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quinta-feira, 17 de abril de 2025

Guiné 61/74 - P26695: Histórias de vida (59): O meu amigo A..., do Café Cenáculo, no Porto, e depois alferes da Cheret no QG/CCFAG (Virgílio Teixeira, ex-alf mil SAM, CCS/BCAÇ 1933, Nova Lamego e São Domingos, 1967/69)

 


Praia de Vila do Conde, 1963...


Vila do Conde, Av Brasil, 17/3/2020...


Fotos (e legendas): © Virgílio Teixeira (2025). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar de: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Histórias de vida > O  meu amigo A...,  do Café Cenáculo, no Porto, e depois alferes da Cheret no QG/CCFAG

por Virgílio Teixeira



O Café ainda existe, 64 anos depois de abrir. Abriu portas no dia 11 de novembro de 1961, já com início da guerra em Angola, e um mês e tal antes da invasão do Estado Português da Índia em 18 de dezembro de 61.

Esse amigo, 3 anos mais novo que eu, era de boas famílias, burguesia do Porto, mas ele próprio era um bocado desbocado, diferente de todos nós que ali frequentávamos o Café para estudar, tendo ainda hoje várias placas nas paredes dos diversos cursos universitários que por lá fizeram em parte a sua vida, tal como havia em muitos cafés do Porto, sem esquecer o Piolho, o Progresso, o Ceuta, o Avis, e tantos outros.

O A...  (omito o seu nome por razões óbvias) estudava engenharia no ISEP (Instituto Superior de Engenharia do Porto), e já tinha a sua panca acentuada antes de chegar à Guiné.

Era o alferes miliciano A... L... que pertencia à Cheret – para quem não sabe, como eu não sabia, estava ligado a encriptação e desencriptação de menagens – e tem muitas histórias de conseguir pôr as transmissões do IN à volta da cabeça, com sucessivos códigos novos
. (Cheret é o acrónimo de "Chefia do Serviço de Reconhecimento das Transmissões".)

Isto porque um "cheret" anterior a ele, mas furriel miliciano, teria sido capturado, e isso significava  que o mais provável era ter passado tudo para os seus carcereiros. 

Estes combatentes não usavam armas, nem faziam serviços, estavam ligados ao QG/CCFAG– Rep não sei quantos,  das transmissões ou informações. Nem lhes era permitido ir em colunas ou outros meios de transporte terrestes ou fluviais, só por avião. 

Esteve em Bissau, depois em Catió e finalmente em Piche, quando aquilo já estava muito feio, já não era nada como no meu tempo, em que ia a Piche em colunas à boleia, só para conhecer melhor o que era a terra que me viu de G3 e farda camuflada.

Este colega e amigo, como estamos numa de "piadas de caserna", tenho dele uma de partir a moca. 

Quando o encontrei em Bissau, talvez dezembro de 67, eu não sabia que ele tinha ido para lá, encontro-o na Pensão da Dona Berta, acompanhado com a sua jovem esposa.

Conta ele que, depois de mobilizado, nada disse em casa, nem nem ele nem a namorada, os pais eram austeros e gente de dinheiro. Ele namorava a rapariga, e antes de sair, casou sem conhecimento de nenhum dos familiares de ambas as partes, não souberem de nada, só quando lá estavam em Bissau deram notícias.

Então ele não esperou pelo seu embarque gratuito, comprou bilhetes da TAP e lá foram eles para Bissau, onde passaram a sua Lua de Mel na Pensão da Dona Berta.

Andou assim uns 15 dias e nunca se apresentou no QG,  como seria normal. Conta ele que passeava na marginal com a mulher, e encontrou um militar muito zangado e com muita raiva, e dizia ele, que estava há mais de um mês à espera do seu substituto, e ele não aparecia nem ninguém sabia dele

– Possivelmente já desertou e eu aqui à espera dele!

Logo se desfizeram as dúvidas quando o outro disse que estava à espera de um alferes da Cheret!... Disse o A...:

 – Sou eu!!!

O resto não sei, mas foi uma alegria para o outro, e o A... nunca contou o que lhe aconteceu no QG.

Quando chegou aos 15 meses arranjou forma de ir parar ao HM 241 em Bissau, para a Psiquiatria, lá para maio ou junho de 69. Encontrou lá o outro A..., o F... da Companhia de Transportes, que vivia lá com a mulher e filha E..., que eu levava comigo a passear de mota, quando ia a Bissau. Tinha 3 anos, tem hoje 60.

Nessa altura estaria eu também na mesma zona da Psiquiatria. Eles foram mais espertos e lá conseguiram vir embora de avião militar, com destino ao Hospital da Estrela.

Mas em vez disso, resolveram ir para o Algarve e desenfiaram-se uns dias. O A... F....  já tinha mandado a mulher e filha para cá, e o A... L... já tinha mandado a mulher para a metrópole, a mulher tinha vindo muito antes. Como não ficou em Bissau, penso eu que ela veio recambiada.

O F...,  depois de cá chegar,  uns anos depois volta a frequentar a FEP (Faculdade de Economia do Porto) e acaba o curso e passa a ser um quadro importante do antigo BPA, depois BCP. Saiu reformado muito cedo com a pensão completa.

Ainda fiz alguns negócios com ele – com o Banco – em contratos "leasing" quer para mim quer para clientes. Não sei porquê, separou-se da mulher, que lá em Bissau trabalhava na Farmácia. Ficou solteiro. A mulher que casou com um juiz de Ovar, veio a falecer há um ano atrás.

Somos amigos e temos o nosso blogue – uma conta no WhatsApp com 7 amigos.

Em Bissau o F.... morava numa casa junto com o cunhado, o P... G...,  da CC e com a mulher dele,  a Ac..., irmã da mulher do F... Parece que não correu muito bem esta convivência conjunta.

Agora as irmãs já morreram, com um mês de diferença. O P...G... também aparece nos almoços do grupo, junto com o cunhado F...

A E.... casou e tem dois filhos, netos do F..., e encontramo-nos apenas nos
funerais das mulheres. Ela quase não me conhece, não se lembra, era muito miúda, é arquiteta e apresentou-me o marido, que tem como virtude ser mais um fanático do FCPorto, e que convida o sogro para ir ver os jogos do Porto na TV. O F... não gosta de futebol, mas puxa pelo Porto. O genro agradece.

