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domingo, 31 de janeiro de 2021

Guiné 61/74 - P21832: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (24): O gen Costa Gomes, Chefe do Estado Maior das Forças Armadas, em visita ao CTIG, em 8/1/1973, cumprimenta oficiais e população, em Teixeira Pinto, segundo vídeo da RTP Arquivos


Fotograma nº 1  > Guiné > Região do Cacheu > Teixeira Pinto > 8 de janeiro de 1973 > Costa Gomes, ao centro, entre o cor pqdt, comandante do CAOP1. 


Fotograma nº 2


Fotograma nº 3


RTP Arquivos >  1973-01-13 > Vídeo (2' 17 ''> General Costa Gomes,  Chefe do Estado Maior das Forças Armadas,  visita aquartelamentos militares na Guiné Bissau, primeiro Teixeira Pinto e depois o Pelundo.

Sinopse: "General Costa Gomes e General António Spínola, Governador Geral da Guiné, a sair de helicóptero no aquartelamento de Teixeira Pinto; cumprimentam individualidades militares e locais; comitiva automóvel a partir de carro em movimento; em Pelundo o General Costa Gomes e o General António Spínola cumprimentam militares e populares; milícias em parada; a marcar passo; vacas e bezerros a pastar."

Reprodução de fotogramas, através da função "print screen", com a devida vénia à RTP Arquivos. 

O vídeo (2' 17''), completo, mas sem som, pode ser visto aqui. A visita foi a 8 de janeiro de 1973, mas o vídeo só passou no telejornal [, na altura, "noticiário nacional"], em 13/1/1973. Ainda não havia internet, e a bobine com o filme tinha que ir no avião da TAP... Hoje é tudo instantâneo, como o pudim...


1. Ao visionar o  vídeo.  fomos descobrir dois  dos nossos grã-tabanqueiros, o Mário Bravo, ex-alf mil médico, e o António Graça de Abreu, ex-alf mil, CAOP1 (Mansoa, Teixeira Pinto e Cufar,  1972/74).
 

No seu 
Diário da Guiné - Lama Sangue e Água Pura (Lisboa, Guerra e Paz, 2007, 220 pp),  o António Graça de Abreu dedicou três linhas a esta visita (p. 68)....


Canchungo, 8 de janeiro de 1973 


O general Spínola e o general Costa Gomes estão na sala ao lado,  com o coronel [Durão, comandante do CAOP1,], o tenente-coronel do Batalhão e os majores todos. 

Vieram arejar as cabeças ou polui os ares ?  Que congeminam  estes crâneos  iluminados pelos clarões da guerra ?  (*)


2. Na altura, ainda estava lá, em Teixeira Pinto, o Mário [Silva] Bravo, [ex-Alf Mil Médico, que passou por Bedanda, neste caso pela CCAÇ 6, entre dezembro de 1971 e março de 1972; trabalhou depois como cirurgião  no HM 241, em Bissau, acabando a comissão em Teixeira Pinto, e não em BIssau, no HM 241, como já escrevemos noutro poste] (**)

E a propósito ele fez o seguinte comentário, há pouco:

"Caro Luis Graça, um grande abraço e parabéns pela publicação do vídeo. Encontrei este mesmo vídeo no Facebook e até partilhei, para que não se perdesse. 

No blogue dizes que eu fui terminar a comissão em Bissau, como cirurgião, mas não foi assim. Como já tinha terminado a comissão, e não me "tiravam" de Teixeira Pinto, o cor Durão passou-me ele próprio uma guia de marcha sem local militar de destino, dizendo só Bissau. E que eu me desenrascasse.!!!... E lá tratei da vidinha, com a ajuda do meu comandante de Bedanda, passei à disponibilidade em Bissau, mas não no Hospital. Está feita a correcção.

Lembro bem desta visita do gen Costa Gomes".



Guiné > Região do Cacheu > CAOP 1 > Teixeira Pinto > 1972 > O Alf Mil Médico Mário Bravo,  o quarto a contar da esquerda, de óculos. Está  no meio de um grupo de oficiais, entre eles o António Graça de Abreu,  alferes miliciano (CAOP1, Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74), o primeiro da esquerda. 

O António Graça de Abreu veio depois  agora completar a legenda: 

"O Mário Bravo lembrou-se de mim em Teixeira Pinto e mandou essa fotografia onde apareço jovem, quase menino, na ponta esquerda da foto. Na ponta direita está, de camuflado, o meu amigo capitão miliciano António Andrade, comandante da 35ª Companhia de Comandos, também amplamente referido no meu livro. 

"Entre mim e o Bravo estão o alferes [Franciso] Gamelas, da Companhia 3863 [, mais exatamenet, cmdt do Pel Rec Daimler 3089, Teixeira Pinto,  1971/73 ], e o alferes Cravinho (de calções), do nosso CAOP 1 e meu companheiro de quarto".

Foto (e legenda): © Mário Bravo (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
 _____________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 20 de outubro de  2013 > Guiné 63/74 - P12179: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (23): Duas referências ao Marcelino da Mata

sábado, 16 de julho de 2016

Guiné 63/74 - P16309: Controvérsias (131): Blindados do PAIGC ? Quem os viu de ver e não de ouvir ?... (António Martins de Matos, ex-tenente pilav, BA 12, Bissalanca, 1972/74, hoje ten gen pilav ref)

1. Mensagem de António Martins de Matos  [ex-tenente pilav, BA 12, Bissalanca, 1972/74, hoje ten gen pilav ref; membro da nossa Tabanca Grande]

Data: 10 de julho de 2016 às 16:03
Assunto: Blindados

Caro amigo:

Vi ontem no canal Memória da RTP a repetição de um episódio do Joaquim Furtado, onde refere a cerimónia da "Independência da Guiné", ocorrida na área libertada do Boé (dizem eles), no Boé da vizinha Guiné-Conacri (digo eu).

Nesse filme aparecem 2 viaturas de transporte de pessoal acompanhando o desfile das forças em parada.

Farto das conversas sobre Migs, (que sim, que não, que talvez…) e porque penso que, até agora, nunca se falou sobre a estória dos blindados PAIGC, talvez seja a altura de abordar o assunto.

Para inicio do tema, já sabemos que "alguém" lhes deu o diesel e um outro "alguém" lhes forneceu os mapas, (tudo pessoal amigo), aqui deixo o repto.

