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quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Guiné 63/74 - P5574: Gavetas da memória (Carlos Geraldes) (14): O menino que gostava de saber palavras novas

1. Mensagem de Carlos Geraldes (ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66), com data de 28 de Dezembro de 2009:

Caro amigo:
Esperando que estejas a passar esta Quadra com a melhor das disposições juntamente com os teus familiares e amigos e, desejando óptimas perspectivas para o ano de 2010, aqui envio mais uma pequena crónica para fechar este ano de 2009.

Um grande abraço do
Carlos Geraldes


GAVETAS DA MEMÓRIA (14)

O menino que gostava de saber palavras novas


Em Pirada, logo após os primeiros dias da nossa chegada, apareceu a rondar a casa onde se alojaram alguns oficiais e sargentos, um rapaz com um ar meio ingénuo e meio atrevido a querer meter conversa numa linguagem atrapalhada, mistura de crioulo, fula e português. Sempre com um sorriso enorme, ria-se quando nós nos ríamos dos seus disparates e pontapés na gramática, olhando-nos atentamente quando não entendia tudo o que se lhe dizia. Durante o dia via-se a vadiar por ali, não ia à escola e não parecia ter qualquer ocupação.

Habituados a desconfiar de tudo e de todos, mergulhados naquele ambiente inteiramente novo, embora não directamente hostil, suspeitámos que algo de esquisito haveria ali escondido por detrás daquele sorriso resplandecente. Por isso não lhe demos muita confiança e chegámos até a escorraçá-lo à bruta. Mas ele regressava sempre como um cachorro vadio, de rabo entre as pernas, tentando conquistar as simpatias do Nine o nosso impedido que tinha também um coração grande de menino a quem tinham roubado a infância.

Quase sem darmos por isso, já ele andava a carregar lenha, a trazer os sacos de pão acabadinho de fazer no forno do M. Soares, ajudando o Nine a preparar o pequeno-almoço, varrendo o jardim das traseiras, tagarelando sempre em alegre camaradagem com o nosso impedido. De uma algaraviada que quase não se entendia nada, passámos a pouco e pouco a reparar que ele fazia nítidos progressos na fala e já se fazia entender quase na perfeição.

Em menos de um mês o Adérito, assim era o nome dele, dominava menos mal o português, à mistura é claro com alguns termos de crioulo que nós também já sabíamos utilizar. E estava sempre disposto a ajudar em qualquer coisa.

Quando aprendia uma palavra nova vinha radiante repeti-la para que nós lhe disséssemos se a estava a pronunciar bem.

- Alfero, olha hoje sabe palavra nova, “inauguraçom”!

- Inauguração, palerma!

E sempre a rir, lá ia ele tentando corrigir a pronúncia: - “ão, ão, inau…gura…ção.


- Alfero, qué que é um “opiniom?”

– Opinião, Adérito, opinião! Quer dizer o que tu pensas de uma coisa qualquer, o que pensas de mim, por exemplo.

- Alfero, “opiniom” tem “manga de ronco” - rematava logo ele radiante por ficar a saber mais uma palavra e a saber aplicá-la.


- E compro... vati... vu? - voltava ele, suando com o esforço de se fazer entender.

- O quê? Que queres tu agora?

- Comprovativo, nosso alfero?!... suplicava a medo.


E a pouco e pouco ia juntando, como a galinha, que vai catando o milho grão a grão, as palavras novas que escutava nas conversas dos soldados na caserna, dos sargentos na tasca do velho Palha. Depois ias repeti-las na tabanca perante uma assistência de outros miúdos que o miravam incrédulos da sua nova sapiência.

Mas o Adérito via mais longe, via para lá do horizonte da bolanha, para lá do chão que o vira nascer. Como seria lá em Bissau? Era uma pergunta, uma curiosidade que lhe minava o pensamento. Os diabos dos soldados brancos vieram tumultuar a sua alma simples. Suspirava romper mundo fora, talvez nos camiões da tropa, quem sabe? E a melhor das armas que se deveria levar era o saber fazer-se entender, disso não lhe restava a menor dúvida. Os brancos não tinham tudo? Pois tinha que saber falar como eles! Os outros que ficassem para ali sempre na mesma vidinha de sempre. Talvez à espera de serem mortos numa guerra que nunca tinham pedido. Ele tinha que fugir dali para fora!

(Na noite do primeiro ataque ao quartel, Adérito, quando corria a refugiar-se junto dos soldados brancos foi ceifado, por uma rajada de metralhadora disparada não se sabe donde, nem por quem. Renasceu hoje no fundo de uma das gavetas da memória, como um rosto radiante no meio de tantos outros que teimam em não se confundirem com a poeira vermelha da picada levantada pela desengonçada GMC que aos solavancos trouxe de volta os soldados brancos.)

Os meninos de Pirada na sala de aulas
Foto: © Carlos Geraldes (2009). Direitos reservados


Viana, 28 Dezembro de 2009
carlos.geraldes@live.com.pt
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 1 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5385: Gavetas da memória (Carlos Geraldes) (13): O primeiro ataque a Pirada e a morte do Gila

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Guiné 63/74 - P5385: Gavetas da memória (Carlos Geraldes) (13): O primeiro ataque a Pirada e a morte do Gila

1. Mensagem de Carlos Geraldes* (ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66), com data de 28 de Novembro de 2009:

Caro amigo:
Envio agora, integrado nas memórias que vou retirando das gavetas, um relato que há muito estava para ser feito, cansado de ver tanta gente a gabar-se de ter ido à guerra, como se tivesse assistido a um magnífico jogo de futebol, decisivo para as cores do seu clube.

A guerra onde participámos como protagonistas não foi só regada com o sangue dos nossos soldados, mas sim com a de muitas vítimas inocentes. Cujo destino aliás, foi sempre esse ao longo dos séculos, nunca tendo conhecido ouro. Quando penso nisso vem-me automáticamente à lembrança o rosto daquela jovem mãe que fugindo desvairada quando nos viu chegar de surpresa à tabanca, foi logo varada por uma bala assassina que logo ali lhe ceifou a vida atravessando também o crâneo do bébe que transportava às costas. O autor do disparo ainda se riu da proeza.

Um grande abraço, amigo Carlos Vinhal e preparemo-nos calmamente para mais um Natal.


O Primeiro Ataque a Pirada (A Morte do Gila)

Não sei se o deva contar, porque nem sequer fui testemunha ocular. Nesse dia, 28 de Maio de 1965, estava de férias na Metrópole junto com a família. Um mês inteiro longe da guerra, na total ignorância de como as coisas se iam passando por lá a milhares de quilómetros. Só quando regressei de avião a Bissau é que me contaram a novidade. Pirada tinha sido atacada!

Ao princípio custou-me a acreditar, até porque quem mo contou também não sabia bem os pormenores. Mal pude conter a impaciência nos dias que se seguiram à espera de boleia num Dakota (o velhinho, mas muito útil DC-6) para Nova Lamego onde depois teria um jeep da Companhia para me ir buscar. O sempre sorridente alferes Pinheiro lá estava pontualíssimo para me servir de condutor de regresso a casa.

E então lá me contou como tudo se tinha passado, enquanto eu o ouvia embasbacado, ainda pouco crente que me estivesse a falar verdade.

O M. Soares, como sempre, fora informado que um numeroso grupo de guerrilheiros se estava a juntar do outro lado da fronteira, no Senegal. Estava bem armado e tinha intenção de fazer qualquer coisa ao quartel da tropa em Pirada. E até se sabia o dia e a hora em que isso iria acontecer. O nosso Capitão fez aquilo que a prudência mandava, entrincheirou-se o melhor que pôde e aguardou. Aliás, tomou até uma medida que sempre me pareceu um pouco ousada e timorata. Quis contra-atacar. Planeou então uma manobra para emboscar o inimigo que supostamente viria atacar o aquartelamento do lado ocidental a coberto da povoação nativa, a cintura de palhotas que envolvia Pirada. Para isso mandou que o alferes Pinheiro e o seu Grupo de Combate se fossem colocar, muito discretamente, do lado de fora da tabanca, numa zona baixa, já perto da bolanha, onde aí, montariam uma emboscada e contra-atacariam os assaltantes encurralando-os contra o quartel. Só que as coisas nem sempre correm tão bem como se planeiam no papel. A noite estava escuríssima, conforme me ia contando o Pinheiro:

- Eu mal consegui dar com o sítio que o capitão me tinha dito onde eu e os meus homens nos deveríamos ocultar para depois apanhar os gajos. E depois quando a festa começou deu-me a impressão que afinal estávamos mais afastados do que era previsto. E pelo arraial que faziam deviam de ser mais de duzentos. Olha, eu, pelo sim pelo não, para não estar para ali a fazer fogo sem mais nem menos, resolvi que o melhor seria esperar muito caladinho e ver como as coisas se iriam passar. Se revelássemos a nossa posição até talvez ficássemos numa situação muito perigosa. Aliás poderia acabar por fazer fogo contra os nossos, não achas? Por isso, ficámos ali muito quietinhos à espera que tudo passasse. No quartel estavam mais bem protegidos pelos abrigos, eu ali não tinha protecção nenhuma!

Sim, o alferes Pinheiro tinha razão, era insensato atacar às cegas um inimigo que não se sabia bem onde estava nem de onde vinha, muito superior em número e armamento. Tomou uma decisão que à primeira vista poderá ser tomada como um acto de cobardia, mas que na verdade, tratou-se apenas de evitar um mero suicídio colectivo totalmente gratuito e ineficaz.

Assim o ataque desenrolou-se durante grande parte da noite, com a população nativa aterrorizada, escondida o mais que podia para escapar às balas perdidas que voavam em todas as direcções, varando de lado a lado as palhotas e as vedações dos quintais, enquanto do quartel atiravam morteiradas em todas as direcções e abriam fogo de metralhadora à vontade numa ânsia de aniquilar um inimigo que nem conseguiam descortinar.

Segundo depois me contou o M. Soares, elementos do PAIGC passearam-se mesmo pelo centro do povoado, donde, até debaixo do alpendre da sua casa fizeram fogo na direcção do quartel. Mas a ele e à família nem num cabelo tocaram. Admirável cavalheirismo romântico, que não seria fácil encontrar ali no mais remoto interior da Guiné. Gesto que, no entanto, lhe acarretaria futuros problemas com as desconfianças que a tropa foi alimentando a seu respeito, esquecendo que paralelamente M.Soares sempre lhes fornecera amplas e atempadas informações das andanças dos grupos inimigos que transitavam regularmente pelo Senegal, vindos da Guiné-Konakri em direcção à região do Morés, no triângulo Mansabá, Mansoa, Bissorã. Na verdade a imunidade de M.Soares devia-se muito à sua condição de hábil agente duplo que soube manter durante muito tempo e isso acaba sempre por ter um preço amargo de pagar.

Planta de Pirada

Messe dos Oficiais

Com o raiar do dia já depois de as armas se terem silenciado é que, aos poucos e poucos se foram verificando os estragos. Felizmente do nosso lado não houve mortos nem feridos, apenas danos materiais. As instalações ficaram com as paredes crivadas de balas, e duas viaturas foram atingidas mas nada de grande monta. Na tabanca é que tinha sido pior, tinham ardido umas dezenas de casas, devido talvez ao nosso fogo de morteiro. Quatro mortos a lamentar e bastantes feridos sem grande gravidade, pois grande parte da população tinha fugido para longe. O posto médico depressa se encheu e o pessoal de saúde não teve mãos a medir, enquanto patrulhas percorriam toda a zona de onde o inimigo teria estado a fazer o fogo, agora facilmente identificável pelo elevado número de cápsulas vazias de vários calibres espalhas pelo chão. Os rastos deixados pelo grupo dos atacantes indicavam também que deveriam ter sofrido algumas baixas pelos vestígios de sangue deixados nos percursos de fuga em direcção do Senegal. Mal recuperados do susto que tinham apanhado, tanto oficiais como sargentos e praças nem tinham vontade de falar no assunto.

