Mas, afinal, quem era o homem de que tanto se falava, no círculo dos amigos e conhecidos da Nucha ?... O "mau da fita", a "besta quadrada", o "energúmeno", para usar alguns dos epítetos mais suaves do léxico nortenho.
Bom, vieste a conhecê-lo melhor mais tarde. Não no Porto, mas em Lisboa. Por ocasião do lançamento do álbum fotográfico de um amigo comum, fotojornalista, que to apresentou:
− O eng. Vaz C... (vamos omitir o apelido por razões obvias.)
− Por acaso, já nos tínhamos visto antes...
Não vais dizer que ficaram amigos, seria uma fanfarronice da tua parte. Afinal não costumavas fazer amigos logo ao primeiro aperto de mão... E sobretudo seria uma "traição", uma quebra de solidariedade para com a tua amiga Nucha que tu conhecias há mais de vinte anos, e que era uma boa e leal amiga do Norte.
Mas tiveste depois, mais tarde, uma conversa franca, com o "engenheiro"... Ele prometeu que, "um dia", iria contar-te a sua versão dos factos, tanto mais que se sentia "injustiçado pelo tribunal, e crucificado na praça pública"... De resto, ele sabia tratar-se de uma amiga tua de longa data.
O tribunal condenara-o a a 30 dias de prisão, com pena suspensa. Teve que pagar ainda uma indemnização, por danos corporais e morais, à Nucha.
Deves ter-lhe inspirado confiança. Por outro lado, tu tinhas a vantagem de estares em Lisboa, de não seres do Porto nem viveres no Porto. E muito menos na Foz.
O Vaz C... era um engenheiro químico. Fizera toda a vida no Porto mas tinha as suas raízes no Alto Minho (curiosamente, tal como a Nucha).
− Corrijo: fui engenheiro químico, já não sou. É uma parte do meu passado que ainda hoje me é doloroso evocar... Mas não posso riscá-la do meu currículo, seria fazer batota comigo e com os outros que me conhecem... Afinal, sou filho, neto e bisneto de engenheiros... O meu bisavô, esse, era engenheiro militar e ainda chegou a conhecer o Fontes Pereira de Melo. Tenho orgulho nas minhas raízes.
Poucos o conheciam na vida da Nucha. Ela, de resto, nunca o havia apresentado à Tertúlia dos Caminheiros do Parque da Cidade. Nem muito menos aos seus colegas, professores da escola secundária onde ela dava aulas de biologia. (E onde, de resto, fez lá toda a sua carreira e desenvolveu projetos na área da promoção da saúde escolar; foi daí que tu a conheceste.)
Também eram muito raros os amigos comuns. O Vaz C... não te explicou como é que a Nucha aparecera na vida dele, há cerca de uma década atrás. Mas é capaz de ter sido numa viagem do Pinto Lopes, a quem chamavam, no Porto, a "agência do amor" ou "agência cor de rosa"...
Nem ele nem ela faziam grande vida social. Eram pessoas discretas, "cada um na sua casa, como convinha". A dele, na Foz, a dela na rua da Alegria. Formavam um casal atípico. "Andavam juntos" há cerca de oito anos, com interregnos, e com completa "separação de bens", a começar pelas contas bancárias... Até o IRS faziam em separado. Ela como "solteira" (nunca se tinha casado), e ele como "divorciado", pai de 2 filhos e avô de 3 netos... Filhos e netos que, é curioso, ela nunca quis conhecer.
Preferiam dizer que "andavam juntos" do que "viviam juntos". A Nucha ficava muitas vezes na casa do Vaz C... Por conveniência, comodidade, preguiça, inércia, etc. "Por ser mais espaçosa e confortável, enfim, e sobretudo, por estar junto ao mar"... Mas ela não gostava do vocábulo "namorados". Nem nunca terá estado atenta a eventuais "sinais de crises de ciúmes"... Consideravam-se pessoas adultas, cultas, racionais, livres...
− Éramos amigos que às vezes dormíamos na mesma cama − confidenciou-te ela.
Ele também raramente a apresentava como "namorada", e apenas aos vizinhos e conhecidos, mais próximos. Não era nada "exuberante" no que dizia respeito à sua vida..."amorosa". Era um "cavalheiro", em suma.
Todas as despesas de manutenção da casa (e não eram pequenas, a começar pela segurança e condomínio) eram suportadas por ele. A Nucha contribuía "apenas com parte da alimentação". Nas despesas do dia a dia, ela gostava das "contas à moda do Porto". Os pequenos luxos, como restaurantes caros, uma vez por outro, em "dias de festa", era ele que fazia questão de pagar.