Blindados PAIGC:

Desde quando? Que tipo? Armados? Só para transporte de pessoal?

Empregues onde?

Quem os viu em operações? VIU DE VER e não de ouvir, que ruídos na noite... propagam-se facilmente (moro a 6 quilómetros do aeroporto de Lisboa e, de noite, oiço o C-130 da FAP a pôr em marcha)

Abraços
AMM


2. Comentário do editor:

António, obrigado pela tua sugestão. Boa sugestão de verão, em que é preciso continuar a alimentar o blogue, apesar da modorra e preguicite aguda que nos dá nesta estação do ano...

Na realidade, pouco se tem escrito, aqui,  sobre as tais viaturas blindadas do PAIGC.  Há uma ou outra referência.  Tudo indica que o PAIGC já as tivesse, no final da guerra, estacionadas do outro lado da fronteira (na Guiné-Conacri)... Teria uma ou a outra à experiência, e para "tuga ver" ou "sueco ver".... O problema devia ser a falta de unhas para as conduzir e manobrar... Terão sido usadas (mal) contra Copá (em 7/1/1974) e em Bedanda (em 31/3/1974).n Em Copá custou a vida aio comandante das forças atacantes, Mamadu Cassambá.

O alf mil António Graça de Abreu e o asp mil Miguel 
Champalimaud,  do CAOP1,  em janeiro de 1974, 
no aeroporto de Cufar.  Foto de A, Graça de Abreu (2012)
Uma dessas referências, às famosas viaturas blindadas do PAIGC,  é do nosso amigo e camarada (e grã-tabanqueiro de longa data) António Graça de Abreu, ex-al mil,  CAOP 1 (Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74).

Ele estava perto, em Cufar, quando Bedanda foi atacada, em 31 de março de 1974,  com morteiros 120 mm, foguetões 122 mm, RPG2 e RPG7, armas automáticas e outras armas pesadas em duas viaturas blindadas do tipo autometralhadora:


(...) Cufar, 3 de Abril de 1974

A guerra está feia. Bedanda embrulhou durante todo o dia, um ataque tremendo, doze horas consecutivas de fogo. A festa só acabou à noite com uma espécie de cerco à povoação levado a cabo pelos homens do PAIGC.

Em Cufar, tão próximo, além de distinguirmos nitidamente as rajadas de metralhadora de mistura com os rebentamentos dos RPG, foguetões e canhão, à noite viam-se as balas tracejantes e as explosões no ar.

Uma novidade, os guerrilheiros utilizaram viaturas blindadas na flagelação a Bedanda. Existe uma estrada que vem da Guiné-Conacry, passa junto a Guileje – abandonada pela tropa portuguesa, – entra pela região do Cantanhez e termina em Bedanda. O IN está a utilizar esse percurso para deslocar camiões carregados com todo o tipo de armamento, em seguida é só despejar sobre os aquartelamentos portugueses mais expostos e fáceis de alcançar, como Chugué, Caboxanque, Cobumba, Bedanda, Cadique e Jemberém.

Bedanda é uma povoação grande, a maior do sul da Guiné depois de Catió. Terá uns cinco mil habitantes e ontem já se falava em abandonar o aquartelamento. A população africana saiu da vila, ficando por próximo.

Bedanda levou com mais de sessenta foguetões e centenas e centenas de granadas de RPG, morteiro e canhão sem recuo. Foi medonho, há muita coisa destruída, mas tiveram sorte, contam-se apenas dois feridos, um furriel e um negro que levou um tiro nas costas. A tropa passou mais de doze horas metida nas valas.

Espera-se novo ataque a Bedanda. As NT já foram remuniciadas e há promessa de se enviarem mais militares para defender a terra. Os guerrilheiros também devem ter ido descansar e reabastecer-se.

Todas estas flagelações, apesar de serem destinadas aos vizinhos do lado, deixam marcas em todos nós. São horas, dias, meses a ouvir continuamente o atroar dos canhões da guerra. Eu ando um bocado desconexo, excitado, “apanhado”. Quase não tenho dormido, são as sensações finais, o cansaço, o desamor à mistura com o alvoroço do regresso a casa. (...)

Fonte: António Graça de Abreu, Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura. Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007,  p.  220. (**) [Imagem da capa do livro, à direita]


Há um comentário ao Poste P9375 (*) do nosso leitor António Rodrigues (, de Vila Real, e que se apresenta como alferes mil, colocado em Bedanda naquela altura, e a quem convidadamos para "dar a cara" e um dia destes se sentar aqui connosco, à sombra do poilão da Tabanca Grande):

Caros camaradas: Estava colocado em Bedanda aquando do ataque com viaturas blindadas, onde era alferes miliciano. As viaturas com que fomos atacados eram as BTR 152 (soviéticas), equipadas com metralhadoras. A sua quase entrada no perímetro deveu-se ao facto de elas terem atacado a partir da zona onde se situavam as tabancas da população civil e isso impedir que quer as "bazookas" quer os canhões sem recuo [tenham ripostado]. Abraços, António Rodrigues.


Outro António Rodrigues, mas, esse, nosso grã-tabanqueiro, registado, e um dos bravos de Copá, ex-sold cond auto da 1ª CCAV / BCAV 8323 ( Bolama, Pirada, Paunca, Sissaucunda, Bajocunda, Copá e Buruntuma, 1973/74), autor da notável série "Memórias de Copá" (de que se publicaram pelo menos 6 postes), escreveu aqui o seguinte (**)

(...) Ora nós em Copá, no dia 7 para 8 de Janeiro de 74, enfrentámos o assalto do PAIGC ao nosso aquartelamento, precisamente com dois blindados, um dos quais chegou a entrar dentro do aquartelamento e nós na altura, só com 27 homens (bazucas uma) e muita sorte, lá os conseguimos repelir.

(...) Soube recentemente, através de uma pessoa que se deslocou à Guiné e a Copá e falou com os guerrilheiros da altura, que lhe disseram que, durante os combates na noite de 7 para 8 de Janeiro de 74, com carros de combate do PAIGC, lhes matamos o comandante que os comandava nessa noite. E a minha conclusão é que esta foi mais uma razão para eles retirarem ao fim de 01,10 horas e assim termos escapado a uma quase eminente captura. (...) .


Ramón Pérez Cabrera, em "La historia cubana en África: 1963-1991: pilares del socialismo en Cuba" (edição de 2005), tem um capítulo sobre a guerra na Guiné (pp. 135-184) e a participação  dos "internacionalistas" cubanos.

A Op Abel Djassi [, nome de guerra de Amílcar Cabral], na sua 2ª fase (época seca de 1973/74) é descrita com detalhe: o início da operação começa justamente a 3/1/1974, com  a ofensiva contra Copá, por intermédio de forças de infantaria e artilharia, "apoiadas por quatro blindados (...) BTR".

O comandante das FARP era Mamadu Cassamba que, "tripulando um dos BTR, penetrou temerariamente na instalação militar"... Teve o azar do seu BTR  acionar uma mina A/C que lhe causou a morte instantânea. As forças do PAIGC conseguiram resgatar o veículo e, dentro dele, o cadáver do seu comandante.

Uma das raras fotos de viaturas blindadas, alegadamente ao
ao serviço do PAIGC no final da guerra. Foto (pormenor) do
Arquivo Mário Pino de Andrade / Casa Comum /
Fundação Mário «Soares. Clicar aqui para ver o original.
  

Face a esta grande contrariedade, o comandante da Frente Leste, Paulo Correia, mandou suspender os assaltos com a infantaria, continuando com as flagelações da artilharia, durante todo o mês de janeiro, até que as NT, como é sabido, abandonam Copá em 12/13 de fevereiro  de 1974, por ordem do Com-Chefe.

Nesta 2ª fase da Op Djassi (a primeira tem a ver como os três G - Guidaje, Guileje e Gadamael, maio / junho de 1973, ainda no tempo do Spínola), Ramon Pérez Cabrera diz que participaram "14 internacionalistas cubanos", um dos quais, um jovem oficial que tinha partido de Cuba por via aérea em 13/12/1973, e que vai  encontrar a morte nas imediações de Copá (ou de Canquelifá ?),  às 8 da manhã do dia 8 (ou 7 ?) de janeiro de 1974, surpreendido por tropas portuguesas.

O seu corpo terá do  "levado para Buruntuma", mutilado e exumado, diz Ramón Pérez Cabrera.   [Tratar-se-ia, quanto a nós,  da mesma emboscada em que terá sido apanhado vivo, o caboverdiano Jaime Mota, 1940-1974, alegadamente executado depois. Ramón Maestre Infante terá sido o último dos 9 internacionalistas cubanos a morrer na "guerra de liberación" da Guiné-Bissau. Enfim, mais um caso para alimentar a nossa série Controvérsias (***)], e o nosso Jorge Araújo vai, por certo, querer explorar, ele que agora tem em mãos o "dossiê médicos cubanos"..


Excerto de: Ramón Pérez Caberra - "La historia cubana en África: 1963-1991: pilares del socialismo en Cuba" (edição de 2005), p. 1979 [Com a devida vénia...Sublinhados nossos]  [Extensas partes do livro podem ser consultadas, em modo de pré-visualização, no portal da Kilibro]
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Notas do editor:

(*) 20 de janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9375: Excertos do Diário do António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (5): ): "Uma novidade, os guerrilheiros utilizaram viaturas blindadas na flagelação a Bedanda [, em 31 de março de 1974]"...

(**) 23 de novembro de 2010 > Guiné 63/74 – P7320: Controvérsias (111): Copá: Quero aqui repor a verdade dos factos! (António Rodrigues, ex-Soldado Condutor Auto do BCAV 8323)

Vd. também postes de:

4 de novembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15327: Louvores e condecorações (10): Os bravos Copá, da 1ª C/BCAV 8323/73, que resistiram durante mais de um mês ao cerco do PAIGC

7 de janeiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14128: Memórias de Copá (3): Janeiro de 1974 (António Rodrigues, ex-sold cond auto, 1ª CCAV / BCAV 8323, Bolama, Pirada, Paunca, Sissaucunda, Bajocunda, Copá e Buruntuma, 11973/74)

(...) 7 de janeiro de 1974: o dia mais infernal por que já passei

(...) Novo ataque às 23h50 junto ao arame farpado, com apoio de viatura blindadas e artilharia... Mas Copá resistiu!

E as viaturas encaminhavam-se a toda a força na direcção de Copá e cerca das 23 horas e 50 minutos tudo parou e o ruído deixou de se ouvir, (a falta de iluminação facilitou-lhes as manobras e a instalação à vontade de todo o seu dispositivo) e ficamos na expectativa à espera de mais um momento terrível daquela noite e o meu pressentimento veio a concretizar-se, era exactamente meia noite e dez minutos quando se ouviu o já típico rebentamento que dava início aos ataques do inimigo.
Aí teve início mais uma hora e cinco minutos horrorosos, infernais e terríveis de enfrentar, aí o inimigo estava 10 metros à nossa frente e trazia uma táctica que estava muito bem montada, tinha junto ao arame farpado 3 secções, separadas alguns metros, o que lhe permitiu fazer fogo de armas ligeiras ininterruptamente durante 1 hora e 5 minutos, porque o fazia por secções e quando uma estivesse sem munições a outra estava já preparada para disparar e assim sucessivamente, mas para além destas secções de homens armados de metralhadoras tinham um auto-blindado (tipo ZIG Russo) junto a uma das secções a apoiá-la com os disparos do seu canhão e na retaguarda destas secções tinham toda a artilharia com que nos tinham atacado durante a tarde, esta encontrava-se a cerca de 1 Km também apoiada por outro auto-blindado do mesmo tipo. (...)

(***) Último poste da série > 8 de março de  2016 > Guiné 63/74 - P15832: Controvérsias (130): O "nosso Cabo Miliciano", que em 1965 ganhava 90 escudos de pré (34,24 euros, hoje), fazendo o serviço de sargento... (Mário Gaspar)

quinta-feira, 17 de julho de 2014

Guiné 63/74 - P13410: Dossiê Os Libaneses, de ontem (e de hoje), na Guiné-Bissau (3): A Xerazade de Teixeira Pinto... (António Graça de Abreu, ex-alf mil, CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74)

1. Mensagem do nosso camarada e amigo António Graça de Abreu [, ex-alf mil, CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74] [, foto à direita, em Cufar, c. 1973/74]

Data: 15 de Julho de 2014 às 00:16

Assunto: Libanesa bonita

Meu caro Luís

Está no meu Diário a 1 de Janeiro de 1973, em Teixeira Pinto

Acredito que tenha sido exactamente assim. Não escrevi de memória. Com todo o respeito pelas mulheres libanesas, iguais ou mais bonitas do que as mulheres de todo o mundo, Creio que é de publicar.

Forte abraço,
António Graça de Abreu

2. Excerto de Diário da Guiné - Lama, Sangue e Água Pura, de António Graça de Abreu. Lisboa: Guerra e Paz, Editores. 2007.


[Foto à esquerda,. capa do livro, Guerra e Paz Editores, SA (2007), com a devida vénia]

Canchungo, 1 de Janeiro de 1973

Ontem à noite houve corrida de São Silvestre organizada pela Acção Psicológica do CAOP 1. Às nove e meia da noite, tínhamos noventa figurões equipados, com postura de grandes atletas, a dar três voltas à avenida principal. Fui assistir na companhia do alferes Paiva, da 38ª de Comandos [1].

Mas ele tinha outra ideia, sub-reptícia, fixa. Quase em segredo, queria-me mostrar a sua namorada (?) libanesa, uma mulher solteira, com quase cinquenta anos convencida que tem vinte e dois, e que atrai os homens. Vive no centro da vila, na praça Dr. Oliveira Salazar com a família de comerciantes vindos do Líbano. Como é que esta gente veio parar à Guiné? (*)

A senhora pinta o cabelo – uma tenebrosa cabeleira loira, – pinta os olhos, pinta os lábios, pinta as unhas, pinta tudo. Usa uns brincos de folheta vindos de Salamanca, Espanha – diz ela, – tem a cara envelhecida coberta de cremes e pós. É um mamarracho digno de exposição. O Paiva, pouco mais de vinte anos garbosos e valentes, conduziu-me até casa dela, queria que eu a conhecesse. A mulher recebeu-nos como se tivessem chegado dois príncipes da Pérsia. Cumprimentei-a e vim educadamente embora. O alferes Paiva, Comando, capaz de todos os gestos heróicos, ficou lá a desmaquilhar suavemente a dama libanesa. (**)

À meia-noite, em casa do capitão Pancada abriram-se umas garrafinhas de Magos e de champanhe. O Pancada e o alferes Gamelas têm consigo as esposas, simpáticas, bonitas, ambas de nome Helena. Estavam felizes, dançavam enlaçados, beijavam-se. Na sala havia mais quatro homens casados com as mulheres em Portugal. Olhávamos uns para os outros, mastigávamos em seco, sorumbáticos, tristes. Éramos o alferes Teixeira, um excelente rapaz do Batalhão 3863, o alferes Tomé, meu companheiro de quarto, o furriel Rodrigues também do Batalhão, e eu.

Depois do “réveillon chez Pancada”, o Tomé foi ainda beber com os alferes Comandos – não sei se o Paiva já voltara do seu sortilégio libanês, – e regressou às tantas ao quarto, a gatinhar, a gritar a frase do costume “Tirem-me daqui, tirem-me daqui!”.

[1] Para a história da 38º. Companhia de Comandos, ver Resenha, 7º vol., tomo II, pag. 536.
_____________

Notas do editor:

(**) Xerazade de Teixeira Pinto; o subtítulo, irónico,  é da responsabilidade do editor.

Consulta da Infopédia:

(...) "Xerazade: Filha de um vizir, Xerazade é uma princesa bela e sagaz que, sob ameaça de morte, consegue distrair o rei Shahriyârnarrando-lhe os contos que constituem As Mil e Uma Noites. Esta personagem tornou-se um símbolo do Oriente muçulmano, fantástico e voluptuoso, tal como o imaginou romanticamente a Europa após a leitura da famosa coletâneade histórias. A figura de Xerazade inspirou diversas obras, tais como o ballet oriental de Léon Bakst, em 1908, e o de Michel Fokine, em 1910." [... Sem esquecer a popularíssima suite sinfónica para orquestra, nº 35, do genial compositor russo Rimsky-Korsakov, Scheherazade, de 1888, baseada no livro de As Mil e Uma Noites... Pode ser ouvida aqui, no You Tube... LG].

Fonte: Xerazade. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2014. [Consult. 2014-07-17].
Disponível em http://www.infopedia.pt/$xerazade,2

domingo, 9 de março de 2014

Guiné 63/74 - P12812: Acordar memórias (Joaquim Luís Fernandes) (2): O primeiro contacto com a bibliografia da guerra colonial

1. Segundo episódio da série "Acordar memórias" do nosso camarada Joaquim Luís Fernandes (ex-Alf Mil da CCAÇ 3461/BCAÇ 3863, Teixeira Pinto, 1973 e Depósito de Adidos, Brá, 1974):


ACORDAR MEMÓRIAS

2 - O PRIMEIRO CONTACTO COM A  BIBLIOGRAFIA DA GUERRA COLONIAL

O meu regresso às minhas memórias da Guiné, iniciou-se quando um colaborador e companheiro de trabalho (que também escreve livros e com vários prémios literários, de pseudónimo Paulo Assim) me falou que tinha lido recentemente um livro sobre a guerra na Guiné e que referia um episódio, de que eu lhe falara, de um acidente com militares, que tinha provocado vários mortos e feridos, na sequência de uma desavença ocorrida num jogo de futebol; que deveria ser o mesmo episódio e que eu deveria conhecer o seu autor. Prontificou-se a adquirir-me o livro. “Diário da Guiné – Lama, Sangue e Água Pura”, de António Graça de Abreu. Li-o de seguida e com sofreguidão. Era a primeira vez que lia algo sobre a guerra da Guiné, onde também tinha estado e logo a falar-me dos lugares e de pessoas com quem tinha convivido, despertando-me assim para outros interesses...

Também, já há alguns meses me havia sentido “estranho”, ao constatar que a série televisiva “A Guerra”, de Joaquim Furtado, tinha mexido comigo, quando os episódios se referiam à Guiné. Dei comigo a discorrer sobre a condução política e militar de Portugal e da Guiné, a esse tempo, interrogando-me: como tinha sido possível que se tivesse deixado acontecer os “infernos” de Guidage e Guileje. Não era previsível o que aconteceu? Onde estavam os serviços militares de informação e reconhecimento? O que faziam? Por que é que não se actuou preventivamente? Porquê?... Onde estava a competência dos senhores da guerra? Se não havia capacidade para controlar, prever e contrariar a actividade do IN, o que andávamos a fazer? Eu, que não era militar nem guerreiro, via os erros que tinham sido cometidos, remediando tarde e em desespero de causa, com elevados custos humanos, morais e materiais, o que deveria ter sido prevenido e evitado. Mas logo, num ato de autocensura, abafei tais sentimentos, pensamentos e considerações. O que interessava agora pensar nisso? Para que serviria? Que parvoíce!... Os responsáveis já não estarão entre os vivos e ninguém responde pelas causas da guerra e pelos seus erros e consequências!


Sede do BCaç 3863 em Teixeira Pinto. Ao centro, edifício do Comando. À esquerda o das Transmissões.

Quanto ao Alf. Mil. António Graça Abreu, decerto que nos cruzámos em Teixeira Pinto, embora por pouco tempo. Teremos partilhado o mesmo bar ou até a mesma mesa, mas a minha memória não o acusava. Ou se apagara o registo, ou estava imperceptível. Lembrava-me sim do CAOP 1, da cena do simulacro de ataque ao quartel na minha primeira noite, dos acontecimentos do dia 1 de fevereiro de 1973, em que fazia pela primeira vez de Oficial-Dia; do Cor. Pára Rafael Durão e do seu porte e conduta militar, que até respeitava, dos seus frugais pequenos-almoços na messe de oficiais, em mesa separada, à base de frutas (grandes mangos da Índia).

O seu livro recordou-me o número de Batalhão a que eu pertencera, as Companhias que o constituíam, tornando-me possível acordar outras memórias. E agora estava disposto a libertar-me dos bloqueios que tinha montado, recordar e sentir a guerra da Guiné, pensar nos bons e maus momentos, poder analisá-la, criticá-la, não por saudosismo ou masoquismo, nem para condenar os envolvidos, governantes, políticos e militares, mas para reflectir sobre o que aconteceu durante esses anos: sobre a política que Portugal trilhou e as suas consequências, identificando os seus responsáveis, chamando os "bois" pelos nomes.

Mesmo considerando que os erros do passado são irremediáveis, sempre poderemos aprender algo com eles, para o presente e para o futuro e se possível minorar os seus efeitos, pela palavra e pela acção.

Iria também permitir-me procurar e saber dos meus antigos camaradas e talvez um dia encontrar-me com eles; principalmente com os do meu Grupo, o 4.º Pelotão, “Os Americanos”. Espero que ainda estejam todos vivos e de saúde. Mas por onde andarão?


Guião do BCaç 3863. Constituiu-se no RI 1 – Amadora. Esteve na Guiné de 22 Set.1971 a 16 Dez. 1973. Dados que obtive nas minhas pesquisas no Blogue.

Aqui chegado, o passo seguinte foi ir ao encontro do desconhecido e a via seguida foi ir à internet ver o que conseguiria, eu, que até então, pouco ou nada tinha navegado. (Já me bastavam as longas horas que passava agarrado ao computador por razões profissionais, quanto mais desperdiçar o meu tempo livre nesses luxos).

Eis-me agora nisto: Google > Bat. Caç. 3863 e entretanto estava a entrar no Blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné. Desde então tem sido quase um vício. Pena é a falta de tempo, pois é um mundo que nunca mais acaba. A corroborar a máxima: “O Mundo é Pequeno e a Nossa Tabanca é Grande”.

(Continua)
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Nota do editor

Primeiro poste da série de 6 DE MARÇO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12802: Acordar memórias (Joaquim Luís Fernandes) (1): Monte Real, 8 de Junho de 2013, o primeiro contacto com a Tertúlia

domingo, 20 de outubro de 2013

Guiné 63/74 - P12179: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (23): Duas referências ao Marcelino da Mata



Tabanca da Linha > Cascais, Alcabideche, Cabreiro > Adega Camponesa > 17 de outubro de 2017 > O Marcelino da Mata,  mostrando o livro, "Diário da Guiné: lama, sangue e água pura" (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007), que o autor, António Graça de Abreu, lhe ofereceu autografado.

Na foto de baixo, os dois leem uma das passagens do livro.  O Marcelino da Mata, ten cor ref, é um participante frequente dos convívios da Tabanca da Linha. Para quem deve ter 75 ou 76 anos de idade (, segundo os dados que, em 2006, nos deu a sua filha Irene Rodrigues da Mata, então a estudar em Londres), achei-o em boa forma.

Fotos: © Luís Graça (2013). Todos os direitos reservados

1. No seu Diário da Guiné, o António Graça de Abreu tem duas referências ao Marcelino da Mata... Aqui ficam os respetivos excertos, com a devida cortesia... (Os negritos e os realces a amarelo são da nossa responsabilidade) (LG):


Mansoa, 23 de Maio de 1973


O jornal Primeiro de Janeiro traz uma notícia sobre o 1º. Congresso de Combatentes do Ultramar[1], a acontecer no Porto entre 1 e 3 de Junho. No texto dos promotores do Congresso, lêem-se as seguintes palavras:

Patrioticamente, com total independência e acima de qualquer ideologia ou facções políticas, um grupo de Combatentes do Ultramar decidiu organizar o 1º. Congresso de Combatentes do Ultramar que se realizará no Porto de 1 a 3 de Junho de 1973, com um sentimento, uma mística, uma determinação.

Um sentimento: Reencontro e confraternização de camaradas.

Uma mística: O orgulho da honrosa missão cumprida e a consciência do seu valor na história nacional.

Uma determinação: Unidos na retaguarda contra tudo o que ameaça a integridade de Portugal.

Estiveste no Ultramar em missão de Soberania? Simples soldado ou oficial, missão cumprida? VEM.


O Pancada, capitão miliciano e meu companheiro de armas neste CAOP 1, traz-me um aerograma escrito à máquina, tipo circular clandestina, que recebeu de Bissau dos seus colegas do curso de capitães milicianos, José Manuel Barroso e Ferreira. Transcrevo integralmente o conteúdo da carta:

Aqui te enviamos o texto que lerás. Como a tarefa é urgente (é preciso que cada um faça o trabalho no mais curto espaço de tempo), eis a explicação sintética dos porquês de tudo isto.

