sábado, 16 de março de 2019

Guiné 61/74 - P19594: Memórias de Gabú (José Saúde) (79): Resquícios de uma guerra que nos fora cruel. Abandonados. (José Saúde)


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem.


Resquícios de uma guerra que nos fora cruel 

Abandonados 



O tema, na minha opinião, roça o catastrófico! Trata-se de uma narrativa arrojada mas julgada apropriada e que poderá apresentar-se como motivo para uma ampla discussão entre os antigos combatentes. Tanto mais que todos ou quase todos testemunhámos esta fatídica realidade.

Hoje, num recalcar de memórias sinto pavor em discrepâncias observadas que me atiram para um universo completamente disforme quando dissecamos matéria sobre os resquícios de uma guerra onde a morte de camaradas foi uma constante.

Pronuncio-me, explicitamente, sobre os restos mortais de corpos abandonados que por lá ficaram nas três frentes de guerra – Angola, Moçambique e Guiné – e que tendem manter-se em cemitérios distantes do seu recanto sagrado. O luto, no verdadeiro conceito da palavra, foi efémero porque o corpo do ente querido não cumpriu o ritual da despedida e nem tão pouco uma sepultura para se carpirem mágoas.

Mas concentremos também atenções em restos de corpos sepultados algures em campos de batalha e que lá continuam sem que alguém identifique o exato local onde foram depositados. Alguns desses cadáveres, não obstante a sua localização por camaradas que outrora conheceram esse horror, são agora uma miragem porque, entretanto, ter-se-ão perdido os registos geográficos da exatidão do lugar onde obstinadamente descansam para a eternidade.

Reconheço que porventura não será fácil as suas transladações, pressupõem-se, no entanto, que a janela de oportunidades foi paulatinamente perdendo alento e sobretudo afrouxando atenções com o evoluir dos tempos sobre esta realidade.

Poucos terão sido os homens do poder a lançar uma acha para a fogueira visando a discussão de uma matéria que, a meu ver, não seria por certo de todo descabida. Tanto mais que se trata em glorificar combatentes cujos corpos ficaram abandonados num solo substancialmente longínquo.

A guerra do Ultramar não está assim tão distante. É recente. Aliás, os camaradas ainda transportarão à tona da memória os cheiros a pólvora, os zumbidos das balas, o rebentamento das minas, os ataques noturnos aos quartéis, o pânico das emboscadas e os agonizantes odores de corpos a caminho da putrefação.

Há camaradas que ainda hoje sofrem a dor de um companheiro que morreu ao seu lado, sendo por vezes o destino do enterro um cemitério de uma cidade, vila ou aldeia.

Conheci essa infeliz realidade no cemitério de Gabu. Foi uma efémera viagem que me proporcionou visualizar campas completamente destruídas pelo rigor do tempo ou por uma oportuna falta de assistência. Sabe-se que os princípios da guerra não foram fáceis e facultou esses tristes fins.

Em Gabu, tal como em qualquer lugar onde a guerra ditou infelizes fins, os saudosos camaradas estavam identificados com uma elementar cruz que somente assinalava que ali tinha sido sepultado mais um jovem que fora arrancado da vida em plena flor de idade.



Um jovem atirado para as frentes de combate e defendendo uma causa que não era dele. Ele, camarada, morreu em combate a troco de interesses alheios. E esta é a veracidade por todos nós conhecida. Não abdiquemos pois em tratar o assunto de olhos nos olhos porque de facto o tema é sério e merecedor de uma análise mais profunda. Porém, tudo vai caindo no limbo do esquecimento e as vozes da rebelião diluindo-se num horizonte despido de esperança.

Em antigos tempos restava a um familiar apresentar-se no 10 de junho, dia de Camões, no Terreiro do Paço, em Lisboa, e receber uma condecoração a título póstumo perante as sumptuosas efemérides nacionais. No deslumbrante palco, qual antro de profecias, lá estavam os elementos supremos do Estado apelando à heroica entrega do soldado desconhecido no palanque de uma guerra onde o singelo mancebo era tão-só um mero figurante. Ficava, apenas, o registo do momento e nada mais. A dor da perda persistia. 



