida documentação. Analisei pormenorizadamente todos os elementos. Pareceu-me que a tarefa iria, eventualmente, além das minhas capacidades, mas deitei mãos à obra.

Gizei o plano com base numa seriação de tarefas que viriam a traduzir-se naquilo que denominei “Operação Maquela do Zombo”.

Do dispositivo operacional a meu cargo fazia parte, além das unidades dos vários países, um conjunto de Destacamentos de Observação (ditos “Team Sites”) a implantar por todo o território angolano e a implementar progressivamente de acordo com as prioridades operacionais.

Para Maquela do Zombo estava prevista a instalação de um desses Destacamentos dentro de cerca de duas semanas, decorrendo nesse preciso momento o processo de nomeação da sua guarnição, a constituir com 4 ou 5 Observadores Militares (estes iam chegando à Missão vindos dos vários países e de acordo com os planeamentos recebidos da ONU em Nova Yorque).

Alterando pontualmente o procedimento de rotina, chamei o oficial do meu Estado-Maior responsável pela área de pessoal (um simpático tenente Coronel romeno) e disse-lhe para, entre os Observadores a nomear para o Destacamento de Maquela, incluir um português ou um brasileiro.

Isto facilitaria futuras conversações com as autoridades administrativas locais, além de que este tipo de nomeações não obedecia a normas rígidas. Quando o Chefe do Pessoal veio a despacho no dia seguinte, informou-me não ter conseguido nenhum Observador nomeável para Maquela que falasse a Língua Portuguesa. Como o que não tem remédio, remediado está, ordenei que procedesse com urgência à nomeação da guarnição de Maquela e, feito isso, mandasse apresentar no meu gabinete o respectivo Comandante.

A “Operação Maquela do Zombo” era trabalhada no meu quarto e, logo nessa noite, perante a contrariedade do idioma, refiz várias peças do plano, passando-as para Inglês.

Na manhã do dia seguinte, apresenta-se para falar comigo o indigitado Comandante de Maquela, a quem, para além das habituais recomendações sobre o cumprimento da sua missão, iria pedir a execução de algumas diligências que importava explicar com o necessário detalhe.

Neste primeiro contacto com o oficial, eu diria (para utilizar uma gíria castrense) que logo me pareceu de “excelente aspecto militar”. À data, ainda não me era possível identificar todas as fardas, já que a Missão integrava várias dezenas de países dos cinco continentes. Por isso indaguei, antes de mais, a sua nacionalidade:

–Sou da Bulgária – disse prontamente…

Era, curiosamente, o Major Alexander Alexandrov, o meu “protegido”. Extraordinária coincidência!

Após inúmeras diligências e com a sua ajuda e das autoridades locais da UNITA, foi-me autorizada a exumação dos restos mortais que posteriormente,  com o apoio do Senhor Embaixador em Angola, se conseguiu transporte para Portugal na mala diplomática.

Não escondo a enorme satisfação que me deu ver cumprida a obrigação que assumira com um Amigo e ver realizado o desígnio sagrado de uma família a que se juntava também a dívida não saldada do meu país (com efeito os restos mortais não haviam sido oportunamente reclamados pela família devido a dificuldades financeiras). (**)

Na sequência do complicado processo vim a conhecer o filho do Srgt Mota, o Eng.º. António Teixeira Mota que,  enquanto filho de antigo combatente, fora aluno no Instituto Militar Pupilos do Exército (IMPE), ou seja, um ilustre “Pilão”, o 21 do seu ano! Ora quis o destino que, com a minha promoção a Oficial General, ali fosse colocado como Director em 1997. Tive então oportunidade de convidar o Eng.º. Mota a visitar a sua antiga Casa na companhia do Cor Ramiro de Oliveira, antigo comandante de seu pai na fatídica comissão em Angola. (***)

O mais importante é, no entanto, que a família Mota já não está agora privada da consolação humana de poder chorar o seu ente querido junto à campa, na sua terra natal. É essa consolação humana que refulgirá perenemente na memória da família.

No fim de todo este longo processo, e dentro das minhas fracas qualidades poéticas, escrevi os seguintes dizeres em memória de um combatente caído na GU em Angola, o Sargento Justino Teixeira da Mota.


ÚLTIMO ADEUS A MAQUELA DO ZOMBO

(Homenagem ao camarada, Sarg. Justino Teixeira Mota,
falecido em 18 de Outubro de 1962, pertencendo à
Companhia de Caçadores Especiais 266 / Batalhão 262)


Foste um soldado e grande companheiro,
Que em Maquela cumpriu sua missão.
Tanto a ela te deste por inteiro,
Que te apagaste nesse ex-luso chão.

