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sábado, 5 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23052: Fotos à procura de... uma legenda (162): Também me recordo da carreira de "Ambulâncias" entre Bissau e Cacheu, só não me lembro da cor dos autocarros nem da empresa a que pertenciam (António Bastos)

1. Mensagem do nosso camarada António Paulo Bastos (ex-1.º Cabo do Pel Caç Ind 953, Teixeira Pinto e Farim, 1964/66), com data de 4 de Março de 2022, onde nos fala da "Ambulância" que fazia a carreira Bissau-Cacheu-Bissau:

Boa noite a toda a Tabanca Grande.

Camaradas, já venho há umas semanas a ver se consigo lembrar-me qual a cor e a empresa do autocarro mas não saiu nada, são os anos.

Eu estive no Cacheu de 21-7-64 a março de 1965. Como sabem, aquele rio tinha a foz muito perto da fronteira com o Senegal, e era ali que chegavam os Ihomincas, como lhes chamavam no Cacheu. Aquela gente vinha carregada de tudo naquelas canoas (na 1.ª foto) eram eletrodomésticos, máquinas fotográficas, rádios etc.

Foto 1 - Canoas no Pidjiguiti

Ao desembarcarem tinham que passar pelo quartel e abrir as malas para serem vistas (2.ª foto), depois seguiam para o Posto Administrativo para pagarem a respectiva taxa (não me recordo quanto era) e depois lá iam eles apanhar a "Ambulância", assim chamavam ao autocarro com destino a Bissau.

Foto 2 - Cacheu, Novembro de 1964 > Bastos e Lopes fiscalizam as malas do gilas vindos do Senegal

A "Ambulância" fazia a carreira Bissau-Cacheu-Bissau. Também me recordo de o motorista, assim que chegava a Cacheu, geralmente ao sábado de manhã, ir logo a casa do senhor Joaquim Escada entregar encomendas e passar um pouco de tempo com ele e com a esposa. Eram um casal novo e tinham um filho com uns sete anos que mais tarde faleceu lá.

Também me lembro de numa altura em que a "Ambulância" vinha de Bissau para Cacheu, na estrada de Bula-Teixeira Pinto, ter sido atacada. Houve feridos, não me recordo quantos. Depois deste acontecimento, as carreiras foram interrompidas durante umas semanas.

Também sei que no mês de Agosto de 1964, quando os ihomincas chegaram à foz do Rio Cacheu, apanharam um tornado, tendo chegado a Cacheu com as canoas cheias de água e o material todo molhado.

Ainda tenho um rádio Sharp que lhes comprei e que ainda funciona.

Se entretanto me recordar de mais alguma coisa sobre o Autocarro ("Ambulância") logo escrevo.

Um abraço
A. Paulo
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Nota do editor

ùltimo poste da série de 2 DE MARÇO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23043: Fotos à procura de... uma legenda (161): Transportes públicos de Bissau: nos anos 50, operava a empresa A. Brites Palma (ABP), e os autocarros chamavam-se "ambulâncias"... Depois da independência, formou-se a empresa pública Silo Diata... (Mário Dias / José Colaço / Albertino Ferreira / Carlos Filipe Gonçalves / Cherno Baldé)

terça-feira, 17 de janeiro de 2017

Guiné 61/74 - P16961: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (38): 2 - O amigo Mohammed da Mauritânia


Nómadas no deserto


1. Em mensagem do dia 9 de Janeiro de 2017, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), autor do Livro "Memórias Boas da Minha Guerra", enviou-nos a segunda história da sua mini-série O meu amigo Mohammed, este da Mauritânia.

Caros amigos
Tal como prometi, junto a segunda das quatro histórias de "O amigo Mohammed".

Grande abraço
JFSilva


Memórias boas da minha guerra

38 - O amigo Mohammed

2 - Da Mauritânia

Corria o ano de 1978 e estava eu a trabalhar na Sociedade de Fundição e Metalurgia, agora denominada de Sofume, nome mais em consonância com as leis do Marketing e com a modernização a que fora submetida. Esta empresa centenária, que fora Escola de Fundição, pertencia a Abílio Pinto de Almeida, quando foi adquirida em 1952 pelos cunhados António F. Alves (meu sogro) e Eugénio Guedes Barbosa, também sócios iguais na empresa “A Juvenil – Passamanarias”.

A Fundição fora implantada em local escavado nas rochas sobranceiras ao rio Douro, na sua margem esquerda, num local chamado de Murça. Ali, mesmo ao lado, já existia outra empresa, a Antiga Fundição de Murça (da família Paiva Freixo).


Zona do cais actual de Crestuma

Nesse tempo (até aos anos 40), Crestuma, talvez devido à sua forte irregularidade geográfica, ainda não tinha estradas, mas beneficiava de uma das melhores vias de transporte – o Rio Douro. Crestuma, apesar de, então, ser a zona mais industrializada de Gaia, tinha os escritórios centrais das suas empresas na cidade do Porto. Ainda hoje se podem ver os sinais desses proprietários nos edifícios da Rua S. João, perpendicular à zona ancoradouro da Ribeira.


Porto - Rua de S. João. Ao fundo o Cais da Ribeira do Porto


Soleira da porta de entrada dos escritórios na Rua S. João

Fascinado pela paisagem e pelo bom gosto de quem o construiu, procurei restaurar o Escritório Técnico, de onde se vislumbrava toda a beleza do rio e seu movimento fluvial. Era lá que eu passava grande parte do meu tempo, enquanto trabalhava.
- Senhor José, está ali um taxista, com um gajo meio preto, que quer falar consigo.

Dirigi-me para eles e após um breve esclarecimento da situação, mandei embora o taxista e voltei para o Escritório, levando comigo o “preto”.

Das suas primeiras palavras, entendi que se tratava de alguém ligado à Guiné e que “arranhava” o crioulo, um pouco melhor que eu. Também dizia alguma coisa em francês.
Mandei-o sentar e fiquei de boca aberta com o que vi.
- José, “a mim misste fogarêro di fero”.

Sempre de pé, desabotoou o casaco, meteu as mãos nos bolsos e começou a tirar deles maços de francos franceses.
- “A mim misste todo patacão di fogarêro”.

E empurrou-me o dinheiro todo. Eram mais de 400 contos! Tentei devolver-lho, mas ele insistia que só queria os fogareiros de ferro fundido e acrescentou:
- José, “tu bom pessoal. A mim tem confiança em bô”.

Curioso, perguntei-lhe para onde ia levar tanto fogareiro e ele respondeu:
- Um carro tem rádio e todo o camelo tem de ter fogarêro.


Fogareiro de ferro fundido

Depois de acertarmos o idioma mais indicado para nos entendermos: um português afrancesado ou um quase-crioulo afrancesado e fiquei a conhecer parte da história deste comerciante a que, na Guiné, chamavam “Jila”.

Soube que desembarcara em Lisboa há três dias, vindo da Mauritânia e que fora encaminhado, via CP, para o Porto. Depois de alguns contactos / informações, meteu-se no táxi e assim chegou à fábrica, em Crestuma. Andava com uma garrafa de água, para bebericar e para molhar as mãos e a cara antes das suas orações. Aliás, mal se apercebeu ter conseguido o seu objectivo, perguntou para que lado era o mar e inclinou-se para os lados de Lever (leste, lado de Meca) e fez as suas rezas a Alá.

Apercebi-me também de que ainda não comera durante esses três dias. Não ia a restaurantes, porque não se sentia seguro de ser servido com comida sem gordura animal (ou porco). Levei-o até Matosinhos e, na espectativa de lhe matar a fome, fomos almoçar ao Restaurante Mauritânia. Surpresa nossa: não encontrámos nada, além do nome, que identificasse ligação àquele país. Pensei que o arroz de marisco, fosse o mais indicado, mas o Mohammed só comeu o arroz.

O Mohammed tinha as suas origens ligadas aos mandingas do Mali e do grupo etno-linguístico Mandê. Como nómadas e de religião animista, foram vencidos pelos berberes que lhes incutiram a religião muçulmana.

Trabalhou regularmente como “Jila”, entre Bissau e Nouakchott. Mostrou conhecer Bambadinca, Fá Mandinga, Bafatá, Gabu e Canquelifá. Também conhecia bem as casas comerciais Gouveia, a Ultramarina, a Correia, Taufik-Saad, etc. Casou com uma jovem de uma tribo de nómadas, onde, actualmente, já deve ocupar lugar de responsabilidade.

O Mohammed confessou os dois principais objectivos imediatos: comprar outra mulher e ter outro filho. Talvez por isso, ele olhava tanto para as mulheres. Porém, ele considerava que as portuguesas eram quase todas doentes. Para ele, uma mulher magra não era conveniente para a reprodução. Pelo contrário, quando via uma mulher “tipo baleia”, ele arregalava os olhos a brilhar e exclamava:
 - “Muié bonita”!

Para ele, que era um “fivelinhas” de menos de 40 Kgs, uma mulher “bonita” teria que pesar mais de 100 Kg.

O Mohammed não parava de dizer “Portugal manga di verde, bonito”. Resolvi ir dar uma volta com ele pelo Minho.

Depois de visitarmos o monte da catedral de Santa Luzia, em Viana do Castelo, parámos num bar uns 200 metros mais abaixo. Fomos beber qualquer coisa, enquanto saboreávamos aquela paisagem deslumbrante. Uns minutos depois, ele saiu e pôs-se a rezar, de costas para Viana do Castelo e virado para o Monte de Santa Luzia. Por coincidência, estava curvado, quando, um homem que passava, lhe estendia uma esmola. O Mohammed, alheio ao gesto, curvara-se de novo. Ao aproximar-me, ouvi o homem, ainda de mão estendida, a dizer-lhe:
- Tome lá. Levante-se e deixe-se disso.

Quando lhe propus comermos um arroz de frango “à maneira”, ele não se pôs de fora, mas confessou que não podia aceitar, uma vez que o animal teria que ser morto por ele ou pelo seu superior religioso. Pedi então à minha sogra que cedesse uma galinha para o sacrifício. E foi sob a sua orientação que lhe proporcionámos as condições “logísticas” e religiosamente exigíveis para a “execução”.

Ainda o estou a ver na eira, de cócoras, com as mangas do casaco arregaçadas, os cotovelos pousados nos joelhos e com os braços e mãos a moverem-se tipo guindaste na doca, deslocando-se, manuseando a faca e “executando devidamente” a galinha. Tudo isto diante de duas bacias de água, uma quente e outra fria, as quais utilizava, com intervalos de rezas para Alá, cuspindo, de vez em quando, para o lado.

A minha santa sogra, pensando tratar-se de alguma bruxaria, benzia-se repetidamente e ia rezando/murmurando/contestando em voz baixa. O homem consolou-se com o frango cozido. Nem parecia o mesmo.

No dia seguinte, só falava no desejo de uma sopa de legumes. Como teria que ser sem gordura animal, procurei um “Caldo Verde”. Só o encontrei no terceiro Restaurante em que procurei. Mandei retirar a “tora” (rodela de chouriço) da malga dele. Porém, o Mohammed receou tanta pureza e recusou a sopa. O empregado, parecendo compreender a situação, ofereceu-se logo para trazer outra sopa, garantidamente sem chouriço ou outras carnes. O Mohammed olhou-me para eu lhe dar a confiança de que necessitava. E tudo correu bem.
- “Muito bom sopa! Pode cumê más”?

No final, depois do café, ainda sugeri um licor. Sem álcool, claro.
O mesmo empregado trouxe dois pequenos copos com um licor cor-de-rosa.
- “Muito bom bebida”! – gabava o Mohammed.

Na despedida, o empregado dizia-me:
- Não se preocupe com este tipo de pecados. O que interessa é que o homem fique com a consciência tranquila e o corpo satisfeito. E se o Alá me quiser foder a mim, que o fiz pecar, tem que vir aqui, a Matosinhos.

Pensando ter cumprido a sua missão, o Mohammed pediu-me se o levava a Aveiro, onde queria ficar. Ele insistia no “Stella Maris”. Fiquei a saber que se tratava de um Clube da Gafanha da Nazaré, em Ílhavo, muito frequentado pelos tripulantes de empresas que pescavam na costa da Mauritânia.
Quando lá chegámos fiquei surpreendido com o ambiente amistoso que me dispensaram. Apercebi-me de que o Mohammed já havia falado bem de mim. Comeu-se bom peixe e bebeu-se bom chá. Se o chá embebedasse, eu não teria conseguido sair dali.

Silva da Cart 1689
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Nota do editor

Poste anterior de 30 de dezembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16895: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (37): 1 - O amigo Mohammed da Guiné

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Guiné 63/74 - P14009: A minha máquina fotográfica (7): Comprei a um gila em Teixeira Pinto, em 2/11/1973, uma Minolta SRT 101, por 5850$00 (António Graça de Abreu, ex-alf mil, CAOP1, Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74)



Minolta SRT 101, c. 1968. (Imagem reproduzida com a devida vénia do portal Camerapedia Wikia)


1. Um excerto do livro de memórias do nosso camarada António Graça de Abreu, enviado por ele no passado dia 8:


[Foto à direita: O alf mil António Graça de Abreu CAOP 1 (Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74), de G3 e máquina fotográfica, Minolta,  na estrada Mansoa-Porto Gole, 1973. Foto de António Graça de Abreu, ]



Teixeira Pinto, 2 de Novembro de 1972


Comprei uma máquina fotográfica. Ontem ao fim da tarde vinha eu a entrar no quartel de jipe – tinha ido levar um piloto à pista – e os soldados que estavam de guarda mandaram-me parar. À porta encontrava-se um tipo preto à espera do alferes Abreu, com uma máquina fotográfica para vender. A notícia de que eu queria comprar uma máquina já havia chegado lá fora. O rapaz mostrou-me o aparelho, era uma Minolta SRT 101, uma das câmaras mais completas da Minolta. 

Indaguei a sua proveniência. Fora trazida da Gâmbia por um “jila”. Os “jilas” são uns indivíduos de tez mais clara, rosto triangular e túnicas brancas que fazem comércio, uma espécie de contrabando legal entre a Gâmbia – um pequeno país encravado no Senegal, – e a Guiné. A máquina fotográfica parecia impecável, ainda metida nos estojos abertos por mim. 

O homem pediu-me 6. 500$00. Disse que ia já resolver o assunto, peguei na máquina e vim aqui ao quartel falar com um furriel e com o Tomé, mais entendidos em aparelhos fotográficos do que eu. Miraram, remiraram e disseram-me “compra, vale a pena, isso é novíssimo e em Lisboa custa mais de dez contos.” 

Voltei ao africano, ofereci-lhe 5.750$00, ele começou a descer, 6.300$00, 6.200$00, 6.000$00. Disse-lhe que lhe dava 5.850$00, era pegar ou largar. Acabei por comprar a máquina fotográfica por este preço, agora estou equipado com um autêntico canhão para tirar as fotografias que quiser. Não só palavras para o retrato do quotidiano, vou ter mesmo os outros retratos, a imagem, o testemunho impresso do olhar.


Em Diário da Guiné, Lisboa, Guerra e Paz Editores,, 2007, pag. 62 e 63 [, imagem da capa, à esquerda]. [Fixação de texto: LG]



Guiné > Região de Tombali > Cufar > CAOP1 > 1973  > O António Graça de Abreu, no aeroporto de Cufar, em Dezembro de 1973, posando junto a umn heli, Allouette III. No mês anterior, o aquartelamento de Cufar tinha sofrido uma flagelação com foguetões 122, e um ataque com RPG [lança-granadas foguete] e armas automáticas, nas proximidades do arame farpado... Dezete meses depois do início da sua comissão, o nosso camarada recebia finalmente o seu baptismo de fogo.  

Foto: © António Graça de Abreu (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: LG]

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