De resto, ele era também "um razoável cozinheiro, um bom, garfo e um melhor copo", segundo o autoelogio que ele próprio fez, na conversa que teve contigo.
A Nucha confirmou-te que "ele bebia bem, e às vezes demais". Tinha uma excelente garrafeira, de fazer inveja aos amigos e vizinhos. Adorava o "Alvarinho" da sua terra...
Não, não era um desses "antigos ricos da Foz", nem sequer se considerava "rico". Vivia com relativo desafogo, graças ao "pé de meia" que juntara no tempo das vacas gordas, e ao longo de uma vida de trabalho.
A casa na Foz ("um casarão", integrada agora num condomínio fechado) já vinha de família, mas fora remodelada. O pai tinha sido um dos pioneiros da construção das barragens no Douro. Era também engenheiro (e empresário). E dera-se bem com as obras públicas do Estado Novo.
− Pela minha parte, investi na bolsa, ganhei dinheiro, soube aplicá-lo, poupei-o... Fui formiguinha, hoje posso dar-me ao luxo de ser cigarra...A Nucha só conheceu a cigarra, não a formiga...
Foi ele próprio que te deu alguns detalhes do seu currículo profissional. Tinha sido, durante mais de três décadas, um alto quadro de um conhecido grupo empresarial do Norte, ligado à indústria transformadora.
Tivera uma "fulgurante e brilhante carreira", até à morte do fundador do grupo. (Nas fábricas do grupo, antes do 25 de Abril, o fundador era tratado por toda a gente, desde os operários às chefias, como o "Senhor engenheiro", só mais tarde é que passou a ser o "Velho" ou o "Patrão Velho".)
− Fui eu que sugeri (e preparei o dossiê de) a internacionalização do grupo e é por isso que alguns não me perdoam, a começar pelos herdeiros. Deviam-me estar gratos. Se o grupo não se abre (ao capital estrangeiro), os filhos e os netos estariam hoje na miséria. A empresa familiar não teria sobrevivido aos choques políticos, económicos e tecnológicos dos últimos 30 ou 40 anos... Hoje está sólida e tem à frente uma equipa de gestores altamente profissional.
E prosseguiu o teu interlocutor (que parecia ter necessidade de falar do seu passado):
− Tudo corria aparentemente bem até ao dia em que lhe foi diagnosticado (ao fundador e líder do grupo,) um tumor. Fatal, no cérebro. Ainda foi operado nos EUA, mas em vão.
Com um prognóstico tão reservado, toda a gente entrou em pânico. Ele era muito centralizador, para não dizer autocrata. Gostava sempre de ter a última (e decisiva) palavra, à boa maneira antiga do "eu quero, posso e mando".
- Este período poderia ter sido fatal para o futuro do grupo mas eu fui-lhe sempre leal e dedicado até à sua morte. De resto, eu não tinha funções executivas.
Convém acrescentar que o Vaz C... já antes se tinha começado a incompatibilizar com o filho mais velho do patrão. Este regressara à fábrica, vindo da América, com o canudo de um "Master", um "MBA", debaixo do braço, preparando-se para assumir, "com toda a legitimidade", o lugar que um dia, pela "ordem natural das coisas", o pai deveria deixar ... ao "morgado".
Na realidade, não seria assim tão pacífica a sucessão... E confessou-te, o Vaz C..., o que sentiu com a morte do "Velho":
− No dia seguinte, tive a sensação (sufocante) que aquela casa também já não era a minha...
A correlação de forças mudara com a modificação da estrutura acionista: entraram para o Conselho de Administração os representantes dos herdeiros e dos novos acionistas, nacionais e estrangeiros.
O eng Vaz C..., assessor para a área do desenvolvimento estratégico, braço direito e protegido do "Patrão Velho", deixou de ser convocado para as reuniões do Conselho de Administração onde tinha lugar "praticamente vitalício", embora com funções consultivas.
Sobretudo os herdeiros não gostavam dele, chamavam-lhe o "Rasputine". Acusavam-no de ter uma influência demasiado grande (e sobretudo nada benéfica) sobre o "Velho".
− Substituiram o rei (que morreu) e afastaram o seu "leal conselheiro"... A história repete-se... Vi este filme noutras empresas aqui do Norte.
Os novos patrões não o despediram logo, até por razões legais e por respeito a uma cláusula testamentária do "Velho"... Por "piedade" (sic), deixaram-no só, num gabinete vazio, com uma secretária, uma cadeira e um PC... Alguém lhe sugeriu que escrevesse a "história" da empresa e as suas memórias de trinta anos de colaboração com o "Patrão Velho"...
− Recusei-me, disse-lhes que não era historiador, era engenheiro...
O seu conhecimento e relacionamento com o fundador do grupo já vinha de longa data, ainda antes do 25 de Abril, quando, jovem engenheiro químico (e um dos melhores alunos do seu curso) fizera um estágio prolongado numa das fábricas da empresa, na Maia.
O "Velho" também vinha da "química" (ou da "alquimia", como ele gostava de dizer, na brincadeira entre "colegas"), mas era de outra geração...
Apreciava, no jovem Vaz C..., além da "competência técnica", a "visão estratégica" em relação ao futuro do setor e dos negócios, a par da "arte de negociar" e de sobretudo de "resolver problemas práticos sem grandes equações".
− Sem falsa modéstia, eu fui um dos obreiros da "via real" do sucesso daquela empresa. E, por tabela, do grupo que veio depois a criar-se. Sobrevivemos aos desvairados anos 70, à crise do petróleo de 1973, ao 25 de Abril, às greves, saneamentos e ocupações selvagens, ao PREC, à deriva totalitária, às nacionalizações, à intervenção do FMI, , etc. Mas, depois, vieram os "trinta gloriosos", de princípios de 80 até à primeira década do séc. XXI"...
Não foram trinta, emendou ele:
− Se não foram trinta, foram vinte e tal anos a trabalhar bem, sem horários, às vezes sem férias, a criar riqueza, postos de trabalho, a distribuir dividendos, a abrir novas fábricas...
Católico, com "sensibilidade social", o "Velho" não perdeu a oportunidade de contratar o jovem e brilhante Vaz C...para a sua equipa de gestores e assessores, numa época em que, nas empresas, ainda se valorizava mais a "tarimba" do que os "canudos". Por outro o conhecimento pessoal e as famosas "cartas de recomendação" também eram como o código postal, ou seja, meio caminho andado para se arranjar um bom emprego numa boa empresa...
Mais do que simples colaborador, o eng Vaz C... tornou-se um amigo e confidente do "Velho", e um homem, afinal, poderoso.
Resumindo:
− Eu era um "colarinho dourado" muitíssimo bem pago, comecei a ser vítima de "bullying", como se diz agora. Arrumaram-me para um canto, como um trapo velho... A maior humilhação da minha vida... Devia ter lutado mais, mas faltaram-me as forças... O braço de ferro acabou por quebrar pelo elo mais fraco da cadeia. Estive de baixa psiquiátrica durante três anos, e depois a Segurança Social mandou-me para o esquema da invalidez... Hoje estou reformado, isto é, arrumado.
E arrematou:
− A única coisa boa que me aconteceu nestes últimos oito anos foi ter conhecido a Nucha. Infelizmente acabei de a perder, pela coisa mais estúpida que fiz na minha vida, que foi bater numa mulher. Perdi completamente a cabeça, meu Deus!
Fez-se um silêncio prolongado, embaraçoso. O teu interlocutor ia sendo traído pela emoção. Recompõs-se, puxou de um lenço, assoou-se e prosseguiu:
− Há coisas que fazemos que não têm volta a dar: a rajada de G3 que se dispara à queima-roupa contra um pobre diabo de um negro que tenta iludir a vigilância dos seus captores, mesmo de mãos algemadas; a pedra que se lança no pátio da escola, e que vai partir a cabeça de um inocente; a gadanha da morte que varre a autoestrada e que ceifa a vida daqueles que te deram o ser; enfim, uma mão, pesada, que se abate sobre a cara da mãe dos teus filhos...
Depreendeste, ou deduziste, que eram fantasmas do seu passado: a guerra colonial, o acidente mortal com os seus pais, o divórcio litigioso do seu primeiro (e único) casamento...
Ainda estavas à espera que ele te contasse o que se passara exatamente "naquela malfadada noite" em que a Nucha regressara de Lisboa, de um congresso internacional... Mas ele, de repente, entrou num mutismo extremamente embaraçoso...
Respeitaste o seu silêncio, levantaste-te, despediste-te dele... e nunca mais o voltaste a encontrar.
Só mais tarde é que conseguiste saber mais pormenores, através da Nucha, sobre o que se havia passado nessa noite fatídica, para ambos, que marcou o fim de uma relação...
− Um relação que tinha tudo para ser tranquila e até feliz − assegurou-te o engenheiro, quase no fim da conversa (que foi mais um monólogo).
Eis, em resumo, alguns excertos de longas conversas que tiveste, entretanto, com a Nucha, permitindo completar o “puzzle” do retrato do seu ex-companheiro e da narrativa sobre a relação de ambos, que terminara num já longínquo mês de junho de 2017: