sábado, 7 de março de 2020

Guiné 61/74 - P20709: Os nossos seres, saberes e lazeres (380): A Bélgica a cores que guardo no coração, e para sempre (8) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Setembro de 2019:

Queridos amigos,
Chega de vos inundar com imagens de recordações perenes de uma Bélgica que se foi conhecendo ao longo das décadas e sobrevive na memória, tal o encanto que provocou a este viandante. A despedida começa com o agradecimento a um museu icónico, os Museus Reais de Arte e História, é-se do tempo em que se podia passar um dia inteiro entre os primitivos flamengos até Francis Bacon e Alexander Calder, havia uma passagem entre o edifício neoclássico que nos levava a um subterrâneo, para o viandante o prato de resistência era a sala Magritte, hoje tudo mudou com a criação do Museu Magritte, ali ao lado.
E pula-se um pouco pela Bélgica, lembram-se joias da arte merovíngia, a última estação fica em Ypres, palco de um dos confrontos mais sangrentos da I Guerra Mundial, há para ali um arco comemorativo com centenas de milhares de nomes, percorre-se toda esta evocação aturdido pela gente inocente que aqui desapareceu num ápice, há inúmeros cemitérios à volta da cidade. E exatamente no momento em que se escrevem estas derradeiras palavras brota a vontade de regressar a uma cidade que se ama tão profundamente e onde o tédio nunca teve a categoria de ser uma má companheira.

Um abraço do
Mário


A Bélgica a cores que guardo no coração, e para sempre (8)

Beja Santos

Considera o viandante que chegou o momento para se fazer nova pausa neste entusiasmo inquebrantável que nutre pela Bélgica, pelo seu particular afeto à cidade de Bruxelas, que calcorreou sempre com a maior das satisfações, entusiasmado pela arquitetura, pintura, escultura, livrarias de obras em segunda mão, quinquilheiros, mercados de velharias, museus, jardins e florestas. Por coincidência ou não, uma boa parte das primeiras visitas de trabalho a Bruxelas metia mau tempo, o viandante procurou os mais convenientes portos de abrigo, aquilo que se tornou inesquecível, de retorno obrigatório, são os Museus Reais de Belas-Artes, ali, na sequência histórica das salas, com temporais e neve nas ruas, sentia-se aconchegado pelos primitivos flamengos, o museu é rico nos grandes mestres como Rogier van der Weyden, Hugo van der Goes, Hans Memling, a família Bruegel, Bosch. Naquele tempo, o museu avançava até à arte moderna, só muito mais tarde, com a criação do Museu Magritte, que lhe é contíguo, é que se deu a separação. De modo que, foram décadas em que o viandante começava nos primitivos flamengos e passeava-se toda a manhã até ao fim do barroco. Comida uma sopa e uma sandes acabava-se os séculos XIX e XX, contemplava-se sempre com a maior das admirações o riquíssimo acervo não só dos belgas como os franceses, tudo bem misturado: Théo van Rysselberghe, van Gogh, Fernand Khnopff, Pierre Bonnard, Paul Signac, James Ensor, Félicien Rops, Claude Monet.

Retrato de António da Borgonha, Rogier van der Weyden, cerca de 1430.

Retrato de Barbara van Vlaendenbergh, por Hans Memling, cerca de 1480.

“Carícias”, por Fernand Khnopff, 1896.

O retrato de Marguerite, por Fernand Khnopff, 1887.

O Museu de Arte Moderna fora inaugurado em 1984, entrava-se pelos Museus Reais, pela porta principal e à direita havia uma ligação para um edifício subterrâneo com oito níveis e com uma luz espantosa, dado um espaço ondulado em vidro. Exibiam-se então as coleções permanentes de esculturas, pinturas e desenhos do limiar do século XX até quase à atualidade, nesses sucessivos níveis, o visitante tinha acesso à arte conceptual e minimalista, a esculturas de diferentes épocas e de muitas proveniências, mergulhava, a outro nível, nas obras do fauvismo, cubismo, abstracionismo e expressionismo, era um nunca mais acabar de revelações: Emil Nolde, Pablo Picasso, Henri Matisse, Georges Braque, entre tantos outros. Nesse tempo havia a sala Georgette et René Magritte, um conjunto de vinte e seis telas, a visita era sempre obrigatória a este nível, sobretudo por causa do quadro “O Império das Luzes”. Tudo mudou com a criação do Museu Magritte, mudou o formato do Museu de Arte Moderna. As exposições de caráter mundial atraem multidões que extravasam os belgas.

Museu de Arte Moderna, Bruxelas, pormenor do exterior.

A Banhista, de Léon Spilliaert, 1910.

O império das luzes, por René Magritte, 1954.

Um quadro de Marc Chagall na retrospetiva que decorreu nos Museus Reais de Belas-Artes em 2015.

Saindo das recordações de Bruxelas, a memória salta para Namur, têm sido muitas as visitas, é o privilégio de ali ter uma amiga que o recebe sempre de braços abertos. Namur é a capital da Valónia e acolhe um património artístico fora de série. Os merovíngios foram fundamentais para consolidar o cristianismo na Bélgica, o viandante sempre que pode vai visitar estas peças encantadoras, verdadeiras joias da arte ocidental. A coroa relicário, como se acreditava, conteria espinhos da coroa de Cristo, foi oferecida por um regente do império bizantino a Filipe de Namur, no início do século XIII.

A coroa relicário de Filipe, O Nobre, Museu Diocesano de Namur.

Pequeno relicário merovíngio de Andenne, Museu Diocesano de Namur.

Em dado momento um grande amigo inglês pediu ao viandante se podia ir a Ypres, a certo cemitério fotografar duas lápides, ali estavam sepultados dois parentes que tombaram numa das mais sangrentas batalhas da I Guerra Mundial. O viandante deslocou-se a Ypres com um casal amigo, ficou arrepiado com o monumento comemorativo às centenas de milhares de mortos dessa carnificina, com algum trabalho atinou com as lápides e fotografou-as. Ypres é uma joia da Flandres, vê-se à vista desarmada que este mercado teve grandes retoques, mas é de uma imponência sem rival, tem a marca de água do gótico. E aqui se finalizam, até qualquer outro imprevisível retorno, as recordações da Bélgica, que acompanharão o viandante até ao fim dos seus dias.

O Mercado dos Têxteis de Ypres, reconstrução finalizada em 1967.
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20694: Os nossos seres, saberes e lazeres (379): A Bélgica a cores que guardo no coração, e para sempre (7) (Mário Beja Santos)

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