Estou a fugir da conversa do A...L... da Cheret. Passaram à peluda, os dois A... (têm o mesmo nome). Eu e eles somos amigos do Café Cenáculo, desde os anos de 60. (Fica na Rua Antero de Quental.)

O A...L... perdi-lhe um bocado o rasto pois entretanto venho para Vila do Conde trabalhar numa multinacional sueca, e depois casei e mudámos para cá, e assim se foram perdendo lentamente os nossos amigos mais importantes, "longe da vista, longe do coração", quer para mim bem como para a minha mulher que já não tem amigas da infância e adolescência.

O A... entretanto divorciou-se, teve um filho da primeira mulher, que já adulto acabou com a vida, foi um rude golpe. Foi o A... que me contou cá em Vila do Conde, numa garrafeira de um amigo dele, onde nos encontramos. Fiquei chocado.

Entretanto ele vai abrindo o cofre e começa a contar a sua vida, com 3 casamentos e 3 divórcios à mistura. Tem filhas das duas últimas mulheres mulheres,   encontrando-se a viver em diversos países da Europa.

Ele ainda mantém relações de amizade com todas as suas mulheres e os filhos, mesmo a mãe do falecido, a sua primeira mulher que eu conheci em Bissau.

Há uns anos, cinco talvez, juntou-se com outra mulher, 5 anos mais nova do que ele, que era divorciada de um tal Virgílio – não sou eu – que também passou pela Guiné.

Alugou aqui uma casa, a 500 metros da minha, e está a viver com a dita – chamamos- lhe H...L... Passado um ano mais ou menos casaram pelo civil. O A... tem uma quinta em Entre-os-Rios , que tem um caseiro e está à venda mais ninguém lhe pegou ainda.

A atual mulher vivia no Porto, na Rua de Camões,  e tem um filho, que é surdo-mudo, casado com outra mulher com a mesma deficiência. O filho, que não conheço, não gostou deste ajuntamento da mãe e durante uns anos não se viam. O A... não se importava, porque não sabia como falar com ele em linguagem gestual, e assim festas e natais era tudo separado. 

Depois do último Natal, onde o A... foi passar com um amigo em Viseu, a mulher recebeu o filho em casa deles. Agora já se conhecem e tiveram nos anos de algum deles.

Quando o A... se juntou com a H...L...  foram mudar para casa alugada para os lados de Monte dos Burgos, perto do RI6, da Senhora da Hora.

Depois mudaram-se  para Vila do Conde, e hoje estamos todos os domingos de tarde, juntos, os quatro, em cafés cá em Vila do Conde.

Assim a minha mulher já tem com quem falar, pois entendem-se bem. Mas ela já vai dizendo que está cheia do A..., não sabe até quando o vai aturar.

 O A... tem apenas as filhas que estão ausentes, e os dois irmãos , um mais velho que "deu o salto"(para fugir da tropa) e já morreu recentemente, e o outro mais novo, que também ‘se safou da tropa’ por cunhas do pai dele, também já morreu. O A... andou também fugido, mas voltou ao serviço, não eram muito do sistema, nem o seu próprio pai e mãe, já falecidos.

O A...é bom rapaz, só tem dois defeitos:

(i) é do Benfica e abominava o Pinto da Costa, mesmo quando eles eram vizinhos nas Antas no mesmo prédio;

(ii) tem uma paixão, são os livros e vai a tudo que seja relacionado com a literatura e afins, pelo que só fala disso, e pouco se importa com a conversa dos outros: conhece os maiores nomes da nossa literatura, os mortos de os ler, e os vivos de conviver, o que não agrada nem à mulher, e muito menos a mim.

Mas lá vamos continuando com os nossos encontro, e agora que se juntou também o nosso Padre Bártolo, antigo capelão-mor na Guiné, Angola e Moçambique, e que depois viveu 30 anos em Genebra e tem altíssima cultura, e por isso agora eles falam um com o outro,  eu vou ouvindo sem nada perceber sobre as pessoas que falam.

O A... é de uma grande inteligência, formou-se em engenharia de sistemas digitais e afins, mas nunca pegou num computador e muito menos num "smart phone", tem apenas um telemóvel desses antigos da Nokia como tem a minha mulher, que não se deu com os outros.

Quando formamos o grupo do WhatsApp – Os veteranos da Guerra da Guiné – partilhamos mensagens e tudo o mais que vem à cabeça, especialmente coisas do outro mundo, fotos e vídeos de fazer corar um santo.

Como ele não tinha esse dispositivo, ficou associado ao da mulher, pois ele nunca tem o seu telefone ligado, nem servia para integrar o grupo WhatsApp.

Assim a partilha destas coisas todas que nós falamos e publicamos,  quem as via era a sua mulher,  a H...L, , até que um dia viu algo que não gostou mesmo, e telefona-me a perguntar o que era aquilo, por que razão recebia aquelas coisas obscenas... 

Lá lhe expliquei o engano e acabou-se a sua participação. Tudo o que tenho de lhe comunicar,  faço, diretamente a ele, para o telefone dela, mas jamais houve contactos, ninguém sabia disso e era tudo a abrir.

Não tem estes dispositivos nem quer, ele diz que nunca abriu um computador!...
Foi sempre professor universitário e chegou a sê-lo do meu genro, em algumas
disciplinas, ele formou-se em engenharia civil.

Para a Cheret só iam dois tipos de pessoas e com características bem vincadas:

  • quem era muito afecto ao sistema salazarista e agora até chamam de fascistas;
  • ou quem tinha inteligência excecional, especialmente ligada a números, para a função de encriptar mensagens.

Na primeira não cabia, mas sim na segunda e assim passou a ser um homem do sistema e bem controlado, digo eu.

Agora o que resta é esta quinta mulher, mas não têm filhos em comum, obviamente.

Ele é muito perfeccionista, tanto anda com uma T-shirt do Che Guevara, como um blusão camuflado, e tem como defeito principal, na perspetiva da mulher, o de comer muito e a toda a hora, e nós vemos isso nos lanches de domingo.

Fazem as despesas a meio, ela era bancária e recebe a sua reforma e a do falecido. Ele, dizem eles, que nem sabe quanto ganha, porque nunca consulta as contas!

A mulher, entretanto, arrendou a sua casa da Rua de Camões, e quando dá por ela, "já lá viviam dois gays: não pagam a renda e os advogados não veem maneira de os por de lá para fora, além de que são perigosos"...

Acho que, se ela recuperar a casa dela, vai acabar com tudo. Isto é  a nossa versão.

E assim vão as coisas.

Muito mais poderia aqui acrescentar, mas para já chega de conversa. Fim da novela, ao fim de um mês de a começar.

Em, 27 de março de 2025

Virgílio Teixeira

(Revisão / fixação de texto: LG)

_________________

Nota do editor:

Último poste da série > 16 de abril de 2025 > Guiné 61/74 - P26693: HIstória de vida (58): Henrique Pereira Rosa (Bafatá, 1946- Porto, 2013): o fur mil OE, CCAÇ 2614 (Nhala e Aldeia Formosa / Quebo, 1969/71), católico praticante, luso-guineense, que chegou a presidente da república, interino (2003-2005), da Guiné-Bissau

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Guiné 61/74 - P26482: A Nossa Poemateca (8): José Gomes Ferreira (Porto, 1900 - Lisboa, 1985), por Mário Gaspar





José Gomes Ferreira (Porto, 1900 - Lisboa, 1985)

1. Foram-nos enviados dois poemas do José Gomes Ferreira,  pelo Mário Gaspar,  muito antes da pandemia ... Já transcrevemos o teor da mensagem  (*) em que o nosso camarada, ex-fur mil, CART 1659 (Gadamael e Ganturé, 1967/68), fala da sua intância e do meio operário em que foi criado, em Alhandra, e em que tomou o gosto pela leitura de  grandes escritores, neorrealistas, como o Soeiro Pereira Gomes e o Alves Redol... 


(...) Data: 29 de janeiro de 2017 às 04:16

Assunto: Dois Poemas de José Gomes Ferreira

(...) Que tal a figura de Soeiro Pereira Gomes, o "Gineto" ? Esse rapaz, de Alhandra e que nasceu numa bateira no rio que amo – o meu Tejo – "meninos que nunca foram meninos" e tinham de suportar o calor do tijolo e telha queimada sobre as costas. Os telhais existiram mesmo.

Estive lá. Pois o "Gineto", do livro "Esteiros", de Soeiro Pereira Gomes, tornou-se no maior atleta da época, o nadador que venceu as ondas do Canal da Mancha, Joaquim Baptista Pereira foi meu amigo. Ainda é um grande Amigo.(...)

(...) Tanto que aprendi... Conheci um senhor da nossa literatura, Alves Redol. Reunia com ele (...).

(...) Mas dá gosto termos estes poemas. Portugal é pobre, mas rico na literatura. Grandes senhores e esquecidos. Cada dia mais um. José Gomes Ferreira foi outro que conheci. (...)

Aqui vão para a nossa série "Poemateca" (**). O Mário não cita a fonte. Procurámos colmatar essa lacuna. E ficámos a saber que o poeta nasceu em Santo Ildefonso, Porto. De qualquer modo, nesta série , os poetas e os poemas selecionados são sempre uma escolha pessoal e livre dos nossos camaradas. O Mário manda-nos regularmente poesia, e mandou-nos muita, durante a pandemia de covid-19. Não mo agradeco. Faço-o agora.



Viver Sempre Também Cansa!

por José Gomes Ferreira



O sol é sempre o mesmo e o céu azul
ora é azul, nitidamente azul,
ora é cinza, negro, quase verde...
Mas nunca tem a cor inesperada.

O Mundo não se modifica.
As árvores dão flores,
folhas, frutos e pássaros
como máquinas verdes.

As paisagens também não se transformam.
Não cai neve vermelha,
não há flores que voem,
a lua não tem olhos
e ninguém vai pintar olhos à lua.

Tudo é igual, mecânico e exacto.

Ainda por cima os homens são os homens.
Soluçam, bebem, riem e digerem
sem imaginação.

E há bairros miseráveis, sempre os mesmos,
discursos de Mussolini,
guerras, orgulhos em transe,
automóveis de corrida...

E obrigam-me a viver até à Morte!

Pois não era mais humano
morrer por um bocadinho,
de vez em quando,
e recomeçar depois, achando tudo mais novo?

Ah! se eu pudesse suicidar-me por seis meses,
morrer em cima dum divã
com a cabeça sobre uma almofada,
confiante e sereno por saber
que tu velavas, meu amor do Norte.

Quando viessem perguntar por mim,
havias de dizer com teu sorriso
onde arde um coração em melodia:
"Matou-se esta manhã.
Agora não o vou ressuscitar
por uma bagatela."

E virias depois, suavemente,
velar por mim, subtil e cuidadosa,
pé ante pé, não fosses acordar
a Morte ainda menina no meu colo...


In: José Gomes Ferreira - "Viver Sempre também Cansa" (publicado originalmente na "Presença, folha de arte e crítica", ,julho-outubro,1931)


Devia Morrer-se de Outra Maneira

por José Gomes Ferreira



Devia morrer-se de outra maneira. 
Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
Ou em nuvens. 

Quando nos sentíssemos cansados, 
fartos do mesmo sol, a fingir de novo todas as manhãs, 
convocaríamos os amigos mais íntimos com um cartão de convite 
para o ritual do Grande Desfazer: 
"Fulano de tal comunica a V. Exa. que vai transformar-se
 em nuvem hoje às 9 horas. Traje de passeio".

E então, solenemente, com passos de reter tempo, 
fatos escuros, olhos de lua de cerimónia, 
viríamos todos assistir à despedida.
Apertos de mãos quentes. 
Ternura de calafrio.
 "Adeus! Adeus!" 

E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento, 
numa lassidão de arrancar raízes... 
primeiro, os olhos... em seguida, os lábios... 
depois os cabelos... a carne, em vez de apodrecer, 
começaria a transfigurar-se em fumo... 
tão leve... tão subtil... tão pólen... 
como aquela nuvem além vêem? 

Nesta tarde de Outono ainda tocada por um vento de lábios azuis… 


In: José Gomes Ferreira, "Poeta Militante I, II e III"  (
1978)

(Revisão / fixação de texto, notas: LG)


___________

Notas do editor:


(**) Último poste da série > 21 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26410: A Nossa Poemateca (7): Adília Lopes (1960-2024): "Os amores / que não tive / (e foram muitos) /moeram-me / o juizo"...

quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

Guiné 61/74 - P26280: Humor de caserna (88): Será que no Pu...erto, no Natal de 2024, ainda se fala "grosso" como no nosso tempo da tropa ? Aqui vai um excerto do "dicionário Lisboa-Porto" (com a devida vénia ao doutor José João Almeida, da Universidade do Minho, autor desse livro meritório e patriótico , que é o "Dicionário de Calão e Expressões Idiomáticas", Lx., Guerra e Paz, 2019, 192 pp.)

1. Na Guiné toda malta do Sul (genericamente, os "mouros") achavam piada aos nossos camaradas do "Pu...erto" e arredores, o mesmo era dizer do Norte.  

Nesse tempo viajava-se pouco. Afinal, quem tinha carro ? E graveto ? E estaleca ? E namorada a 300 km de distância ? 

A malta só se conhecia quando havia guerra, e os do Sul iam pró Norte e os do Norte pró Sul... Era preciso a tropa (e a guerra) para uns e outros começarem  a gostar-se mutuamente, a namorar-se (salvo seja!), a casar e a misturar os genes... 

A emigração também foi um bom laboratório para a miscegenação: uns e outros encontravam-se em Paris, Luxemburgo, Estrasburgo, Toulouse, Lyon, Bruxelas, Toronto, Nova Jérsia, etc. 

E antes disso a CP - Caminhos de Ferro de Portugal... Aponta aí a CP, que uniu o Norte e o Sul, o litoral e o interior...Os gaj0s de Baião iam p'ró Barreiro e os da Fuseta para o Pocinho... Factores, manobradores, um ou outro maquinista, chefe de estação, revisor, inspetor, etc.

E, não sejamos injustos, o Movimento Nacional Feminino e os milhões de madrinhas de guerra que a "Cilinha" arranjou para os nossos bravos do Ultramar...600 milhões de cartas e aerograms baralharam línguas, corações, SPM, topónimos, rua, largos, praças, pracetas, lugares, casaism aldeias, vilas, cidades... E às tantas eles elas já trocavam os pés pelas mãos, e os vês pelos bês...E as alftacinhas passaram a amar o Porto que os primos e amigos, com dor de corno, diziam que era uma cidade de granito, escura, austera, suja e fria...

De facto, até então, até à tropa, até ao grande êxodo rural, até à emigração, à CP e a à Cilinha,  quem é que, do Sul, sabia onde ficava a Pasteleira e a Ribeira?!... E os gajos do Norte ainda não tinham o mapa do Google, nem muito menos GPS,  para descobrir a localização do Casal Ventoso ou de Alfama ou de Cacilhas... 

Resultado: o desconhecimento mútuo era atroz, alfacinhas e tripeiros falavam sozinhos quando, de repente, embarcaram nos T/T Niassa, Uíge, Ana Malfada, etc.,  a caminho da Guiné... E viram-se à brocha, de G3 em punho contra as Kalash do 'Nino'...

Mas uma vez lá, aprenderam a falar crioulo, p0nto de partida para começarem a entender-se minimamente... embora com recurso, de vez em quando, ao "Dicionário de calão e expressões idiomáticas" (Lisboa, Editora Guerra e Paz, 2019, 192 pp),  do José João Almeida, da Universidade do Minho, finalmente editado em livro, uma obra meritória e patriótica, que há 50/60 anos ou mais deveria já a ser livro obrigatório na Academia Militar, bem como nos centros de instrução militar...

Em formato digital, em pdf, a obra está também disponível (para os falantes, estudiosos e curiosos) em:

Almeida, José João - Dicionário aberto de calão e expressões idiomáticas (recolha de José João Almeida,. Universidade do Minho. 2024, 287 pp.
Disponível em https://natura.di.uminho.pt/~jj/pln/calao/dicionario.pdf
 

2. E aqui vai um "cheirinho", uma "prendinha e Natal", tudo "por  mor" da melhoria da comunicação Norte-Sul e vice-versa... Excerto pp. 84.

dicionário Lisboa Porto

Lisboa: 

– Não tenho a certeza se vai ser possível!

 Porto: 

Nem que tu te f*das!

Lisboa: 

 – A sério? E incrível! Diria mesmo impressionante!

 Porto: 

– P*ta que o p*riu!

Lisboa: 

– Claro que isso não me preocupa!

Porto: 

Tou-me a c*g*r e a andar!

 Lisboa: 

Eu não estava envolvido nesse projeto!

 Porto: 

Mas que c*r*lho é que eu tenho a ver com essa m*rda?

 Lisboa: 

Interessante, hein?

 Porto: 

F*da-se!

 Lisboa: 

Será difícil concretizar a tarefa no tempo estipulado!

 Porto: 

Não vai dar nem que me f*da todo!

Lisboa:  

– Precisamos melhorar a comunicação interna!

Porto:

 – P*ta de m*rda!... Não há nenhum c*ralho que me responda???

 Lisboa: 

Talvez eu possa trabalhar até mais tarde!

 Porto:

 – E no c*?... Não queres levar no c* também???!!!

 Lisboa: 

Não está familiarizado com o problema!

 Porto:

 Cala-te, c*r*lho!

Lisboa: 

– Desculpe!

Porto:

 – Vai pá p*ta que te p*riu!

 Lisboa: 

 Desculpe, senhor!

 Porto: 

Vai pá p*ta que te p*riu, seu p*neleiro!

 Lisboa: 

Acho que não posso ajudar!

Porto:

 – F*de-te praí sozinho!

 Lisboa:

 Adoro desafios!

Porto:

 –  P*ta trabalhinho de c*rno!

  Lisboa:

 Finalmente reconheceram a tua competência!

 Porto: 

Foste ao c* a quem?

Lisboa: 

É necessário um treino para o pessoal antes de ligarem a máquina!

Porto: 

– Vou partir os c*rnos a quem mexer nesta m*rda!

Lisboa: 

– Eles não ficaram satisfeitos com o resultado do trabalho!

Porto: 

– Bando de filhos da p*ta!

Lisboa: 

– Por favor, refaça o trabalho!

Porto: 

Enfia  essa m*rda no c*, está uma bela m*rda!

Lisboa: 

– Precisamos reforçar nosso programa de treino!

Porto: 

– Se sei quem foi o filho da p*ta que fez isso...!

◦ Lisboa: 

E necessário melhorarmos nossos índices de produtividade!

Porto: 

E se fossem bater a p*nheta pró meio da rua???!!!

 Lisboa: 

Que pena. Teremos outra não conformidade!

Porto: 

C*r*lho! vai sair c*g*da outra vez!

Lisboa: 

Vamos negociar o projecto com mais determinação!

Porto: 

Vou enfiar isto pela goela abaixo desses filhos da p*ta!

Lisboa: 

Desculpe, eu poderia ter avisado!

Porto: 

Eu sabia que ia dar m*rda!

Lisboa: 

Os índices de produtividade da empresa estão a apresentar uma queda sensível!

Porto: 

Esta m*rda tá a ir pró c*r*lho!

Lisboa: 

Esse projecto não vai gerar o retorno previsto!

Porto: 

 Tá tudo f*dido!

(Seleção, Revisão / fixação de texto, asteriscos, negritos, itálicos: LG)


___________________

Nota do editor:

Último poste da série > 17 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26274: Humor de caserna (87): A virilidade lusitana: das bagas do Sambaro ao estoicismo do Sousa (Jorge Cabral, 1944-2021)

sábado, 7 de dezembro de 2024

Guiné 61/74 - P26243: Lembrete (51): Apresentação do livro "Encruzilhadas no Império", de Paulo Cordeiro Salgado, dia 9 de Dezembro de 2024, pelas 18 horas, na UNICEPE, Praça de Carlos Alberto, 128 - Porto


Comecei a escrever este livro durante a pandemia. Pelo meio escrevi outros.

São mesmo encruzilhadas, pretendendo eu tirar das gavetas fundeiras o POVO, a "ARRAIA MIÚDA", que habitualmente os compêndios não contemplam, somente alguns estudiosos historiadores universitários. E de alguns frades, escravos e homens de bem, também de andarilhos por este Império se Império houve.

Apresentação no Porto no dia 9.12.24 na UNICEPE - Praça de Carlos Alberto, 120

Paulo Salgado

_____________

Nota do editor

Último post da série de 30 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26218: Lembrete (50): Lançamento do livro "Lavar dos Cestos - Liturgia de Vinhas e de Guerra", da autoria de José Brás, a levar a efeito amanhã, dia 1 de Dezembro, pelas 15h00, na Casa do Alentejo, Rua das Portas de S. Antão, 58 - Lisboa

quinta-feira, 28 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26204: Cem pesos, manga de patacão, pessoal ! (10): paguei o mesmo que o Carlos Vinhal, na viagem de férias, ao Porto, em meados de 1971 (Esc. 6430$00, o equivalente, a preços de hoje, a 1944 euros), mas... em três prestações (António Tavares, ex-fur mil, CCS/BCAÇ 2912, Galomaro, 1970/72)




O miraculoso bilhete da TAP que dava "direito" ao tão almejado mês de férias na metrópole...Bilhete de avião Bissau - Lisboa - Porto - Lisboa - Bissau, 1971

Foto (e legenda): © António Tavares (2015). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1.  Ainda a propósito do nosso sagrado mês de férias na metrópole (luxo que era só para alguns),  o nosso camarada António Tavares (ex-fur mil, CCS/BCAÇ 2912, Galomaro, 1970/72; vive na Foz, no Porto, e tem 74 referências no nosso blogue, estando cá desde 24/6/2009) já aqui lembrou (*) que:

(i) em 3 de agosto de 1971 levantou, na  conhecida Agência Correia, de Bissau, o bilhete de viagem na TAP que lhe custou a exorbitância de  6430$80, que era então o custo da  viagem Bissau-Lisboa - Porto -. Lisboa - Bissau (a mesma importância foi já aqui reportada pelo  nosso coeditor Carlos Vinha, equivalente a 1944 euros, a preços de hoje) (**);.

(ii) essa importància, vá lá, foi paga  em três prestações ("suaves"):
  • 4.430$80,  em 3 de agosto de 1971; 
  • 500$00,  em 22 de setembro de 1971;
  • 1.500$00, em 21 de outubro de 1971,
(iii) na cópia do bilhete (vd. imagem acima) consta uma taxa de aeroporto de 110$80;

(iv)  o escudo, na época,  era trocado, em Bissau, "com uma agiotagem de 10%.";

(vi) viajou a 4 de agosto de 1971 e regressou no dia 7 de setembro de 1971;

(vii) e ainda teve direito a um "saco de pernoita" (!);

(ix) ... "os camaradas mais atentos verificarão que acabei de pagar a totalidade das prestações depois da minha chegada de regresso ao CTIGuiné; porque o 'patacão'  não transbordava das algibeiras,  tinha de aproveitar todas as facilidades de pagamento autorizadas"

 (Ssleção, revisão / fixação de texto: LG)
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 7 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15216: O nosso querido mês de férias (18): Viagem Bissau-Lisboa-Porto-Lisboa-Bissau paga a prestações porque o patacão não transbordava das algibeiras (António Tavares)

(**) Último poste da série > 24 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26188: Cem pesos, manga de patacão, pessoal ! (9): uma viagem na TAP, de Bissau a Lisboa, em finais de 1970, custaria hoje c. 1450 euros (Valdemar Queiroz); uma viagem de férias (ida e volta), c. 1900 euros, em fevereiro de 1971 (Carlos Vinhal)

quarta-feira, 27 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26201: Agenda cultural (873): Convite para a apresentação do livro Encruzilhadas no Império, de Paulo Cordeiro Salgado, dia 9 de Dezembro de 2024, pelas 18 horas, na UNICEPE, Praça de Carlos Alberto, 128 - Porto (Paulo Salgado)


1. Mensagem do nosso camarada Paulo Salgado (ex-Alf Mil Op Esp da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72), com data de hoje, 27 de Novembro de 2024:

Camarada Luís e demais coautores do nosso blogue.

Com um abraço de camarada, envio, em anexo, o convite para a apresentação do livro "Encruzilhadas do Império".

Comecei a escrever este livro durante a pandemia. Pelo meio escrevi outros, como oportunamente anunciei.

São mesmo encruzilhadas, pretendendo eu tirar das gavetas fundeiras o POVO, a "ARRAIA MIÚDA", que habitualmente os compêndios não contemplam, somente alguns estudiosos historiadores universitários. E de alguns frades, escravos e homens de bem, também de andarilhos por este Império se Império houve.

Este é o cartaz da apresentação no Porto no dia 9.12.24
Seguirá depois o cartaz de Lisboa - A25A - no dia 11.12.24

Paulo Salgado

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Nota do editor

Último post da série de 26 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26196: Agenda cultural (872): Convite, que nos chega através do António Graça de Abreu, para a 1ª Jornada de Tradução Chinês-Português, quinta, dia 28, às 11h00, na Universidade do Minho, Gualtar

segunda-feira, 4 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26113: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (31): o terror do "exame de admissão" (à escola técnica e/ou ao liceu) (Joaquim Costa, "Crónicas de paz e guerra", 2024, excerto, pp. 207/209)


Joaquim Costa (na foto à esquerda, quando miúdo): 

(i) ex-fur mil at armas pesadas inf, CCAV 8351, "Tigres do Cumbijã" (Cumbijã, 1972/74); 

(ii) membro da Tabanca Grande desde 30/1/2021, com mais de 7 dezenas de referências no blogue;

 (iii) engenheiro técnico (ISEP - Instituto Superior de Engenharia do Porto), foi professor do ensino secundário, tendo-se reformado como diretor da escola secundária de Gondomar: 

(iv) minhoto, de Vila Nova de Famalicão, vive em Rio Tinto, Gondomar, e adora o Alentejo;

 (v) tem página no Facebook;  e, por fim, e não menos importante,  

(vi) perdeu recentemente a sua querida Isabel;

 (vii) e vai lançar o seu livro "Crónicas de paz e guerra", no próximo dia 9 do corrente, sábado, às 15:00 na Biblioteca Municipal de Gondomar (*)


1.  É o relato, sucinto mas magistral, além de bem-humorada, do que era o terror, no nosso tempo de meninos e moços (**), o dia do exame de admissão ao liceu (na capital de distrito, neste caso em Braga) ou de admissão ao ensino técnico (na sede concelho, Vila Nova de Famalicão).  

O autor, Joaquim Costa, fez os dois exames, com 11 anos, em 1961 (já a guerra colonial tinha "rebentado em Angola", sobrando para a ele, mais tarde, a da Guiné, em 1972/74).  

Acabaria por entrar no ensino técnico, no ano letivo de 1961/632. 

No excerto que selecionámos, interessa-nos a primeira parte do seu depoimento, as peripécias que viveu antes de poder entrar no curso de montadores eletricistas (na sede de concelho da sua terra natal) e depois na Escola Industrial do Infante Dom Henrique, no Porto, e finalmente no Instituto Industrial do Porto (hoje, Instituto Superior de Engenharia do Porto / Instituto Politécnico do Porto). Com a tropa, pelo meio...

Enfim, um percurso escolar muito semelhante ao que muitos de nós trilhámos: recorde-se, em todo o caso, que não havia ensino técnico em todas as sedes de concelho e o ensin0 liceal era para uma minoria relativamente privilegiada, funcionando apenas nas capitais de distrito.

E ainda foi do tempo da Mocidade Portuguesa, enquanto frequentou  a escola técnica, durante 4 anos:

 "Aos sábados de manhã, equipado de calções e camisola branca com o emblema das cinco quinas ao peito, lá ia ele, contrariado, para atividades da Mocidade Portuguesa. Marchar 'contra os canhões' e cantar o seu hino: 'Lá vamos cantando e rindo, levados, levados sim'..."  (pp-. 209/210).



O terror do "exame de admissão" (à escola técnica ou ao liceu) 

por Joaquim Costa
 

Sete anos feitos,  lá vai ele conhecer a D. Natália (a fera!), carregando a sacola de serapilheira devidamente equipada: livro da primeira classe, lousa, “riscotes”, uma tabuada e uma pequena almofada de trapo velho para limpar a lousa depois de lhe cuspir.

Tal como na cateques,  as raparigas que faziam o percurso para a escola com ele, aqui desapareciam e só as voltava a ver no regresso a casa.

Aos onze anos, da sua sala, apenas ele foi para explicações para casa de uma outra professora para fazer o exame de admissão à escola técnica.

Foi na casa desta simpática professora que viu, pela primeira vez, a beleza de um pavão abrindo as suas penas coloridas em leque.

Foi também aqui que viu em direto, na televisão, a colocação da última parte do arco da Ponte da Arrábida. Meio país dizia que a “coisa” ia acabar no rio. Foi um dia em que o povo se encheu de orgulho dos seus engenheiros.

No final,  foi convidado a fazer uma redação sobre o acontecimento já que a professora tinha uma convicção muito forte que ia ser o tema do exame.

Mais convicto que a professora,  acabou por memorizar a sua redação que esta classificou de Muito Bom.

A sua convicção era tão forte que “despejou” tudo no exame sem olhar ao que lhe era pedido: foi quase ao lado, já que o pedido era uma redação sobre os Descobrimentos. Mas a redação comparava os dois extraordinários feitos!

A professora estava toda entusiasmada. Não tinha dúvidas que, depois dos dois meses de explicações, o rapaz se ia safar.

Chegado o dia, logo pela manhãzinha, ainda o galo não tinha cantado, já sua mãe lhe vestia o fato que o pai tinha mandado fazer, por medida, ao alfaiate da terra. Tudo novo: fato, camisa, gravata e sapatos. Até o cão fadista estava espantado.

Lá vai ele apanhar a carreira para a vila, metido num colete de forças, completamente desconfortável, transpirando por todos os poros e com os pés a moerem-lhe.

Chegou à vila com tonturas e enjoado, acabando mesmo por vomitar sujando o impecável fato, pois foi a primeira vez que andou de camioneta. Da vila só conhecia a feira, percurso que sempre fez a pé com a sua mãe.

Lá o levaram até ao ginásio da Escola, com dezenas de alunos sentados, e com ar de assustados, cada um na sua mesa devidamente equipada com uma pena e um tinteiro.

Uma velha professora e mal-encarada coloca na sua frente uma folha de papel,  indicando o sítio onde devia colocar o seu nome e número do bilhete de identidade.

Já com o suor a cair-lhe na folha de papel e com as mãos a tremerem, lá tentou entender-se com a pena e o tinteiro para cumprir a tarefa que lhe foi imposta.

Vai com a pena ao tinteiro e começa a tarefa. Por muito que carregasse na pena a tinta não corria.

Começou a ficar atrapalhado já que se tinha apercebido que todos tinha acabado a tarefa e ele ainda não tinha começado.

Nova ida ao tinteiro e nada. Começa a abanar a pena para ver se a tinta corria. Correu tipo ketchup, acabando por borratar toda a folha. Logo tentou limpar pelo que, obviamente, a inutilizou .

Chamou a velha e mal-encarada professora que, ao ver todo aquele estardalhaço, ainda ficou mais velha e mais feia com a cara toda vermelha de raiva. Contudo,  lá mandou limpar a mesa, tendo-lhe entregado uma nova folha e uma nova pena que felizmente deixava a tinta correr.

A prova, depois de todos estes percalços, não podia ter corrido pior.

No final, já aliviado de toda aquela odisseia, lá contou à professora o desastre que foi a sua prova. Ele estava aliviado e feliz por tudo ter acabado, mas a sua professora estava muito triste, tendo-lhe mesmo corrido uma lágrima pelo seu lindo rosto.

A professora não se resignou e convenceu o seu pai que acompanhasse um outro aluno das explicações, com familiares em Braga, a fazer o exame de admissão aos liceus. Ele e o pai acederam mais por respeito à professora, já que estava fora de hipótese, com onze anos, ir estudar para Braga. Na altura só havia Liceus nas capitais de distrito.

Lá foi ele numa de passeio, com uma roupinha lavada e mais confortável, numa “carrimpana” do pai do seu amigo até Braga, vencendo as voltas de macada onde toda a gente vomitava.

A sua professora ficou maravilhada com o seu desempenho.

Entretanto saíram os resultados e para surpresa sua e da professora tinha entrado na escola técnica. Ainda hoje não sabe os resultado do exame de admissão ao liceu. (...)

(Seleção, revisão / fixação de texto, título: LG)

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Fonte: Excerto de: "O sistema de ensino antes do 25 de Abril de 1974: caso prático. In: Joaquim Costa - "Crónicas de paz e guerra", Rio Tinto, Lugar da Palavra Editora, 2024, pp. 207/209 (Com a devida autorização do autor...)


Também disponível, a história na íntegra, na página do Facebool > Joaquim Costa > 13 de março de 2024, 11:46 > O sistema de ensino antes do 25 de abril de 1974: caso prático

Capa do livro de Joaquim Costa - "Crónicas de paz e guerra: o Minho a Tombali (Guiné)... e o Porto Por perto". Rio Tinto: Lugar da Palavra Editora, 2024, 221 pp, il. (+ de 80 fotos)


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Notas do editor:

(*) Vd.poste de 31 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26098: Lembrete (48): Biblioteca Municipal de Gondomar, sábado, dia 9 de novembro de 2024, lançamento do livro "Crónicas de Paz e Guerra" (2014, 221 pp.; posfácio de Mário Beja Santos)

quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26096: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (30): quem é que não andou descalço na rua ?!...



Pàgina do Facebook da Càmara Municipal de Lisboa > 5 de dezembro de 2020. 17:00 > Aconteceu no dia 5 de Dezembro de 1931...

“Uma disposição acertada.

"O pé descalço nas ruas de Lisboa acabou. Começou hoje a vigorar a determinação do governo civil que não permite trânsito pelas ruas da cidade às pessoas que se apresentem descalças. Como se sabe, não era apenas por miséria, mas sim por hábito, com muitas pessoas sobretudo pertencentes a colónia ovarina que resolviam andar descalças, oferecendo à maioria da população o espectáculo impróprio de uma capital. Já em tempos o falecido comandante da Polícia senhor Ferreira do Amaral, tomou providências no sentido de acabar com o pé descalço. A breve trecho, porém esta disposição caiu em desuso, voltando o pé descalço a fazer a sua aparição nas ruas de Lisboa, sem ser incomodado pela polícia."  Fonte: "Diário de Lisboa", 5 dezembro 1931
Imagem do “Notícias Ilustrado” | Hemeroteca Municipal | Adapt. livre do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024)




Liga Portuguesa de Prolifaxia Social (LPPS) > Porto > Maio de 1928 > Prospeto, impresso na Tipografia Empresa Guedes, usado na campanha contra o "pé descalço"... Quis-se acabar, "por decreto"(neste caso, por edital do Governador Civil do Porto) com o secular hábito de transitar na cidade de pé descalço... Tudo por mor da saúde pública, da cidadania, da civilização, da economia... Portugal estava há já dois anos a viver em regime de Ditadura Militar... Mas em meados dos anos 60 ainda a LPPS batalhava contra o "hábito tão nocivo, anti-higiénico e anti-económico" (sic) do pé descalço...


Imagem: Cortesia da página do Facebook do Arquivo Distrital do Porto Arquivo Distrital do Porto > 21 de julho de 2020


1. Afinal, a "proibição do pé descalço" não era só em Bafatá, vilória (e depois... cidadezinha) da antiga Guiné Portuguesa, ao tempo do administrador, transmontano Guerra Ribeira (intendente na parte final do consulado de Spínola, por volta de 1972/73) (*).

Também na "cabeça do império", a que chamávamos "metrópole", ainda há camaradas nossos que se lembram (ou lembravam, em 2013) de a malta andar descalça, até pelo menos ao final dos anos 50/princípios dos anos 60. Vejam-se alguns comentários ao poste P11288 (*):

(i) José Câmara:

Este caso não é assim tão inédito. Na cidade da Horta, Ilha do Faial, era proibido o pé descalço na cidade. Essa regra também dificultava a vida das pessoas campesinas que, na sua labuta diária, andava quase toda descalça.

Estou-me a referir aos meus tempos de estudante liceal.



(ii) Luís Graça:


No Norte do país também era prática corrente nos anos 50 e 60,  os camponeses irem descalços para a feira, mas à entrada das vilas enfiavam os chinelos ou as tamancas, com medo da GNR... 


(iiii)  Henrique Cerqueira:

No Porto também era proibido andar descalço na via pública. Era frequente verificar as mulheres que vendiam galinhas de porta a porta e se chamavam de "galinheiras" . Como carregavam grandes cestos com galinhas, era normal vê-las descalças e,  quando viam o polícia, calçavam de imediato as socas ou chinelos.

Era frequente haver polícias de mau carater se colocarem estrategicamente emboscados à espera dessas mulheres para as multar e então era nosso prazer de crianças estragar o esquema do policia avizando as mulheres do local onde estava o policia. Claro que esse policia não descansava enquanto não nos apanhasse a fazer alguma asneira, tal como a jogar a bola na rua e quase sempre descalços.

Isto se passava quase sempre nos jardins da Rosália, na Praça da Galiza em frente à Escola Gomes Teixeira. Quem é do Porto sabe onde é. (...)

21 de março de 2013 às 09:35

(iv) Belarmino Sardinha:
 
Para que conste, em termo de comentário, gostava de lembrar que em Évora,  minha terra natal e onde cresci e vivi até aos 18 anos, também existiam algumas regras sobre os "pé descalço", havia mesmo o Albergue Distrital de Mendicidade de Évora para onde eram levados e ali ficavam semi-aprisionados todos os que fossem apanhados descalços ou a pedirem esmola. Não eram presos em celas, mas não podiam de lá sair e tinham que trabalhar a terra de onde extraiam os produtos agrícolas...

Quanto ao trabalho posso também acrescentar que aquele que hoje é ainda um edifício actual e bem parecido onde funcionam o tribunal, registo civil etc, ao largo das Portas de Moura, que se chamava e creio manter o nome de Palácio da Justiça, foi construído, não sei se na totalidade, talvez não, mas com a mão d' obra dos presos da cadeia de Évora.

Todas estas situações eram medidas, creio que, generalizadas por todo o País, nada tendo que ver com outros aspetos de cor ou etnia...

(v) Antº Rosinha:

Havia alguns alferes milicianos, oriundos das nossas pequenas cidades, que não sabiam que muitos mancebos das grandes aldeias apenas calçavam botas diariamente quando iam para a tropa.

Muitos sabiamos como era o uso habitual de socas e tamancos no mundo rural português. Alguns sabemos o que era regar os campos "a pé".

Quem não sabe que no nosso mundo rural dos anos 50 e princípios de 60 imensos pastores e trabalhadores braçais apenas iam ao mercado comprar sapatos e ir ao alfaiate fazer um fato quando iam à inspeção militar?

Quem não sabe que havia pares de calças só ia para o lixo quando os remendos já ocupavam maior área que o tecido original?

Estranhei ver na televisão recentemente um grande escritor,  ex-oficial miliciano da guerra do ultramar, relatar como grande admiração, para um entrevistador estrangeiro: imagine que um dia um soldado me disse que a" primeira vez que calçou botas, foi quando veio para a tropa". Só um soldado?

Claro que os oficiais,  oriundos da Linha de Cascais,  não sabiam o que se passava na Linha do Vale do Tua nem na Linha do Minho.

Curioso que os angolanos, guineenses e alguns brasileiros, conheciam-nos melhor que nós próprios.

21 de março de 2013 às 12:17 

(vi) Tony Borie (EUA):


Saúdo todos, em especial o Paulo Santiago, que é oriundo de Águeda, terra onde nasci. Gostei de ler as histórias do "pé descalço"!.

Nos meus escritos, menciono algumas vezes os "Primos de Lisboa", pois ela,  a minha prima, era filha da minha tia, irmã do meu pai, oriunda dos "palheiros" das praias do lado de lá da Figueira, e que em tempos vendia peixe, com uma canastra à cabeça, pelas ruas de Lisboa, e contava a minha prima, que a minha tia, comprava um par de "chinelas" que duravam uma eternidade, pois usava a esquerda, até acabar, e depois usava a direita, também até acabar, caminhando pelas ruas de Lisboa, mancando, ora da direita, ora da esquerda, com um pé calçado, mas dentro da lei, pois andava calçada, embora só num pé!.



(vii) C. Martins:

Vai inseguro e descalço, 
caminhando sobre a calçada...
Será policia, será gente,
Gente não é certamente,
bota do policia não bate assim.

Podia-se andar descalço... 
não podia, ..mas andava-se.
Dinheiro para o calçado não havia, 
mas devia andar calçado...
devia, mas não podia..
Devia e não podia,
devia e não podia..

23 de março de 2013 às 04:20 



(com a devida vénia..:)


2. Facebook...ando, encontrei aqui um curioso prospeto da centenária Liga Portuguesa de Profilaxia Social  (LPPS) (criada no Porto em 1924),  documento esse que fez parte de uma campanha contra o "pé descalço" (Vd. prospeto acima). (**)

Reproduz-se, com a devida vénia, a seguinte postagem da página do Facebook do Arquivo Distrital do Porto, com data de maio de 1928.


Arquivo Distritakl do Porto > 21 de julho de 2020 


A PROIBIÇÃO DO PÉ DESCALÇO na cidade do Porto surgiu na sequência de uma campanha da Liga Portuguesa de Profilaxia Social contra "o indecoroso, inestético e anti-higiénico hábito do pé descalço".

Dias depois de o governador civil do Porto proibir o pé descalço na cidade, o governador de Lisboa tomou a mesma decisão para a capital.

De repente uma população com muitos pobres via-se obrigada por lei a andar calçada. Dado que se tratava de um hábito muito enraizado nos portugueses, em termos práticos, tratou-se de uma campanha longa, intensiva e rica em materiais de divulgação.

A título de exemplo, hoje partilhamos (...) a publicação da LPPS que faz referência ao edital do Governo Civil que proibirá o pé descalço no Porto, a partir do dia 20 de maio de 1928.
códigos de referência:

PT/ADPRT/ASS/LPPS/DIR/015-001/0587 (publicação LPPS)

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 21 de março de 2013 > Guiné 63/74 - P11288: (De) caras (13): Guerra Ribeiro, natural de Bragança: de administrador colonial no tempo do Schulz a intendente no tempo de Spínola (Paulo Santiago / Cherno Baldé / António Rosinha)