Todavia, nós, antigos combatentes, não queremos uma viagem ao passado recordando esse tipo de sumárias condecorações, pretendíamos sim que um dia alguém despertasse de um sono ostensivamente pesado e propusesse o eventual regresso dos restos mortais dos companheiros abandonados numa terra que não era a deles.

O tema que hoje vos trago afigura-se como um hino de revolta de um velho camarada que amiudadamente vos vai debitando narrativa inserida em contextos reais e que puxam pelos nossos sentimentos de uma Guiné onde as verdades de guerra nos foram cruéis.

Nós vimos, assistimos e convivemos com os momentos de dor.

Nota: imagens extraídas da Guerra Colonial, com a devida vénia.

Um abraço camaradas,
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
___________
Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

6 DE FEVEREIRO DE 2019 > Guiné 61/74 - P19533: Memórias de Gabú (José Saúde) (78): O paludismo. (José Saúde)

7 comentários:

Antº Rosinha disse...

Foram 500 anos a encher cemitérios por esse mundo a fora, muitos no fundo dos diversos mares, nunca dantes navegados.

Isto é que foi uma vida, será que cada um devia ficar na sua terrinha, quietinho, como pensava o velho do restelo? "Por que de mim te vás, ó filho caro, A fazer o funéreo enterramento, Onde sejas de peixes mantimento!"

Valdemar Silva disse...

Rosinha
Tiro o meu chapéu a estas tuas palavras.

Mas, isto aconteceu com todos os povos que não queriam ficar quietinhos na sua terrinha.
Com a esperança que 'isto tudo' não acabe, talvez daqui a uns tempos se façam escavações arqueológicas para se descobrir de quem seriam aqueles restos mortais.

Ab.
Valdemar Queiroz

Antº Rosinha disse...

Valdemar, uso as palavras do velho-do-restelo, mas não são as minhas de maneira nenhuma.

E sobre os restos mortais, tirando as múmias dos faraós, ninguém que saber deles.

E dos nossos mais importantes cadáveres foram provavelmente comidos pelos peixinhos nos fundos dos mares, com imensos naufrágios e escorbutos.

E como os portugueses desaparecidos pelas sete partidas são apenas herois para nós, porque para os outros foram uns criminosos, é melhor que nem os arqueologos os encontrem para não os profanarem.

Tirando nós e os espanhois ninguem quer saber do feito de Fernão de Magalhães e do seu cadáver, o estreito já lá estava, quem quer saber do cabo das tormentas, se quando Bartolomeu Dias lá chegou, ele já lá estava, os indios do brasil já lá estavam, só não tinham lá africanos e assim por diante.

Não existia a provincia portuguesa da Guiné, mas os guineenses nem todos estão satisfeitos com as fronteiras que lhe criámos.

O Nuno Tristão ninguém lá o conhece, também deixou por lá o cadáver a traz de escravos segundo a lenda, o que foi muito mau para a boa memória das pessoas.

Talvez não tenhamos sido um império, antes uma lenda, inventada por Camões.





Valdemar Silva disse...

Rosinha
Ainda há uns anos, num trabalho arqueológico em Mértola, foi descoberto um cemitério
muçulmano. Foi uma descoberta sensacional e tanto as ossadas como outro material encontrado foram tratados e estudados devidamente.
Todos aqueles achados eram de gente que há mil e tal anos atrás tinha sido varada e corrida à espadeirada.
Como diria o outro: estas coisas levam o seu tempo.
Com certeza que em todos os tempos haverá interesse em saber o que se passou em tempos passados.
Valdemar Queiroz

Anónimo disse...

Para não ficar ninguém zangado, concordo perfeitamente com ambos os pareceres, eu não poderia dizer melhor.

O seu a seu dono, os cadáveres à terra até serem descobertos, levantados e estudados!

Virgilio Teixeira

José Saúde disse...