Mas envergonhados também pelas reacções primárias a que se entregaram, quando ainda naquela manhã, prenderam um atónito gila que inocentemente tinha carregado na sua bicicleta, vários sacos de cartuchos vazios que fora apanhando pelo caminho que percorrera despreocupadamente (?). Logo ali o acusaram de espião e resolveram fazer justiça pelas próprias mãos. Enquanto o capitão e o resto dos oficiais e sargentos se fecharam na caserna, a turba uivando cada vez mais enfurecida, arrastou o pobre desgraçado para o meio da parada e no meio de insultos e pancadaria acabou de matar o pobre do gila, regando-o em seguida com gasolina e chegando-lhe fogo.

E até me mostraram fotografias, que acabaram por depois fazer desaparecer, cientes da barbaridade cometida.

Ainda cheguei a tentar falar com o capitão sobre o acontecimento. Mas apenas me respondeu com um silencioso encolher de ombros revelador de uma total incapacidade de impedir o linchamento. E se calhar até de algum tácito consentimento para serenar os ânimos.

Mas só na antiga Roma é que os cruéis imperadores proporcionavam ao povo espectáculos de morte, para o poder controlar a seu bel-prazer!

Teria acontecido aqui o mesmo?

Porém, com o passar do tempo tudo foi esmorecendo e caiu no esquecimento.

Mas, o gila teria deixado família? Mulher, filhos, outros parentes? Qual teria sido a raiva e a dor deles? Como teriam encarado o futuro?

A guerra não foi só recheada de heroísmos, ou uma alegre perseguição das bajudas lavadeiras apanhadas desprevenidas no regresso da bolanha, ou uma imprevidente saída para o mato na escuridão de uma noite tenebrosa.

A guerra foi também um longo rosário de pesadelos que nos marcou profundamente, mas que teimamos em não valorizar também.

Recolhi a Paúnca logo que pude, para tentar esquecer.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 25 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5340: Blogpoesia (59): Guiné: A Face Oculta (Carlos Geraldes)

Vd. último poste da série de 15 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5277: Gavetas da memória (Carlos Geraldes) (12): O Furriel Emanuel

domingo, 15 de novembro de 2009

Guiné 63/74 - P5277: Gavetas da memória (Carlos Geraldes) (12): O Furriel Emanuel

1. Mensagem de Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66, com data de 13 de Novembro de 2009:

Boa noite, Carlos
Aqui vai mais um apontamento de ficção em modelo real.

Um abraço para ti, para todos os companheiros da Tabanca Grande e para quem mais se quiser juntar debaixo da árvore sagrada da nossa memória.

O Furriel Emanuel é um tributo ao soldado prudente, dócil, fiel cumpridor das ordens que recebe, exemplo de um ser superior que não sabe que o é e que nunca o vem a descobrir, vitima da cegueira de uma humanidade cada vez mais desumana.

Um abraço
Carlos A. Geraldes


O Furriel Emanuel

Era de origem timorense. Magro, de cara chupada e pele muito escura, cabelo preto de azeviche, parecia mais indiano que indonésio. Apesar de ter sido criado em Lisboa (viera para Portugal com os pais, ainda era bebé), parecia que tinha vivido sempre no sertão de Timor, como aquele menino criado por uma matilha de lobos que, mesmo depois de ter sido transportado para a civilização, todas as noites ia para a janela espreitar a lua, saudoso da companhia dos seus irmãos caninos.

Na escola do bairro onde os pais moravam, era xingado constantemente pelas outras crianças que lhe chamavam preto da Guiné. Ficava furioso e tentava explicar pela milésima vez que não era preto nem era da Guiné, mas sim de Dili numa ilha chamada Timor. Nesses momentos chegava até a sentir alguma dificuldade em expressar-se correctamente em português o que mais contribuía para o gáudio geral da pequenada. Talvez por isso nunca conseguiu formar-se, ter um emprego fixo, tornar-se um lisboeta de pleno direito como os outros. Era talvez o apelo da selva que vinha do seu ser mais profundo que lhe dificultava o completo entendimento da vida moderna. Certos costumes corriqueiros da nossa vida normal, como tomar uma aspirina para uma dor de cabeça, por exemplo, era para ele uma verdadeira aflição. Colocava-se em bicos de pés, com o corpo tenso, arqueado para trás, lembrando a posição de um faquir a querer engolir uma espada. Raras eram as vezes em que ele conseguia deglutir a pastilha com sucesso. Tossia e vomitava como um desgraçado.

E muitas outras coisas de que agora já não me lembro mas que eram uma marca insofismável das suas características tão especiais. Emanuel não parecia português, de Portugal.

Quando desembarcou na Guiné sentiu que, ali, estava mais perto das suas raízes. Sentiu-se como peixe na água. Enquanto os restantes camaradas se queixavam do calor húmido e dos malditos mosquitos, Emanuel ria-se com satisfação e ia tagarelar com as bajudas da tabanca onde era aceite com grande regozijo.

Outra coisa: o furriel Emanuel não conhecia a palavra não. De convívio alegre e matreiro, estava, no entanto, sempre pronto para fazer tudo o que lhe pedissem ou lhe ordenassem, mesmo que isso parecesse ser quase impossível. Era sempre o primeiro a aparecer equipado, armado e municiado, quando o destacavam para chefiar uma ronda, fazer uma patrulha ou integrar o Grupo de Combate a que pertencia para alguma operação mais prolongada. Sempre sem uma palavra de desagrado, contrariedade ou medo (que era outra palavra que não tinha sentido para ele). Nas operações mais difíceis e arrojadas, nunca se lhe ouviu um queixume, uma manifestação de cansaço ou desalento. Sempre pronto, fresco e desperto mesmo se estivesse sem dormir há mais de dois dias. De aspecto frágil era, no entanto, incansável, rijo e cheio de força. Até metia medo. Foi também por isso que se serviram dele como carne para canhão, sem qualquer constrangimento. Arrastaram-no para uma guerra sem sentido, que ele nem ousou questionar. Fizeram-no passar fome, e ele nem se apercebeu. Deram-lhe ordens para matar, e ele matou sem pestanejar. Usaram-no até ao extremo e, no fim, esqueceram-no e abandonaram-no ignominiosamente.

Quando um dia recebeu a trágica notícia da morte de toda a sua família num terrível desastre de viação, ficou imóvel, perplexo, e uma enorme tristeza começou por lhe toldar completamente o rosto. Pela primeira vez ficou de olhar perdido no vazio em que a sua vida se tinha transformado. Desde esse momento Emanuel pareceu morrer por dentro, vivia apenas como um autómato. Dos seus colegas e superiores nem uma palavra de conforto, nem uma mão no ombro. Como era diferente, um inadaptado, foi sempre um incompreendido, nunca tinha ganho grandes amizades. Apenas os soldados da secção, sentiam por ele uma espécie de compaixão, talvez por agora partilharem de mais perto um mesmo rosário de dor, mas nunca tiveram coragem de o confessar.

Quando regressámos à Metrópole, aos nossos aconchegantes cantinhos familiares, o furriel Emanuel não tinha para onde ir, não tinha família, não tinha amigos, não tinha ninguém a quem se pudesse agarrar, à deriva numa terra que nunca fora a dele. Nos primeiros tempos ainda o viram vagabundeando pela Baixa de Lisboa, dormindo aqui e ali em pensões baratas, comendo em tascas manhosas na companhia de chulos e prostitutas.

Parece que acabou por morrer na Alemanha, para onde tinha conseguido emigrar, não sei como nem quando, pobre e abandonado como sempre, numa noite gelada, sem nunca ter conseguido voltar à sua tão saudosa ilha natal.

Se calhar nunca chegou a ouvir falar desse tal acréscimo de pensão que queriam dar aos ex-combatentes da guerra do Ultramar! Não se preocupava em estar a par dessas coisas, não era isso que lhe iria resolver os problemas.

Viana do Castelo, Nov. 2009
Carlos A. G.
carlos.geraldes@live.com.pt

OBS:-Negritos da responsabilidade do autor do texto
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 11 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5253: Gavetas da memória (Carlos Geraldes) (11): A Enfermeira Josefina

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Guiné 63/74 - P5253: Gavetas da memória (Carlos Geraldes) (11): A Enfermeira Josefina

1. Mensagem de Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66, com data de 10 de Novembro de 2009:

Caro amigo:
Volto novamente ao vosso convívio com mais um conto em que misturo realidade e ficção. Não digo que os factos terão ocorrido tal e qual são narrados, mas também não digo que não tenham ocorrido em parte. A pairar deixo uma capa de ironia e benevolência para amenizar um pouco o ambiente da nossa Tabanca, por vezes tão cru e sanguinolento.

Um grande abraço do
Carlos A. G.


A Enfermeira Josefina

Protegido do sol dentro da tasca do velho Paiva, comerciante ranhoso com quem, de vez em quando, metia conversa só para que ele não pensasse que eu tinha a mania da grandeza por causa dos galões de alferes que trazia nos ombros, reparei que pelo outro lado da rua passava alguém estranho, que não me parecia ter ainda visto por estas bandas.

- Quem é aquela tipa? - Falei, eu, para o lado sem deixar de fitar a estranha aparição.

- Quem, aquela gorda? Não conhece? É a enfermeira que veio do Gabu para trabalhar no Posto, com o Chefe Barbosa. Coitado, agora que já não pode com uma gata pelo rabo, como se costuma dizer, é que lhe aparece isto - casquinou o depravado do Paiva que em tudo metia patifarias e sexo.

- Mas porquê, aquilo dá?

- Ai, isso não sei, meu alferes, antigamente diziam que sim, agora não sei. Parece que o marido a deixou. Vive só com a mãe. Para falar verdade, já está um bocado fora de prazo não está? Agora é mais banhas que outra coisa. Mas com a carestia que por aí há…, não sei se me entende. Não é de desperdiçar, pois não? - riu-se o Paiva que também se julgava um tipo cheio de piada.

Acabei de beber o whisky, desencostei-me preguiçosamente do balcão e vim até à porta, apreciar a nova habitante da aldeia que sem se dar conta da curiosidade que despertava nos basbaques, continuou imperturbável a caminhada em direcção à parte de cima da aldeia. A curiosidade era impossível de refrear e, para me certificar melhor, resolvi ir perguntar a quem deveria estar mais ao corrente do que se passava: o M. Soares gerente de uma das quatro casas comerciais que para ali estavam desterradas sem se saber porquê e para quê, tão perdidas como agulhas em palheiro.

Atravessei a rua afugentando dois ou três cães que me impediam a passagem e entrei pela outra loja, toda pintada de vermelho e branco. M. Soares acabava de atender um velho gila seu conhecido que lhe tinha trazido notícias e molhos de folhas de tabaco para mascar, vindo do Senegal. Pelo tom do discurso do matreiro comerciante e pelo resignado sorriso do velho contrabandista, pareceu-me que mais uma vez o Soares acabava de fazer um habitual acto de caridade com que costumava alimentar a sua já enorme popularidade entre a população local.

Depois de arrumar a mercadoria que tinha acabado de comprar, virou-se para mim com um enorme jarro de vidro na mão, cheio de água com rodelas de limão e cubos de gelo, que pousou no balcão.

- Sirva-se nosso alferes. O Demba acabou agora mesmo de fazer limonada. É o melhor que há para acabar com este calor dos diabos! – e enquanto dizia isto, alinhou logo dois copos limpos na nossa frente.

- Obrigado, não digo que não, mas você já sabe da novidade? Parece que temos por aí gente nova. Uma tal enfermeira que veio do Gabu. Não a viu passar?

- Ah! A enfermeira Josefina? Sim, já é habitual aparecer por aqui. Dantes vinha mais vezes, agora é que a não via há muito tempo. Vinha mesmo a calhar, não? Cuidado! Aquilo é gente difícil, por qualquer coisa de nada arranja sarilhos. Manga deles!

- Não, não! - disse eu logo muito depressa. - Foi só por mera curiosidade. Mas, diga-me, a que propósito é que a Administração a mandaria agora para aqui? Será porque, com a chegada da tropa, agora que a aldeia já tem médico, não querem deixar de marcar presença também?

- Se calhar foi por isso mesmo, alferes. Bem pensado. Aquilo lá em baixo, no Gabu é uma seita de manhosos. Têm medo que vocês lhes tirem os fregueses - respondeu o Soares com uma ampla gargalhada que se espalhou até ao outro lado da praça. E embrenhou-se numa emaranhada explicação dos meandros da Administração Civil aos quais não consegui dar muita atenção, convencido como estava que, de agora em diante, o futuro daquela gente e daqueles lugares estava, irremediavelmente, entregue ao poder da tropa, das nossas armas. Nesta guerra a autoridade civil estava condenada a passar para segundo plano. Tinha perdido o poder por completo.

Mas para não nos esquecermos da realidade social e política em que estávamos inseridos, convinha, de vez em quando, procurar entender e estar a par do quotidiano local. Um pouco de bisbilhotice faz sempre bem. Além de servir de distracção ajuda de certo modo a manter a segurança.

Aqui, neste caso particular, ninguém sabia dizer, ao certo, o porquê de ela ter vindo aqui parar. Apenas se sabia que era cabo-verdiana, enfermeira auxiliar e parece que, divorciada de facto. De pele cor de café com leite, roliça, denunciando propensão para a obesidade, resultado de uma juventude já muito vivida, sabia, no entanto, rebolar as ancas com uma sensualidade tão natural que até fazia ferver, em banho-maria, o sangue dos homens sedentos de fêmeas há longo tempo.

Quando soube que havia uma nova força militar estacionada no quartel da tropa em Pirada, não demorou muito a conseguir ocupar o lugar vago no posto médico da povoação, tornando-se desde logo unha e carne com o alferes médico, insinuando-se com aquela vozinha suave, quase inaudível, sempre disponível para o auxiliar em tudo o que fosse necessário. Daniel, o nosso alferes médico, ficou radiante pois, além de ter agora uma maior ajuda, a presença de uma enfermeira no posto médico era essencial para atender com mais facilidade e segurança as mulheres e as crianças que constituíam a maioria dos pacientes.

Agora, isso quase lhe permitia pôr a funcionar em pleno o mísero consultório médico anexo ao Posto do Chefe Barbosa, ali no meio do mato profundo da Guiné, onde nunca chegavam os progressos da ciência, quanto mais os da medicina. Sentia-se um verdadeiro Dr. Schweitzer salvando os pobres indígenas das garras das doenças que os afligiam há séculos. Para a soldadesca então, era uma verdadeira bênção celestial, tão desprovidos andavam eles de visões femininas que até pareciam vir a dar em malucos, no meio de tanto fula, com aqueles costumes fundamentalistas que os árabes têm de esconderem constantemente as mulheres de qualquer olho cobiçoso vindo de fora do clã familiar.

Sempre que a Josefina passava diante do portão da caserna, os que por ali se encontravam, até se esqueciam do que estavam a fazer, deixando geralmente o colega a falar sozinho. Comiam-na, literalmente, com os olhos.

Mas ela não dava qualquer hipótese. Apenas falava ao furriel enfermeiro, num tom o mais profissional possível, sem lhe proporcionar grandes intimidades e, claro está, com o alferes médico. Com este, desfazia-se em sorrisos e atenções.

Por mais que os soldados pusessem a correr os mais escandalosos e escabrosos boatos sobre a conduta moral dela, ansiosos por uma escandaleira bem cabeluda, nunca chegaram a provar nada de palpável e as más-línguas foram obrigadas a meter a viola no saco.

Foi então que, num desses dias, sem mais nem menos, o Antunes, o furriel enfermeiro, aproveitando o ensejo de poder falar comigo a sós, veio dizer-me que a Josefina queria falar comigo. Eu que fosse ter à casa onde ela morava com a mãe, ao fim da tarde, rematou misteriosamente.

- Mas para quê? - Respondi intrigado.

- Meu alferes, parece que ela, amanhã, se vai embora e quer fazer uma festa de despedida. Convidou o doutor é claro, e a mim, porque lhe vou providenciar umas garrafas de cerveja e whisky da messe. Queria convidar também o alferes Carvalho, mas como ele foi para Bissau, por causa daqueles problemas com as gasolinas, lembrou-se de si, talvez, não sei… Venha que não se vai arrepender, de certeza. Até vai haver baile!

Um bocado a medo lá concordei, embora naturalmente desconfiado com o inesperado do convite. O que quereria de mim? Teria engraçado comigo? Sei lá!
Quando ao fim da tarde, depois de ter arranjado uma desculpa qualquer para não aparecer ao jantar na messe, dirigi-me à casa que o Antunes me tinha indicado, mesmo ao pé do poço, à entrada da tabanca. Era uma casa rectangular coberta de folhas de zinco que se diferenciava bem das outras, tradicionais, redondas e cobertas de colmo.

O alferes médico e o furriel Antunes já lá estavam em amena cavaqueira, bebericando whiskies e cervejas. Josefina assim que me viu, com um ar meio envergonhado, tratou logo de me arranjar uma ampla cadeira de encosto dizendo-me que estivesse à vontade, que não reparasse na modéstia da casa e outras banalidades mais ou menos em crioulo ou num português atrapalhado para se fazer entender melhor.

- Meu alferes, aqui a senhora enfermeira parece que nos preparou uma caldeirada de cabrito de estalo! - Começou logo por me elucidar o Antunes, no meio de alguns trejeitos maliciosos com a boca.

- O que quer beber, alferes Geraldes, vinho, cerveja ou whisky? - Acudia de lado a cabo-verdiana, inclinando-se oferecida sobre a mesa, posta com pratos, copos e talheres, demonstrando que, pelo menos, já sabia pronunciar o meu nome.

- Cerveja, cerveja! O que estiver mais fresco, claro - balbuciei procurando parecer o mais descontraído possível, como se aquela cena fosse mais um dos habituais acontecimentos do nosso dia-a-dia. Mas o que estava a acontecer? Isto seria mesmo verdade? Não estaríamos a viver uma cena de algum universo paralelo? Só nos filmes de Hollywood é que se viam coisas assim: …intrépidos aventureiros brancos esfalfados com a sede, a serem apaparicados por gentis donzelas nativas, todas derretidas, debaixo de um providencial alpendre decorado com flores exóticas, papagaios e candeeiros de luz mortiça a proporcionar um inesquecível ambiente de sonho e romance, ao som de um mavioso ukelélé, com um belo pôr-do-sol lá ao longe

Mas neste caso, os bravos aventureiros brancos eram apenas três soldaditos de um exército ferozmente dominador, apavorados com medo até da própria sombra e a donzela era uma anafada e sorridente mulata cor de café com leite que, com a aflição de ter tudo em ordem para agradar às visitas, se esfalfava correndo de um lado para o outro, balançando os fartos seios que se adivinhavam macios sob a bata branca do seu uniforme de enfermeira.

Lá fora a noite caíra de repente e nada se distinguia além da cerca do quintal. Mesmo sem querer comecei a indagar-me sobre o que, de facto, estaríamos a fazer ali. E até porque, pensando melhor, como nos ensinaram nos manuais da anti-guerrilha, afinal estávamos em território inimigo! Em plena noite escura, mais escura que alcatrão derretido, fora das instalações do quartel sem sequer termos trazido uma única arma! Se o inimigo quisesse, poderia acabar connosco, ali mesmo, num abrir e fechar de olhos. E ninguém ficaria a saber. Será que poderíamos confiar naquela mulher? Não estaríamos a ser observados? Não teríamos caído no meio em alguma armadilha?

Mas, enquanto me embrenhava nestas e noutras angustiantes conjecturas, já o médico tinha emborcado uma série de whiskys e galhofava eufórico com o furriel Antunes. Pela cabeça dele é claro que nada de suspeito se poderia passar, o que lhe interessava mesmo, era uma boa farra!

E o furriel alinhava descaradamente! O que poderia eu fazer? Ser um desmancha-prazeres? Não, isso também não! Por isso, desta vez, façamos por esquecer todas as regras, pensei. Mergulhemos de cabeça no abismo! Que se lixasse a segurança!

E assim a noite foi passando. A caldeirada de cabrito estava de facto esplêndida. Picante como mandava a lei gastronómica do país. As bebidas sucediam-se numa velocidade estonteante. As garrafas vazias já rebolavam pelo chão fugindo à decência e ao decoro. Josefina ria-se cada vez mais solta e descomprometida, aligeirando a roupa a pouco e pouco. O calor começava a ser demais…

Sem darmos por isso, quase de repente, estávamos todos bêbados, arrastando as palavras, sussurrando confidências que não se contam a mais ninguém a não ser aos mais íntimos amigos em momentos de grande entusiasmo, quando julgamos estar numa daquelas noites especiais. Daí a pouco já nem sabíamos conversar direito. Berrávamos, e cantávamos a plenos pulmões, alarmando a impávida vizinhança que, na tabanca, se mantinha num significativo silêncio.

Queríamos era gozar, experimentar até ao máximo todas as emoções há muito imaginadas e desejadas, alcançar o esquecimento total, adormecer profundamente para depois acordarmos livres de um pesadelo que nos mantinha como que enfeitiçados.

Foi então que surgiu aquela velha, a suposta mãe talvez, que até ali se tinha mantido escondida lá para dentro, na cozinha. Gritando qualquer coisa num dialecto esganiçado que não se entendia muito bem, começou a invectivar a filha para que nos mandasse embora, que acabássemos com aquela algazarra. E teimava, ralhando cada vez mais alto, abanando-a, puxando-lhe pelo braço para a fazer levantar. Josefina, sentada de pernas abertas numa cadeira, já nitidamente alcoolizada, continuava a encher copos de cerveja uns atrás dos outros sem lhe ligar importância. Mas perante a insistência da velha, que não dava mostras de desistir, levantou-se num repelão e, violentamente, enxotou a megera atirando-a lá para dentro, com dois berros malcriados. Depois virando-se para nós balbuciou com a voz já muito pastosa:

- Pronto, acaba tudo! Ir embora. Agora cá tem mais vianda, cá tem mais bibida! Vai dormir. Vai embora, vai! Nós fica, disculpa, nosso alfero, disculpa… - repetia misturando crioulo e português, enquanto se agarrava indecorosamente ao alferes médico.

Perante uma cena destas, só podíamos concluir que as coisas estavam mesmo a descarrilar. O melhor era dar o fora antes que se fizesse tarde de mais. Fiz sinal ao Antunes dando-lhe a entender que estava na “hora di bai”, na hora da partida.

Mas e o médico? Como de costume, o nosso homem, já não se podia aguentar de pé agarrando-se sem vergonha à anfitriã que, voltando sempre para junto dele, se desfazia em sorrisos e lânguidos olhares como uma qualquer adolescente apaixonada. Era bom de se ver que aquilo não iria ficar por ali. Nem sequer se aperceberam do que se estava a passar quando nós, muito sorrateiramente, começámos a sair à francesa. Batendo cobardemente em retirada, o Antunes e eu deixámos o doutor a curar, sozinho, mais uma das suas valentes carraspanas. A enfermeira que tratasse dele!

Na atrapalhação da saída, conseguimos ainda vislumbrar a Josefina a arrastar o nosso médico para dentro de um mosquiteiro montado numa tosca cama arrumada num dos cantos da sala. Abraçados e muito bêbados, caíram um por cima do outro, arrastando o mosquiteiro na confusão.

Cá fora na placidez total do Universo, terna era noite, como diria o poeta. Para lá do círculo de luz projectado pelo Petromax pendurado na parte de fora da casa, o mundo desaparecia tragado por um enorme manto de veludo negro. Tão negro que nem os nossos próprios pés conseguíamos vislumbrar. Era impossível que assim houvesse uma guerra, com os homens tacteando no escuro, procurando apenas a paz, o descanso e a tranquilidade. Como alegres participantes num jogo de cabra-cega, lá conseguimos chegar às nossas instalações e, num silêncio comprometido, despedimo-nos um do outro.

No dia seguinte, piscando os olhos perante a luz ofuscante do sol da manhã, não pude deixar de ser interpelado pelo M. Soares, o nosso vizinho que, nitidamente à minha espera, como uma verdadeira ave de rapina, não queria perder pitada de uma novidade ou hipotética escandaleira. Do outro lado da rua disparou logo à queima-roupa:

- Ó nosso alferes, então, ontem à noite, hein? Aquilo é que foi uma pândega! Tirou o dente de misérias, seu malandro!

- Quem, eu? Olhe que está enganado, não aconteceu nada, não! Hei! Não se ponha para aí a inventar coisas! Pergunte ao Antunes se não é verdade! -apressei-me a responder-lhe enquanto me escapulia para o quartel, procurando evitar, a todo o custo, mais perguntas sarcásticas. Mas nas minhas costas, a verdade e a ficção fundiam-se já numa onda enorme avançando em todas as direcções, como um furioso macaréu ao subir o rio da foz até à nascente. Não tardou, é claro que, a invencionice e a imaginação fértil de todos nós, originasse todos aqueles mitos e delirantes fantasias que saborosamente ficaram a ilustrar mais um episódio marcante da nossa passagem por estas paupérrimas terras africanas. As grandes façanhas nasceram sempre assim.

Da apaixonada Josefina não soube mais nada, nem nunca mais a vi. Quanto ao alferes médico, esse, continuou alegremente a embebedar-se sem se lembrar de nada.

Inesperadamente, na semana seguinte, fui destacado com o meu Grupo de Combate para Paúnca e por lá fiquei até ao fim da comissão.

Carlos Geraldes,
Viana do Castelo
Nov.2009

Pirada, AGO65 > Cap Barão da Cunha, Cap Tadeu, Alf Médico Duarte e Alf Mil Geraldes
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 8 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5078: Gavetas da memória (Carlos Geraldes) (10): Como descobri o jogo do Ôri

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Guiné 63/74 - P5078: Gavetas da memória (Carlos Geraldes) (10): Como descobri o jogo do Ôri

1. Mensagem de Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66, com data de 5 de Outubro de 2009:

Caro amigo Vinhal:

Volto hoje com mais uma pequene crónica que é mais uma nota para a divulgação de um jogo que descobri em Pirada e que afinal já é velho como a Humanidade.
No entanto deve haver muito boa gente que nunca ouviu falar nele nem suspeita da sua existência o que para nós, antigos lutadores por África é uma ingratidão.
Junto duas fotos retiradas de revistas com mais de vinte anos, a primeira de 1981 e a segunda de 1973!

Um abraço do
Carlos Geraldes


O Jogo do “Ôri”

Conforme tinha prometido vou falar agora de uma curiosidade, ou melhor, de um jogo que descobri na Guiné-Bissau, na região de Bajocunda, salvo erro em Março de 1965.

///

Quando o jeep entrou na tabanca deu um solavanco ao passar por cima de qualquer coisa que estava encostada junto à divisória de carentim e que àquela hora da noite o condutor não conseguiu lobrigar a tempo. Ao saltar da viatura para ver se tinha havido estragos de maior, encontrei um pedaço de madeira esculpida que me pareceu uma canoa, talvez um brinquedo infantil. Achei graça e resolvi juntá-la às minhas recordações, apesar de estar um bocado danificada num dos extremos.

Alguns dias mais tarde, um rapazito que andava sempre pela Messe, a ajudar a limpar as instalações dos oficiais e sargentos da CART 676 estacionada agora em Pirada, viu aquele pedaço de tronco pousado junto da minha cama e deu mostras de o conhecer. Atento à reacção do miúdo não deixei de lhe perguntar se sabia o que era aquilo.

- É um jogo, disse ele. É o ôri. Toda a gente joga. Muito antigo.

- E como é que se joga? Perguntei curioso.

- Ah, não está aqui tudo. Faltam as sementes. Mas melhor é falar com o régulo Sólo. Olha ele vem aí, nosso alfero.

De facto a figura alta e seca do nosso amigo Sólo Só, o régulo de Pirada, desenhava-se nesse momento na entrada do nosso quintal, virada para o caminho. Todas as tardes costumava aparecer por ali. Gostava de conversar, contar coisas do passado, velhas batalhas com os mandingas, inimigos de sempre, rir dos nossos espantos e perguntas ou simplesmente matar o tempo à toa que é o que os homens grandes da tribo adoram fazer.

- Sólo conheces isto?

Deu uma longa risada e pegando no pau escavado, perguntou logo:

- Hei, nosso alfero, querer jogar comigo?

- Talvez, mas como se joga? Eu não sei o que isso é - respondi começando a ficar cada vez mais curioso com o que já considerava um valioso achado.

- É fácil, eu ensina!

E virando-se para o rapaz disse-lhe qualquer coisa em fula. Ele saiu a correr e passado uns instantes voltou com um saca cheia de uma espécie de feijões gigantes, pretos e vermelhos, as sementes da árvore da sumaúma, segundo vim depois a saber.

O velhote apanhou meia dúzia na mão e começou a espalhá-las pelos buracos escavados no pedaço de madeira.

Aquilo que me parecia a escultura de uma canoa era apenas um tabuleiro para um jogo. Um pedaço de madeira muito dura com uma forma, mais ou menos, semi cilíndrica e com duas fiadas de seis cavidades cada, rematadas nos topos por outras duas, maiores, uma das quais tinha ficado partida pelo atropelamento do jeep naquela noite escura.

O régulo foi enchendo os buracos com quatro sementes em cada um deles. Ao todo duas dúzias de sementes mais duas dúzias no outro lado. Depois, em modo de desafio, colocou o tronco escavado atravessado entre nós e disse-me para tirar todas as sementes de um dos buracos que estavam do meu lado.

- De um qualquer?

- Sim, de um qualquer, mas do teu lado.

- Pronto, já está. E agora?

- Agora deitas uma a uma nos buracos que estão a seguir para a direita. Como se estivesses a semear.

Obedientemente fui fazendo o que ele dizia sem perceber muito bem qual a finalidade daquilo tudo. Quando acabei, o velho régulo, num ápice, fez também a mesma coisa agora do lado dele. Ficou a olhar para mim e eu para ele.

- Está bem, disse eu, e agora?

- Faz outra vez, alfero Gerárdis! Repete! Tira as sementes de outro buraco qualquer, mas só do teu lado!

- Mau, mas para que serve isto afinal? - resmunguei depois de fazer o que ele dizia.

Ele não me respondeu e com um olhar de lince, fez de novo um rápido movimento com a mão e retirou todas as sementes que estavam nos primeiros buracos do meu lado onde se encontravam agora grupinhos de duas ou três sementes soltando uma sonora gargalhada.

- Hei! Como é que foi isso? Explica-me o que quer isso dizer! Repliquei percebendo cada vez menos o que se estava a passar.

- Olha nosso alfero, eu jogo por ti, queres ver? Intrometeu-se o garoto que ainda rondava por ali.

E os dois começaram então a praticar aquele jogo, inédito para mim, numa sucessão de rápidos gestos ritmados apenas interrompidos quando no final o miúdo baixou os braços e desistiu descoroçoado, perante as gargalhadas do velho que num instante se tinha apoderado de mais de metade das sementes que circulavam pelo tabuleiro, retirando-as para uma das cavidades maiores ao seu lado direito.

Lentamente e, fazendo-lhes sempre muitas perguntas e interrupções, comecei a entender qual o propósito daquele jogo.

Afinal aquilo era mesmo um jogo a sério! E com muitas particularidades capazes de despertar a curiosidade da nossa mentalidade de gente do, supostamente, mundo civilizada.

Tratava-se na verdade de um jogo baseado em cálculos matemáticos (na base seis, curiosamente) muito simples mas que podiam atingir algumas variantes bem complicadas.

Bem, ao fim da tarde como já tinha ficado a perceber mais ou menos bem a mecânica do jogo fiquei de tal maneira entusiasmado que fui logo propagandear aquela descoberta aos outros companheiros da messe, oficiais e sargentos. Rapidamente o interesse foi-se generalizando de tal maneira que, havia já quem quisesse saber onde poderia arranjar outro tabuleiro como aquele para jogarem também.

Durante algum tempo aquela nova distracção serviu para nos entreter nas horas de ócio, distraindo-nos da tentação de nos entregarmos à solidão que em Pirada começava a roer-nos os nervos.

Quando regressámos, aquele pedaço de madeira acompanhou-me até casa, onde está exposto como um dos mais valiosos despojos de guerra.

///

Muito mais tarde, em 1973, ao folhear um catálogo de livros, (do “Clube Expresso”, n.º 18 de Março desse ano, para ser mais exacto) dei com um anúncio de um livro em francês, intitulado “Le Jeu de L’Awélé” de Juliette Raabe. Na capa apresentava uma fotografia de uma escultura africana representando dois jogadores deste jogo com o respectivo tabuleiro entre eles.

Imediatamente compreendi que se tratava do mesmo jogo que anos antes eu tinha descoberto em Bajocunda, Guiné-Bissau. Fiquei então a saber que o “ôri” que eu conhecera era nem mais nem menos o “Jogo Nacional de África”. Era igualmente conhecido e praticado em todas as regiões da zona subtropical terrestre. Só na Europa era quase desconhecido.

É conhecido em toda a África pelos mais diversos nomes: Awale, Awélé, Ayo, Mancala, Oware, Wari, Chisolo e na nossa Guiné-Bissau, na região de Pirada, por “Ôri” que em dialecto fula significa o algarismo “um” ou a unidade. Chega também a ter diversas formas, havendo mesmo tabuleiros com 4 filas paralelas de cavidades, mas a ideia base é sempre a mesma, a sementeira.

Hoje é amplamente conhecido em todo o mundo e é um dos mais interessantes patrimónios da Humanidade.

O jogo de toda a Africa (Ôri, Wari, Solo, Mancala, Awélé, etc..) - Revista Jeux & Strategie, n.º 7, Fev/Mar de 1981

Clube Expresso - Março de 1973


As regras são as seguintes (versão de Pirada, 1964):

Depois de colocar 4 pedras em cada casa, um dos jogadores começa, retirando todas as pedras de uma casa qualquer, do seu lado (que se designam por Norte e Sul) e vai semeando uma a uma nas casas imediatamente a seguir, no sentido dos ponteiros do relógio ou seja da esquerda para a direita, passando para o lado do adversário se a quantidade de pedras retirada da cavidade escolhida assim o permitir. E assim sucessivamente até que um dos jogadores, ao colocar a última das suas sementes no lado do adversário encontra nessa cavidade apenas um ou duas sementes, (formando assim um grupo de duas ou três), tem o direito de as tomar, retirando-as para a sua cavidade maior (à sua direita). Igualmente pode retirar todos os outros grupos de duas ou três que formar, ainda e só no campo adversário, e que sejam imediatamente anteriores à casa onde terminou a sementeira.

Quando um dos jogadores não tiver mais nenhuma pedra ou semente do seu lado para movimentar, o adversário deverá jogar de modo a passar para o seu lado uma ou mais pedras de modo a permitir que ele possa jogar. Se tal movimento não for possível, o jogo termina, contando como suas as pedras restantes no tabuleiro.

O objectivo é comer a maior quantidade de pedras (25 no mínimo) para ganhar.

Carlos Geraldes
Viana do Castelo, Out.2009
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 30 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5037: Gavetas da memória (Carlos Geraldes) (9): Súmula sobre o Regulado de Gada-Cuntimbo (Gabu)

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P5037: Gavetas da memória (Carlos Geraldes) (9): Súmula sobre o Regulado de Gada-Cuntimbo (Gabu)

1. Publicamos hoje um trabalho escrito pelo então Alf Mil Carlos Geraldes (*) da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66, à ordem do seu CMDT, sobre o Regulado de Gada-Cuntimbo (Gabu), enviado em mensagem de 26 de Setembro de 2009.


Regulado de Gada-Cuntimbo (Gabu)

(Súmula dos conhecimentos adquiridos no período de Out. 1964 a Abr. de 1966)

Situação Geral:


Presentemente, não existem “tabancas” (aldeamentos indígenas) aliciadas pelo “IN” (Inimigo), embora em 1963, um grupo de terroristas que pretendia actuar na zona de Paúnca se tivesse acoitado em Madina Mamadu Sanússi (da etnia “Fulas-pretos”).

Foram escorraçados e mantida a população da tabanca sob vigilância, tendo-se criado lá um posto de cipaios. Todavia, tendo, os elementos suspeitos da tabanca, procurado refúgio no Senegal, nunca mais a referida população manifestou tendências suspeitas.

Durante o período 64/66, não se registaram quaisquer infiltrações ou tentativas de aliciamento por parte do IN.

Poucas são as tabancas e os caminhos que não estão devidamente assinalados na carta de 1/ 50.000, sendo, no entanto, de chamar a atenção para o traçado do caminho que vai de Fasse à ”cambança” (sítio onde se atravessa um rio), que não é o que vem indicado na carta. Na realidade, o caminho inflecte para Norte, cerca de 45 graus, atravessando por completo o Mato de Sacaio e localizando-se a cambança no ponto de intersecção de uma linha que fosse traçada de Fasse a Sare Bacar, com o rio Gêba.

Pelo facto de quase toda a região estar protegida, a Norte pelo rio Bidigor, a Oeste pelo rio Gêba e a Sul pelo rio Cumtimbo, goza naturalmente de certos privilégios no que diz respeito às defesas naturais contra possíveis acções do IN. Apesar disso, apenas na época das chuvas se poderá confiar nessas “muralhas”, pois somente o rio Gêba mantém, durante todo o ano, um nível de caudal suficiente para impedir a passagem a vau.

Existem três tabancas-chave, situadas junto de outras três cambanças utilizadas por quem vai ou vem do Senegal: Guiro Iero Bocari (Sinchã Queuto), Madina Mamadu Sanússi e Fasse.

Em todas elas a população tem-se mostrado digna de confiança, colaborando activamente com as “NT” (Nossas Tropas), no controle e vigilância das respectivas cambanças. Todas as canoas, durante a noite, ficam presas a cadeado, na margem de cá.

Em Guiro Iero Bocari existe uma ponte feita com troncos e “carentins” (grandes esteiras feitas de entrançado de bambu), de construção recente, mas apenas utilizável em tempo seco. É também de fácil controlo, pois só permite a passagem, em fila indiana, de três pessoas de cada vez, no máximo.

Todo o “chão” (território, nação) tem demonstrado estar incondicionalmente do lado da tropa, posição que não deixa de aproveitar largamente em seu favor, com constantes pedidos de transporte dos seus haveres, além de ajuda material em armas e munições, medicamentos, etc. No entanto, evidenciam um forte sentido de hospitalidade, notando-se até uma certa rivalidade entre as tabancas mandingas e fulas, nos actos de bem receber os visitantes.

A tabanca do interior, de maior importância, é, sem dúvida, Fasse, não só pelo valor estratégico, como pelo valor que tem por ser o centro mais importante no ensino do Alcorão, em todo o regulado. O “mouro” (sacerdote) da mesquita de Fasse é tido como uma das personagens mais importantes da região. O próprio traçado das ruas do interior da tabanca de Fasse, chama a atenção pelo seu traçado geométrico, pela largueza e higiene, denotando um elevado nível cultural da população, relativamente a todos os habitantes do resto do “chão”.

Existe uma mesquita, coberta com folhas de zinco, oferta do Governo da Província.

Pertencendo à etnia “Fula-Forro”, dedicam-se com êxito às culturas tradicionais, assim como à manutenção de um Horto de bananeiras e outros frutos comestíveis.


Situação Particular: Paúnca

1) A Povoação:

É um dos centros populacionais e comerciais mais importantes da zona de Gabu e Bafatá. Com um perímetro de pouco mais de 4 mil metros, está cercada por uma rede de arame farpado c/ aba.

Todas as casas ficam situadas no interior da rede e existem abrigos para atiradores deitados ao longo da face Norte e Oeste.

De Paúnca partem caminhos, para todas as tabancas da periferia, perfeitamente transitáveis pelos carros militares em qualquer época do ano.

As vias mais importantes são: Paúnca-Fasse; Paúnca-Sinchã Queuto e Paúnca-Sinchã Molele. A mesquita de Paúnca é uma das maiores e mais característica da região, pois obedece a um estilo de construção já pouco comum neste género de edifícios.

Outra casa que se destaca, no interior da tabanca, é a casa do régulo, de forma rectangular e com um mastro para hastear a bandeira nacional em dias de festa.


2) A População:

É quase toda constituída por indivíduos de etnia “Fula-Forro”, seguindo-se por ordem numérica, os de etnia “Saracolé” e os “Mandingas”, estes em menor número. Existe também uma numerosa colónia de “Balantas”, “Papéis” e “Manjacos” que constituem os grupos de trabalhadores das casas comerciais. Vivem separados numa espécie de bairro, situado nas traseiras do aquartelamento. São ordeiros, embora se embriaguem frequentemente, pois não praticam a religião muçulmana, como o resto da população.

Os fulas dedicam-se ao cultivo da “mancarra” (amendoim), do milho, do arroz e da mandioca, além da secular criação de gado vacum. Outros dedicam-se ainda ao pequeno comércio e outros são alfaiates.

São amigos de festas, que promovem com assiduidade, pedindo sempre a prévia autorização, à tropa.

Existem 3 ferreiros situados junto das entradas da povoação e o mais importante é o que tem a oficina à entrada do caminho que vem de Sinchã Queuto.

O “cherno” (pessoa de respeito) é o velho Amadu Bari, que apesar de idade avançada (mais de 80 anos) mantém uma excelente saúde e um humor muito especial. É um grande amigo da tropa e, sempre que pode, não deixa de visitar o quartel. O filho, Iaia Bari tornou-se um excelente colaborador da tropa como intérprete e informador. Domina com facilidade o dialecto Mandinga, o dialecto Saracolé, assim como alguns outros dialectos do Senegal e da Gâmbia. Fala e escreve bem o Português e dedica-se à prática de enfermagem, auxiliando o 1º Cabo Enfermeiro do Destacamento, no tratamento de civis, com os medicamentos destinados ao serviço da “Psico”. Tem um irmão, quase cego, que goza da fama de ser informador directo do Governador.


3) O Comércio:

Reveste-se de características especiais, diferente do que é praticado noutras localidades da fronteira, pois não depende do trânsito dos “gilas” (contrabandistas semi-autorizados), nem dos senegaleses que vêm ao nosso lado fazer compras. O comércio mantém-se sempre em qualquer altura do ano, abastecendo, tanto a população deste regulado como a dos outros, situados no interior. Durante a campanha da mancarra (Janeiro a Março) é muito intensa a circulação de burros carregados com os habituais dois sacos e a das camionetas de caixa aberta que depois os transportam para Bafatá. Não existem, durante todo o ano, períodos mortos, mas apenas pequenas flutuações.

As casas comerciais existentes são seis, com representação das firmas, “Barbosas”, “Gouveia” e “Pinheiros”. Todos os comerciantes mantêm boas e cordiais relações com a tropa, sendo de destacar o que dirige a filial dos “Barbosas”, o Sr. Correia. É o comerciante mais antigo de Paúnca, com amplos conhecimentos sobre os problemas do regulado. É, também, o único comerciante que se preocupa em manter uma certa rede de informações, que tem sido muito útil à tropa. No entanto, tem medo de prováveis represálias do IN sobre a sua pessoa, pois em 1963 foi alvo de um atentado na estrada Paúnca-Bafatá. Actualmente tem adoptado, por isso, uma atitude fria e de quase completo mutismo, quando a tropa o aborda directamente ao balcão da loja. Mas abre-se em confidências se a “entrevista” for mantida num clima de discrição.

Por vezes o receio dele chega a parecer excessivo e até infundado.

É muito amigo do Administrador Barros, de Gabu, a quem fornece sempre em primeira mão as informações que recebe, algumas de interesse apenas militar e que, não raras vezes, têm servido para criar situações falsas, à tropa, que se encontra destacada.

É de evitar fornecer-lhe quaisquer informações referentes ao IN, de acção imediata.


4) O Régulo:

É um velho sem energia e espírito de mando. É pouco conceituado pelos súbditos, pela fraqueza de ânimo dele. No entanto é apoiado por alguns homens “grandes” de grande poder e prestígio.

Nas relações com a tropa mostrou-se sempre de grande humildade, fazendo amiudadas visitas para “partir mantenhas” (apresentar cumprimentos) e também com o fito, menos louvável, de pedinchar um pão ou um pouco de açúcar.

Colaborou sempre de forma eficiente quando o furriel encarregado do rancho necessitava de comprar galinhas ou cabritos.

Tem muito medo da guerra, da qual nem gosta de ouvir falar.

Cavaleiro Embaló, um chefe terrorista, de pouca importância, é seu sobrinho, mas ele renegou esse parentesco, ameaçando-o de morte.


5) Os Cipaios:

Existe um corpo de cipaios comandados por um Cabo, directamente dependentes do Chefe de Posto de Sónaco. Têm uma actividade bastante reduzida, limitando-se à cobrança dos impostos e à resolução de pequenos litígios entre os civis. São muito reservados em relação à tropa.


6) A Milícia:

É uma força constituída por 18 elementos, comandados por um “alferes” e por um “cabo”.

Fornecem, para o serviço de transporte de água e lenha para o aquartelamento, 3 homens por dia, que durante a noite fazem também um posto de sentinela à entrada da Casa da Milícia. São integrados nas Secções do Pelotão, quando estas efectuam patrulhamentos. Psicologicamente são pouco aguerridos e bastante preguiçosos. Contraem dívidas sem grande dificuldade e abusam facilmente se lhes são concedidos alguns favores.

Quase todos se ofereceram para cumprir o serviço militar, na próxima incorporação. Os que são casados são bastante ciumentos, surgindo atritos entre eles e os soldados europeus que estão menos esclarecidos quanto ao modo de tratar a mulher indígena.

Constituição do grupo:

Comandante: Samba
1.º Cabo – Bamba Jamanca
N.º 61 – Manca Baldé
N.º 64 – Demba Embaló
N.º 65 – Aliu Candé
N.º 67 – Bobo Jau
N.º 70 – Puloro Candé
N.º 75 – Samu Baldé
N.º 76 – Jarga Jaló
N.º 80 – Turá Baldé
N.º 82 – Bobo Quitá
N.º 85 – Umaro Jau
N.º 86 – Braima Jaló
N.º 87 – Aliu Embaló
N.º 89 – Ussumane Camará
N.º 90 – Sare Jaló


7) Os Soldados Africanos:

São quatro: Sadú, Jau, Santos e Sáco. Os dois primeiros são fulas, os outros balantas. O Santos é natural de Bissau, onde foi empregado comercial. É o mais culto e o mais pretensioso. Tanto ele como o Saco embriagam-se com frequência se não forem reprimidos. Os outros dois são mais sossegados e nunca deram origem a qualquer distúrbio. Estão todos desarranchados.


8) A Escola:

É um edifício de construção recente, com apenas uma sala de aula e alojamento para o professor que, em caso de necessidade, já tem albergado um pelotão de reforço, durante dois ou três dias.

A frequência é bastante reduzida, devido ao natural costume do fula de evitar que os filhos tenham outra educação que não a tradicional.

O professor, Timóteo, é de etnia manjaco, protótipo de negro meio civilizado, arrogante com a pouca sabedoria que adquiriu sem a necessária profundidade e preparação, mas que julga ser muita. Tem grande dom de palavra e gosta de organizar festas onde se possa evidenciar. Levando uma vida de estroina, descura por completo as suas funções de ensino, tendo até criado a fama de tratar brutalmente os alunos.

É um elemento de forte poder aliciante, imiscuindo-se entre os soldados de quem, facilmente, conquista a confiança. Por mais de uma vez, e por motivos diversos, se mostrou suspeito, embora nunca tenha havido provas concretas. Todavia evidencia uma forte tendência racista.


9) A Taberna:

Situa-se em frente do quartel e é propriedade de João Vieira (por alcunha “O Passarinhas”), casado com uma cabo-verdiana. O resto da família é constituído por duas filhas e uma sobrinha, que o auxiliam no balcão. Alberga também hóspedes ocasionais.

Todos têm procurado, sempre, captar as simpatias das tropas recém-chegadas, na mira de benefícios futuros, pois vivem na expectativa de poder explorar, o mais possível, quem lhes frequenta o estabelecimento.

Os conflitos entre esta família e os soldados são pois inevitáveis e frequentes, provocados quase sempre pela existência das raparigas, utilizadas pelo “Passarinhas” como um autêntico chamariz.

Em 1963 levantaram suspeitas de colaborar com o grupo IN acoitado em Madina Mamadú Sanússi, mas não apareceram provas.

O “Passarinhas” dedica-se também à prática ilegal de dar injecções, deslocando-se até às tabancas do interior.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 29 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5032: Blogoterapia (128): Somos de facto um povo de poetas, de soldados com cravos na boca das espingardas (Carlos Geraldes)

Vd. último poste da série de 25 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5013: Gavetas da Memória (Carlos Geraldes) (8): A Poderosa Rainha

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P5013: Gavetas da Memória (Carlos Geraldes) (8): A Poderosa Rainha

1. Das Gavetas da Memória de Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66, saiu esta história/refexão sobre nós, como sentimos Áfica e como a vivemos naqueles longínquos anos.


Gavetas da Memória

A Poderosa Rainha

Acordei a meio da noite com uma sensação estranha que nunca tinha sentido. Saí da cubata para o meio da aldeia tentando adivinhar que mistério seria aquele que sentia crescer em volta de mim. A lua já se tinha escondido e dera lugar a uma espantosa toalha de luzinhas fulgurantes que se deixavam cair, langorosamente, sobre a minha cabeça, cobrindo-me como um manto da cabeça aos pés.

Foi então que me pareceu ouvir os sóis, as estrelas e todos os corpos celestes. Era um zumbido muito leve que apenas se deixava adivinhar. Era como um coro de anjos fabulosos, vindos lá do fim do Universo, afogando-me numa tal estupefacção que fiquei ali, pregado ao chão, de olhos esbugalhados.

Quando recuperei da surpresa procurei uma tosca plataforma de troncos onde os homens se reuniam durante o dia e ali me deitei, com os braços abertos em cruz, deixando que todo o céu desabasse sobre o meu corpo estarrecido.
Naquela tabanca, edificada numa pequena elevação que parecia estar no umbigo do Mundo, avaliei profundamente, a verdadeira dimensão de todos nós, pobres seres pensantes que julgamos tudo dominar. O tempo rugia nas roldanas do mundo que vogava pelo infinito, sem destino.

Num silêncio sepulcral toda a aldeia dormia sob um manto mágico que parecia proteger as casas, os homens, os animais e dar mais força às árvores dispostas agora em redor, velando por nós como sentinelas atentas.
Quando julguei que apenas eu era testemunha daquela revelação, vi um pequeno clarão e o acender de um cigarro de alguém que como eu, estava evidentemente com insónias.
Era o alferes Machado.

Na véspera tínhamos recebido uma mensagem de Bissau que o surpreendera tanto a ele, como a todos nós. Viriam brevemente buscá-lo para uma missão que diziam ser da mais alta responsabilidade. Acabara de ser nomeado oficial adjunto do Governador.
Naquela tarde, mal soubéramos da novidade, tínhamos ido todos festejar para a Cantina e ele acabou por pagar várias rodadas de cerveja como se estivesse fazendo as despedidas finais, como se tratasse do embarque de regresso à metrópole.
Mas o entusiasmo acabou por abrandar, pois era só uma mudança de morada. O pior seria depois, com as fastidiosas recepções oficiais, os salamaleques imbecis para agradar às gordas matronas dos oficiais superiores, sempre de ar muito cansado como se carregassem o enorme fardo daquele guerra absurda e irreal, dos salões com ventoinhas por todos os lados, dos olhares laterais da criadagem, das cozinheiras sempre na espreita de alguma oportunidade para consumarem a vingança por ancestrais humilhações (?)

Seria uma boa vida, claro! Mas o que diriam os antigos camaradas? Aqueles que ficaram roendo o capim debaixo de um sol pavoroso?
O preço a pagar iria ser muito alto. E isso atormentava-o como um ferro em brasa espetado no peito.

Em vão procurava ânimo e sossego na quietude da noite e viera comigo para aquela tabanca na tentativa de um esquecimento total que tornasse toda a realidade num mundo de brincadeirinha, de história em quadradinhos que logo arrumamos para o lado.
Agora sob a protecção de um magnífico manto de estrelas, sóis tão longínquos que a imaginação não pode alcançar, só assim podia acalmar a alma e sonhar que era outra vez menino, correndo de volta da saia da mãe.

Agarrou a arma e disparou uma rajada de fúria como se quisesse rasgar o véu negro da noite para deixar entrar de novo a luz da vida de verdade.
Ninguém respondeu. Ninguém se atreveu a acordar.
Ficámos ainda calados um bom pedaço. As palavras tinham desaparecido, apenas a memória matraqueava nos nossos cérebros.

- Quando eras pequeno também gostavas de revistas com histórias aos quadradinhos? - perguntou ele, rompendo de súbito o silêncio. - Era apaixonado pelo Tintim - continuou sem me dar tempo a responder. – O meu pai mandava-mo vir directamente da Bélgica, por intermédio de um parente que lá morava.

- Tem graça! - respondi, surpreendido pois nunca poderia imaginar vir encontrar alguém, aqui na negrura de África, que também tivesse tido uma infância parecida com a minha.

- Nos meus tempos de miúdo esfarrapava tudo o que eram revistas de quadradinhos ou banda desenhada como agora lhe chamam. Era o Cavaleiro Andante e o Mundo de Aventuras coleccionados religiosamente e rivalizando um com o outro. Que saudades isso agora me veio fazer!

E o resto da noite foi passado quase sem darmos por isso a evocar as doces recordações de infância, espantando com a maior das eficácias, os medos, as angústias que o mistério do futuro imediato, o inesperado da morte, há tanto tempo nos perseguia.

Dois adultos ainda com sonhos de criança, sob um céu cravejado de estrelas, no meio da imensa noite africana.

Nunca tinham estado tão perto do firmamento, nunca tinham sentido aquela estranha sensação de vertigem em direcção do espaço infinito, de sentir sobre os ombros o peso colossal do cosmos ali tão perto, quase ao alcance da mão.
Era então este o verdadeiro mistério da noite africana, a mágica iniciação da adoração de Mãe África, a poderosa Rainha?



Fotos: © Carlos Geraldes (2009). Direitos reservados
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Nota de CV:

Vd. poste de 21 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4988: Gavetas da Memória (Carlos Geraldes) (7): A Mina

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P4988: Gavetas da Memória (Carlos Geraldes) (7): A Mina

1. Mais um episódio de Gavetas da Memória de Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66.


A Mina

Era meia-noite em Pirada, pequeno povoado situado na fronteira norte, algures na Guiné Portuguesa.

A lua ainda tardava e um céu de veludo negro salpicado de jóias brilhantes pesava sobre as habitações, os homens, os animais e as coisas.
Há muito que reinava o mais profundo silêncio. A tabanca dormia tranquila. O nativo regula sempre todas as suas tarefas pelo nascer e pelo pôr-do-sol. Não precisa de outros horários.

Apenas, no quartel, se notavam alguns indícios de actividade. Rendiam-se as sentinelas, aqui e acolá, nos postos respectivos. Pela única rua da aldeia, regressava ainda o último grupo de retardatários. Dois oficiais, dois jovens alferes, confraternizavam com alguns sargentos, jovens também, companheiros desde os centros de instrução na Metrópole. Fumavam-se os últimos cigarros na perspectiva de uma noite sem história.

Foi nessa noite, uma noite vulgar, igual a tantas outras que a primeira surpresa viria a surgir.
No início, mais parecia ser o eco surdo de alguma trovoada seca, bem longe, para leste, ou nordeste, lá para as bandas de Bajocunda ou do Senegal, mas depressa chegaram à conclusão que os sons que o telégrafo do vento lhes trazia, eram na realidade detonações, tiros de armas de guerra. Tiros que estavam a ser disparados a poucos quilómetros dali.

E de facto ouviu-se, agora perfeitamente, o som inconfundível do matraquear de uma metralhadora ligeira, a arma preferida pelo inimigo. Desfeitas as dúvidas, todos se quedaram imóveis à escuta, perplexos, procurando uma explicação.

Alguém correra já a chamar o capitão que rapidamente também se veio juntar ao pequeno grupo que continuava a tentar perscrutar os sons que, a ligeira brisa da noite, conseguia fazer-lhes chegar. Entretanto, mais soldados, alertados pela movimentação inédita, foram-se juntando no meio da praceta da entrada do quartel, alguns, já com a arma segura numa das mãos, enquanto com a outra apertavam o cinto das calças, outros, espreguiçando-se lentamente, tentando perceber o que é que se estava a passar, perguntavam sem cessar:

- O que foi? O que foi? Aquilo são tiros mesmo?

Tão repentinamente como começaram, as detonações deixaram de se ouvir. Quando já se começavam a aventurar algumas hipóteses de explicação para tão insólito caso, uma sentinela, chamou baixinho:

- Meu Alferes! Meu Alferes! Pareceu-me ouvir um ruído qualquer, ali para os lados da estrada que vem de Bajocunda. Oiça! Oiça! Já se ouve melhor! Não está a ouvir?

De facto, um ligeiro rumor começava a deixar-se aperceber, entre a sinfonia monótona de todos os insectos nocturnos.
Um ligeiro roçagar que se ia tornando cada vez mais audível.

- É alguém que vem aí de bicicleta, meu Alferes! - Afirmava convicto a sentinela.

Distinguiu-se então, perfeitamente, um vulto branco a deslocar-se velozmente pelo caminho que vinha desembocar no largo, onde todos estavam. Seguiam-no um grupo de homens negros que resolutamente se dirigiam para o quartel. Entre eles distinguia-se a figura alta e esguia do régulo Solo Só. Chegando junto do capitão, rapidamente contou o que tinha chegado ao seu conhecimento. O jovem da bicicleta era um morador da tabanca de Sinchã Samba, aquela que ficava ali mais perto, cerca de uma hora de caminho pela estrada que levava a Bajocunda.

Segundo ele, quando regressava a casa, depois de uma noite de caça infrutífera, reparara nuns vultos estranhos que, no meio da estrada que passa mesmo junto à sua aldeia, pareciam estar a escavar o chão. Julgando que seria alguns dos seus vizinhos, chamou. Mas quando lhe responderam, notou logo se tratava de gente estranha e que algo de muito suspeito se estaria a passar. Rapaz avisado, como era, não hesitou, meteu a arma à cara, a fiel longa e fez um aparatoso disparo.

Como por encanto o grupo eclipsou-se, mas deixando como aviso uma rajada de pistola-metralhadora. Os habitantes da aldeia, por sua vez, já despertados pelo primeiro disparo, acorreram também com as suas longas e um pouco às cegas, na densa escuridão da noite, responderam aos tiros de armas automáticas que vinham do outro lado da estrada.

Quando tudo serenou e se deixaram de ouvir mais tiros, montou na bicicleta e viera para Pirada buscar auxílio e contar tudo à tropa. Não conseguia dizer ao certo quantos elementos teria aquele grupo terrorista, pareceu-lhe que seriam poucos, mas que de certeza estavam a fazer um buraco no meio da estrada.

Perante tais declarações e perante o olhar inquieto dos nativos que escutavam, ofegantes, tudo o que o bravo Braima (assim se chamava o rapaz da bicicleta) então dizia, o comandante do destacamento tomou rapidamente duas decisões:

- Primeiro, enviar um Grupo de Combate o mais urgentemente possível, fazer um reconhecimento, sem alarido, à zona afectada e atacar, se possível, o grupo inimigo que se infiltrara.

- Segundo, manter o destacamento em estado de alerta durante toda a noite, enviando para os caminhos da mata, que davam acesso à fronteira, alguns elementos da auto-defesa nativa, jovens decididos que, por sua própria decisão, tinha armado.

Tinha tido conhecimento, já há alguns dias, que um grupo inimigo se localizara do outro lado da fronteira. Era de prever qualquer tentativa de infiltração e talvez aquele pequeno grupo surpreendido pelo Abdulai Braima pretendesse de facto instalar uma mina que isolasse o aquartelamento, do lado nascente, para, no caso de resolverem atacar, ficarem com um caminho de fuga protegido.

Sem hesitações, os homens do 1.º GCOMB prepararam-se para partir. Ninguém falava ou gracejava e todos se mostravam interessados apenas no armamento a levar, que se queria leve, mas poderoso. Fixaram-se as últimas instruções, estudaram-se pela última vez, os mapas. O Sargento de Transmissões afinou os rádios, fixou as frequências indispensáveis. Todos os minutos eram preciosos. Não se poderia desperdiçar o efeito surpresa.

A um sinal do alferes, o grupo de combate embrenhou-se silenciosamente na escuridão do caminho, precedido por dois guias nativos que, ligeiros, ardiam de impaciência. Um a um deslizaram, como felinos, guiando-se pela estreita faixa clara da estrada, até que se deixaram de ver. O silêncio quase que não fora perturbado. O ar frio da noite que, de repente, começara a correr numa aragem fina, parecia querer impelir aqueles homens, sempre para a frente, de encontro ao negrume da mata.

Após os primeiros momentos de habituação, cada homem procurava não perder de vista o que lhe ia na frente, perscrutando ao mesmo tempo as sombras da noite em todas as direcções. Respiravam a curtos espaços, com os músculos tensos, prontos a qualquer reacção necessária. Em frente sempre aquela estrada branca, que mais parecia um estranho fantasma pairando diante deles.

Quando já estavam longe do aquartelamento, como medida de precaução, fizeram então o primeiro alto e todos se agacharam na berma do caminho, no lado mais escuro. O jovem alferes consultou os guias, confirmou, mentalmente, as distâncias e, depois de passar palavra, deu início a uma manobra de envolvimento, evitando o contacto directo com o desconhecido, e qualquer possível emboscada. Todos os cuidados não seriam demais.

Desta vez, o grupo embrenhou-se, depois de seguramente localizada pelos guias, por uma antiga picada que seguia paralela à estrada e que os levaria directamente à tabanca ameaçada. Esta, que se localizava um pouco a Sul da estrada, poderia ser assim atingida sem se ser visto da estrada. Era uma zona de mata densa, pela proximidade de um curso de água, propícia ao aparecimento de bolanhas, zonas alagadiças, locais de preferência para quem se quisesse ocultar.

Daí a pouco começavam a distinguir-se as copas arredondadas dos mangueiros, árvores de fruto, quase sempre identificadoras da proximidade de algum povoado.

A coluna redobrou de atenções e cuidados. Contra a impetuosidade dos guias, o oficial contrapunha calma e precaução. A aproximação deveria ser feita com o máximo de eficácia, pois o imprevisto poderia ser fatal.

Finalmente, a tabanca surgia no meio de uma imensa clareira. A Lua começava a despontar e iluminava já o cume das cubatas o que tornava, daí em diante, de certo modo arriscada a progressão daquele grupo de homens. Felizmente o vento vinha de frente e os cães não dariam pela aproximação deles.
O oficial fez um curto sinal com o braço e todos estacaram, ouvindo o vento, fixando os pontos característicos do terreno. Um silêncio de beatitude parecia querer desmentir todo aquele aparato de guerra.

Após uma ligeira troca de impressões, um dos guias partiu lesto na direcção da tabanca, confundindo-se com as sombras.

Os homens dividiram-se e uma secção embrenhou-se de novo na mata, com o outro guia, rodeando a tabanca pelo lado Sul, numa tentativa de conhecer melhor o terreno. O resto do grupo aguardou notícias do primeiro guia. Este não se fez esperar muito e, daí a pouco, estava já de volta, acompanhado por outro indígena que cumprimentava o alferes dando mostras de já o conhecer, de anteriores visitas, à tabanca.

Comunicou que os bandidos tinham feito muito fogo sobre eles, mas que se foram embora ao verem que da tabanca lhes respondiam também com tiros de espingarda. Todo o pessoal da aldeia estava de vigia e ninguém tinha fugido, acrescentou com um certo ar de vaidade. Só tinham pena que as munições tivessem acabado, senão tinham ido atrás deles. A tropa devia dar-lhes mais espingardas e mais balas, pois assim ficavam com medo que os bandidos voltassem para se vingarem.

Tranquilizado com estas informações, o alferes deu então ordem de avançar até à tabanca, deixando, no entanto, uma secção a proteger a retaguarda.
A tabanca parecia deserta, só aqui e ali se via uma cabeça a emergir de dentro de uma cubata. No largo central da aldeia, dois velhos e algumas mulheres. Um deles era o jarga, o chefe da tabanca. Acolheu a tropa com evidentes sinais de alegria e as mulheres, ao princípio atemorizadas, em breve começaram a tagarelar e a rir.
Surgiram depois os soldados da secção que fizera o envolvimento pelo sul, assustando algumas crianças desprevenidas, que correram a refugiar-se debaixo das saias das mães.

Nada de anormal do lado Sul. Restava portanto fazer o reconhecimento da estrada junto da tabanca, no local onde tinha sido avistado o grupo inimigo. Depois de uma breve comunicação rádio com o comando, o grupo espalhou-se, procurando então acercar-se da estrada. O silêncio continuava, interrompido apenas por um ligeiro rumor do vento nas copas frondosas dos grandes mangueirais. Os soldados esperavam, de armas prontas para uma qualquer reacção de um inimigo que poderia ainda estar presente por ali, emboscado.

Lentamente, atingiram a berma da estrada sem que nada acontecesse. A noite continuava a esconder os seus mistérios.

Um dos nativos indicou o local exacto onde tinham avistado os vultos suspeitos, uma cova escura, mesmo ali onde ficava a fonte da aldeia, segundo também informava.
A título preventivo e depois de prevenir o aquartelamento pelo rádio, dispararam-se algumas rajadas nas direcções mais prováveis, mas não houve qualquer resposta. Não havia dúvida, o campo estava livre.

Alguns soldados atravessaram a estrada e colocaram-se na outra berma. Outros, seguindo um dos nativos, embrenharam-se cautelosamente na mata que rodeava a fonte. Um deles, tropeçou num objecto duro e logo verificou tratar-se de uma caixa de ferro. Por precaução, tacteou a toda a volta com cuidado, certificando-se que não estaria armadilhado. Era um simples cunhete de munições abandonado talvez na precipitação da fuga

O guia regressava também com qualquer coisa na mão. Uma sandália de plástico e um boné de caqui.
Ali estavam, portanto, as provas definitivas de que, de facto, um grupo inimigo estivera naquele local e que teria retirado precipitadamente, abandonando, inclusive, uma pesada caixa de munições.

O alferes, entretanto, tinha localizado o sítio da estrada, onde o Braima tinha visto os suspeitos a cavar um buraco. Realmente, na parte onde a estrada descia para a bolanha, à luz fraca da lanterna eléctrica, conseguia notar-se uma ligeira depressão formando um quadrado, onde a terra parecia mais fofa e remexida. Como o local era muito escuro, não se fizeram todavia mais averiguações.

O inimigo, àquela hora estaria certamente do outro lado da fronteira e, não serviria de nada persegui-lo. Contactando novamente o Comando, ficou decidido então que metade do grupo permaneceria no local, guardando a estrada e impedindo a circulação de quaisquer veículos.
O resto regressaria ao quartel, trazendo tudo aquilo que tivesse sido encontrado, abandonado pelo inimigo.
Quando o pequeno grupo de soldados reentrou no quartel, todos ainda se mantinham na mesma expectativa aquando da saída deles.
A caixa metálica continha vários carregadores de espingarda metralhadora de origem soviética, ainda por utilizar e em perfeito estado de conservação.

Naquela noite, ainda, a sentinela deixada junto à estrada, perto do local onde se supunha estar a mina, deteve o condutor de uma pesada camioneta carregada de mancarra, vinda dos lados de Canquelifá, na ponta leste e que nada sabia do que tinha acontecido.
O motorista e algum pessoal que o acompanhava, encavalitado em cima das sacas do amendoim, tiveram mesmo de pernoitar ali na tabanca de Sinchã Samba, esperando que a tropa, mal amanhecesse, limpasse a estrada, assegurando-lhes uma passagem segura.

Logo que o dia clareou, uma força composta, então, por outro Grupo de Combate dirigiu-se ao sítio onde estaria a suposta mina. Cuidadosamente, foram picando o solo e mesmo no local onde o alferes estivera na noite anterior, detectou-se uma depressão coberta por terra fofa. Afastada a areia, destaparam uma caixa quadrangular de madeira. Era de facto uma mina anti-carro. Os turras, afinal, sempre tinham tido tempo para terminar o trabalho.

Com uma pequena carga de trotil, o Sargento Especialista rebentou o engenho, que fez um estrondo tremendo, perfeitamente ouvido a vários quilómetros de distância.

O motorista do camião de mancarra limpou o suor da testa e soltou um profundo suspiro de alívio. Profissional experiente, de muitas campanhas, nunca tinha sentido tão perto a perspectiva de poder vir a saltar com o rebentamento de uma mina. E daquela, escapara quase por milagre.

Pirada, 15 e 16 de Janeiro de 1965
(Publicado no “A Aurora do Lima” em 14.01.2009)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 5 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4898: Gavetas da Memória (Carlos Geraldes) (6): Os amores do Soldado Valença

sábado, 5 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P4898: Gavetas da Memória (Carlos Geraldes) (6): Os amores do Soldado Valença

1. Neste episódio de Gavetas da Memória, Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66, conta-nos uma bonita história de amor.



Os amores do soldado Valença

Chamava-se Luís António Rodrigues, mas era mais conhecido por Valença, por ser natural daquela vila nortenha, onde ajudava o pai numa bomba de abastecimento de gasolina. Quando atingiu a idade do serviço militar, deram-lhe uma farda especial camuflada, uma espingarda metralhadora e enfiaram-no num navio que mais lembrava um barco de negreiros navegando agora em sentido contrário. Em vez de sair de África era para lá que se dirigia.

Primeiro foram os patrulhamentos, depois as emboscadas, as operações de vários dias, debaixo de um sol inclemente, chafurdando em pântanos tenebrosos, comido por hordas de mosquitos insaciáveis que suportava com uma incrível paciência. A tudo resistia, taciturno e a tudo ia sobrevivendo.
Nos poucos momentos livres, sentado à porta da caserna, distraía-se brincando com uma pequena cadelita de pêlo amarelo que um dia lhe apareceu por ali e logo correu a lamber-lhe as mãos.
Sempre tinha tido jeito para lidar com os animais. Por onde passava encaminhavam-se logo para ele como se atendessem ao chamado do dono. Era uma atracção que ele tinha, diziam os colegas, que até se serviam disso para fazerem chacota.

- Eh, pá, contenta-te com a cadela, pois com as mulheres és capaz de não teres tanta sorte!

O Valença não dizia nada, mas entre dentes lá ia murmurando:

- Cambada de burros! Não têm respeito por nada!

Até que um belo dia, as canseiras pelos arredores de Bissau terminaram e a Companhia foi enviada para o interior da Guiné encarregada de outras missões.
Sem abandonar a pequenina cadela, a Dourada, o nosso Valença lá chegou às novas paragens, feliz como quem vai emigrando para o Paraíso.
Quando se achou por fim livre entre o céu e as sombras profundas dos grandes mangueiros, corria pela pequena pista de aviação, perseguido pela cadela, dando largas à sua ânsia de liberdade.
Brincavam como duas crianças.

Os dias foram passando, veio a monotonia dos largos meses sempre iguais e um certo dia a Dourada desapareceu.
Logo ao alvorecer, o soldado Valença estranhou ela não estar debaixo da cama, onde sempre ficava. Veio cá fora, deu uma olhadela pela parada, pela cozinha, inspeccionou até os abrigos das sentinelas um por um, e nem rasto da Dourada. Assobiou várias vezes por ela, mas nada.
Ninguém a tinha visto e apesar de todos se disponibilizarem para a procurar, indo mesmo com o Unimog até à bolanha, onde as raparigas da aldeia lavavam a roupa, nada, nem sombras da cadela.

Durante vários dias, mas cada vez mais desanimado, o Valença não descansou. Todos os dias vagueava pelos arredores do aquartelamento sempre com a esperança que, de um momento para o outro, se ouvissem os latidos alegres da sua amiga. Mas nada.
E os dias iam passando, sempre cada vez mais iguais, e nada de novidades da Dourada. Alguém, ou alguma coisa, a tinha feito desaparecer de vez, com certeza.

Veio a época das chuvas e os soldados passavam o tempo abrigados debaixo do telheiro da caserna, no pequeno bar da cantina a jogar as cartas ou num pequeno casebre mesmo em frente do arame farpado que rodeava o quartel. Aí, um mestiço, tinha um estabelecimento tipo super mercado do mato, onde havia sempre tudo o que se precisava para uma emergência ou para o mais trivial, um arame, uma corda, uma lata de petróleo ou um Petromax, arroz, pneus de bicicleta, uma aspirina, mas principalmente, e também, a aguardente de cana, sofregamente bebericada pelos bêbados do costume, determinados em esquecer ali aquela pasmaceira, aquela opressão de um sol que desde que nascia até que se deitava, pesava como chumbo derretido.

Atrás do balcão, duas adolescentes, lindas e misteriosas como só as cabo-verdianas sabem ser, a Ermelinda e a Argentina, que com o tio vieram para aquele fim do mundo, quando ficaram sós, após a morte da mãe em Bissau, vítima de tuberculose. Restou-lhes então aquele tio, irmão da mãe, que logo as tinha ido visitar assim que soubera do óbito. No regresso, não hesitou e trouxe-as também com ele, pois até estava a precisar de uma ajuda lá na venda.

As meninas, habituadas já a todo o tipo de trabalho duro nem estranharam, mas conservaram aquele ar de desenvoltura da cidade grande, do falar bonito, sem espantos nem gritos, como gente mais instruída.
Eram, sem dúvida, o principal e o mais interessante atractivo da venda do velho Passarinhas que desde logo soube tirar rendoso proveito dessa novidade, mantendo-as sempre em bom recato, como um valioso tesouro.

O pobre do Valença, inevitavelmente, não tardou a que lá fosse cair. Quando o serviço no quartel terminava, era ali que o podiam encontrar, sentado cá fora, debaixo do alpendre, bebericando uma cerveja, com os olhos postos na estrada, sempre na esperança de ver surgir a Dourada, a companhia que tinha lhe sido roubada, por algum malandro, dizia ele.

Aos poucos e poucos a Ermelinda, a mais velha das duas irmãs, habituou-se à sua presença e quando ele não aparecia, era ela que vinha cá fora, olhar para os barracões do aquartelamento. E ajeitando o cabelo, soltava de vez em quando um profundo suspiro.
Mas nos dias em que ele aparecia, corria logo a servir-lhe uma cerveja bem gelada. O Valença de inicio, não lhe ligava grande importância, mas aos poucos e poucos, foi começando a reparar e a demorar mais o olhar naquela negrinha que lhe sorria sempre. Passados tempos também ele lhe correspondia, agradecido. E de repente começaram a trocar confidências, perguntas sobre a família, a terra natal, o futuro. Como quase um namoro, sem que ambos dessem por isso.

O Tio Passarinhas, de princípio não gostou nada da brincadeira. Dizia que a sobrinha se estava a enredar de mais com aquele branco portuga, que isso só poderia trazer manga de chatice. Mas com o passar do tempo e perante a mansidão do Valença e da sua conversa mole, até ele começou a ficar enredado na situação. Apesar de, lá no fundo, não acreditar muito no futuro daquele romance.

Agora era o Valença que lhe dava sugestões para melhorar o negócio, ajudando em tudo que era preciso, e a coisa até resultava!
E não foi ele também que, num belo dia, começou a dizer que havia de se juntar com a Ermelinda, casar mesmo com ela, abandonar a tropa, não voltar para a terra e ficar por ali a viver com eles?
Não era mesmo uma coisa de maluco? Só podia ser!

Mas o Valença insistia, contando como é que iria pedir autorização ao Capitão para no fim da comissão não regressar a Portugal e ficar a viver na Guiné para sempre. Que não tinha para onde ir (o pai, entretanto, tinha falecido de repente), agora era aqui a sua nova terra. Que aqui é que ele se sentia bem. E não arredava pé, convencendo-se cada vez mais a si, e aos que o ouviam.

O Alferes, do Pelotão do Valença, nem queria acreditar quando lhe foram contar o que ele andava a tramar. Ainda tentou ter uma conversa de homem para homem, à porta da taberna, mas perante o olhar apaixonado dos futuros noivos, nem teve palavras.

Finalmente como sempre acontece, chegou o momento fatal. Enquanto os colegas davam saltos de alegria e cantavam abraçados, bêbados de felicidade pelo bendito dia do regresso ter enfim aparecido, o nosso Valença, no escuro do casebre do Tio Passarinhas, estreitava contra si a chorosa Ermelinda, prometendo-lhe que logo que tivesse tratado de todos os papéis para deixar a tropa, voltaria a correr para os braços da sua amada.

No alvorecer do dia fantástico, uma desconjuntada coluna de camiões carregados como se fossem carroças de mudanças, abandonou a aldeia, deixando para trás tantos sonhos tantos medos, tantas bebedeiras e tantas promessas deitadas ao vento, tudo condenado a ficar coberto pela poeira vermelha daquela terra de que agora já se iam esquecendo. A pouco e pouco foram-se deixando de ouvir os gritos doidos dos soldados que nem para trás quiseram olhar quando desapareceram na curva da bolanha.

E quando a coluna de camiões chegou finalmente a Bissau, foi um lufa-lufa para descarregar as bagagens para à velha caserna que já os tinha acolhido no primeiro dia. Ali ficaram alojados até ao embarque, de novo no mesmo navio negreiro, transformado agora pela mirífica imaginação de todos, em paquete de luxo. Ao fim da tarde desse mesmo dia passearam pela Baixa, com um sorriso estampado no rosto, maior que o mundo, exibindo a fitinha verde e rubra que o Coronel do Batalhão numa arremedo de homenagem para heróicos combatentes (?), lhes tinha espetado no peito. Era a medalha dos feitos cometidos na guerra, o reconhecimento pela dádiva de dois anos da sua juventude, do passado que passou, que nem era bom lembrar. Agora ninguém mais os segurava!

Mas inesperadamente, o nosso soldado Valença debatia-se num dilema. Largar tudo e todos, fugir e voltar para trás, ou deixar-se levar com a carneirada, até ao lúgubre quartel que os aguardava lá na Metrópole, onde iriam depositar tudo o que traziam, os farrapos das fardas, as velhas armas, as botas rotas, as mantas, os colchões, os tachos e as panelas ainda com restos da picante gordura africana?

Todos lhe diziam que era isso mesmo que deveria fazer. Que esquecesse a companhia da pretinha que, por muito apetitosa que fosse, não era modo de vida para ele. Era à terra natal, à velha Metrópole que pertencia e estava tudo dito.
Mas o soldado Valença revolvia-se na cama, incapaz de se esquecer do sorriso de Ermelinda, daquele jeito tímido de lhe afagar o ombro quando trazia a cerveja gelada.
Os longos fins de tarde, contemplando juntos a silenciosa agonia do sol, que caía lá para trás dos grandes mangueiros da velha aldeia.

E tanto batalhou, tanto procurou e tanto massacrou a cabeça do Primeiro-Sargento da Secretaria que este, só para se ver livre dele, tratou de lhe fazer a vontade.
Ali mesmo se procedeu à entrega do material que o estado lhe tinha emprestado, quando o mandara para a guerra, e num abrir e fechar de olhos ficou livre como um passarinho.

Vestido com a pouca roupa civil que ainda possuía, com resto das suas coisas metida numa decrépita mala de cartão e acariciando no bolso uma meia dúzia de notas em dinheiro guineense, correu, ligeiro como um gamo, fugindo pela porta de armas em direcção à cidade, para procurar um transporte qualquer que o levasse de volta ao Paraíso, ao regaço da sua Ermelinda que nunca deveria ter abandonado.

Lá longe, no interior desconhecido de uma África ignorada, num mundo perdido, era aí que morava o destino que desejava e que, se calhar, lhe fora por isso traçado.

Foi o culminar da uma existência, desaparecendo como um rio que, sinuosamente, percorre as terras rasas em busca de um final feliz, numa reunião de amor com o mar oceano das nossas lágrimas.

Nunca mais se soube dele.

Viana, 23 Junho de 2009
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 29 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4879: Gavetas da Memória (Carlos Geraldes) (5): A CART 676 chega a Pirada