domingo, 5 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24038: Blogues da nossa blogosfera (177): A matança do porco de antigamente... e a alegria da festa que não se compra nos hipermercados (Augusto Pinto Soares, coeditor de "A Nossa Quinta de Candoz")


Marco de Canaveses > Paredes de Viadores > Parque de merenda de Nossa  Senhora do Socorro > 31 de agosto de 2019 > 6º encontro da família Ferreira > O nosso "Gusto", natural  do orto, casado com uma Ferreira Carneiro, nascida em Candoz... Ele é o homem dos sete ofícios, podador, enxertador, tractorista, contabilista, etc., incluindo acordeonista...  E de há quatro anos a esta parte, um grande cuidador, que sabe lidar como poucos com a doença crónica da sua Ana (que tem sido uma heroína)...

Mas a vida não é só dor, sofrimento, doença, tristeza... Na festa da família Ferreira não podem faltar todos os elementos da festa da vida... o pão, o vinho, os salpicões, o anho assado com o arroz de forno, os pastelinhos de bacalhau,  a doçaria,  a alegria, a música, a reinação, as cantigas à desgarrada, os cantaréus, a dança, a "canalha" (as crianças, os adolescentes), os jovens, os graúdos, os pais. os avós e os bisavós...

Cada "família" trouxe o seu pestisco, que foi partilhado nas  mesas de granito do parque das merendas, sob a benção da Nossa Senhora do Socorro... Era já noitinha quando cada família  arrumou a trouxa e voltou às suas casas, uns mais perto, outros mais longe, com vontade de voltar no  ano seguinte (estava agendado, o 7º convívio,  para 29 de agosto de 2020, mas a pandemia de covid-19 pregou-nos a partida, e que partida!)... 

Afinal, a vida são dois dias e a festa da vida deviam ser três...

Foto (e legenda): © Luís Graça (2019). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Teve bom acolhimento, entre os nossos leitores, o poste do Francisco Baptista sobre a matança do porco na sua aldeia de Brunhoso, concelho de Mogadouro, Terra Fria Transmontana (*). Uma terra  "rica e autossuficiente", escreveu ele, num dos postes da sua série "Brunhoso há 50 anos". Aliás, ninguém como ele, neste blogue, comnseguiu manifestar por escrito, com tanta evidência, ternura e talento literário, o amor que que se pode ter  à terra que nos viu nascer. (Desta série, sairia, de resto, o seu livro "Brunhoso, Era o Tempo das Segadas - Na Guiné, o capim Ardia", edição de autor, 2019, 388 pp.)

Não nos levem a mal que, em complemento dessa narrativa, de inegável interesse etnográfico, e que sobretudo nos ajuda a reconstituir ou reviver parte das memórias das nossas raízes telúricas, eu reproduza também aqui um texto, da lavra do meu cunhado e sócio, Augusto Pinto Soares (o "Gusto"), s0bre "a matança do porco de antigamente" em Candoz (região duriense), publicado originalmente no blogue de que somos, eu, a Alice e ele, editores, "A Nossa Quinta de Candoz" (**). Para além de saborosos pormenores que ilustram a "festa" e a "gastronomia" associadas ao porco (elemento essencial da economia doméstica das famílias rurais no Norte), há também uma boa ilustração fotográfica, que falta ao poste do Francisco Baptista.

São do Augusto Pinto Soares também dois notáveis postes, já aqui publicados, sobre as vindimas de antigamente (***). (De resto, a Quinta de Candoz também é uma tabanca: a Tabanca de Candoz tem mais de meia centena de referências no nosso blogue.)


Quinta de Candoz: a matança do porco de antigamente

Texto de Augusto Pinto Soares (2005)

Créditos fotográficos: Luís Graça (2005) e Luís Filipe Soares (2005)


Quinta de Candoz (sita em Candoz, antigo concelho de Bem Viver, hoje freguesia de Paredes Viadores, concelho do Marco de Canaveses, distrito do Porto) > O amanhecer em Candoz... O rio Douro, a albufeira da barragem do Carrapatelo, Porto Antigo, ao fundo,  a serra de Montemuro, Cinfães (já no distrito de Viseu) coberto de nevoeiro cerrado.

Manhã cedo, quase a alvorecer, fria como convinha. Ao longe, as serras estão brancas, cobertas com um manto de neve. Típica manhã de Dezembro.

Os dedos enregelavam. O dono da casa e os filhos já espigadotes, com corpo de homem, agasalhados com capotes e samarras com pele de coelho no colarinho, calçados com socos de madeira que estropiam nos montes de geada congelada no chão, esfregam as mãos tentando fazer girar o sangue para as aquecer.

Era o dia da matança do porco. Dia esperado com alguma ansiedade pois parecia dar abundância naqueles tempos de míngua, de escassez. A matança era um momento solene, porque muitas famílias não tinham mais nada além do porco.

O ambiente ia sendo preparado. O carro de bois já tinha sido colocado de feição. As panelas com água já estavam na lareira, entretanto acesa, para ferver água. Molhos de palha, amarradas como archotes, estavam prontos. Um alguidar com um pouco de vinho verde tinto no fundo aguardava junto ao carro.


Quinta de Candoz > O velho carro de bois, agora peça de museu, onde, antigamente, se sacrificava o animal...

Os preparativos estavam feitos. Munido das suas facas e do respectivo afiador, eis que chegava o matador. Homem experiente, já de certa idade, lavrador como todos os outros mas que há já muitos anos, nestas alturas, se dedicava a matar os porcos que a vizinhança das redondezas lhe solicitava. Era uma arte a que poucos se dedicavam.

A dona da casa já tinha preparado o mata-bicho (broa de milho e centeio e aguardente – alguns preferiam-na com um pouco de açúcar) para aquecer os corpos, ainda esfriados como a manhã.

O dono da casa, o matador e mais três ou quatro filhos lá se dirigiam para a corte onde o bicho, qual condenado sem saber a sentença que lhe coubera de sorte – mas parecendo que a adivinhava – olhava de soslaio, e com alguns guinchos, para aqueles vultos que não era costume aparecerem àquelas horas para lhe darem de comer – o que tanto desejava pois desde o dia anterior que pouco ou nada tinha comido, apenas alguma água de lavagem. Desconfiado, ia-se resguardando no canto mais recôndito que encontrava na corte.


Marco de Canaveses >  Feira do gado > O porco era o governinho da patroa e o boizinho, vendido na feira do Marco, uma das poucas fontes de receita dos lavradores e sobretudo dos caseiros, para além do vinho e do milho, antes do 25 de Abril. (O boi da foto era um animal de trabalho, a junta de bois substituía o tractor.)

O dono da casa ou normalmente o próprio matador, munido de uma corda de amarrar os bois, entrava e aproximava-se do animal. Os outros, à porta cercavam o local.

– Oh bitcho! Oh bitcho!

Com alguma dificuldade mas com a mestria de quem tantas vezes já tinha efectuado aquela tarefa, o matador colocava a corda, como um açaimo, em redor do focinho e entre os dentes do animal.

Agora, puxado para fora da corte e com os restantes homens a vigiar – não fosse o bicho fugir, o que não seria a primeira vez – era conduzido para o carro de bois. E todos num verdadeiro esforço lá conseguiam deitá-lo com a cabeça para baixo junto à cabeceira do carro.

Os quatro homens seguram-no, cada um em sua pata e colocado o alguidar com o vinho (para o sangue não coagular) por debaixo da cabeça do bicho, o matador, dando uma palmada (tal como se fosse para dar uma injecção) por cima do sítio onde a faca iria entrar, espeta-a com precisão cirúrgica, junto à goela, no único sítio que fará com que o sangue flua completamente para o alguidar. Os berros do bicho são essenciais para que o sangue saia todo e são sinal que a faca foi espetada no sitio certo.

 Sim senhor! A faca foi bem metida! Nem uma pinta de sangue lá ficou! Deu-o todo!

O alguidar já vai para a cozinha onde o sangue será cozido (a água já ferve na panela de ferro que está à lareira) para, daqui a pouco, ser levado como pitéu, juntamente com broa e vinho verde tinto, aos homens. È o dejujuadoro (deixar de estar em jejum) daquele dia.


Quinta de Candoz > c. 1980 > A matança do porco: cinco homens e duas mukheres oara matar um porco... Uma cena, hoje cruel para os nossos filhos e netos citadinos (a que a criança do cmapo se habituava desde tenra idade...), e  que Bruxelas quis definitivamente banir dos nossos campos e aldeias em nome de uma concepção fundamentalista da saúde pública e de uma Europa globalizada, normalizada e tecnocrática, matando a etnodiversidade... O "Gusto", em segundo plano, ao centro, de óculos...A Alice Ferreira Carneiro, do lado direito, de perfil, em primeiro plano...  O "matador" é o Manuel Ferreira Carneiro, o único dos três rapazes da família que ficou livre da tropa por deficiência  numa perna. Três raparigas completavam a famíia Ferreira Carneiro.

Aceso um molhe de palha pouco a pouco vai-se tostando a pele do bicho, queimando-se os pêlos para que o couro fique o mais liso possível. Os homens já não sentem tanto o frio. O esforço e a tocha a queimar a pele do bicho já os fez aquecer. Entretanto já lá vem o sangue cozido que, com a broa e o vinho, os fará aquecer ainda mais. Os casacos e as samarras já são um estorvo!

– Bitcho bô! ...Pesa bem cem quilos!

– Eu não dou tanto! P’raí uns noventa e três!

– Depois veremos! Há aí uma balança para tirar as teimas!

A pele do animal já está quase escura. Com sacholas, facas, escovas e pedras rapam-se os pêlos já queimados, lavando ao mesmo tempo o couro.


Quinta de Candoz > A palha de centeio com que se limpava e tostava a pele do animal...

Escaldada a língua e a orelheira, faz-se a limpeza a essas partes. Dá-se agora mais uma achega de calor com a palha a arder para que a pele fique mais tostada – a cor dum verdadeiro leitão assado – e com água e sabão completa-se a aparência final.

Com as mãos da frente amarradas a um estadulho do carro de bois e o mesmo para as patas traseiras o bicho é erguido pelos quatro homens que, quais gatos-pingados em cortejo fúnebre, o levam para a loja da casa – o sítio mais fresco – onde pendurado nuns ferros fixos ao tecto (que sempre lá existiram para o efeito) e com a cabeça para baixo será preparado para uma primeira dissecação.


Quinta de Candoz > A desmancha do bitcho na loja (o piso térreo da casa rural que servia para armazenamento ou para apoio às actividades agrícolas: era lá que ficava o lagar, as pipas do vinho, a salgadeira, etc.)

Enquanto os homens se ocupam em outros serviços (é tempo de podar as videiras), o matador e a dona da casa iniciam a primeira operação de desmanchar o porco. Aberta a barriga desde a garganta até ao ânus, são-lhe então retiradas as tripas (que depois de frenética e convenientemente lavadas em água corredia, passadas várias vezes por água bem quente, esfregadas com sal e limão e marinadas com vinho alho e limão serão usadas para fazer as moiras e os salpicões); os miúdos (coração, bofes, goela, etc.) que no dia seguinte devidamente cortados em pequenos pedaços, adicionadas com vinho verde tinto, algum sangue, de carne das capas e demais condimentos, darão as referidas moiras que depois de fumadas no sarilho (cravado na chaminé por cima da lareira), propiciarão um lauto manjar de arroz “a fugir pelo prato fora” com feijão branco e grelos.

A língua servirá para um óptimo salpicão que será apreciado no Carnaval. O fígado cozia-se para depois ser comido frio, ás fatias, com um bom naco de broa. A bexiga, depois de cheia com ar e amarrada no topo, como um balão, vai a secar junto ao fumo da lareira como sinal que se tinha feito uma matança de porco e em alguns casos para servir como irrigador para dar clisteres a quem deles necessitava. Desde o unto à bexiga nada se podia perder. 

Nesses tempos, o porco era o governo da casa, algo de que a patroa se poderia socorrer sempre que era preciso confeccionar uma refeição mais elaborada (em dias de festa por exemplo) para a família ou para eventuais visitantes citadinos que de quando em vez apareciam. Era uma boa oportunidade para a patroa pôr à prova os seus dotes culinários e de gestão alimentar transformando o corpulento animal em fartura para a casa durante o ano.

Já sem as entranhas, com a barriga bem aberta e segura por espetos de madeira cravados duma banda à outra para melhor expor o interior, recheado de ramos de folhas de loureiro aí vai ficar o bicho a secar e a arrefecer a carne até ao outro dia.

A porta devidamente fechada à chave não só para prevenir a entrada de moscas (não são normais neste tempo de frio mas…) que poderão conspurcar a carne, mas também não vá aparecer um daqueles vizinhos maganões que por brincadeira leve o porco da loja deixando os donos da casa atormentados e com os cabelos em pé por pensarem que lhes roubaram o que tanto lhes tinha custado a criar no último ano e que seria o principal sustento da família durante o próximo.

O almoço já apetecia. O odor do salpicão paioto (o maior) – reservado até agora da matança do porco do ano anterior – a cozer juntamente com um arroz malandro convidava ao repasto e fazia crescer água na boca.

Novo dia. Nova expectativa de mais fartura.

A meio da manhã, o matador chegava preparado para a segunda operação de desmanchar o porco. Descido dos ganchos que o sustiveram durante a noite era então levado para a balança.

– Cento e cinco quilos!
– Eu sempre tinha razão! Tenho o peso nos olhos!
– Pois,  olhe, eu fazia-lhe menos um bocado!

Preparada a tábua – em cima de uns cepos – com uma toalha de linho onde o porco seria dissecado, preparados os panos – também de linho – onde as várias qualidades de carne seriam colocadas consoante o seu destino – o matador, sob a vigilância aguçada da dona da casa, começava a desmancha cortando sabiamente cada peça de forma a ter o maior aproveitamento possível.

 – Corte mais por ali! Tire as capas mais fininhas!

 – Tá bem, Tia Maria!

 – Arredonde-me mais esse presunto! Essa gordura vai para pingue!

Meticulosamente cada peça dá o seu melhor para a salgadeira ou para o fumeiro.


Quinta de Candoz > A continuação da desmancha do bitcho na loja...Um dos especialistas era o mano mais velho, o António Ferreira Carneiro, que na tropa foi 1º cabo magarefe, e é DFA: fez parte do  Destacamento Avançado Móvel de Intendência nº 664 (Moçambique, Tete, 1964/66; era conhecido como o "brasileiro")  

E pouco a pouco as várias partes do porco lá iam sendo cortadas, preparadas e separadas: as bandas (para fazer os rojões), os coelhos (para os melhores salpicões pois é a coisa mais gostosa que tem o porco, muito tenrinha.), a cabeça com as orelhas a serem comidas por altura do Entrudo ou na primeira lavourada, a caluba (para salpicões), a espinha (para dar sabor à sopa), os lombos (para os salpicões), as costelas, as capas (donde saíam as melhores fêveras para assar – que sabor… – mas poucas, pois poupar era preciso e eram bem necessárias para as moiras), os meios, os presuntos, as pás e finalmente a cumeeira (couro com a parte mais gorda que se usava para fazer banha ou unto – cortava-se aos poucos, um bocadinho de cada vez, para durar o ano todo - e juntava-se à sopa para lhe dar a gordura que a enriquecia ou, quantas vezes, migava-se com sal fazendo-se assim extrair mais gordura).

A hora de almoço chegava e naturalmente era servido um arroz de costelas mas, um ossinho para cada pessoa e, só porque era o dia da matança. À lareira umas boas brasas aqueciam o ambiente frio da manhã e … assavam fêveras das bandas, só com uma pitada de sal para – uma por pessoa – acompanhar aquele arroz com o suco que delas saía.

O cheirinho que exalava.

 Oh! Sabor dos sabores… Só possível dum porco caseiro, criado durante quase um ano com os restos da comida caseira. Era quando uma boa caneca de vinho verde tinto da casa, da colheita há pouco acabada de fazer, com o característico sabor málico – a transformação malo-láctica ainda não se tinha efectuado – bem adstringente, fazia exclamar:

– Isto até dá vida a um morto! …

Acabada aquela soberba refeição e enquanto os homens se dirigiam para os trabalhos do campo (podar, cortar erva para os bois, pensar o gado, etc.), o matador e a dona da casa lá iam para a loja tratar de salgar o porco.

E esfrega que esfrega, os presuntos e as pás, mais que as outras peças, lá iam ficando bem impregnados de sal. Então, na salgadeira (caixa enorme de madeira) – o frigorífico da altura – onde iriam ser consumidos entre cem a cento e vinte quilos de sal, as peças, de acordo com a sua utilização temporal iam sendo acondicionadas com cuidado e sempre bem cobertas e aconchegadas com o sal – nisso a “patroa” era intransigente –.

 –  Olhe, Tio Rocha, aqui está a cumeeira! Ponha-a bem no fundo! Tem que dar para o ano todo!

E lá seguiam os presuntos (que aí permaneceriam cerca de quatro meses, para depois, previamente esfregadas com colorau - pimentão doce - e conjuntamente com as pás, serem expostas ao fumo), as pás (cerca de três meses), os ossos a calçar as várias peças, as unhas, os lombos (aí estariam só cerca de dois a três dias para depois serem colocados em vinha d’alhos e quarenta e oito horas depois se fazerem os salpicões) e a cabeça.

Mais umas boas garfadas de sal a cobrir tudo para que nada ficasse exposto ao ar e… estava terminado o trabalho.


Quita de Candoz > A panela de ferro onde se faziam os rojões...

A noite aproximava-se. Era preciso preparar a panela de ferro onde os rojões seriam feitos para dar cumprimento à tradição e ao manjar final do dia da matança do porco. Uma pequena parte, das bandas do porco, já tinha sido separada e cortada aos pedaços. A carne entremeada de uma parte gorda e outra magra (próprio daquela parte da barriga), juntamente com o couro e sempre acompanhada do redenho ou gola ou lenço – tecido que separa as tripas grossas das finas – é então deitada na panela com um pouco de banha e com paciência e a ajuda de uma colher de pau, mexe e remexe e torna a mexer, lá se vai vendo os rojões a ficar douradinhos, untados, deliciosos quanto baste para se ter a tentação – sem que a dona da casa o visse – de sorrateiramente se surripiar um, bem quentinho, directamente de panela, que é o que melhor sabe de todos os que se irão comer. A boca até parece empolar com a quentura e sofreguidão com que é facilmente mastigado e digerido. As batatinhas mais miúdas – separadas especialmente para o efeito – também já estão prontas e bem molhadas na banha que serviu para as cozer.


Quinta de Candoz > Os rojões douradinhos...


Quinta de Candoz > Os manjares do porco ... Que cheirinho!... Que sabor!... Que saudade!…

Uns bons travos de vinho para acompanhar e está terminado o dia da matança do porco. Durante o ano que se vai aproximar, naco a naco, o porco vai ser utilizado para ocasiões especiais mas sempre poupadinho para durar até à matança do próximo.


Quinta de Candoz > A matança do porco era também uma festa... E à noite havia sempre cantorias... Em primeiro plano, o Manuel Ferreira Carneiro.


Quinta de Candoz > Vinham os vizinhos, os amigos e os familiares de mais perto e de mais longe... Ainda era vivo o patrão da casa, o José Carneiro (1911-1996) (ao fundo, à cabeceira da mesa), tal como a dona da casa, Maria Ferreira (1912-1995). Portanto, a foto só pode ser do séc. XX...


Quinta de Candoz > A festa à volta da mesa... Do lado direito, em primeiro plano, de perfil o caçula da família, o irmão mais novo da Alice (que é do meio), o José Ferreira Carneiro (ex-1º cabo, operador de transmissões, de rendição individual,  1969/71: pertenceu  à CCAÇ 313 / BCAÇ 13 (1969/71), aquartelada em Camabatela; era uma companhia que guardava os cafezais lá da região, no norte de Angola, perto de Negage e de Quitexe; hoje, Camabatela, sede do município de Ambaca, pertence à província de Quanza Norte). (Engraçado, caçula, vem do quimbundo, "kasule", filho último, derradeiro, o último de uma série.)

Hoje em dia, a matança do porco ainda se realiza aqui ou ali, mas com menos frequência e os métodos utilizados também evoluíram sendo já mais modernos. Cada vez é mais rara a criação doméstica do porco e tende a desaparecer a tradição da matança. 

Em Bruxelas vai-se discutindo se isto é uma tradição mas, mesmo que decida em sentido contrário (alguém se importará?) tal não é necessário porque enquanto este costume se for mantendo a tradição completar-se-á. Naturalmente, pouco a pouco, este uso vai perder-se porque é mais fácil, menos trabalhoso, provavelmente mais económico ir a qualquer grande ou pequeno supermercado comprar as partes e quantidades necessárias para simular uma matança de porco.

freima, aquela pequena festa, aquela fugaz alegria de ter fartura durante uns tempos, essas não se compram e... o sabor da carne daquele porco caseiro, criado durante quase um ano com os restos da comida caseira, algum farelo, couves, batata cozida, etc., esse… muito menos.

Texto de Augusto Pinto Soares (2005)

Créditos fotográficos: Luís Graça (2005) e Luís Filipe Soares (2005)

[ Seleção / revisão e fixação de texto / negritos / título, para efeitos de publicação neste blogue: LG]
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9 comentários:

Valdemar Silva disse...

Bom, neste post só falta carregar numa tecla do pc e dez minutos depois aparecer um estafeta com comidinha da boa a fumegar.

E eu que não posso beber um tintinho, que só lendo/vendo seria suficiente.

Valdemar Queiroz

Fernando Ribeiro disse...

Já estou a salivar! Só esta semana aprendi mais sobre as tradições à volta da matança do porco do que durante um ano inteiro...

Já que se fala de comezainas, lembro que o boi de raça arouquesa, como o da quarta fotografia, pode já não ser usado para tração animal, mas é usado para produzir os deliciosos bifes de Alvarenga, que o Luis Graça já saboreou de certeza absoluta. Os pastos das serras de Montemuro, São Macário e Freita operam milagres no sabor da carne das vaquinhas e dos boizinhos.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

"A matança do porco era dia de freima"... O vocábulo "freima" usava-se/usa-se muito no Norte, pelo menos na região duriense... Só o comecei a ouvir quando também fiz de Candoz a minha segunda terra, há 47 anos... Para mim é equivalente a "stress"... Mas um "stress" bom, ligado ao trabalho que tem de ser feito a tempo e horas mas bem feito...Por exemplo, a vindima, a semeadura das batatas, a limpeza do "monte" (pinhal), etc. LG
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freima | n. f.

frei·ma
(latim phlegma, -atis, do grego flégma, -atos, chama, fogo, calor)

nome feminino

1. Sentimento de cuidado, de preocupação ou de apreensão.

2. Falta de calma ou de paciência para fazer ou obter algo. = ANSIEDADE, IMPACIÊNCIA, PRESSA

3. [Portugal: Açores, Minho] Teimosia, obstinação.


"freima", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/freima [consultado em 05-02-2023].

Anónimo disse...

Caro Luís
Uff!!! Esta excelente descrição, até aleija!!!
Joaquim Costa

José Botelho Colaço disse...

No baixo Alentejo também havia quem usasse a palha para chamuscar o porco, mas preferiam o «mato» o resmono ou a carqueija porque deixava a pele do porco mais limpa.

Valdemar Silva disse...

Estamos no tempo dele, poderemos assim dizer.
Mas, de todos estes escritos que nos têm feito água na boca e recordações de quem é das "brejenjas" (*), ainda não vi referir o petisco feito pouco depois da matança do porco, que uma vez comi no Alentejo, para os lados de Alpalhão.
O petisco nada tem a ver com o que o nome possa querer dizer, refiro-me a cacholeira ou cachola.
Uma fritada(?) feita a partir de miudezas do fígado, baço, coração e pâncreas, com gordura de porco e temperado com condimentos da região.
Foi a comida mais saborosa que me lembre ter comido.
Também há enchidos com a designação "cacholeira", p.ex. a "cacholeira branca" de Portalegre.

Eu sofro de DPOC, mas posso comer de tudo. Só não posso beber um tintinho por causa dos comprimidos e dos bofes, por isso.....

Saúde da boa
Valdemar Queiroz

(*) Brejenjas é uma localidade na região de Torres Vedras. Mas também é utilizado genericamente 'é das brejenjas' ou aqueles que vieram a 'escorregar por uma tábua abaixo' a quem não é de Lisboa.

José Botelho Colaço disse...

Valdemar Queirós no Baixo Alentejo logo a seguir á matança do porco, o petisco era sangue cozido e temperado com varios condimentos e sopas de pão a que lhe chamavam "Moleja", para acompanhar vinha então o fritado com o Figado a que chamavam "Cachola" a parte dos pulomões a que lhe chamavam os "Bofes" e também o coração do animal e por fim uma fritada de talhadas da parte da papada do porco sempre acompanhada de um bom Tintol. Era dia de festa "caixão á cova" Aqui não era Freima de que fala o Luís Graça porque desconheciam esse termo usado no Norte mas que era festa isso era. Colaço.

Anónimo disse...



Uma descrição perfeita de um mata-porco, em Candoz, Entre-Douro, com o rio Douro à vista a sul e a serra do Marão a leste Apetece estar lá, envolvido no trabalho dos homens, a admirar o afã das mulheres e a degustar os manjares que elas irão cozinhar . com carnes frescas do animal, grelhadas ou cozidas, na lareira da casa. Seria fastidioso mencionar as várias nuances em que se desdobra o texto. Está lá tudo , descrito ao pormenor, e quando as palavras não dizem tudo há muitas fotografias que o ilustram e o completam Quem quiser fazer uma matança à maneira de Candoz, encontra lá tudo , até as receitas dos manjares com fotografias também.
Júlio Dinis, o grande escritor da vida rural do Minho, não faria melhor. Para a realidade e a ficção se fundirem e a festa ser maior, só falta ver por lá um abade anafado, de cabeção e batina, o médico João Semana e a Morgadinha dos Canaviais,
Um abraço aos artistas, Augusto Pinto Soares, ao Luís Graça e à sua esposa Alice Carneiro, que terá vivido estes dias com muita intensidade.

Francisco Baptista

Anónimo disse...

Não tem freima com nada o rapaz, sempre à espera que lhe caia tudo do céu. Assim diziam os antigos da minha freguesia, e continuam a dizer, hoje, os novos de antigamente. O modo como o Luís descreve a matança de Candoz assemelha-se muito ao rito próprio da matança do porco em Gondomar. Na verdade, em toda a região durimínia, os processos e o ambiente festivo à volta deste momento em que toda a sofreguidão se saciava são muito semelhantes.

Um grande abraço para todos os combatentes, especialmente para o Luís.