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quarta-feira, 12 de novembro de 2025

Guiné 61/74 - P27414: Manuscrito(s) (Luís Graça) (279): Viva a Clarinha que hoje faz 6 anos!... Vivam os nossos netos!...



Cartoon criado pelo Chat Português / GPTOnline.ai
sob instruções do editor LG, que lhe mandou também duas fotos das netas, a Clarinha (6 anos) e a Rosinha (9 meses)



1. Aos avós desculpa-se tudo, costuma-se dizer. São babados, os avós. São tontos. A Clarinha foi a minha primeira neta. Nasceu em 12/11/2019. Apanhou com o raio da pandemia de Covid-19. Tive que a ver crescer à distância. Não fui só eu, foram outros,  muitos mais. Todos os meses lhe fazia um versinhos (um soneto, umas quadras...). E aos dois anos publiquei um livrinho com essa produção poética (24 textos e outras tantas fotos). Foi apresentado no Funchal. Na sua festa do 2º aniversário. Pode ser que um dia, quando ela for avó, ache  graça aos versinhos  (já que também é Graça de apelido, e mora na Graça, e gosta muito de Porto Santo, a "Madeira Pequena", como ela lhe chama). 

Hoje que faz seis anos ( e no domingo vai dar outra festa), fiz-lhe mais uma graci...nha. Faço-lhe sempre versos, nestas ocasiões festivas. E à irmã também, desde que nasceu. A Clara anda na escola, e gosta de juntar as letrinhas do alfabeto. Além de desenhar e pintar. Também lhe fiz um "boneco", um "cartum", com a ajuda da "minha amiga", a assistente de IA /ChatGPT. 

Fica aqui o exemplo ( ou o incentivo)  para outros dos amigos e camaradas da Guiné tirarem partido da dita IA que, quando nasceu,  era como o sol e o mar, era para todos. Mas a verdade é que é  um modelo de negócio, e como tal não  é borla, como quase tudo o mais que a gente vê na  "feira grande" que é o mercado.

Os senhores ministros das finanças e da economia estão sempre a estragar-nos a festa, a reduzir tudo a cifrões, até os nossos sonhos.  A lembrar-nos que não há pequenos-almoços, brunches, almoços, lanches, jantares, ceias, tainadas ou beberetes,  de borla. "Grátis", dizem eles. Nem o céu, é de borla, diz-nos o nosso "prior". Nem o céu nem o inferno. Alguém tem de pagar o combustível, o ar condicionado, e as demais "amenidades" da vida no além, com se diz na gíria da administração hospitalar.

Dito  isto, feito o desabafo, justificada a lata,  dado o testemunho, comentado o outro lado simpático e sedutor da IA (que é feminina), vamos então aos versinhos do avô, que esses são exclusivamenta da sua produção artesanal. 

E que vivam os nossos netos, camaradas!

Viva a Clarinha que em seis anos 
deu um salto de gigante 
e já foi para a Escola da Voz do Operário


A Clarinha é gigante,
Tem seis metros de altura,
E, com o dedo que fura,
Chega à lua num instante.

Já foi ao centro da terra,
Montada num berbequim,
De alcunha o Arlequim,
Qu' tanto ri como berra.

Não há vales nem montanhas
Nem bruxas a meter medo,
Que ela só com um dedo,
Desfaz-lhe as artimanhas.

À noite andam vampiros,
Nas ruas escuras da Graça,
Mas com ela ninguém passa,
Nem que tenha olhos giros.

São histórias muito engraçadas
"Tá lá, tá lá ?!", diz a Clara,
"Vamos embora", diz a Sara,
"Vamos as duas mascaradas".

Estão na Escola do Op'rário,
Que é um grande casarão,
Cada dia é uma lição,
Há esqueletos no armário!...

"Que horror!", a Matilde grita,
Pondo-se em cima da cadeira,
E, ao lado, mesmo à beira,
A Emília diz que é fita.

Não há almas do outro mundo,
Esta escolinha é segura,
Vamos fazer boa figura,
Que o barco não vai ao fundo.

Porto Santo tem o "Lobo Marinho",
Lá vai ela co' avó T'resa,
E a Rosa, rebitesa,
Vai ao colo do paizinho.

"Eu por mim já sei nadar,
Mas a Rosa só com boia,
Já estou com a paranoia
Do barco se afundar.

"Vou a servir de mastro
E com os pés dentro do mar,
Toda a gente vou salvar,
Do cinema já sou astro."


... E aqui a Clarinha, interrompeu o avô:


"E tu sempre na brincadeira,
Os pés p'las mãos a trocar,
Co'a minha altura a gozar,
Tudo isso é só asneira.

"Deixa-te lá de fantasias,
Que eu só seis anos faço,
Fazes de mim um palhaço,
Tão grande como o Golias.

"Com seis metros de altura
Ninguém brincava comigo
E na escola sem amigo,
Ser gigante era tortura.

"Com os metros que me pões,
Onde é que vou dar a festa ?
Tinha que ser na floresta,
Com gigantes e anões.

"Deixa-me ser a Clarinha,
Que já joga o xadrez
E te ganhou uma vez,
Tendo ao colo a Rosinha."


Rua Senhora do Monte, Graça, Lisboa, 
12 de Novembro de 2025

Parabéns, Clarinha!
Do avô Luís, avó Chita e titi Joana

______


Nota do edito LG:

domingo, 9 de novembro de 2025

Guiné 61/74 - P27404: Manuscrito(s) (Luís Graça) (278): "A Rua Suspensa dos Olhos", de Ábio de Lápara, pseudónimo literário de José António Bóia Paradela (1937-2023), ilhavense, urbanista, arquiteto e escritor - Parte III: A Cila Paciência


S/l > 1955 > Alguns dos bravos marinheiros e pescadores que embarcam no "Lousado" em abril de 1955. Na segunda fila, ao centro, o terceiro a contar da esquerda, assinalado a amarelo, é o nosso querido e saudoso Zé António Paradela...

Foto (e legenda):  © José António Paradela (2015). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


O Verde 

No dia em que, “verde”, me puseram entre tábuas
De um catafalco a que chamaram bote
E me disseram: "Salta, esquece as mágoas"…
Senti, looongo, na garganta um garrote!

Primaveril, meu coração bateu mais forte,
Ao cair na onda junto ao costado,
E remei, como quem enxota a morte,
De dentro do meu “fato oleado”.


“Senta-te, Zé, e rema enquanto a força durar!
Tens pão e peixe, e tens também café quente!
Segue-me quando o meu búzio roncar…”

Disse o “maduro”, comovido, ao ver-me imberbe,
Estendendo as linhas na corrente,
Junto à fria palidez do terrível icebergue.


In: Ábio de Lápara -"Santinhas de Apegar: Textos Poéticos" (2017, ed. de autor), pág. 75.

Nota de LG: "Verde" é o pescador ou marinheiro da frota branca, a frota bacalhoeiro, embarcado pela primeira vez; equivalente a "periquito" na tropa e na guerra da Guiné


 

Capa do livro "A Rua Suspensa dos Olhos" de Ábio de Lápara (edição de autor, José A. Paradela, Aveiro, 2015, 164 pp.) (*)...


Ábio de Lápara é o pseudónimo literário de José António Bóia Paradela (1937-2023), ilhavense, urbanista, arquiteto e escritor
 


Excertos de "A Rua Suspensa dos Olhos" - Parte III: A Cila Paciência


por Ábio de Lápara / José António Paradela
(1937-2023)



Chamo-me Ábio e sou uma criança de aspecto frágil e olhos grandes, com vontade de aspirar nuvens ou rasgar horizontes. Passo o tempo nas margens da água a correr atrás de arco-íris que nunca alcanço. Por isso gosto das tintas pastel e tenho uma maneira muito minha de olhar para as coisas.

Nasci gordinho, mas ultimamente o meu corpo afilou. Por aqui, os miasmas do vale atacam duro, com maleitas inomináveis. Dizem os sobreviventes:

Teria feito 88 anos no passado

dia 30 de outubro . Nasceu em
Ílhavo em 1937. Morreu no hospital,
em Aveiro, em 2023. Membro da
Tabanca Grande. Fez a tropa
na marinha de guerra e antes,
em 1955, pesca do
bacalhau, seguindo os passos
dos seus avoengos.



 — Foi um malzinho desconhecido que o atacou...

O fantasma da tísica perfila-se teimoso há muitos anos, matando músicos e poetas cujas obras tiveram o condão de transformar o bacilo em agente do romantismo. De si próprios e dos seus personagens.

Porém os pobres que cá moram não escrevem; e de música... só cantam de ouvido. Sendo assim, a tísica é para eles um modo natural de acabar os dias. Talvez à maneira curta, mas tão natural que continuam a conviver entre todos, no meio da tosse e das hemoptises:

— Coitadinho! Já não falta muito para entregar a alma ao criador... — dizem os que vão ficando.


E enquanto tarda a invenção dos remédios para esta secular maleita, alguns surtos de pestes estranhas transformam o cemitério em jardim, segundo o antigo costume deste povo, que para o efeito cultiva longos canteiros de sécias e crisântemos nas bermas dos seus quintais.

Por aqui, meus amigos, a morte está presente no quotidiano, na sala de cada um, onde os vizinhos e os amigos se vem despedir e carpir, até que o padre venha encomendar a alma e o caixão se feche para ser transportado à tumba húmida... Nada de trágico, pois a vida continua calmamente no dia seguinte.

Os que resistem, são o garante da continuidade do Beco e do Pátio dos Ressoeiros. Entre esses vai ficar este vosso amigo, para contar a estória ao fim de tantos anos.

Mas ficou sobretudo uma mulher. Uma mulher chamada Cila Paciência. De figura muito seca, vestida sempre de negro, com filhos de nomes medievais: Victor, Joaquim, Deolinda, António... Nada de Melissas nem de Vanessas.

Era casada nesse tempo com um homem e com um gato. Ambos amigos do alheio. Ele chamado José... José "Ressoeiro". O gato, de cor parda, tinha um nome que hoje nos parece óbvio: "Tareco".

José passou grande parte da vida na cadeia: entrava por um ano, saía por algum tempo, que dedicava à chincha (#) na Ria, e pouco depois já se tinha metido em zaragatas ou fizera mão baixa a umas ferramentas ou outras coisas de insignificante porte... E lá ia novamente para o chelindró, em Aveiro, nos calabouços do Governo Civil, que a guarda republicana não era meiga.

Aí carpinteirava brinquedos de madeira que mandava para os filhos ou para a mulher vender a troco de uns tostões. Pelo final dos anos quarenta, morreu tuberculoso.

O gato seguiu-lhe as pisadas! Aproveitava as distracções dos vizinhos para assaltar as parcas comidas sobrantes ou em vias de serem cozinhadas, apesar da Cila não lhe faltar com os restos de peixe que diariamente trazia da praça. Estava-lhe na massa do sangue. A sua fome parecia insaciável. Bastava que uma vizinha afiasse uma faca na soleira da porta, e aí estava ele, ofegante da corrida, bigodes expectantes, imaginando tripas do peixe amanhado voando da faca para o chão do Beco!

Um dia, um dos ilustres habitantes do pátio, o Ismael — outro nome de cheiro antigo  — que defendia vigorosamente o seu pecúlio alimentar dos ratos e das moscas que com ele cohabitavam, não lhe perdoou subtracções passadas. Vi eu com os meus olhos esbugalhados de criança, numa bela manhã de sol; lembro-me como se fosse hoje. Única testemunha, só agora vos conto, porque se o tivesse feito então, lá se ia a amizade do Ismael como se foi a do gato! E, para além disso, a sarrabulhada que não seria lá pelo Beco!

O "Tareco" foi por ele cruamente apedrejado. Uma só pedra de grande tamanho esmagou o pequeno crânio abigodado contra uma parede. O "Tareco", sem um gemido, correu num ziguezague estonteado na direcção das terras lavradas, para o ignoto sítio onde morrem os gatos vadios e nunca mais lhe pus a vista em cima.

Não sei quantas vidas teve depois, tal como não sei quantas terá tido antes porque os gatos têm direito a sete, mas sei que esta incerteza serviu para aliviar o meu luto. Eis,  pois,  o cenário limite onde todos os seres eram marginais, na fronteira entre a morte certa e a vida permanentemente ameaçada.

Era aí que a Cila se movia lançando pontes aos que estavam em risco de se afogar. A partir apenas da sua força congénita, do seu aço estrutural de rija têmpera, lutando sozinha para sustentar quatro filhos, mais dois sobrinhos órfãos e apoiar ainda vizinhos e animais necessitados.

Naquele pátio, embora fossem bens escassos, ou por isso mesmo, o pão era pão e o queijo era queijo. Não havia classes mais favorecidas nem menos favorecidas. Esses eufemismos foram inventados muito mais tarde porque ali ninguém era favorecido, fosse muito ou fosse pouco. As classes sociais já eram assim quando todos nasceram : ricos, pobres e remediados. E se um dia alguém mais ilustrado lhes dissesse que eram "lumpen", levava por certo uma carga de porrada.

As ideias políticas eram coisas de senhores importantes, como o Dr. Calisto, que morava ali ao lado e lhes pedia que lhe enchessem os pneus do automóvel com a bomba manual! Quando a Pide o levava preso,  ninguém se questionava, porque os céus do Beco estavam inundados de belos sons.

A sobrinha da Cila, cujo nome só por si valia um jardim, Rosa Cravo, cantava permanentemente e em sonora voz, os amalianos fados de então:

— Fado é sorte, desde o berço até à morte, ninguém foge por mais forte, ao destino que Deus dá!...

E o assunto ficava assim resolvido!

O Júlio, o outro sobrinho, envolvido em românticas paixões, morreu novo no meio de hemoptises, depois de ter regressado do sanatório do Caramulo. O mesmo acabou por acontecer mais tarde à Rosa cantora, gasta de amores como personagem de romance em que o real transcendeu a ficção.

Dos filhos recordo o som das vozes nas tardes de silêncio, e a luta pela sobrevivência, onde a escola era um estorvo porque não permitia que fossem ao mato buscar lenha para angariar algum sustento. Quando chegou a idade de verem o "homem das barbas brancas", lá foram.

O mais velho, para a pesca do bacalhau, o mais novo, que fora meu colega na escola primária, para a pesca costeira. Durante anos encontrava-o quando visitava os meus pais, sentado no meio do pátio, fogareiro aceso e garrafa do vinho ao lado:

— Senta-te aqui, Ábio, e come comigo. Peixe assado não tem dono...

O Joaquim, há muito que pesca carapau no Mar da Tranquilidade...

E o do meio? Bem, esse ... Chamava-se António mas era conhecido por "Guinho". Não o recordo brincando, nem sequer consigo imaginá-lo de pé. Uma tuberculose óssea atirou-o para uma cama do hospital e, quando regressou a casa com o corpo forrado de escaras, apenas mexia ligeiramente a cabeça e a mão direita, colocada perto do rosto para conseguir empurrar alguma comida para a boca.

Naquela posição, inerte como uma múmia, sempre envolvido em alvos lençóis  que a Cila nisso não facilitava — o seu catre estava colocado na área comum da casa , frente à porta sempre aberta para que pudesse pedir a ajuda dos vizinhos, e ver quem ia passando no Beco, enquanto ela fazia os leilões do peixe da Ria no antigo mercado da vila.

 — Eh, senhora Rosinha, pode dar-me um copinho de água?! — pedia ele à minha mãe.

O silêncio de então, agora difícil de imaginar, permitia que a sua voz atravessasse o Beco e o pátio e a sua sede fosse satisfeita. Quando chegou a sua hora, morreu. Eu já por ali não vivia.

Estas são estórias que compõem a história da Cila Paciência. Este não era o seu nome, mas era assim que a chamavam. Como no antigo Egito, um nome para responder perante os deuses.

Uma mulher de fraca estatura que carregou as desgraças de uma família inteira, a quem eu lia as cartas que recebia de familiares de Matosinhos, ou do filho ausente na pesca do bacalhau. E que transportava ao colo os filhos dos vizinhos quando a solidariedade se impunha à sua escufenada consciência.

Muito haveria ainda a contar, mas não os quero cansar com mais tristezas. O Rimifon e as Sulfamidas estavam prestes a chegar à farmácia do "Manéuzinho", e a tísica pouco a pouco desapareceu do Beco.

Não sei que idade tinha a Cila quando a atropelaram no regresso do mercado. Inválida, não resistiu à inacção por muito mais tempo.

Deixou uma filha e um filho. O mais velho e a mais nova. Provavelmente, alguns netos.

Soube disto pela minha mãe, há cerca de trinta anos.

Disseram-me há poucos dias, que Domingos Paciência, jogador e treinador de futebol, é neto do seu irmão que viveu em Matosinhos. Aquele de quem eu lhe lia as cartas!


Costa Nova, Novembro de 2011


Fonte: Excertos do manuscrito , em pdf, de "A Rua Suspensa dos Olhos", de Ábio de Lápara, que ajudei a rever em 2015, antes da execução gráfica do livro com o mesmo nome. Recorri de momento ao manuscrito por não ter aqui à mão um exemplar do livro em papel.

(Revisão / fixação de texto, negritos: LG) (**)
____________

Nota de LG:

(#) Pesca na ria de Aveiro com  rede de arrastar para a praia, chamada chincha ou chinchorro.


2. Nota do editor LG > Tuberculose pulmonar  (ou "tísica) em Portugal


Durante o século XX, a tuberculose pulmonar (vulgo,  "tísica") foi uma das principais causas de morbimortalidade em Portugal, refletindo condições sociais, económicas e sanitárias adversas, sobretudo nas primeiras décadas do século. 

Era uma doença associada à pobreza, às más condições de vida, de habitaçáo, de trabalho,  de higiene (pessoal e ambiental), e à subnutrição.E, claro, a um incipiente sistema de saúde.

Tal como a mortalidade infantil. O Zé António nasceu em 1937. E eu em 1947. Nessa altura, a tuberculose era endémica em Portugal, com altas taxas de incidência e mortalidade. Tal como a mort6alidade infantil: morriam 120 crianças, até a um ano, em cada mil, em 1945. 

No existiam tratamentos eficazes:  o isolamento em sanatórios (como o Sanatório do Caramulo, inaugurado em 1921) era a principal medida terapèutica.

Estima-se que, até aos anos 30/40 a tuberculose fosse responsável por cerca de 10% das mortes totais em Portugal.

Irá tornar-se na doença social por excelência, vitimando de preferência os mais jovens e os oriundos das classes trabalhadoras (pescadores e marinheiros incluídos). Chamavam-lhe o mal proletário, mas também peste branca, por analogia com a peste negra. Em meados do Séc. XIX, um em cada dez falecimentos ocorridos no Hospital de S. José era atribuído à tuberculose.

A tuberculose é uma doença infeciosa causada pelo Mycobacterium tuberculosis complex. A forma pulmonar é mais frequente e aquela mais temida pela saúde pública, já que o doente, com tuberculose da via aérea, pode mais facilmente contaminar as pessoas com quem interage, através dos bacilos que liberta através da tosse, da expetoração, da fala, etc,

Com o início da industrialização e o crescimento das cidades, no séc. XVIII, tornou-se epidémica, na Europa, atingindo não só a emergente classe trabalhadora,  assalariada, que veio do campo para a cidade, para trabalhar nas oficinas, manufaturas e fábricas, como também as camadas mais abastadas e as próprias elites.

A doença atingia sobretudo os jovens adultos, nomeadamente trabalhadores, mas não poupava nem príncipes nem princesas... Era  elevadíssima a mortalidade (entre 300 e 400 por 100 mil habitantes, e nalgumas cidades o dobro). Mas, enquanto noutros países, a taxa de mortalidade por tuberculose começou a baixar, lenta mas persistentemente, em Portugal mantinha-se alta nos finais do séc. XIX.

O total de mortes por tuberculose, nos finais do séc. XIX; era estimado em 15 a 20 mil (o equivalente a uma taxa de cerca de 300 a 400 por 100 mil habitantes). Era a segunda causa de morte em Portugal (e vai manter-se nessa posição até à II Guerra Mundial).

Só em 1882 foi identificado, pelo alemão Koch, o bacilo, causador da doença, mas só 65 anos depois, em 1947, é que surgirá um tratamento eficaz, a estreptomicina, isolada em 1943 pelos investigadores A. Schatz, E. Bugie e S.Waksman. A imunização (pela vacinação BCG) só passará, entretanto, a ser usada em grande escala a partir de 1954, ou seja, numa altura em que a mortalidade por tuberculose já estava reduzida a uma pequena parte do que fora cem anos antes (cerca de 400 por 100 mil). A nossa geração foi a primeira a beneficiar desta vacina, um passo enorme dado pela nossa saúde pública!

As primeiras seis ou sete décadas do séc. XX são dominadas pelo “movimento dos sanatórios” que foi em grande parte uma iniciativa alimentada pela filantropia privada, sendo justo destacar o papel da rainha Dona Amélia que soube mobilizar conhecimentos, competências, influências e recursos financeiros para prevenir e combater a tuberculose, criando-se logo em 1899 a ANT – Associação Nacional aos Tuberculosos, com o objetivo explícito de construir hospitais marítimos para crianças, sanatórios de altitude para tuberculosos curáveis, hospitais para internamento de doentes incuráveis e dispensários para diagnóstico prevenção, administração de cuidados ambulatórios e apoio médico-social.

O movimento teve inegável projeção política e social, inaugurando-se logo nos primeiros anos, cinco sanatórios: 2 marítimos como o do Outão (1900) e o de Carcavelos (1902), 1 de montanha (Guarda, 1907) e 2 de planície, o do Lumiar (1912) e do Portalegre. São também abertos os primeiros dispensários, não só em Lisboa (1901 e 1906), como em Bragança (1902), Porto, Faro e Braga (1903), Viana do Castelo (1905)…

O “regicídio” (1908), a implantação da República (1910) e o exílio da família real vão ter, necessariamente, um impacto negativo na ação da ANT, que ganha um novo fôlego nos anos 30. Surgem, entretanto, outras iniciativas, de privados e empresas (como a CP - Caminhos de Ferro de Portugal).

O problema da tuberculose agrava-se com o regresso do Corpo Expedicionário Português que participara na I Grande Guerra. Nesta segunda fase da luta antituberculosa, há uma instituição que merece especial destaque, a Estância Sanatorial do Caramulo, obra de um homem visionário, o médico e empresário Jerónimo de Lacerda (Coimbra, 1889 – Lisboa, 1945). Se,m esquecer, o seu diretor científico (a partir de 1938), Manuel Tapia (um médico catalão fugido a Guerra Civil Espanhola). 

Chegou a ser o maior da península ibérica, com 20 sanatórios, 1100 camas...

Em 1930, registavam-se 13010 mortes, uma cifra brutal!... Em 1939, existiam 34 sanatórios e 83 dispensários, para além de outros estabelecimentos, espalhados por todo país.

O Estado só chama a si a liderança da luta contra a tuberculose em 1945 com a criação do Instituto de Assistência Nacional aos Tuberculosos (IANT), mas já no ocaso do movimento. A partir de meados dos anos 50, os sanatórios começam a fechar, mas subsistem graves problemas de recuperação e de integração social, familiar e profissional. Os diversos equipamentos do imenso parque sanatorial construído ao longo de meio século, e alguns com risco de notáveis arquitetos (Cotineli Telo, Raul Lino, etc.) , tiveram destinos diferentes, uma parte tendo sido reconvertido e fazendo hoje parte do nosso parque de saúde.

No séc.  XXI registou-.se uma diminuição de cerca 40% da taxa de notificação e de incidência de tuberculose, com valores de incidência abaixo dos 20/100.000 habitantes desde 2015.



Capa do livro "Saúde", volume nº 29, da coleção "Memória de Portugal: 2 séculos de fotografia" (Lisboa, Atlântico Press, 2020, 64 pp).

O texto do livro "Saúde: o longo caminho do progresso",é da autoria do nosso editor Luís Graça, e foi escrito em plena pandemia, entre 15 de maio e 15 de junho do corrente, "em contrarrelógio". É ilustrado por cerca de meia centena de fotografias (também legendadas por ele).

Índice: Prefácio (de António Barros Veloso): heróis ignorados: pp. 5 | O longo caminho do progresso: pp. 6-7 | Tempo de pioneiros: o grande desafio da saúde pública; pp. 8- 25 | Nascer e morrer: epidemias e doenças da pobreza: pp. 26-43 | Direito universal: Século XX consagra a «saúde para todos»: pp. 44-67.

segunda-feira, 3 de novembro de 2025

Guiné 61/74 - P27383: Manuscrito(s) (Luís Graça) (277): "A Rua Suspensa dos Olhos", de Ábio de Lápara, pseudónimo literário de José António Bóia Paradela (1937-2023), ilhavense, urbanista, arquiteto e escritor - Parte II: a rua da minha infància


Capa do livro "A Rua Suspensa dos Olhos" de Ábio de Lápara (edição de autor,  José A. Paradela, Aveiro, 2015, 164 pp.) (*)...

Ábio de Lápara é o pseudónimo literário de José António Bóia  Paradela.  Imagens: arquivo de LG + Matilde Henriques 


Fotos (e legendas): © Luís Graça (2025). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Teria feito 88 anos no passado
dia 30 de outubro (*). Nasceu em
Ílhavo em 1937. Morreu no hospital,
em Aveiro, em 2023. Membro da 
Tabanca Grande. Fez a tropa
na marinha de guerra 
e antes, 
aos 17 anos, 
na pesca do
 bacalhau, 
seguindo os passos
dos seus avoengos.
Excertos de "A Rua Suspensa dos Olhos" - Parte II: a rua da minha infância

por Ábio de Lápara / José António Paradela 
(1937-2023)


A Rua Suspensa dos Olhos. Não sei como foi na vossa rua. Se quiserem acreditar, tudo bem, pois lá na minha os prodígios eram matéria banal. Qualquer um, desde que não fosse bisonho, podia embarcar nas cenas prodigiosas que vou relatar.

Aquela rua estava suspensa de mil olhos novos, acabadinhos de nascer. Eram olhos todos diferentes à primeira vista, porque as suas cores percorriam todo o arco-íris.

E quando aquelas cores já não chegavam para tantos olhos, abatiam-se os tons originais com aguadas de cinzento, ora mais claro, ora mais escuro  
e esses eram, na verdade, os olhos mais bonitos,  normalmente distribuídos 
às meninas a condizer com o tom dos seus cabelos.

Em alguns, a pálpebra superior descia um pouco mais sobre a íris e então diziam-se apaixonados. Noutros sucedia o contrário e chamavam-lhes desconfiados. Noutros ainda, uma ligeira rotação transformava-os em marotos!

Mas na verdade, acabados de nascer, eram sobretudo sedentos de luz, que bebiam em grandes quantidades, e também de formas, ora geométricas ora orgânicas, com as quais construíram uma rua perfeitamente igual á minha: as mesmas pedras, as mesmas portas, os mesmos rostos.

Por isso era chamada Rua Suspensa dos Olhos.

E toda a vida ali, era decalcada da outra, com papel químico em tons que evoluíam do azul celeste até ao rubro dos poentes. Só o tempo era mesmo diferente e bastante mais célere, comprimindo os vagarosos acontecimentos que se esmagavam impreterivelmente no fim do sonho, hora a que os poentes coincidiam com o toque a rebate das mães, cansadas do dia.

Cada par de olhos tinha um dono que tratava deles como pincéis de pelo de marta. As suas pestanas eram sanefas aveludadas, e os nomes dos seus donos fundiam-se por vezes com a geografia da rua: Laide do Canto, Laidinha do Cabeço, Amélia dos Cofinhos, Maria Mangona...

