quarta-feira, 13 de março de 2019

Guiné 61/74 - P19580: Historiografia da presença portuguesa em África (154): Relatório do Delegado de Saúde da vila de Bissau, o médico de 2.ª classe Damasceno Isaac da Costa, referente a 1884 (6) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Julho de 2018:

Queridos amigos,
Não garanto que seja o primeiro documento minucioso sobre a Província da Guiné, que passou a existir em 1879. Mas é de uma enorme riqueza o que escreve este médico, os detalhes sobre a vila e a fortaleza de Bissau, a povoação e o presídio de Geba, os detalhes sobre a salubridade pública, as práticas religiosas, as plantas medicinais... É um tanto ingénuo, ao garantir que qualquer que fosse o andamento das negociações luso-francesas, havia os direitos históricos entre os rios Casamansa e Nunez, e abona como documento histórico de validação o tratado breve dos rios da Guiné de André Alvares d'Almada... O relato que nos deixa do concelho de Bolama é igualmente curioso. Não terá viajado à região de Cacheu. E deixa bem claro que a Guiné é uma província instável, com muitas guerras intestinas e que as riquezas da sua agricultura precisam de ser aproveitadas.
Um documento que não pode ser ignorado pela historiografia, estou certo e seguro.

Um abraço do
Mário


Relatório do Delegado de Saúde da vila de Bissau, o médico de 2.ª classe Damasceno Isaac da Costa, referente a 1884 (6)

Beja Santos

Este relatório consta dos Reservados da Sociedade de Geografia de Lisboa e foi oferecido pelo seu filho Pedro Isaac da Costa ao antigo administrador de Bissau, António Pereira Cardoso, autor de um conjunto apreciável de documentos, muitos deles de leitura indispensável para conhecer a vida administrativa da Guiné, sobretudo entre as décadas de 1930 e 1950.

Este relatório, como se verifica pelo seu fecho, foi copiado pelo filho do autor. E diz-se que é de estranhar que tendo sido escrito em 1884 se refere a factos de 1888.

Seguramente atraído pelas práticas medicinais dos guineenses, o Dr. Damasceno Isaac da Costa repertoria um conjunto de plantas medicinais, fá-lo tanto em capítulo separado como, mais adiante, nas considerações gerais, voltará ao assunto, confere-lhe importância.

Começa por dizer que o bissilão é uma árvore gigantesca em que a casca é utilizada em infusões ou decocções para tratar as febres, e diz que os Bijagós associam o cozimento da casca ao tratamento de boubas.

A betonca é um arbusto que atinge a altura de três metros, o seu tronco e ramos espinhosos exalam um aroma semelhante ao da erva-cidreira. Os pós da raiz desta planta, misturados com azeite de palma purificado são aplicados para supurar tumores.

Falando da palha preto diz ser uma trepadeira que vive em lugares húmidos, as suas folhas largas são semelhantes às de um mamão, e reduzidas a pasta podem-se aplicar a inflamações superficiais e para acalmar as dores.

A palha de arco é um arbusto que atinge a altura de três a quatro metros; a água proveniente da maceração das suas folhas é administrada para combater os vermes intestinais.

O veludo é uma árvore gigantesca, o seu fruto acidulado é coberto de uma casca avermelhada e emprega-se como antiemético.

A palha de sabão é um arbusto de pequenas dimensões, o cozimento das suas folhas e raízes serve para curar a sarna, aplicado externamente.

O pau doce é um arbusto de cinco metros de altura, a infusão das suas folhas é empregada nas blenorragias.

A cebola de lobo é semelhante à cebola albarrã e usa-se pisada para tratar panarícios.

O pau de sangue é uma árvore secular, a sua madeira é aproveitada de preferência à das outras árvores para construções sólidas; o suco das suas folhas tenras é utilizado nas odontalgias.

Pau de arco é uma árvore gigantesca, a infusão das folhas desta árvore produz efeitos purgativos e o óleo das suas sementes é aproveitado para curar certo tipo de úlceras.

A calabaceira é uma árvore cujas folhas são empregadas para combater as inflamações, pela sua ação emoliente; a infusão da sua casca é empregada no tratamento das blenorragias.

E chegamos ao curiosíssimo capítulo das considerações gerais. O médico começa por dizer que o território da Guiné Portuguesa está situado, segundo as melhores autoridades, entre 10º 21’ e 13º 10’ de latitude norte. É sabido, diz ele, que os seus limites estão ainda mal definidos e que esta importante questão está ainda pendente de negociações diplomáticas entre Portugal e a França. “Seja, porém, qual for a resolução deste assunto, é inegável que Portugal tem, desde há séculos, todo o direito sobre os rios Casamansa e Nunez, como consta de diferentes documentos de altíssimo valor histórico entre os quais merece particular atenção o tratado feito pelo Capitão André Álvares d’Almada, no ano de 1594, arquivado na Biblioteca Pública do Porto. Os estabelecimentos que a França possui nos diferentes rios datam de uma época bastante moderna e a sua existência está bem longe de poder invalidar os nossos direitos. A Província da Guiné, por decreto de 1883, foi dividida em quatro concelhos: Bolama, Bissau, Cacheu e Bolola. Todos os concelhos funcionam regularmente, excepto o de Bolola, ali funciona uma comissão nomeada pelo Governo, sob a presidência do administrador do concelho”.

Fala depois do povoamento e enumera as diferentes etnias, e expressa opinião sobre as suas práticas religiosas: “Todas as tribos vivem na mais crassa ignorância, adoram os Irãs, as Balobas ou Chinas. Além do Irã, cada indivíduo tem o seu Deus particular, chamado fetiche, que pode ser um animal, uma árvore, um chifre ou um pau. Os Mandingas seguem o islamismo mas bastante alterado”. Refere que os Futa-Fulas são dignos de menção pela sua superioridade sobre as outras raças e exprime opinião sobre o belicismo das diferentes etnias: “As diferentes tribos são dadas à guerra que o menor pretexto é suficiente para se hostilizarem umas às outras, principalmente quando dominam velhos ódios e rivalidades, como sucede entre os Futa-Fulas e os seus antigos escravos Fulas-Pretos e entre Fulas-Forros e os Beafadas. As recentes correrias dos Beafadas e dos Fulas pelas margens do Rio Grande, acompanhadas de saque às propriedades, tem sido a causa da paralisação do comércio naquela importante via fluvial. Também tem sofrido ultimamente o comércio do rio Geba, em consequência de desinteligências dos Fulas-Pretos com aquele valioso presídio”.

Tem opiniões próprias sobre a agricultura, como informa: “O clima é fértil e propício para as culturas dos climas tropicais, como amendoim, rícino, purgueira, café, milho, feijão, arroz e mandioca. A mancarra é o principal produto de exportação. A Província exporta também borracha, couros e cera. Entre as frutas merecem especial menção: a manga, o caju, a papaia, a banana, a goiaba e o ananás. São também muito abundantes as laranjas em todo o território”.

Considera que os Manjacos, os Balantas e os Mandingas seriam o melhor contingente para o desenvolvimento agrícola, logo que surjam investidores que apostem no desenvolvimento da Guiné. Recorda as excelentes madeiras como grande riqueza e lembra o mogno e o pau sangue.

De novo vem falar nas plantas medicinais: o azeite de arco usado nas úlceras crónicas; o azeite amargoso nas nevralgias e nos reumatismos; as folhas de cabaceira são emolientes e usadas em cataplasmas, substituem perfeitamente a linhaça. Depois repertoria a fauna e as árvores de notável beleza, diz que entre os répteis figuram a tartaruga, o cágado, o jacaré e várias serpentes, a mais venenosa é a ‘cobra muda’, cuja mordedura pode matar em poucas horas.

Muda de rumo nas suas considerações gerais e apresenta o concelho de Bolama, dizendo que compreende a povoação, a ilha de Orango e todos os pontos ocupados na margem esquerda do Rio Grande; tem perto de oito milhas de comprimento de leste a oeste e três ou quatro de largura de norte a sul. Eleva-se da periferia para o interior por uma leve e suave encosta. A ilha tem duas povoações principais, Bolama de Leste, que é a sede do Governo, e Bolama de Oeste ou Oeste-Ponta. A Bolama do Oeste é mais saudável do que a Bolama de Leste porque aquela está bastante elevada acima do nível do mar, e apesar de lhe ficar fronteira a ilha das Galinhas, recebe em cheio as brisas oceânicas. Além disso, a sua praia é seca e arenosa, o que não acontece com a Bolama de Leste, que é lodosa. Havendo superioridade de Bolama de Oeste sobre Bolama de Leste, tanto sob o ponto de vista higiénico como comercial, não foi certamente feliz a resolução do Governo em estabelecer a capital em Bolama de Leste. Os ingleses, apreciando as vantagens incontestáveis de Bolama de Oeste, fixaram ali o seu estabelecimento de que ainda se vêem vestígios, tais como as ruínas do quartel, igreja, hospital, escola, etc.

Referindo-se às carências, lembra a importância de haver uma ponte de cais, o desembarque de pessoas e mercadorias era espinhoso, as pessoas eram carregadas aos ombros de pessoal do porto. E termina com a descrição das pontas do Rio Grande. Resta dizer que o médico assinou o seu relatório em 15 de maio de 1885 e o seu filho Pedro Isaac da Costa copiou-o no Xitole, apôs a data de 18 de fevereiro de 1917. Documento inesquecível.


Imagens inseridas no livro “Guiné, Início de um Governo”, 1954, obra hagiográfica dedicada ao Governador Mello e Alvim.

Vista do interior da messe dos oficiais da Ilha de Sogá, Bijagós
Fotografia de Francisco Nogueira, retirada do livro “Bijagós Património Arquitectónico”, Edições Tinta-da-China, 2016, com a devida vénia.
___________

Nota do editor

Postes anteriores de:

6 de fevereiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19475: Historiografia da presença portuguesa em África (148): Relatório do Delegado de Saúde da vila de Bissau, o médico de 2.ª classe Damasceno Isaac da Costa, referente a 1884 (1) (Mário Beja Santos)

13 de fevereiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19494: Historiografia da presença portuguesa em África (149): Relatório do Delegado de Saúde da vila de Bissau, o médico de 2.ª classe Damasceno Isaac da Costa, referente a 1884 (2) (Mário Beja Santos)

20 de fevereiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19511: Historiografia da presença portuguesa em África (150): Relatório do Delegado de Saúde da vila de Bissau, o médico de 2.ª classe Damasceno Isaac da Costa, referente a 1884 (3) (Mário Beja Santos)

27 de fevereiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19535: Historiografia da presença portuguesa em África (151): Relatório do Delegado de Saúde da vila de Bissau, o médico de 2.ª classe Damasceno Isaac da Costa, referente a 1884 (4) (Mário Beja Santos)
e
6 de março de 2019 > Guiné 61/74 - P19556: Historiografia da presença portuguesa em África (152): Relatório do Delegado de Saúde da vila de Bissau, o médico de 2.ª classe Damasceno Isaac da Costa, referente a 1884 (5) (Mário Beja Santos)

Sem comentários: