Queridos amigos,
As solicitações de uma menina de 12 anos merecem ser correspondidas, já sei o que é a disciplina de HGP, caminhamos para o liberalismo e começámos na civilização muçulmana, veio agora a incumbência de fazer um relatório a uma viagem de museu, fui confrontado com o facto consumado de que a neta escolhera uma casa de que gosta muito, o Museu Nacional de Arte Antiga, tem boas vistas e boa comida, ainda por cima, impunha-se fazer uma seleção de temas, na viagem acertámos o que lhe interessava versar, nada do estilo indo-português, nem muito ourivesaria, acresce que de vez em quando havia que fazer uma pausa, ó avô, vim trabalhar, um chocolate com meia torrada a meio da manhã vai-me despertar a vontade de visitar mais coisas... Tal como aconteceu e muito me entusiasmou, a menina gosta dos presépios de Machado de Castro, detesta as chávenas arrebicadas de que o avô gosta e estranhamente nem pediu para ver o Bosch, anda em viagem, ficará para uma próxima. Aqui está mais ou menos metade do percurso, o resto fica para a semana.
Um abraço do
Mário
Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (89):
Uma visita ao Museu Nacional de Arte Antiga, a neta questiona tudo (1)
Mário Beja Santos
O telefonema trepidante, carregado de urgências, veio ao fim da tarde de sexta-feira, o avô fica a saber que a neta tem de fazer um trabalho de HGP, tem que o entregar na quinta-feira próxima, cada um de nós lá da turma pode visitar um museu, vamos organizar quem vai aonde e o que vai ver, olhe, avô, lembrei-me de irmos àquele museu que tem tudo e mais alguma coisa de antigo, lembra-se? Crucifixos muito velhos, tapeçarias, presépios, coisas do Japão, aqueles painéis que o avô diz que é obra de valor universal, não há retrato de um grupo no século XV como aquele? Pois foi o que eu escolhi, e a professora aceitou, preferia que fosse amanhã a visita, assim tenho domingo para começar a escrever, tiramos os dois imagens e o avô depois ajuda-me a comentar, está bem? Tenho que fazer uma apresentação, um ou dois parágrafos sobre a história do museu e fazer uma escolha de objetos, pode ser amanhã, e depois vamos almoçar?
E lá fomos, o frio ajudou a passarmos prontamente para o interior, falou-se do convento que tinha sido, com capela, pois claro, falou-se da extinção das ordens religiosas, e da calamidade que dali sobreveio para muita arte espoliada, e depois a obra de D. Fernando II, o marido de D. Maria da Glória, foi o dínamo desta organização museológica, evitou outras calamidades, imagina tu que a Custódia de Belém esteve para ser derretida, vamos então fazer uma escolha de objetos de arte, organiza-se por temas, está descansada que vamos ver os painéis, sim, vamos almoçar depois desta visita. Olha, vamos começar pelos barristas e pelos presépios, não demoramos muito.
Repara bem nestas figuras de presépio, vê o equilíbrio das formas, a indumentária da figura do meio, a sensibilidade e ternura que marca o rosto daquele pastor que leva uma ovelhinha para o Deus Menino, não achas isto uma preciosidade?
Em dado momento, os barristas quiseram associar figuras régias aos presépios, afinal os reis foram adorar Deus, tens aqui o rei Baltasar, no século XVIII, o negro está presente na sociedade portuguesa, podes vê-lo nestas duas obras de arte, olha bem para o recamado do vestuário do rei Baltasar e a organização do trio de jovens que vão levar presentes ao Menino.
Não sei o que te diga, há quem diga que estas obras de arte não passam de arte decorativa, só vejo talento e centelha de génio na organização e arrumação deste espaço, o equilíbrio das formas dentro desta encenação barroca onde não faltam motivos clássicos, olha bem para aquelas colunas da esquerda com capitel dórico, vê a disposição e iluminação, que assegura uma leitura espiritual, um chamamento à devoção.
Ó neta, já viste Baltasar Figueira, o pai da Josefa, no Museu Municipal de Óbidos e a Josefa nas pinturas da igreja, neste século XVII não tivemos melhor pintor que a Josefa no que toca a temas religiosos e naturezas-mortas, aqui parece que estamos a assistir a um hino à pujança primaveril, com a amenidade do céu ao fundo, no espaço intermédio a linearidade do casario, que bela organização do espaço, não achas?
Vamos lá ver o que esta sala nos reserva, temos aqui o sr. D. João VI, às vezes questiono se não houve uma conspiração de todos os artistas que o pintaram, o regente e depois el Rei nunca deveu nada à beleza, o ponto curioso é que os historiadores dão conta da inteligência e da habilidade política do monarca, mesmo quando foi desfeiteado e traído pela mulher e pelo seu filho Miguel, pô-los com dono, mas teve um destino bem amargurado e olhando bem de frente este trono sou levado a pensar que há por ali espinhos que ninguém vê e dores que ninguém mais pode sentir, ó neta, são coisas da minha imaginação, o trono pode ter algum esplendor mas francamente acho-o uma coisa compacta, com reminiscências do estilo Império, vamos adiante.
Atravessamos agora uma sala e sinto que a neta suspira, lá está o avô a dar atenção ao bricabraque, como se não tivesse alguns móveis atulhados desta loiça, é a minha vez de pedir vamos adiante, tenho um trabalho para fazer, garanto que não vou falar destas chávenas.
Neta, eu devia ter aí uns onze anos quando visitei este espaço e quero que acredites que devia haver uma certa falta de dinheiro para limpar as pratas, tudo muito escurecido, o olho desvalorizava, agora tudo nos aparece flamejante, como deve ser para se entender o portentoso desta encomenda, até posso imagina D. João V a receber embaixadores num daqueles jantares intermináveis com toda esta panóplia, invejável em qualquer corte, a delicadeza das formas, a natural harmonia das peças, o cuidado dos aspetos mais minuciosos, veja-se os rendilhados, a ondulação da base, o peso ornamental dos braços, que tesouro universal a que nos podemos arrogar!
Outra peça saída do genial ourives Germain. A graciosidade com que aquelas mãos sopesam o bico, a habilidade daquela pega, nem a carantonha, um tanto simiesca, nos amedronta, e que bonita solução encontrada naquele chapéu, por onde se enche de líquido, o que uma lamparina aquece. Para quê mais palavras?
Continuamos em movimento, neta, estas tapeçarias não eram só para provocar emoção estética, aqueciam ou resguardavam, temos tapeçaria do que há de melhor no mundo, havemos de ir à Manufatura de Tapeçarias de Portalegre e ao respetivo museu, vais pasmar com os tesouros que fabricamos, mas é sempre bom olhar para estas obras-primas que nos vieram dos Países-Baixos ou de Itália ou de França, há para aqui muitos temas mitológicos, como há a glorificação da nossa chegada à Índia ou conquistas do Norte de África, temáticas não nos faltaram, hoje vai pelo que somos brindados pela imaginação dos nossos artistas, podem ser Almada, Camarinha, Menez, entre tantos outros.
Este boliviano que deu uma festa de estalo na altura em que Salazar se acidentou (agosto de 1968) mimoseou este museu com doações ímpares, pensa tu, ó neta, o trabalhão que é desmontar, encaixotar e pôr tudo noutra sala, num país longínquo, este esplendor de outrora, e como nos sentimos impressionados e até confusos, porque não há nada, nem antes nem depois, que se aparente no percurso que fazemos até chegarmos à pintura que tu tanto anseias.
Podes confiar na minha seleção, este Hans Memling vi dele uma exposição comemorativa de centenário em Bruges, corria o ano de 1994, lá estava esta Virgem com o Menino. Não nos podemos gabar de termos uma coleção extraordinária de grandes mestres europeus, mas tu vais agora desfrutar de outros que por direito próprio podiam estar nos melhores museus do mundo.
Este Rafael, sabe-se lá porquê, cada vez que o contemplo aqui, obriga-me a pôr a imaginação aos saltos, volto aos Museus Vaticanos e paro embasbacado diante da Escola de Atenas, que quadro colossal, o pior é que está bem perto de um dos maiores tesouros da pintura universal, a Capela Sistina, daqui saímos esmagados.
Uma das prendas que a minha mãe me deu quando fiz o 5º ano de liceu foi um livrinho com reproduções de Piero della Francesca, altamente representado na Galeria dos Ofícios, em Florença. O que impressiona aqui é como o grande pintor meteu num género de tábua um santo meditativo, de olhar distante e com a pujança de um Doutor da Igreja, só falta saltar para o chão, e mantendo o báculo na mão, citar-nos As Confissões. Neta, vamos agora fazer um break, tenho a impressão que o melhor está para vir.
(continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 4 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24037: Os nossos seres, saberes e lazeres (554): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (88): Leeds, a próspera, sempre em renovação, aqui dá gosto ser pedestre (Mário Beja Santos)