Ou com os nomes de coisas de utilidade discutível numa rua suspensa dos olhos: Benjamim Balança, Manéuzinho Fazenda, Júlio Abóbora, Aníbal Repolho, Rosário Papoila, Helena Caracola...

Ou ainda nomes estranhos, herdados de antigos náufragos arrojados à costa pelos temporais, lá para os lados da Barra: Reinaldo Perqueixo, Carolina Campanta, Laura Vigia, Luz Mastrago, Rosa Nocha, Artur Cagula...

Por ironia do destino, eu, que não era especialmente dotado para jogos complicados, tinha todo o tempo disponível para percorrer ambas as ruas e imiscuir-me em trapalhadas de que me sobraram ternas recordações! (...)


Ilhavo > Biblioteca Municipal > 26 de novembro de 2017 > 

O Zé António na apresentação da sua última obra, publoicada também sob pseudónimo: Ábio De Lápara, "O Livro das Santinhas de Apegar: Textos Poéticos". 

É ainda autor de dois livros de crónicas e pequenas estórias sobre as geografias emocionais da sua infància:  “Uma Ilha no Nome” (2007) e “A Rua Suspensa dos Olhos” (2015)

Foto de Etelvina Almeida (editada, com a devida vénia)


***

Para que percebam o meu tamanho de então, dir-lhes-ei que, o senhor Zé Pereira se sentava, normalmente após o almoço, a colher as amenas réstias do sol de Outono, no passeio da ti Cacilda.

Aí, eu instalava-me confortavelmente com os cotovelos apoiados nos seus joelhos, pés balouçando, ligeiramente levantados do chão, observando com minúcia o seu acto de fumar e todos os preparativos necessários para concluir a operação com sucesso:

1- Tirar uma mortalha do saquinho de função

2 - Enrolar nela o tabaco desfiado e molhar com a língua, numa passagem rápida

3 - Colocar a prisca na boca, em posição expectante de lume

4 - Tirar o catracezílio do saquinho, mais o fuzil e a pederneira

5 - Tanger o fuzil até saltar a faísca que ateia o morrão (a isca) no interior do catracezílio

6 - Soprar aumentando o lume do morrão

7 - Encostar a ponta do cigarro ao círculo incandescente e chupar até sair fumo.


Glória das glórias quando tudo terminava e o fumo invadia, cheiroso, os canais tabágicos do senhor Zé Pereira. Então eu descia dos meus cotovelos para lhe pedir que me deixasse colocar a rolha de cortiça na embocadura do catracezílio e assim apagar o lume.

— Mas quem é este senhor? 
— perguntareis intrigados.

Bem... na minha rua houve alguns casos semelhantes, passados em diversos pontos do mundo, que chegavam aos meus ouvidos nas conversas sussurradas dos adultos.
Este aconteceu na América.

Perante a escassez de recursos lá na rua, os homens punham pés ao caminho e “saltavam” noutros países arriscando todo um passado que tinham construído entre porões de dificuldades. Com isso pretendiam reconquistar a capacidade de sonho que a minha rua já não permitia aos adultos. Veleidades dessas, só na Rua Suspensa dos Olhos, acabados de nascer.

Ao saltarem longe da rua, em terras tão estranhas, o fervor da nova luta iluminada pela luz de outros quadrantes e associada ao jogo do fracasso, levava a que por vezes, na rija aposta que fizeram, saíssem a perder.

Poucos homens resistem à derrota,  como sabemos. Por isso, o senhor Zé Pereira ensaiou esquecer o passado... a mulher, as filhas e tudo o que as rodeava. E isso, durante muitos anos, demasiados anos!

Quando, no auge da angústia, resolveu voltar para dar conta do fracasso
 nem todos o faziam, preferindo morrer longe —  os seus olhos escureceram. De que cor estaria o seu coração?

A partir daí, não teve mais lugar na casa que esquecera e ficou a viver na "casinha", o anexo ao fundo do quintal, onde elas lhe serviam a comida em isolamento afectivo. Olho por olho, dente por dente.

Mas para mim, ele foi o avô que nunca tive, a quem ia apanhar "beatas" no tempo em que os cigarros não tinham filtro, para ele desmanchar e secar ao sol sobre uma folha de jornal, compondo depois novos cigarros.

Pagava-me com afecto
 "toma lá, sacanita"!  e punha na minha mão um rebuçado de açúcar negro e mole, que era o que havia na loja do ti Tomé Pascoal naquele tempo de guerra.

A Rua Suspensa dos Olhos era mais comprida que a outra, porque ali circulava mais gente em passada lenta e por isso os acontecimentos tinham sempre uma expressão diferente. (...)

***

Começava no Alto Badeira e seguia, Alqueidão abaixo, até à Malhada, onde após a pequena Ponte de Pedra Vermelha, se perdia na água que tornava o seu fim indefinível e aberto a todas as aventuras.

Por isso elas contam-se infindáveis e articulam-se como as pedras juntouras daquela pequena ponte em arco de volta perfeita. Estreito arco, ligado ao antes e ao depois, ali só passavam os humanos postos nos caminhos da água. (...)

Os que ficaram em terra com as suas carroças e os seus animais, aprisionaram-na mais tarde numa rotunda infame, porque apenas viram nela o arco.

Esqueceram que sem antes nem depois, sem aqueles estreitos percursos que a ela conduziam, o arco é inútil e sem isso não há caminho para a aventura. Só o todo interessava aos olhos que suspendiam a ponte daquela rua: presa, isolada como está hoje, as suas pedras não têm valor porque já não conduzem ao sonho...

Cada estranho que calhasse passar ali, abria o corredor do mistério, onde pululavam cobras cuspideiras da floresta amazónica, navios fantasma de velas rotas e gritos de pássaros surgidos na bruma, lobisomens necessitados de serem picados, bruxas e curandeiros.

Pendurado do medo, por ali ouvi essas estórias na boca do Cagula, o mais velho e suposto herói de aventuras reais, mesmo que imaginárias.

Mas os prodígios mais prodigiosos, eram os rituais na Rua Suspensa dos Olhos.

Não tinham paralelo em qualquer outra. Ali todos os olhos eram recém nascidos, quer os seus donos fossem novos ou fossem velhos.

Irmanados no seu poder encantatório, os ritos exprimiam-se através de cenários desmesurados como nos dramas ultrarromânticos:

  • o fogo purificador, multiplicado por mais de oito fogueiras ao longo de toda a rua na noite de São João, onde se esconjuravam todos os bruxedos, feitiços e maus olhados da rua, mesmo os do alfaiate Lavanca, boa pessoa mas tido por lobisomem;
  • os gigantescos papagaios lançados ao vento da agra, feitos de lençóis ou brancos sacos de farinha de bordo, cosidos e puxados por marinheiros com saudades do mar, como se quisessem contrariar a corrida das nuvens que lhes traziam recados do largo;
  • os jogos de malha para treino de músculos  —  aguardando o tempo de alar bacalhaus no balanço do bote —  onde ao fim da tarde, os olhos suspensos do grande grupo ficavam piscos perante as picheiras esvaziadas na tasca do Ti Tomé Pascoal.

Enfim, homens e crianças, por certo crianças/homens, suspendendo aquela rua na paixão inocente do brincar.

***
A estória já vai longa neste abrir e fechar de olhos aparentemente tão diferentes.

E garanto-vos que era mesmo só aparência, porque mais tarde, quando certos desgostos se impunham, todos os olhos choravam de igual modo lágrimas salgadas ou amargas e a sua expressão carregava-se dos mesmos tons nocturnos.

Foi assim no naufrágio do "Infante de Sagres" ou no naufrágio das traineiras num temporal em Matosinhos e em tantos outros casos onde morreram companheiros, noticiados em dias tempestuosos, quando o ribombo das ondas na costa ecoava pela laguna e se fazia ouvir ao longe sobre a rua.

Nesses momentos, as cores do olhar diminuíam de intensidade e as mulheres cochilavam enroladas nos seus xailes negros de cadilhos tristonhos e a Rua Suspensa dos Olhos descia ao solo, onde o som dos tamancos arrastados na calçada estabelecia um ritmo mais consentâneo com a misericórdia desses dias.

Em setembro encontrei a Laide do Canto, na Costa Nova. Há anos que não a via. Emigrara para a América onde criou filhos e netos. Poucos minutos depois da euforia do encontro, percebi claramente que a Rua Suspensa dos Olhos ainda existia.

Existirá sempre, enquanto viver um par daqueles olhos com as cores do arco íris.


Costa Nova, 1 dezembro 2011

Fonte: Excertos do manuscrito , em pdf, de "A Rua Suspensa dos Olhos",  de Ábio de Lápara, que ajudei a rever em 2015, antes da execução gráfica. Recorri de momento ao manuscrito por não ter aqui à mão um exemplar do livro em papel.

(Revisão / fixação de texto, negritos: LG) (**)

__________________

Notas do editor LG:

(*) Vd. poste anterior >  31 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27367: Manuscrito(s) (Luís Graça) (276): "A Rua Suspensa dos Olhos", de Ábio de Lápara, pseudónimo literário de José António Bóia Paradela (1937-2023), ilhavense, urbanista, arquiteto e escritor - Parte I : "Rua das Manhás, a morte levou tudo o que eu amava" 

(**) Último poste da série > 1 de novembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27372: Manuscrito(s) (Luís Graça) (277): As andorinhas de Candoz na véspera da "grande viagem" para a África (subsariana, equatorial e até austral)

sábado, 1 de novembro de 2025

Guiné 61/74 - P27372: Manuscrito(s) (Luís Graça) (277): As andorinhas de Candoz na véspera da "grande viagem" para a África (subsariana, equatorial e até austral)


Vídeo. 0' 45''. Alojado em Luís Graça > You Tube



Vídeo: 2' 00'' . Alojado em Luís Graça > You Tube

Quinta de Candoz > Paredes de Viadores > Marco de Canveses > 11 de setembro de 2025. 15h40. Dia de vindimas. Tempo de trovoada. Calor e humidade. Milhões de insectos, centenas de andorinhas. Ambos, os insetos e as andorinhas, parece,  surgir do nada. Como na Guiné, no incío da época das chuvas. 

Antes de partirem para África, as andorinhas, com este festim, reforçam as suas reservas de proteína. Nunca nos tinhamos apercebido deste fenómeno.  

Vídeo: Luís Graça (2025)



Quinta de Candoz > 8 de abril de 2023



Quinta de Candoz > 6 de julho de 2023



Quinta de Candoz > 11 de setembro de 2024



Quinta de Candoz > 11 de abrul de 2025



Quinta de Candoz > 11 de setembro de 2025


 

Marco de Canaveses, Paredes de Viadores, Candoz, Quinta de Candoz > 23 de Agosto de 2012 > Fotograma de vídeo > Ninho de andorinha, insólito, construído à volta da lâmpada do hall exterior ou alpendre de uma das nossas casas (antiga "casa de caseiro", que deixou de ser habitada há muito)...

Aos 43 segundos vê-se uma andorinha entrar no ninho levando insetos para alimentar as crias, e 10 segundos depois a sair para mais uma "caçada" na (e ao redor da) Quinta de Candoz, que é rica em insectos... O ninho tinha sido recentemente reconstruído. As andorinhas caçam em círculo, num raio de 500 metros do ninho.

Vídeo (1' 07''): © Luís Graça (2012). Alojado em Luís Graça : You Tube

Fotos e vídeos (e legendas): © Luís Graça (2025). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné] 
 


 1. O vídeo, que eu fiz em 2012, comprovava a existência de um família de andorinhas, que vinham todos os anos do norte de África, imaginava eu, passar as férias de verão e reproduzir-se em Candoz, na nossa quinta... Acabei / acabámos por manter um especial carinho por este ninho... Nunca, que eu tivesse reparado, nenhuma andorinha tinha feito ninho na nossa terra...no séc. XX.  Estas, tal como eu, chegaram e gostaram, voltando sempre...   

Mais tarde, num qualquer mês de junho em que estive em Candoz,  para surpresa e desgosto meus, dei conta que a "abóboda" do industrioso ninho tinha caído, possivelmente sob o efeito de alguma intempérie. Voltei, dois meses depois, a sorrir, quando dois mneses depois, em agosto, verifiquei   que o ninho tinha sido reconstruído e tinha novos inquilinos, seguramente descentes dos primitivos construtores .

 Moral da história: as andorinhas, mesmo aquelas que são mais "desalinhadas", mostram aos seres humanos que todos podemos ser ao mesmo tempo iguais, diferentes e únicos, e que isso só nos enriquece como espécie... Ah, tem outras qualidades, importantes nos tempos que correm, de feroz individualismo, chauvinismo, xenofobia, racismo, populismo, intolerância, arrogância etnocêntrica, belicismo: é leal, gregária, solidária, corajosa, persistente, vai à luta, não desiste... Parafraseando o Evangelho de Jesus Cristo, segundo Mateus (6: 26), tomemos como exemplo as andorinhas e demais aves do céu...


2. Em Candoz temos andorinhas.  Todos os anos nidificam lá.  Em vinte e tal, talvez até trinta anos, já devem ter nascido muitas. Morrido algumas.Emigrado todas. Quantas, ao fim destes todos ? Não sei. Só conheço um ninho. 

Só sei que as andorinhas nidificam no Norte do país, na Quinta de Candoz, Paredes de Viadores, Marco de Canaveses... Quantas ? Só temos esse  ninho, e o povoamento é disperso.

Pergunta o leitor, leigo, curioso: e nessa "grande viagem", intercontinental, vão para onde e quando ?

As andorinhas funcionam como nós, se acordo com  aos ciclos da natureza. No nosso caso, podemos dividir o no em dois solstícios, o do inverno e o do veráo. Afetam a maneira como vestimos, nois alimentamos, trabalhamos, vivemos, passeamos,  etc. As andorinhas são, como toda a gente sabe, um dos sinais mais alegres, para nós seres humanos,  da chegada da primavera e do outono (neste caso, um sinal de tristeza, com a sua partida para outras paragens, o longínquo Sul, a África subsariana).
 
As andorinhas começam a chegar a Portugal em fevereiro e março. Nascidas as crias, partem durante o mês de setembro (na sua grande maioria), Daí a expressáo popular: “És como a andorinha: vens e vais com as estações.”

Em Portugal nidificam em Portugal, incluindo no Norte, na Quinta de Candoz. Migram depois viajam para África subsariana onde passam o inverno.

Claro que não chegtam de uma só vez, em bando. A sua chegada prolonga.se por várias semanas."Uma andorinha não faz a primavera", diz o provérbio. "Nem por morrer uma andorinha se acaba a primavera".

As primeiras a chegar podem ser logo observadas no sul do país, no Algarve, por  finais de janeiro e ao longo do o mês de fevereiro. Como diz o ditado, : "Pelo São Brás (3 de fevereiro), a andorinha verás".

À medida que o tempo aquece e a disponibilidade de insetos (que são o seu alimento) aumenta, elas progridem para Norte. Na nossa Quinta de Candoz, é vè-las, a começar a andar à volta do ninho  partir de março/abril. Quase todos os anos, há trabalhos de manutenão/reconstrução. Que podem levar mais de uma semana,,,

Elas vêm até nós para nidificar. O clima ameno da primavera e do verão no suld a Europa oferece as condições ideais: abundância de insetos,  dias mais compridos para alimentar as suas crias, etc.

A espécie mais comum que vemos a fazer os ninhos de barro nos nossos beirais é a Andorinha-das-chaminés (Hirundo rustica). Tem um peso médio que varia entre 16 e 25 gramas.  .

 As aves insetívoras, especialmente as que têm um voo tão ativo e acrobático como as andorinhas, possuem um metabolismo muito elevado e precisam de consumir uma grande quantidade de alimento para obter energia. A regra geral para muitas aves pequenas e ativas é que consomem uma quantidade de alimento próxima do seu próprio peso corporal por dia.

Com base em estudos de ornitologia e no metabolismo destas aves, um valor razoável para o consumo diário de uma única andorinha adulta é: entre 10 a 22 gramas de insetos por dia.

Este valor corresponde, aproximadamente, a 70-100% do seu peso corporal, o que é um feito energético extraordinário, mas biologicamente plausível.

confrontámos a nossa assistente de IA com este "dislate" ou "disparate"... A resposta, diplomática, veio logo a a sguir: "Onde a confusão pode ter surgido é ao considerar não o consumo individual, mas o esforço de caça de um casal para alimentar as suas crias"...

 É aqui que os números disparam:

(i) um casal: duas andorinhas adultas já consomem, juntas, entre 20 a 40 gramas de insetos por dia só para si;

(ii) as crias: uma ninhada típica tem entre 4 a 6 crias; nos primeiros dias de vida, as crias crescem a um ritmo alucinante e precisam de ser alimentadas constantemente; cada cria, essa sim, pode consumir uma quantidade de insetos equivalente ao seu próprio peso em desenvolvimento;

(iii) o esforço total: um casal de andorinhas tem de caçar o suficiente para se alimentar a si próprio de para alimentar as 4-6 crias famintas no ninho; o  esforço de caça do casal pode resultar na captura de uma massa total de insetos que pode facilmente ultrapassar as 80 ou 100 gramas por dia.

 Este esforço de caça traduz-se em centenas, ou mesmo milhares, de insetos (mosquitos, moscas, afídeos, etc.) capturados diariamente, o que faz das andorinhas um elemento fundamental e gratuito no controlo de populações de insetos e de eventuais pragas para o agricultor.

 Antes de partirem para o Sul, para a tal "grande viagem", há um processo de agrupamento curiosos:  a partir de finais de agosto e durante o mês de setembro, começa-se a a notar um comportamento diferente. As andorinhas, incluindo as crias já jovens e já capazes de voar, juntam-se em grandes bandos. É nessa altura que podemos vê-las pousadas em fios elétricos e de telefone, como que a preparar-se para a "grande viagem". Durante os meses anteriores, não têm um minuto para descansar. O seu ritmo de vida é alucinante!

No final do verão e início do outono, é comum observar a formação de enormes bandos de andorinhas. Estes aglomerados, que podem juntar milhares de indivíduos, têm como principal objetivo a alimentação intensiva. As aves aproveitam a abundância de insetos voadores para se alimentarem de forma contínua, voraz e eficiente, garantindo que acumulam a gordura corporal essencial para a travessia de milhares de quilómetros. 

Este comportamento gregário é uma estratégia de sobrevivência. Voar em grandes grupos oferece também proteção contra predadores e facilita a localização de áreas com maior concentração de alimento. Durante a própria migração, estes bandos fazem paragens estratégicas para descansar e reabastecer as suas reservas energéticas, continuando a sua jornada em busca de climas mais quentes e de alimento abundante.

A maioria destes bandos inicia a sua longa viagem para Sul durante o mês de setembro. Algumas aves podem partir um pouco mais tarde, mas em outubro já não vemos andorinhas em Candoz. 

 Todas elas têm o mesmo padrão migratório ancestral.O seu destino de inverno é a África subsariana. Atravessam Portual e a Espanha. A sua principal rota de saída  é através do Estreito de Gibraltar. Náo é preciso "dizer-lhes" que essa é a  mais curta  distância marítima entre o sul de Espanha e Marrocos. A partir daí, enfrentam outros obstáculos; a travessia do Saara até chegarem aos seus locais de invernada. De facto, elas não ficam no Norte de África. Atravessam o Deserto do Saara para chegar a zonas mais ricas em insetos, como a bacia do Congo e até mesmo a África do Sul. Absolutamente incrível!

É uma autêntica odisseia. É uma viagem duríssima e cheias de riscos.  de  milhares de quilómetros. É feita duas vezes por ano!...São guiadas pelo campo magnético da Terra, pela posição do sol e por outros instintos que a ciência ainda tenta compreender por completo.

 Quanto à sua alimentação....Claro, são insetos.  E quanto comem em média ? Não há estudos concludentes   sobre a quantidade média de gramas de insetos que uma andorinha come por dia em Portugal. No entanto, estudos gerais indicam que andorinhas, sendo aves insetívoras, consomem diariamente uma quantidade significativa de insetos para suprir suas necessidades energéticas, o que normalmente pode variar entre alguns gramas até cerca de 10 a 20 gramas de insetos por dia, dependendo do tamanho da ave, espécie e disponibilidade de alimento.

Para uma andorinha típica (que pesa entre 16 a 20 gramas), o consumo diário de insetos geralmente representa uma alta proporção do seu peso corporal, aproximadamente entre 10% a 20% do seu peso corporal diário, o que poderia equivaler, grosso modo, a cerca de 2 a 4 gramas de insetos por dia, em média.

Este valor é uma estimativa baseada em dados gerais de consumo alimentar de aves insetívoras de tamanho semelhante

3. O que podemos saber  mais sobre as andorinhas (ou como resumir o  que já dissemos atrás), recorrendo à nossa Wikipedia:

(...) As andorinhas são um grupo de aves passeriformes da família Hirundinidae. A família destaca-se dos restantes pássaros pelas adaptações desenvolvidas para a alimentação aérea. As andorinhas caçam insectos no ar e para tal desenvolveram um corpo fusiforme e asas relativamente longas e pontiagudas. Medem cerca de 13 cm (comprimento) e podem viver cerca de 8 anos. (...) 

"As fêmeas fazem uma postura de 4 ou 5 ovos, que depois são incubados durante cerca de 23 dias. Passado o tempo da incubação, nascem os jovens, cuja alimentação é feita por ambos os progenitores. 

"Quando a temperatura baixa, as andorinhas juntam-se em bando e vão à procura de locais da Europa mais quentes, indo também para o norte de África. Depois, quando a temperatura volta a subir, por volta da primavera, regressam novamente. Constroem as suas casas perto do calor, em pequenos ninhos normalmente colados ao tecto." (...)

(...) "Originalmente, a andorinha-dos-beirais [ 'Delichon urbicum'] construía os seus ninhos em falésias e cavernas. Ainda são encontradas algumas colónias em falésias, com o ninho construído sob uma rocha saliente, mas atualmente esta espécie usa sobretudo estruturas feitas pelo homem, como edifícios e pontes, de preferência junto à água. 

"Ao contrário da andorinha-das-chaminés, usa a parte exterior de edifícios abandonados em vez do interior de estábulos ou celeiros. Os ninhos são construídos na junção da parede com o beiral, ficando assim fortalecidos pela ligação a dois planos distintos.

"Regressa à Europa para nidificar entre abril e maio, e a construção dos ninhos ocorre entre o fim de março (no norte de África) e o meio de junho (na Lapónia). O ninho tem a forma de uma taça fechada com uma abertura estreita no topo e é feito com pedaços de lama colados com saliva, e forrado com palha, ervas, penas ou outros materiais macios. A sua construção demora até 10 dias e é levada a cabo tanto pelo pela fêmeacomo pelo macho.

"Frequentemente, o pardal-doméstico ('Passer domesticus') ocupa o ninho durante a sua construção, forçando a andorinha-dos-beirais a construir um novo. A abertura no topo do ninho completo é tão pequena que os pardais não conseguem ocupá-lo uma vez construído.(...)
 
"A andorinha-dos-beirais é mais gregária do que a andorinha-das-chaminés 
['Hirundo rustica'] estando habituada a viver e a migrar em bando, e tende a nidificar em colónias numerosas. Os ninhos podem inclusive ser construídos em contacto uns com os outros. Tipicamente, estas colónias têm menos de dez ninhos, mas há registos de colónias com milhares de ninhos. Cada postura possui habitualmente quatro ou cinco ovos brancos, com um tamanho médio de 1,9 x 1,33 cm e um peso médio de 1,7 g. A incubação dura geralmente de 14 a 16 dias, e é feita essencialmente pela fêmea. As crias recém-eclodidas são altriciais e necessitam de 22 a 32 dias, dependendo das condições atmosféricas, para abandonar o ninho" (...) (Fonte: Wikipédia)



4. Nenhuma assistente de IA (ChatGPT, Perplexity, Gemini...) conseguiu dizer-me  com segurança de que espécie era o ninho mostrado nas imagens e descrito na perguntei que lhes submeti.


Hirundo rustica
Cecropis daurica
Uma diz que é característico da espécie conhecida como andorinha-das-chaminés (Hirundo rustica), mas o formato e localização sugerem que pode pertencer à andorinha-dáurica (Cecropis daurica), também chamada de andorinha-dos-beirais ou andorinha-dos-arcos.​



  • Andorinha-das-chaminés (Hirundo rustica): costuma nidificar em locais abrigados como estábulos, garagens ou beirais, construindo ninhos de barro semicirculares abertos, normalmente apoiados numa saliência.​
  • Andorinha-dáurica (Cecropis daurica): nidifica frequentemente em estruturas humanas, como alpendres, mas o seu ninho tem forma de cabaça ou garrafa, com um longo túnel de entrada, como se observa nas imagens acima; utiliza barro misturado com saliva e prefere locais protegidos, frequentemente em habitações rurais pouco usadas (como é o caso do alpendre, na Quinat de Candoz).​

Reconstrução anual

Ambas as espécies costumam reconstruir e reutilizar os ninhos de barro todos os anos, especialmente se estes se mantêm estruturais e protegidos das intempéries e predadores.​ Mais recentemente verifiquei que o ninho de Quinta de Candoz  tinha sido "vandalizado" por um "ocupa", mais provavelmente uma "boeira"  ou ""lavandisca".

Por causa dos "ocupas", a andorinha tem de ter a liberddade criativa do arquiteto e o rigor milimétrico do engenheiro: o diâmetro do túnel de entrada do ninho tem de ser ajustado ao seu  corpo fusiforme... Elas entram no ninho em voo!... Mais nenhuma outra ave pode lá entrar, a não ser quando há ruína da construção devido, em geral, às intempéries. 

Conclusão

Com base na estrutura do ninho nas imagens, na localização (alpendre de casa não habitada) e no facto de ser reconstruído anualmente há quase 30 anos, trata-se muito provavelmente de um ninho de andorinha-dáurica (Cecropis daurica), espécie que tem vindo a expandir-se em Portugal nas últimas décadas, diferenciando-se da andorinha-das-chaminés pelo formato distintivo do ninho com túnel de entrada.


Pesquisa: LG + assistente de IA / ChatGPT, ​Perplexity, Gemini

Condensação, revisão / fixação de texto, negritos: LG


5. Excertos de poemas de Luís Graça, com referência às andorinhas de Candoz

(...) As andorinhas que por cá ficaram,
há mais de uma década,
parecem ser felizes.
São inteligentes, as andorinhas,
e fazem análises de custo-benefício,
como qualquer economista.
Passam todo o santo dia a caçar insetos
num raio de 500 metros à volta do ninho
que fizeram no alpendre de uma das casas
em redor do fio da lâmpada exterior.
É uma insólita construção,
herdada de geração em geração
e todos os anos retocada ou reconstruída.
Eu acho que já não voltam para o norte de África,
ficam por cá,
as andorinhas de Candoz.
Se calhar fogem de Alá,
do alvoroço do povo
e dos tiros das Kalash.
Afinal, a felicidade está onde nós a pomos,
mas nós nunca a pomos onde nós estamos.

Luís Graça (2014)


(...) Circadiana, a vida!...
E, se Deus quiser, a primavera há de chegar,
e com ela as cerejeiras em flor,
e os melros que vão pôr os seus ovos
nos arbustos de alecrim no caminho para a leira cimeira,
e as andorinhas que irão reconstruir o seu ninho
na varanda da casa de cima.

E trazem histórias de coragem,
as tuas andorinhas de torna-viagem,
vêm do norte de África, quiçá da Guiné,
e não precisam de passaporte,
nem de GPS, nem de código postal, nem de carimbo das alfândegas.
São heroínas, sobreviveram a mais um ano,
fogem da guerra, e das alterações climáticas,
sem o aval nem a ajuda do alto comissário para os refugiados,
ou a benção dos imãs
e dos demais representantes de Deus na terra.(...)

sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Guiné 61/74 - P27367: Manuscrito(s) (Luís Graça) (276): "A Rua Suspensa dos Olhos", de Ábio de Lápara, pseudónimo literário de José António Bóia Paradela (1937-2023), ilhavense, urbanista, arquiteto e escritor - Parte I: "Rua das Manhãs, a morte levou tudo o que eu amava"




Capa do livro "A Rua Suspensa dos Olhos" de Ábio de Lápara (edição de autor,  José A. Paradela, Aveiro, 2015, 164 pp.) (*)...

Ábio de Lápara é o pseudónimo literário de José António Bóia  Paradela.  Imagens: arquivo de LG + Matilde Henriques 


Fotos (e legendas): © Luís Graça (2025). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




1. Zé António, meu mano:  hoje seria dia dos teus anos.  30 de outuro de 2025. Aliás, é dia dos teus anos. Oitenta e oito.  Um número redondo, uma capicua.  Em boa verdade, não morreste.  Deixaste apenas de aparecer, lá na nossa casa, como nos dias de cozido à portuguesa, feito pela "chef" Alice. Como tu adoravas o caldinho do cozido, a fumegar, já ao fim da tarde dos nossos sábados de eternidade,  com o saborzinho e o cheirinho da hortelã!

Foste-te embora, não encerraste a tua conta do Facebook. E a PAL -Planeamento e Arquitetura Lda, continua de porta aberta. O teu gabinete, a tua torre que não era de marfim. Eras um homem, cidadão, português, ilhavense, escritor, urbanista e arquiteto, profundamente ligado à terra (e ao mar).  Nunca foste ilha, mas arquipélago. Todos os que te ama(va)m continuam a "falar" contigo. Na esperança de que tu nos oiças. Falamos de ti entre nós. Que é também a nossa maneira de "falar" contigo. 

Ainda hoje, ao fim da tarde (os dias agora são mais curtos com o raio da hora de inverno), estivemos, eu, a Alice, a tua Matilde e o teu Jorge, a matar a nossa saudade de ti, à volta de um pastel de nata e de uma bica. Só faltou o "almirante", que anda lá pelo Mar do Norte, no seu porta-contentores, com esta invernia. Virá cá pelo Natal. Para ver a tua neta, que está cada vez mais linda. Ah!, vais ter outra neta (ou neto). Parabéns!... Eu também já tenho duas netas, é bom, dão-nos a ilusão de eternidade.

E, depois, continuas a ter, aqui, um lugar sob o poilão da Tabanca Grande. Foste marinheiro. Nunca foste à Guiné. Mas fizeste a tua tropa, a tua guerra. Foste à Terra Nova. Também foste "periquito", aliás "verde". Aos 17 anos, no teu dóri, nos bancos de pesca da Terra Nova. Na frota branca, a bacalhoeira (*). E também estiveste na marinha de guerra. Darias sempre um "mau infante" como eu.

Hoje ergo a taça, bebendo simbolicamente à tua memória, que continua viva, presente e quente entre os teus (família e amigos).

Lembrei-me dos teus livros. E deu-me uma saudade danada de reler a tua Rua Suspensa dos Olhos (**), que foi a rua da tua infância, em Alqueidão, Ílhavo. Nunca lá fui, a Alqueidão, que pena, tendo-te a ti como cicerone.  Perdi essa oportunidade única. Mas, pelo que me dizias, a tua rua já não existia. As ruas da nossa infància, quando crescemos ou mudamos de rua, de cidade, de país, deixam de existir.  As ruas da nossa infància morrem connosco  se não passarmos para o papel ou para o computador as nossas memórias. Ainda bem que o fizeste. São as tuas geografias emocionais. Mas também não  precisei de ir lá, à tua antiga rua da infância, bastou-me ler o teu livro. 

Todos temos, tivemos,  uma rua da  infância. Imagino que o teu Alqueidão era o da gente humilde, que nasceu com o ADN do mar por brasão. Quando eu te visitava, em agosto, a caminho de Candoz,  era na burguesa Costa Nova. Conheço mal a tua Ílhavo. A última vez que lá estive foi no dia da tua despedida da Terra da Alegria.

O jornalista Viriato Teles, também ele ilhavense, que fez em 2015 a apresentação do teu livro, na terra de ambos, sessão que eu perdi por qualquer razão de agenda, escreveu então o seguinte, sob o título "Os olhos da nossa infància" (excertos reproduzidos aqui com a devida vénia):

(...) Eu não conheci 'A Rua Suspensa dos Olhos',  tal e qual ela como nos é contada neste livro. Nasci uns anitos depois do Zé António, e do Ábio, e por isso já não vi o empedrado nem os poiais em frente das casas de Alqueidão. 

Mas o lugar onde brincou o Zé António é o mesmo onde, anos depois, eu passei muitos dos meus dias — e sobretudo das minhas noites — da adolescência. Pela simples razão de que era em Alqueidão que moravam alguns dos meus melhores amigos, e isso fazia de mim um passeante regular da rua.

Além disso, Alqueidão desembocava no esteiro da Malhada, que nessa altura era o melhor lugar do mundo (...)

(...) E muito daquilo que se passava na Rua Suspensa dos Olhos,  do Ábio de Lápara, passava-se de modo semelhante na Rua da Capela da minha infância. Além de que — e essa é seguramente outra semelhança que existe entre nós — no meu tempo como no dele, a infância vivia-se muito na rua e a partir da rua. Paradoxalmente, nessa época em que a liberdade era, em Portugal, um anseio longínquo e difícil de concretizar, a vida dos miúdos como nós era muito mais livre do que foi a dos nossos filhos.

A rua era o nosso pátio, a nossa casa, o nosso mundo. E a nossa escola, também. (...)

(...) Naqueles tempos em que as crianças vinham da Feira dos Treze pela mão da Dona Alicinha (que "não tinha filhos pois os dava a toda a gente" e que nos ajudou a ambos a vir ao mundo), Ílhavo era muito diferente do que é hoje. 

Nas nossas infâncias, Ílhavo era uma vila, ainda essencialmente ligada ao mar e à pesca longínqua da Terra Nova, e isso modelou inevitavelmente a nossa forma de estar e de sentir: aquele modo de ser meio agreste que nos caracteriza e que se revela nos jeitos e nos trejeitos, no linguajar, na maneira como falamos uns com os outros — e uns dos outros, também.

Não me custa dar razão a quem nos define como sendo uma gente pouco dada a cortesias: afinal, a 'alma ilhavense' moldou-se nos mares do fim do mundo, em meses de solidão e frio glacial, onde pairava sempre o sopro da morte, à espreita em cada vaga. Isto no que aos homens diz respeito. Quanto às mulheres, forçadas a assumir o comando da vida em terra, desenvolveram um forte sentido matriarcal — que se mantém, para o bem e para o mal. (...)


Recordo aqui o que te escrevi e disse, na na minha oração fúnebre, em 23 de fevereiro de 2023, na igreja matriz de Ílhavo:

(...) Ah!, quanto humanidade, ternura, inocência, traquinice, generosidade e poesia havia na tua rua suspensa dos olhos...

Ilhéu, lhavense, filho da terra e do mar, evocas e descreves com enorme ternura e talento a rua onde nasceste e cresceste. E das figuras humanas que marcaram a tua memória e o teu imaginário, não posso deixar de citar o teu pai, marinheiro aos 12 anos, figura de referência na tua vida, sempre ausente e sempre presente, e que gostava de dizer: “O mundo todo não vale o meu lar”…

Tendo tu sido criado no matriarcado, cercado de mulheres e dos seus fantasmas e das suas recordações, fizeste, no entanto, da figura do teu pai a mais bela evocação na tua narrativa ilhavense: “Estávamos todos em casa, isto é, ele não estava no mar, que é como quem diz, sabe-se lá onde”… (...)


LG | Alfragide, 30 de outubro de 2025, 23.00





Excertos de "A Rua Suspensa dos Olhos" - Parte I: "Rua das Manhãs, a morte levou tudo o que eu amava"

por Ábio de Lápara / José António Paradela 
(1937-2023)



Rua das Manhãs
A morte sabia
quem ali morava...
Rua das Manhãs
a morte levou
tudo o que eu amava...


Raul de Carvalho (1920-1984)


(...) Eu, criatura inventada à imagem e semelhança de Deus, fui fabricado em Campo de Ourique. Era o que dizia a minha mãe, casada com um marinheiro nos idos de 35.

Como cada um fica indelevelmente marcado pelo tempo e pelo espaço onde foi concebido, dizem, tive de aceitar logo,  nesse transe, o maldito signo do Escorpião.

Do mesmo modo, assente o sítio da batalha cujo nome, apesar da discórdia, ainda hoje é considerado o locus onde a divindade assinalou o desígnio nacional, o meu brasão só poderia ser o das cinco chagas, para os mais religiosos, ou dos cinco castelos mouros para os mais dados às coisas da guerra.

Isso acarretou alguns amargos de boca no meio familiar, onde um avô republicano casou em primeiras núpcias com uma prima católica, que passou a ser minha avó. E assim tive de herdar, ainda antes de nascer, o nome dele e o carinho extremoso dela.

Um pouco mais tarde, fizeram-me constar que fui comprado na Feira dos Treze, ali na Vista Alegre, sempre perseguido por simbolismos estranhos, e levado para a rua de Alqueidão pela mão de uma Alice que vivia do outro lado do espelho. Não tinha filhos pois que os dava a toda a gente, e ficou conhecida pelo carinhoso diminutivo de Alicinha como nas estórias de duendes e feiticeiras, já que as suas mãos exsudavam milagres em cada parto.

Terá sido este o meu caso, pois as primeiras recordações de que disponho, dão comigo a viver já nessa rua fantástica, tal como vou descrever.  (...)

***

(...) A minha casa tinha porta para ela, que nesse tempo era empedrada com calhau rolado de média dimensão, digamos... do tamanho de padas de Vale d' Ílhavo, que geravam um ruído forte sob os rodados metálicos das carroças de bois e torciam os pés às mulheres que usavam tamancos.

Para ser breve, direi que tirando as casas, de tudo o que hoje lá está, nada existia. Pois é! Pensem no que quiserem... Nada disso existia! Em contrapartida, existiam longos poiais na frente das casas que serviam de bancos onde se sentava a vasta comunidade lá da rua.

Ali, as crianças brincavam, as mulheres ratavam nos casacos de quem passava e os velhos enrolavam cigarros de tabaco desfiado que acendiam nas beatas uns dos outros.

E o que se passava durante o dia, se repetia à noite quando o tempo estava ameno, sob a luz soturna de uma lâmpada eléctrica, adorada pelos morcegos, existente num poste metálico junto à loja do ti Tomé Pascoal !

Aí vivi durante os anos da minha tenra infância e alguns da juventude.

Digamos que era uma rua divertida onde não se vislumbrava nenhuma crise de natalidade, talvez porque a Feira dos Treze ficasse a curta distância e as crianças fossem baratas, ou porque a fome tocasse igualmente a todos quer fossem poucos quer fossem muitos e por isso, nascer era relativamente indiferente.

A verdade é que não faltavam amigos para brincar nem escaramuças entre as mães para nos divertirmos. Os pais, - semente intermitente - como habitualmente, estavam ausentes no mar, muito longe, bem perto das latitudes polares. (...)

***

(...) Os Cagulas eram quatro ou cinco filhos de um cabo do exército, homem aprumado, de frágil figura e aguçado bigode, envergando farda de caqui e capote de burel cinzento. Um justo bivaque, ligeiramente descaído sobre o lado esquerdo, deixava entrever uma madeixa negra encaracolada.

Recordo-o entrando no beco, a cumprimentar os vizinhos com um gesto militar, elevando a mão direita até à orelha do mesmo lado, sem lhes dirigir muitas palavras.

Um militar de pequena patente não ganhava para ter uma família tão grande! Assim, para matar a fome aos filhos, distribuía-lhes uma tarefa ao longo dos dias da semana: dois a dois, cajado e lata ferrugenta na mão, palmilhavam a pé os cinco quilómetros que separavam a sua casa do quartel, em Aveiro, de onde regressavam com ela enfiada no cajado, plena de sopa de feijão com massa e alguns gorgulhos flutuantes.

Acontece que por ironia do meu fraco apetite, adorava aquela sopa! Assim a minha mãe via-se obrigada a promover trocas para satisfazer o meu desejo que, no fim de contas, mais não era do que o prazer de comer na companhia daqueles amigos cujas estórias e aventuras me fascinavam.

Como a sopa já chegava fria, por vezes o prodígio consistia em fazer lume na sua lareira rasa, numa cozinha onde nem sempre existiam fósforos. Então era necessário pedir uma brasa a algum vizinho e, a partir dela, soprar até pegar o fogo à lenha ainda verde, colhida no mato! Lentamente, o lume ia crescendo sob a lata pendurada de um gancho de ferro na chaminé, e o cheiro que exalava ia aumentando a saliva nas nossas bocas: um manjar!

Na penumbra daquele espaço, as estórias tinham já uma aura de mistério ou de terror, associado à luz bruxuleante e ao fumo do pinho verde e cheiroso. E lá vinham os latidos nocturnos dos cães, supostos lobisomens, e as gigantescas gibóias de fatal abraço, vencidas por um pau afiado em ambas as extremidades, seguro pela mão forte do João Cagula, que depois me explicava como ganhava dinheiro com a gordura extraída, para fabricar o unguento que se vendia na Feira dos Treze! A banha de cobra, que curava sarnas, pruridos, eczemas e muitas coisas mais! (...)

***

(... ) Por esse tempo, ao fundo da rua, residiu intermitente, uma das mais divertidas figuras que a Rua Suspensa dos Olhos teve durante anos, inflamando a imaginação dos olhos acabados de nascer: o Ramon.

Loiro, ultra-penteado com azeite, garboso de faena acabada, montava um burro do seu clã, rua acima , desde o pequeno terreiro junto à fonte dos Bastos - a que os folcloristas da outra rua chamaram em tempos Fonte dos Amores, sem que lá tenham amado - até ao Largo da Senhora, que na outra rua tinha um nome já apagado, na tabuleta oval, de esmalte antigo.

Aí, os olhos vivos, sedentos de estranheza, o inquiriam sobre a vida dos ciganos e se deliciavam com o prodígio que era poder ser loiro e simultaneamente cigano, viver numa tenda de pano sujo e ser dono de um transporte individual de quatro patas.

E, para além do mais, ser feliz nas amizades que se prolongavam no tempo - embora interrompidas pela transumância - e nos permitiam cavalgadas heróicas no lombo despido daquele burro!

Porque na outra rua, os ciganos só podiam ser morenos, vendiam cestos, liam a sina nas mãos das solteironas e, por sua causa, era necessário montar vigilância nos quintais... Se isto não é um prodígio, digam-me lá onde é que eles existem! (...)

***

(...) Muitos donos de olhos atrás citados são personagens de estórias pessoais coladas na rua suspensa, evitando a sua queda. Mas o mais importante para o equilíbrio interno de todos eles, era o grupo que permitia aferir a certeza dos seus juízos: o grupo dos loucos daquela rua.

Ficam estes para outra ocasião, porque levam algum tempo a exumar. Os seus nomes são eternos porque estão sentados á direita do Altíssimo: Chiquinho Maneta,  o Ester, Chico Rádio, António Espiga...

Contudo, lembrei-me agora de outro personagem importante lá da rua, figura indesculpavelmente esquecida.

Era um homem de estatura muito pequena, ligeiramente encurvado e com uma perna mais curta que lhe acentuava aquele defeito quando se deslocava. Andava sempre com uma caixa de madeira suspensa do ombro por uma correia de couro, onde transportava os instrumentos do seu ofício.

Chamavam-lhe Manéuzinho Fazenda, e percorria a rua de uma ponta à outra cortando cabelos e escanhoando faces barbudas.

Barbeiro ambulante, utilizava os restantes atafais dos clientes para proceder à depilatória função.

Tive a pouca sorte de o ter como barbeiro nos primeiros tempos da vida. Era nosso vizinho e uma criatura muito afável, mas cheirava a aguardente e a tabaco de séculos anteriores.

As ferramentas de que dispunha há muito que deviam ter sido reformadas! A máquina de cortar tinha falta de dentes e arrepanhava-me o cabelo, já de si finíssimo como seda, cujo eriçado destruía os pentes à minha mãe e o meu couro cabeludo no esforço do puxão.

Mas o pior de tudo era a navalha de barbear para rapar o pelo sobrante da nuca! Os meus lancinantes gritos não paravam, apesar das constantes tentativas que ele fazia para afiar e assentar o fio da lâmina maldita!

E culminavam quando ele perguntava à minha mãe:

 
  Oh Rosinha, tens álcool para lhe desinfectar o pescoço?

Durante anos pedi a Deus, nas minhas rezas nocturnas, um milagre que me libertasse dele. Sendo Deus, já nesse tempo, bastante velho e surdo, esse prodígio só aconteceu mais tarde, quando o meu pai me encomendou ao senhor Leopoldo, barbeiro com ferramentas de outra afinação, barbearia selecta, bem no coração da vila.

Colocado um pequeno assento sobre a cadeira dos adultos, ali me sentava eu, embrulhado numa enorme toalha branca apertada no pescoço, frente ao espelho que me ia devolvendo as imagens de capitães já barbeados, que prolongavam as conversas atrás da minha cadeira, discutindo assuntos de barcos e mares encapelados, quando não dizendo mal do perfume ou do cheiro a mofo da toalha com que Leopoldo lhes secara a cara... E esse gozo prolongava-se pela manhã e pela tarde, à medida que saíam uns e entravam outros. (..:)

Fonte: Excertos do manuscrito , em pdf, de "A Rua Suspensa dos Olhos",  de Ábio de Lápara, que ajudei a rever em 2015, antes da execução gráfica. Recorri de momento ao manuscrito por não aqui à mão um exemplar do livro em papel.

(Revisão / fixação de texto, negritos: LG)

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Notas do editor LG:

(*) Vd. postes de;


30 de dezembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15554: Notas de leitura (792): "A Rua Suspensa dos Olhos", de Ábio de Lápara (pseudónimo literário de José A. Paradela): reprodução do capítulo 7 com a descrição da viagem de seis meses, aos 17 anos, em 1955, aos bancos de pesca do bacalhau: III (e última) parte

(**) Último poste da série  > 11 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27307: Manuscrito(s) (Luís Graça) (275): 50 pequenas coisas que mudaram em 50 anos no Portugal sacro-profano que eram as terras de Candoz, no Marco de Canveses, em Entre-Douro-e-Minho