Trinta e quatro anos são volvidos,
E os entes queridos te reclamam...
Quanta saudade e dor em ais sentidos
Guarda a memória dos que por ti chamam.

Fui buscar tuas cinzas com respeito,
Para honrar a mensagem recebida
Dos teus e do Ramiro, Capitão.

E se à história presto humilde preito
Por te levar à última guarida...
Justino, eu te saúdo como irmão.

(S. Paulo da Assunção de Luanda, 9 de Março de 1996)

João Afonso Bento Soares
Major General

4. Comentário do editor Luís Graça

João Afonso: obrigado pela história, com final feliz, que nos fez chegar, com a preciosa ajuda do Carlos Pinheiro, nosso grã-tabanqueiro de longa data. O tema é nos caro, o do resgate dos restos mortais dos nossos camaradas mortos nas campanhas de África, entre 1961 e 1975, e inumados em cemitérios locais (de cuja localização, em não poucos casos, se perdeu o registo).

O caso que relata não me era estranho. Acabei por encontrar um poste, do nosso coeditor Carlos Vinhal, em que nos fala do livro que escreveu o filho do 2º srgt trms Justino Teixeira Mota, o engº António Teixeira Mota, e em que se dá conta da sua "luta incessante" para resgatar os restos mortais do seu pai. Ora nesse poste, há uma fotografia com o então coronel João Afonso Bento Soares, que republicamos acima, em Maquela do Zombo, em 1996, junto à campa do 2º srgt Justino Teixeira Mota.

É uma história tocante, de amor filial, de compaixão e de solidariedade entre camaradas de armas. As duas versões completam-se e eu fico feliz por juntar, aqui e agora, as duas peças, para melhor apreciação dos nossos leitores (***).

O poste já vai longo, mas eu não posso deixar de lhe fazer um convite para, formalmente, integrar a nossa Tabanca Grande, na sua qualidade de antigo camarada da Guiné, onde foi comandante operacional, em 1968/70, sendo ambos em parte contemporâneos (eu, na CCAÇ 12, Bambadinca, julho de 1969/ março de 1971).  A sua presença  muito nos honraria a todos, a começar pelo Carlos Pinheiro, que foi então seu subordinado.

Se aceitar o meu convite, tem aqui um lugar à sombra do nosso poilão, sob o nº 785, ao lado de um outro seu camarada da Academia Militar, o cor art ref Morais da Silva (membro da Tabanca Grande, nº 784). Como vê, já somos mais do que um batalhão, os amigos e camaradas da Guiné. Para completar o processo, faltar-nos-ia apenas uma foto do seu tempo como capitão na Guiné... (que não encontrei numa visita rápida que fiz à sua página do Facebook)

Por fim, e não menos importante, sendo eu também poeta, deixe-me dar-lhe os parabéns pelo soneto que, em 1996, dedicou ao nosso camarada 2º srgt trms Justino Teixeira Mota. Não só está tecnicamente perfeito, como é também um belíssimo hino à camaradagem e fraternidade entre militares portugueses!...
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 16 de março de 2019 > Guiné 61/74 - P19594: Memórias de Gabú (José Saúde) (79): Resquícios de uma guerra que nos fora cruel. Abandonados. (José Saúde)

(**) Último poste da série > 4 de março de 2019 > Guiné 61/74 - P19549: Estórias avulsas (93): Histórias do vôvô-Zé - As nossas andorinhas (José Ferreira da Silva, ex-Fur Mil Op Esp)

(***) Vd. poste de 16 de março de 2008 > Guiné 63/74 - P2651: História de vida (10): A Luta Incessante de António Teixeira Mota (Carlos Vinhal)

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Guiné 63/74 - P5330: Efemérides (38): Funeral das ossadas do 1º Cabo Gabriel Telo (Magalhães Ribeiro)

1. Com a devida vénia e todos os nossos melhores e mais respeitosos cumprimentos e agradecimentos, publicamos neste poste da autoria do jornalista Alberto Pita, inseridos no Jornal da Madeira, dos dias 22 e 23 de Novembro de 2009, duas excelentes e elucidativas reportagens referentes à chegada das ossadas à Madeira e ao funeral do 1º Cabo Gabriel Telo, falecido em combate em Guidage em 25 de Maio de 1973:





Jornal da Madeira / 1ª Página / 2009-11-22

Ossadas de Gabriel Telo são levadas hoje para o Paul do Mar

Emoção na chegada de Telo



«Filho, a mãe está aqui!». Foi com estas palavras que Flora Telo recebeu ontem as ossadas do filho, o primeiro cabo Gabriel Telo, na Capela do Monumento ao Combatente, na Mata da Nazaré.


Apoiada pelas duas filhas, Maria João e Gabriela, Flora Telo caminhou vagarosamente em direcção à pequena urna. Não estava a mais de dois metros de distância, mas o esforço foi grande para esta mulher, ainda a recuperar da operação aos joelhos.


Pousou as mãos sobre a urna como quem afaga um bebé e, com os olhos molhados, beijou-a. «Filho, a mãe está aqui», disse uma e outra vez, por entre os soluços do choro.


Dentro e fora da sala do Monumento ao Combatente o silêncio era total. Por entre dezenas de pessoas presentes na homenagem, apenas as palavras de Flora se ouviam. «A mãe está aqui.» A emoção era forte.


O reencontro acontecia. Trinta e seis anos depois.


Não era só Flora Telo que tinha os olhos vermelhos e cheios de lágrimas. As filhas também não conseguiam conter os sentimentos.


«Sinto uma grande emoção por ficar próxima dos restos mortais do meu irmão. Sei que ele já estará no céu, mas aqui o que desejávamos era fazer-lhe um funeral digno. E é o que estamos preparando», disse Gabriela Telo, irmã do antigo soldado, dois anos mais nova, e o elemento da família com quem as entidades militares contactaram ao longo do processo de transladação.


Gabriela confessou ontem que durante os três anos em que aguardou pela chegada do irmão teve momentos de desespero e chegou até a perguntar aos militares responsáveis se «estavam a brincar com os sentimentos das pessoas». Explicavam-lhe que o processo era complexo e moroso e apelavam à paciência da família. A ansiedade foi sendo controlada. «Até que hoje chegou o dia. É uma grande satisfação», diz, por entre lágrimas.


Maria João, irmã mais nova, sentia ontem um misto de emoções. Estava alegre pela chegada das ossadas, mas triste por esse momento trazer de novo toda a dor.


Gabriel Telo sucumbiu em 25 de Maio de 1973, na sequência da explosão de um engenho detonado pelo inimigo, em Guidaje, na Província da Guiné, durante a Guerra do Ultramar.


O primeiro cabo Telo pertenceu a um grupo de onze soldados que morreram na guerra e que foram enterrados na mesma zona, apesar de terem sucumbido em momentos diferentes. Entre eles estavam três pára-quedistas. E, a bem da verdade, foi por causa dos três elementos desta força especial que as ossadas do cabo Telo, natural do Paul do Mar, chegaram agora à Madeira.


Os pára-quedistas têm o lema de que “Ninguém fica para trás” e, durante mais de trinta anos, não desistiram até que trouxessem os três «únicos» que não tinham regressado a Portugal. Agora, finalmente, chegaram.


Numa acção de solidariedade, a União dos Pára-quedistas estendeu a mão e trouxe os outros militares que estavam juntos aos pára-quedistas. Mas só os que as respectivas famílias quiseram. Algumas optaram por não voltar a abrir a dor da perda de um ente querido. Uma delas foi a família de Câmara de Lobos, do soldado João Nunes Ferreira.


A chegada dos restos mortais de Gabriel Telo representa o encerramento de um capítulo com mais de três décadas e que nos últimos três anos obrigou a um enorme esforço logístico, com o início do processo no terreno. O sucesso desta operação decorre da ajuda de várias instituições, com particular mérito para a União dos Pára-quedistas, que foi quem desencadeou todo este processo.


A ligação à Madeira foi feita, sobretudo, com a organização do Monumento ao Combatente, liderada pelo coronel Morna Nascimento.


Ontem, na homenagem feita ao cabo Telo, Morna Nascimento dizia que agora é chegado o tempo de alertar o país para a obrigação de o Governo da República custear as transladações dos portugueses que morreram na guerra e por lá ficaram.


Alberto Pita


Jornal da Madeira / 1ª Página / 2009-11-23

«Agora ele está na sua terra»

Funeral do cabo Telo realizou-se na presença de centenas de pessoas


A Centenas de pessoas juntaram-se ontem na igreja do Paul do Mar para a última despedida ao primeiro cabo Gabriel Telo, morto em combate há 36 anos, na Guiné Bissau.


A cerimónia fúnebre encerra um processo de um grupo de soldados, dos quais faziam parte dois madeirenses - o cabo Telo e o soldado João Nunes Ferreira. O processo de exumação dos cadáveres e trasladação para Portugal demorou cerca de três anos. A União dos Pará-quedistas foi quem desencadeou este resgate - estavam três elementos desta força especial entre os 11 cadáveres - que agora chega ao fim com este funeral, o último dos corpos que foram retirados de Guidaje, na Guiné Bissau.


«Fechámos, de facto, um ciclo cujo objectivo era trazer os corpos que tinham sido inumados naquele cemitério de campanha, na Guiné», explicou o presidente da União de Pára-quedistas, o general Avelar de Sousa, que ontem marcou presença na cerimónia. Várias entidades associaram-se, aliás, a esta última homenagem ao soldado, falecido a 25 de Maio de 1973 (e não 1963 como erradamente escrevemos ontem). Miguel Mendonça, presidente da Assembleia Legislativa da Madeira, colocou de manhã uma coroa de flores junto à urna do militar, quando ainda se encontrava no Monumento ao Combatente Madeirense no Ultramar. Um pouco mais tarde, já no Paul do Mar, freguesia de ontem o cabo era natural, estiveram presentes no funeral Monteiro Diniz, Representante da República para a Madeira, Brazão de Castro, secretário regional dos Recursos Humanos, Manuel Baeta, presidente da Câmara Municipal da Calheta, entre outras individualidades.


O processo de exumação e trasladação das ossadas do cabo Telo abriu na família uma ferida que há décadas tentavam sarar. A mãe, Flora Telo, nunca deixou, porém, que a memória do filho fosse esquecida. Por isso, durante os últimos 36 anos repetia insistentemente histórias sobre Gabriel, realçando as qualidades deste jovem, que foi sacristão na igreja que, anos antes, chegou a ajudar a erguer. O mesmo templo que ontem acolheu a cerimónia da sua despedida.


Ontem, a comoção impedia Flora Telo de dizer o que representava para si aquele momento.


No dia anterior, porém, confessou ao Jornal da Madeira ainda sentir «uma saudade grande do meu filho». E com o olhar em direcção ao céu apelou para que Gabriel Telo pedisse por todos os que «mais necessitam».


«Era um filho bom, querido, que desde pequenino» ajudou na igreja, recordava-se.


A vinda dos restos mortais abriu na família feridas do passado, mas, apesar dos momentos de dor e ansiedade, ninguém se arrepende da decisão.


Ontem, Gabriela Telo, irmã dois anos mais nova, dizia sentir uma «satisfação» por agora Gabriel estar «mais perto» da família.


Maria João, a mais nova das irmãs, disse sentir «uma mistura de emoções impossíveis de descrever».


Ainda assim, referiu que naquele preciso momento, à saída do cemitério, sentia «uma alegria, porque ele está na sua terra. Estes últimos dias foram de saudade, de revolta, mas agora, que ele já está aqui no nosso cemitério, na terra dele, agora é um alívio».


Com o funeral do cabo Telo «fechámos, de facto, um ciclo cujo objectivo era trazer os corpos que tinham sido inumados naquele cemitério de campanha, na Guiné», disse o presidente da União de Pára-quedistas, o general Avelar de Sousa, que ontem marcou presença na cerimónia de despedida do militar madeirense, falecido há 36 anos na Guiné Bissau.


Ainda faltam buscar 1.400 portugueses


Continuam cerca de 1.400 militares portugueses enterrados em África. São soldados que sucumbiram em combate mas que o Estado português não custeia o seu regresso ao país.


Os militares pressionam as autoridades mas o resultado tem sido nulo.


Para esse processo, a União Portuguesa de Pára-quedistas está disponível para contribuir com a experiência adquirida no processo de exumação, identificação e trasladação dos cadáveres de Guidaje, na Guiné Bissau.


«A União dos Pára-quedistas está disponível para prestar auxílio através de tudo aquilo que aprendemos», referiu presidente desta associação, o general Avelar de Sousa.


O presidente da  Comissão Organizadora do Monumento ao Combatente Madeirense no Ultramar, Morna Nascimento, também diz que é tempo do Estado cumprir a «sua obrigação».


É tempo de «chamar à responsabilidade o Governo português para a obrigação que tem de fazer regressar à metrópole - seja à  Madeira, aos Açores ou ao continente - as ossadas que ainda lá estão dos combatentes que foram num dever pátrio e por conta do Estado para o Ultramar. Não se aceita que eles fiquem lá abandonados e que as famílias é que tenham de pagar o seu regresso. É uma obrigação do Estado, é uma obrigação da Nação e uma obrigação de Portugal trazê-los de regresso ao chão da sua Pátria», defendeu Morna Nascimento, sublinhando que morreram em combate ou por doença 8.402 portugueses África. O coronel não sabe, contudo, quantos destes eram madeirenses.


Alberto Pita


Reportagens e Fotos: © Jornal da Madeira (2009). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:


Vd. último poste desta série em: