Guiné > Bissau > PAI > Secção de Informações e Controlo > Diário > 25 de abril de 1961 > Assinatura de Naci Camara [Inácio Soares de Carvalho]
(1961), "Diário sobre a prisão de militantes do PAI", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_41690 (2020-3-4)
Assunto: Diário assinado por Zain Lopes [, Rafael Barbosa,] e Naci Camará [, Inácio Soares de Carvalho}, pela Secção de Informações e Controlo, sobre a prisão de militantes do PAI.
Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Cartas de Bissau 1960-1961.~
Assunto: Diário assinado por Zain Lopes e Naci Camará, pela Secção de Informações e Controlo, sobre a possibilidade de enquadramento dos "Milicianos" ao serviço do exército português no PAI e o desenvolvimento da luta clandestina em Bissau.
Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Cartas de Bissau 1960-1961.
Mussá Fati, o primeiro contacto enviado por Cabral
Felizmente, nos princípios de Abril [de 1961] chegou a Bissau o primeiro guia de ligação, Mussá Fati, mandado pela nossa Direcção em Conakry com a missão de tudo fazer, mas com muita descrição, para nos contactar.
Efectivamente, depois de ter chegado à Bissau, não foi fácil ao Mussá entrar, de imediato, em contacto connosco. A razão é porque nós não tínhamos confiança em receber ninguém no nosso meio com receio de membros dos grupos do Senegal nos infiltrarem. Depois de estar muitos dias a tentar o contacto, acabou por encontrar o nosso jovem companheiro, Marcos Correia; como já se conheciam, o Mussá acabou por lhe pôr ao corrente do que se passava no exterior, contando-lhe o que ouviam sobre nossas actividades e o que acontecera connosco, para finalmente dizer-lhe que vinha a mando do nosso engenheiro [, Amílcar Cabral,] para nos contactar.
Foi assim que o Marcos sentiu coragem de ir ter comigo e eu depois fui falar como Rafael; como ele já conhecia o Mussá, disse-me que podemos entrar em contacto com ele. Autorizamos então o Marcos a levá-lo à nossa base [, na Zona 0]; eu fui ter com ele no dia seguinte e falamos todos muito da nossa situação, e como passamos do mês de Fevereiro àquela data.
A luta pela afirmação de Amílcar Cabral como líder da luta pela Independência
Nos primeiros anos, a afirmação de Cabral como líder da luta pela Independência dos povos da Guiné e de Cabo Verde foi uma questão fulcral e sempre presente. Na verdade, foi talvez a fase mais difícil da luta.
Se no plano interno, sentíamos que o Partido já estava bem instalado com muitos jovens de todas as tribos da Guiné a aderirem as causas da luta, no plano externo, não cessavam as propagandas de nossos inimigos contra a liderança de Amílcar Cabral, sempre utilizando o mesmo argumento de que, sendo filho de cabo-verdianos, não podia liderar a luta pela independência de guineenses e cabo-verdianos.
Nessa fase, foi importante a ligação permanente, através de nossos agentes, que mantivemos com os nossos dirigentes no exterior. Por um lado, nós servíímos de retaguarda segura aos esforços para a afirmação e legitimação de nossos dirigentes, sobretudo de Cabral; por outro, dávamos continuidade à campanha para a mobilização de jovens e outros apoios para a causa de nossa independência.
Luís Silva, mais conhecido por Luís Tchalumbé, a questão da liderança da luta pela Independência
Um dos grandes entraves na afirmação de Cabral foi o Luís Silva, mais conhecido por Luís Tchalumbé. De facto, Tchalumbé foi um feroz opositor de Cabral enquanto líder do povo da Guiné. Conseguiu mobilizar apoios junto aos grupos de guineenses que tentavam organizar-se para a luta contra o colonialismo, radicados em Conakry. Ele e seu grupo chegaram a protestar junto ao Governo de Sékou Touré, dizendo que o Amílcar não podia libertar a Guiné-Bissau porque ele não é puro guineense porque os pais são cabo-verdianos; a atitude de Tchalumbé e seus apoiantes causou-nos grandes problemas em Conakry.
Perante essa situação, o nosso líder , engenheiro Amílcar Cabral, mandou-nos comunicar isso em Bissau. Quando recebemos o comunicado ficamos todos preocupados e alarmados. É que, por um lado, tínhamos o Luis Tchalumbé e, do outro, o Governo Português.
[...] Aproveitamos essa mesma missão para endereçar ao Presidente Sékou Touré uma mensagem a pedir-lhe apoio total ao nosso líder, engenheiro Amílcar Cabral; na mesma mensagem, aproveitamos ainda para desacreditar o Luis Tchalumbé, mostrando a sua incompetência para ser líder da luta para a Independência da nossa Guiné.
Depois da ida de Companhe para Conakry, enviamos outras mensagens para os seguintes Presidentes: Senghor, do Senegal; Modibou Keita, do Mali; N’Krumah, do Ghana. As referidas mensagens destinavam-se também à pedir total apoio ao nosso líder, engenheiro Amílcar Cabral. Essas mensagens foram levadas por outro jovem, agente de ligação, o Albino Sampa; Albino foi também com a missão de aproveitar e observar, com todo o cuidado, o que se estava a passar no Senegal.
Essas mensagens deviam ser entregues ao nosso correspondente em Dakar, Luis Cabral, a fim de mandar distribuir aos respectivos destinatários. Essas acções deram um contributo inestimável ao progresso da nossa luta de libertação nacional.
O financiamento das actividades do Partido
Todas as actividades do Partido no plano interno e externo eram feitas com grande sacrifício, sobretudo no que diz respeito à meios financeiros. Como o meu vencimento não dava para tanto trabalho, então resolvemos pedir aos companheiros de luta, militantes e simpatizantes que tinham possibilidades, para contribuírem para suportarmos as despesas. Mesmo com tal apelo, o problema financeiro continuava.
[...] Como havia poucas alternativas, Rafael [Barbosa], enquanto principal responsável do Partido, decidiu que a única forma que tínhamos de aliviar a situação era o Inácio fazer um empréstimo ao Banco [, BNU,] supostamente com o objectivo de construir uma casa.
Tendo a reunião decorrido num sábado, na segunda-feira, decidi ir falar com o Sr. Mário Seca que era chefe dos serviços do Banco naquela altura.
Esperei que saíssem todos os funcionários do Banco e dirigi-me ao seu gabinete e expus-lhe a minha pretensão em obter um empréstimo para construir uma residência, argumentando que onde estava morado é de três herdeiras, sendo minha mulher uma delas e não nos convinha continuar morando nela.
Ele perguntou-me o valor do empréstimo que pretendia fazer. Respondi que queria pelo menos 25.000$00 [, cerca de 11.060,43 €, a preços de hoje] a fim de começar a obra e a medida que for necessário eu pedia mais até acabar o trabalho.
Ele olhou para mim e disse-me:
- É melhor o Inácio pedir 15.000$00 , assim é mais fácil darem o Inácio do que 25.000$00.
E disse-me então para pensar bem primeiro, porque às vezes pode-se pedir e não darem nada. Pedindo pouco à pouco é mais certo, do que muito e não receber nada.
Dois dias depois fui à Base e contei ao Rafael a conversa tida com o Gerente. Ele disse-me logo que mesmo que fosse 10.000$00 tínhamos que tomar, que fará 15.000$00; naquela altura, 15.000$00 era muito dinheiro, dava para muita coisa.
Expansão da estrutura do PAIGC no território da Guiné
Nesse momento inicial da luta, com a Zona 0 [, Bissau.] já consolidada, decidimos expandir a estruturas do Partido para todo o território nacional. Assim, fizemos todos os possíveis para ter responsáveis do Partido em vários pontos da Guiné, o que conseguimos com sucesso.
Na região de Bolama, eram responsáveis o Domingos Gomes e Domingos Badinca; em Bafata, Quecoi Fati; em Gabu, Lassana Jaquité e Francisco Dias (Chico Pombo); em Fá Mandinga, zona de Bambadinca, Antonio Silves Ferreira.
O jovem Silves tinha pouco contacto connosco; o seu principal contacto era o
Domingos Ramos {, que terá desertado do exército português, em novembro de 1960, quando em Bolama era já 1º cabo miliciano, segundo o testemunho de Mário Dias, de quem era amigo].
Das poucas vezes que ele vinha a Bissau, falava muito com o Rafael. Em Bissorã, tínhamos Lassana Sissé e David Lopes Vaz, enfermeiro. Nas áreas de Canchungo, Cacheu, S. Domingos, Susana, em todos aqueles sítios tínhamos responsáveis do Partido, já conscientes das suas responsabilidades.
Rafael [Barbosa] é nomeado Presidente do Comité Central do PAIGC
Em Outubro [de 1961], chegaram a Zona 0, três grandes elementos do Partido, enviados pela nossa Direcção em Conakry. Estes elementos eram Luciano N’dau e Pedro Ramos, ambos responsáveis militares, e Mario Mamadu Turé (Mómó), responsável político, a fim de reforçar nossa equipa e dar mais impulso no nosso trabalho de mobilização e de preparação para a luta. Eles foram portadores da primeira Bandeira do nosso Partido, PAGC, que entrou em Bissau na difícil hora que nos encontrávamos.
Trouxeram também uma mensagem que o nosso grande líder nos endereçou. Nessa mensagem, veio a decisão do Partido em nomear o Rafael Barbosa como Presidente do Comité Central do Partido; nessa mesma mensagem, o Nassi Camara e Constantino Lopes da Costa foram louvados pelo Partido e confirmados nos lugares que vinham ocupando desde o mês de Abril, quando o jovem Mussa Fati nos contactou.
O cargo que desempenhávamos era interino, por isso o Nassi Camará foi confirmado no cargo de Secretário de Defesa e Segurança, e o Constantino, no de Secretário do Interior; ficando o lugar do Secretário de Controle que era também exercido pelo Rafael.
A mensagem fez sentir nos nossos colaboradores uma alegria profunda. De lembrar que nós os três éramos os responsáveis máximos e assinávamos todos os documentos que eram enviados à Direcção do Partido. A Direcção do Partido em Conakry fez-nos saber na mensagem que tal promoção e louvores foram devidos aos trabalhos feitos com grandes esforços e também das medidas que tomamos na altura em que se deu o caso do Luis Silva (Tchalumbé), em Conakry, e que permitiu a afirmação da liderança de Amilcar Cabral.
Caros senhores leitores, o nosso empenho e esforço nos primeiros anos da nossa luta da libertação da Guiné e Cabo Verde encontram-se seguramente nos documentos arquivados no Arquivo do PAIGC e está bem gravado na memória dos bons militantes e combatentes da primeira hora, do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde.
A chegada de três enviados de Cabral e um novo impulso à luta clandestina
[...] Como dito anteriormente, a chegada daqueles responsáveis, enviados por Cabral, deu um impulso muito grande à nossa luta dentro do território nacional, sobretudo na Zona 0. Para além da Bandeira e da mensagem, os três trouxeram ainda 7 pistolas automáticas para exercitarem os jovens e vários emblemas para distribuir aos militantes.
Como a minha mulher, Maria Rosa, já estava engajada nas nossas actividades, contei-lhe sobre a chegada daqueles nossos irmãos e também do material de propaganda trazido; ela ficou muito contente e com desejo de ver esses materiais. Assim, quando fui à Base, contei aos companheiros do interesse dela em ver a Bandeira e emblemas enviados de Conakry. Ainda sugeri aos companheiros que poderíamos aproveitar para levar esses materiais à D. Irene [Fortes] e à D. Iva, mae do nosso líder, e às filhas, irmãs de Cabral. Todos os presentes concordaram.
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Bandeira do PAIGC. Fonte: Wikipédia (com a devida vénia...) |
Foi o Albino Sampa e o Paulo de Jesus que levaram tais objectos à minha casa, em Ga-Beafada. Para levar os materiais de propaganda e a Bandeira da nossa casa à casa do Fortes e da D. Irene, no Bairro de Tchada, Maria tinha que passar na zona do Palácio do Governo, por isso teve que usar a Bandeira como sua roupa interior, por ser a maneira mais segura. Ela levou os materiais primeiro à D. Irene e de seguida à D. Iva e as filhas. À pedido da D. Iva, deixou ficar tudo por uns dias em sua posse.
A D. Iva, por sua vez, mostrou os materiais à Helmer Barbosa Fernandes que, satisfeito em ver a bandeira do PAIGC dentro de Bissau, pediu a D. Iva que a deixasse levar à fim de ir mostrar à alguns amigos de sua grande confiança, tendo ela concordado; Helmer pega da bandeira e leva à Alfândega; chamava os seus amigos de confiança e os mostrava; eles olhavam para a Bandeira e perguntavam com muito interesse e com grande admiração, como é que ele, Helmer, conseguiu uma coisa assim. Ele contou-nos depois que respondia aos amigos: «djobe cu odjobú cala boca». Depois de ter mostrado a todos os amigos, devolveu a Bandeira à D. Iva.
Foi dessa maneira que a Bandeira do PAIGC circulou pela primeira vez nalguns lugares da cidade de Bissau, naquelas horas primeiras da luta, e alguns guineenses e cabo-verdianos tomaram conhecimento de sua existência.
Nesse período, o sr. Constantino conseguiu mobilizar mais jovens, como John Eckert, Venâncio Furtado e muitos mais; Nicolau Cabral conseguiu mobilizar Armando Faria, Otto Schartt, Hildeberto Soares de Carvalho, Helmer Barbosa Fernandes, Ocante, capitão do motor da Casa Gouveia, entre outras para o nosso Partido. Toda esta actividade foi desenvolvida entre Novembro e Dezembro do ano de 1961.
(Continua)
Guiné > Bissau > PAI > Secção de Informação, Controlo e Defesa > s/d [c. 1961/1962 até março] > Mais um documento, do Arquivo Amílcar Cabral, contendo a assinatura do Naci Camará. Tem a particularidade de já usar papel timbrado do PAIGC, mas a sigla continua a ser PAI (até finais de 1962)... Este documento, não datado, tem de ser anterior a março de 1962, altura em que o Zain Lopes e o Naci Camará foram presos.
Assunto: Relatório assinado por Amadu Farrel (Secção de Informação), Zain Lopes, (Secção de Controlo) e Naci Camara (Secção de Defesa), dando conta da situação e das necessidades da luta em Bissau e no interior.
Data: s.d. [c. 1961]
Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Manuscritos 1960-1961.