Camaradas,

O “Velho do Restelo” é uma personagem introduzido por Luís de Camões entre as estrofes 94 e 104 do canto IV da sua obra Os Lusíadas. Neste contexto, o “Velho do Restelo” assenta numa figura de estilo decifrada como símbolo dos pessimistas, dos que não acreditavam no sucesso da honrada epopeia dos Descobrimentos Portugueses, nos descrentes, nos profetas da desgraça, na supra inteligência daqueles que se julgavam donos da verdade, enfim, bem poderíamos intitular este esventre de personalidades na série “Os Marretas”.

Numa aula de português o professor, já experiente, decide dividir a sala em dois grupos: num dos lados ficaram aqueles que o mestre intitulava de “inteligentes”; no outro, os “expertos”.

Sumário: ler e decorar o canto abaixo mencionado que o poeta Luís de Camões deixou na sua obra “Os Lusíadas”.
No dia seguinte, os “inteligentes”, entoaram o canto com garra, compreenderam a razão do conteúdo, sentiram-se pessoas realizadas, prontas para o debate do tema assente na realidade, nada de fantasias, enquanto os “expertos” deram-lhe uma outra versão confundindo a certeza com as arcaicas lendas do “Velho do Restelo”.

Mas um velho, de aspecto venerando,
Que ficava nas praias, entre a gente,
Postos em nós os olhos, meneando
Três vezes a cabeça, descontente,
A voz pesada um pouco alevantando,
Que nós no mar ouvimos claramente,
C'um saber só de experiências feito,
Tais palavras tirou do experto peito:

"Ó glória de mandar! Ó vã cobiça
Desta vaidade, a quem chamamos Fama!
Ó fraudulento gosto, que se atiça
C'uma aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles experimentas!

"Dura inquietação d'alma e da vida,
Fonte de desamparos e adultérios,
Sagaz consumidora conhecida
De fazendas, de reinos e de impérios:
Chamam-te ilustre, chamam-te subida,
Sendo digna de infames vitupérios;
Chamam-te Fama e Glória soberana,
Nomes com quem se o povo néscio engana!

"A que novos desastres determinas
De levar estes reinos e esta gente?
Que perigos, que mortes lhe destinas
Debaixo dalgum nome preminente?
Que promessas de reinos, e de minas
D'ouro, que lhe farás tão facilmente?

O tema “abandonados” significa, para mim, um dever cívico para recordar antigos e saudosos camaradas cujos restos mortais por lá ficaram nas três frentes de guerra – Angola, Moçambique e Guiné -. Compreendo, perfeitamente, a forma sintética como um eventual “distraído” camarada reage perante a irreversível verdade de uma explanação que visou, somente, o alertar de uma situação que paulatinamente vai caindo no limbo do esquecimento.

A narrativa é clara e jamais optei pela discrepância de um desenvolvimento de um tema que resvala para uma possível incúria.

Conheço, ligeiramente, a história lusitana, uma disciplina que muito me cativou. Falaram-me, enquanto aluno, da lengalenga do “Velho do Restelo” contra as viagens marítimas que se destinavam a abrir novos caminhos; falaram-me, também, daqueles ilustres marinheiros que perderam a vida em profundos mares para descobrir “Novas Terras” cujos corpos trerão sido atirados ao oceano; de gentes humildes que se entregaram de corpo e alma ao fenómeno dos descobrimentos; de soldados que perderam a vida no norte de África quando o exército lançavam pavores, pilhava, matava e morria em pleno palco de guerra aquando partia para as “Cruzadas”, mas conheci, sim, a veracidade dos flagelos que a guerra na Guiné, sendo este o caso, nos causou.

Que os “abandonados” descansem em paz e que os profetas da razão se submetam ao óbvio e singelo reconhecimento dos seus restos mortais! Disse.

Valdemar Silva disse...

Zé Saúde
O mais importante é o facto de te lembrares destes 'abandonados'.
Mas, todos compreendemos, por mais entendidos que sejamos, que devemos estar sempre bem acordados.

Ab.
Valdemar Queiroz