1. Vai realizar-se no Porto uma coisa chamada “Congresso dos Combatentes”. O objectivo declarado dos combatentes (nas entrevistas dadas pelos mesmos à imprensa) é sancionar a política de manutenção de tudo isto, tal como está. O objectivo, de facto é – recorrendo aos aspectos sentimentais do rever dos companheiros de África, -- juntar gente para criar uma organização de extrema-direita (tipos como o Franco Nogueira, estão por detrás da manobra) com base no cimento aglutinador da solidariedade entre combatentes. Obs. Os tipos dizem falar em nome de toda a malta que está no ultramar.

2. O próprio governo reagiu não concedendo subsídios e recusando a presença de membros seus. Grande número de oficiais do Quadro Permanente reagiram também através de um abaixo-assinado semelhante ao nosso.[2] Repara, isto é muito importante, pois pela primeira vez os oficiais do QP dessolidarizam-se em massa e publicamente da teoria de continuar isto até ao suicídio. (Outro aspecto importante, a situação na Guiné detiora-se de dia para dia).

3. Resolveu, pois, um grande grupo de malta fazer também um abaixo-assinado para dar força à posição dos tipos do QP (o deles corre, como pretendemos com o nosso, no Continente, Angola e Moçambique) e reafirma a nossa. Pontos do texto, não solidariedade com os tipos que lá vão (ao Congresso) e deixar claro que não estamos dispostos a nos deixar servir de carne para canhão, em suma: a servir a teoria do suicídio.

4. O abaixo-assinado do QP tem tido um êxito assinalável (assinaturas de coronéis, um brigadeiro, etc. – só aqui na Guiné). O nosso marcha muito bem e já temos muitas dezenas de assinaturas. E muitas mais virão. (Serão ambos – o do QP e o do QC – para enviar ao Congresso e à imprensa).

5. Terás apenas de recolher assinatura de oficiais, sargentos e das praças que o quiserem. Processo a seguir: copiar o texto junto para um aerograma e apôr, a seguir, as assinaturas, posto e nº mecanográfico. E enviar-nos isso para o remetente na volta do correio. E passa à malta tua conhecida de outras companhias.

6. Confiamos na tua coragem e na compreensão de como isto é importante para todos. (Repara, centenas de tipos do QP e QC a marcar uma posição). Não queremos que se repitam os Guileges e os Guidages e outros casos dos últimos dias, com o seu cortejo de mortos e feridos. A nossa acção, desta forma cautelosa embora, é fundamental para os dias que hão-de vir.

Um abraço do

Barroso

Ferreira


O aerograma traz, em anexo, o texto em papel vegetal que diz:

Os abaixo-assinados, oficiais e sargentos do Quadro de Complemento, em prestação de serviço no ultramar, manifestam a sua discordância com a realização do Congresso dos Combatentes, não reconhecendo qualquer representatividade aos elementos presentes no mesmo, não se identificando com as conclusões dele emanadas. É ao povo português, em clima de absoluta liberdade, que cabe o direito de discutir e decidir sobre os problemas levantados à nação pela questão ultramarina. 
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[1] São extensas em diversas obras as referências a este Congresso. Para uma síntese da problemática que o envolveu, com o texto do telegrama enviado da Guiné aos órgãos de informação onde não se reconhece qualquer legitimidade e representatividade ao Congresso, assinado pelo capitão-tenente Rebordão de Brito e pelo alferes Marcelino da Mata em representação de quatro centenas de militares do QP, ver João Medina, História Contemporânea de Portugal, Lisboa, Ed. Multilar, 1990, pp 256-257.


[2] Entre os signatários do QP, em Bissau e em Lisboa, encontravam-se homens como Ramalho Eanes, Firmino Miguel, Vasco Lourenço, Otelo Saraiva de Carvalho e Carlos Fabião. 

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Cufar, 26 de Dezembro de 1973

Graças ao Natal, umas tantas iguarias rechearam as paredes dos nossos estômagos. Houve bacalhau do bom, frango assado, peru para toda a gente e presunto, bolo-rei, whisky e espumante à discrição, só para oficiais. Fez-se festa, fados, anedotas, bebedeiras a enganar a miséria do nosso dia a dia.

Hoje, 26 de Dezembro, acabou o Natal e, ao almoço, regressámos às cavalas congeladas com batata cozida e, ao jantar, ao fiambre com arroz.

Isto não tem importância, importante é a ofensiva contra os guerrilheiros do PAIGC desencadeada na nossa região com o bonito nome de “Estrela Telúrica”. Acho que nunca ouvi tanta porrada, tantos rebentamentos, nunca vi tantos mortos e feridos num tão curto espaço de tempo. E a tragédia vai continuar, a “Estrela Telúrica” prolongar-se-á por mais uma semana.

Tudo começou em grande, com três companhias de Comandos Africanos, mais os meus amigos da 38ª., fuzileiros e a tropa de Cadique a avançarem sobre o Cantanhez. O pessoal de Cadique começou logo a levar porrada, um morto, cinco feridos, um deles alferes, com certa gravidade. Ontem de manhã, dia de Natal, foi a 38ª de Comandos a “embrulhar”, seis feridos graves entre eles os meus amigos alferes Domingos e Almeida, hoje foram os Comandos Africanos comandados pelo meu conhecido alferes Marcelino da Mata,[1] com dois mortos e quinze feridos. Chegaram com um aspecto deplorável, exaustos, enlameados, cobertos de suor e sangue. Amanhã os mortos e feridos serão talvez os fuzileiros… No dia seguinte, outra vez Comandos ou quaisquer outros homens lançados para as labaredas da guerra. O IN, confirmados pelas NT, só contou seis mortos, mas é possível que tenha morrido muito mais gente, os Fiats a bombardear e os helicanhões a metralhar não têm tido descanso.

Na pista de Cufar regista-se um movimento de causar calafrios. Hoje temos cá dez helicópteros, dois pequenos bombardeiros T-6, três DOs, dois Nordatlas e o Dakota. A aviação está a voar quase como nos velhos tempos. Os helis saem daqui numa formação de oito aparelhos, cada um com um grupo constituído por cinco ou seis homens, largam a tropa especial directamente no mato, se necessário os helicanhões dão a protecção necessária disparando sobre as florestas onde se escondem os guerrilheiros, depois regressam a Cufar e ficam aqui à espera que a operação se desenrole. Se há contacto com o IN e se existem feridos, os helicópteros voltam para as evacuações e ao entardecer vão buscar os grupos de combate novamente ao mato. Ontem, alguns guerrilheiros tentaram alvejar um heli com morteiros, à distância, o que nunca costuma dar resultado.

Sem a aviação, este tipo de operações era impossível. Durante estes dias os pilotos dormem em Cufar e andam relativamente confiantes, há muito tempo que não têm amargos de boca. Os mísseis terra-ar do IN devem estar gripados porque senão, apesar dos cuidados com que se continua a voar, seria muito fácil acertar numa aeronave, com tanto movimento de aviões e hélis pelos céus do sul da Guiné.

Cufar fica a uns quinze, vinte quilómetros da zona onde as operações se desenrolam. Todos os dias, às vezes durante horas seguidas, ouvimos os rebentamentos e os tiros dos “embrulhanços”, das flagelações. É impressionante o potencial de fogo, de parte a parte. Os guerrilheiros montam também emboscadas nos trilhos à entrada das matas onde se situam as suas aldeias. Aí as NT começam a levar e a dar porrada, e não têm conseguido entrar nas povoações controladas pelo IN.

Natal, sul da Guiné, ano de 1973, operação “Estrela Telúrica.” Tudo menos paz na terra aos homens de boa vontade.
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[1] Sobre o acidentado percurso do alferes Marcelino da Mata, ver a narração pessoal da sua participação nesta guerra em Rui Rodrigues, (coord.), Os Últimos Guerreiros do Império, Editora Erasmos, Amadora,1995, pp. 195-213

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Nota do editor:

Último poste da série > 9 de outubro de 2013 > Guiné 63/74 - P12132: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (22): Referência a jornais e jornalistas no CTIG

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Guiné 63/74 - P12132: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (22): Referência a jornais e jornalistas no CTIG

1. No seu Diário da Guiné, o António Graça de Abreu (AGA) faz referência a jornais e jornalistas, de diversos quadrantes político-ideológicos e nacionalidades, que vinhyam à Guiné, em trabalho... António de Spínola e Bettencourt Rodrigues perceberam a importância que a comunicação social tinha a nível da opinião pública nacional e internacional. Eram generais do seu tempo. Alguns desses jornalistas, passaram pelo CAOP 1, caso do Avelino Rodrigues. Escreveu o António, em comentário ao poste P12128: " O Avelino Rodrigues foi recebido no nosso CAOP 1, em Teixeira Pinto pelo coronel Rafael Durão e desculpem a imodéstia, também por mim, alferes pequenino no CAOP 1. Falámos muito sobre o chão manjaco e as nossas vidas..Os seus textos no Diário de Lisboa têm muita qualidade".

2. Fomos procurar referências a jornais e jornalistas, ao seu Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura (Lisboa: Guerra e Paz, Editores. 2007). Aqui vão os excertos, com a devida vénia, e um abraço para ele (que já deve ter regressado de um longo périplo pelo China profunda):


Teixeira Pinto ou Canchungo, 26 de Julho de 1972


Abro muito os olhos e os ouvidos, meto tudo dentro de mim, falo pouquíssimo, quase não reajo, não demonstro nada. Mas sinto que em Portugal é que o PAIGC vai ganhar a guerra, aqui não a perde e no terreno não a consegue ganhar.

No labor quotidiano no Comando de Operações, passam pelas minhas mãos documentos fundamentais para se entender a guerra na Guiné. Chegam de Bissau e são as informações diárias e semanais, os relatórios mensais de operações com todos os dados, bombardeamentos, flagelações, ataques, emboscadas, os números dos milhares de quilos de bombas lançadas pelos nossos aviões, o número de mortos e feridos, NT e IN, dias, horas, particularidades dos ataques, etc. Esta documentação tem a classificação de confidencial e secreta. Vêm também as informações da PIDE/DGS com dados sobre a movimentação dos guerrilheiros, natureza dos acampamentos IN e outros elementos. Um exemplo, pela PIDE de Canchungo soubemos que neste momento estão dentro da Guiné sete jornalistas de nacionalidade checa, búlgara e russa. Entraram, vindos do Senegal, pela fronteira junto a S. Domingos, uns oitenta quilómetros a norte daqui. O meu major P. não gosta muito do Sr. Costa, o agente da PIDE/DGS em Canchungo, que tem uma vivenda aqui na avenida. O major diz que o Costa, para mostrar serviço, de vez em quando inventa factos e notícias. Parece-me bem possível. Estive em casa dele a semana passada e, no desempenho de funções, tive de lhe apertar a mão. Coisas impensáveis em Lisboa.

Voltemos à guerra. (…)


Canchungo, 27 de Outubro de 1972


Há dois dias fui à pista, na chegada do avião de Bissau como de costume e os oficiais superiores também foram todos. Vinha um jornalista, aí de três em três semanas cai cá um bicho destes para fazer propaganda do regime. Vi-o sair e disse para comigo “este tipo tem um aspecto decente”. Depois soube quem ele era, Vítor Direito, do jornal “República”. O coronel açambarcou-o, levou-o ao Pelundo e a passear pela sala de visitas do chão manjaco. O que vai ele escrever? Terá de meter a pena no saco, a censura corta se redigir textos que não sejam marmeladas. Usando pinças, não é fácil escrever sobre a Guiné.

O meu coronel partiu um dedo a fazer desporto, karaté, ouvi-o eu contar sorrindo ao Vítor Direito. Foi mesmo. Mandou um murro num soldado pára-quedista e quando ia a mandar o segundo, o rapaz desviou-se e o murro acertou numa parede. Resultado, um dedo partido. Desporto, karaté! (...)

Canchungo, 17 de Janeiro de 1973


Os meus alunos. Vou-os conhecendo, têm uma visão restrita e parcelar do mundo, o que se compreende, fechados na Guiné. Talvez por isso, o seu raciocínio seja tão lógico.

Em Português, mandei-lhes fazer uma redacção e dei quatro temas. Eles escolhiam só um e deviam desenvolvê-lo. Os temas eram: o que é ser velho, a morte, a minha viagem à Lua e uma história de animais. A maioria dos rapazes foi para os animais. Um deles disse que “os quadrúpedes têm duas patas nos pés” e sobre os outros temas escreveram coisas de pasmar, ou talvez não, como: “uma pessoa quando morre fica sem alma, com os olhos fechados e o corpo morto.”, ou “eu não gosto de morrer, mas se o meu dia chegar, morro, porque cada um de nós tem um dia para morrer.”, ou “ser velho é perder de vista a juventude” ou ainda “ser velho é estar frio e mais perto do sol”.

A propósito de mestres e alunos, estiveram cá o general Spínola e o Dr. Azeredo Perdigão, com uma grande comitiva. Vieram inaugurar a escola do Ciclo que já funciona há dois anos e meio, e foi construída com a ajuda da Fundação Calouste Gulbenkian. Muita festa, muita gente, houve manifestações “espontâneas” de alegria. Até a Caió, que dista vinte e seis quilómetros daqui, as Berliets foram buscar umas dezenas de pessoas.

Contaram-me (mas é invenção!) que em idioma fula, umas das etnias da Guiné, António de Spínola se diz Caco Baldé. Pois o general Caco, desde que regressei das férias em de Portugal há menos de um mês, já veio a esta vila por três vezes e por três vezes lhe fiz continência, e apertámos as mãos.

Ainda a propósito da última visita do Spínola, nesse dia meti uma vez mais o pé na argola.

Não foi propriamente devido ao general, mas por causa dos fotógrafos e do jornalista de um pasquim de Bissau, dois mais um, que o acompanhavam.

Eu conto.

O governador e comandante militar, com o Azeredo Perdigão e comitiva, chegaram às nove horas da manhã em avião especial, um DC 3. Entretanto, às oito já haviam aterrado duas DOs, uma com a equipa militar de Bissau que vinha montar a instalação sonora para os discursos, e outra com os fotógrafos e o jornalista. Fui à pista no jipe duas vezes, trouxe os pilotos e o pessoal militar. Deixei lá ficar os jornalistas, é tão perto, só quatrocentos metros até ao quartel, eles são civis, podiam muito bem vir a pé. E vieram, não pensei mais no assunto.

Ontem ao regressar da pista com o meu coronel, diz-me ele: “Um destes dias você procedeu muito mal.” E ficou calado um bom pedaço. Eu, mesmo sem querer, como militar procedo mal tantas vezes que não sabia a que é que o meu chefe se estava a referir. Perguntei-lhe: “Mas quando, meu coronel?” Resposta: “Então, você deixou os fotógrafos e o jornalista na pista e eles tiveram de vir a pé!...” Desculpei-me, eu conduzia o velho jipe de serviço que nem sequer bancos atrás tinha e fiquei com a ideia de que eles queriam mesmo vir a pé, já estavam na placa à saída da pista e não me pediram transporte nenhum. Se tivessem falado comigo, mudava de jipe e não me custava nada ir buscá-los. Desta vez o coronel aceitou a justificação, mas porque raio é que os estupores dos homens foram fazer queixa de mim?!...

As coisas com os meus superiores vão um pouco melhor. Tento desempenhar as minhas funções com “zelo, proficiência e dedicação”. No fim da comissão ainda sou premiado com um louvor. (...)

Mansoa, 28 de Fevereiro de 1973

Domingo passado, cometi mais uma “gaffe”.
Fomos visitados por uma equipa da TV alemã, quatro moços desembaraçados e tagarelas. Eu cometi o grave erro de falar alemão com as criaturas. Os muitos meses de imersão na sociedade germânica, o estudo, os anos de liceu e faculdade, os três anos de namorada alemã fazem com que me movimente razoavelmente bem no idioma de Goethe e Marx. Gott sei danke! Ich spreche ein bisschen Deutsch… ( Graças a Deus, falo um pouco de Alemão!) Isto causou engulhos nos meus superiores, não entendiam do que falávamos, comiam-me com os olhos, talvez eu estivesse a contar coisas pavorosas aos jornalistas alemães, segredos de Estado ou algo semelhante. Os rapazes eram de Hamburgo, a cidade onde vivi, falei-lhes da minha experiência por lá e pouquíssimo da guerra na Guiné.

Hoje, o major Malaquias chamou-me a atenção, muito delicadamente. Em frente dos oficiais superiores eu não devia ter falado alemão, eles não entendiam, era falta de respeito.


Mansoa, 23 de Maio de 1973


O jornal Primeiro de Janeiro traz uma notícia sobre o 1º. Congresso de Combatentes do Ultramar, a acontecer no Porto entre 1 e 3 de Junho. No texto dos promotores do Congresso, lêem-se as seguintes palavras:

Patrioticamente, com total independência e acima de qualquer ideologia ou facções políticas, um grupo de Combatentes do Ultramar decidiu organizar o 1º. Congresso de Combatentes do Ultramar que se realizará no Porto de 1 a 3 de Junho de 1973, com um sentimento, uma mística, uma determinação.

Um sentimento: Reencontro e confraternização de camaradas.

Uma mística: O orgulho da honrosa missão cumprida e a consciência do seu valor na história nacional.

Uma determinação: Unidos na retaguarda contra tudo o que ameaça a integridade de Portugal.

Estiveste no Ultramar em missão de Soberania? Simples soldado ou oficial, missão cumprida? VEM. (…)



Cufar, 24 de Julho de 1973


Ontem tivemos cá o general Spínola e o Silva Cunha, ministro do Ultramar. Aterraram na pista de Cufar no Nordatlas e depois apanharam os helicópteros e deram uma volta por alguns aquartelamentos da zona. Tudo em paz, tudo controlado. Vieram também jornalistas, homens da TV, o José Mensurado, por exemplo. À partida do Nordatlas para Bissau, encontrando-me por motivos de serviço ao lado do meu coronel, bati uma bruta continência e cumprimentei as duas personalidades, um governador, um ministro. Os tipos da televisão estavam a filmar, o que quer dizer que talvez este brioso alferes venha a aparecer por estes dias nas casas de milhões de portugueses. (...)

Cufar, 6 de Dezembro de 1973

O governador, general Bettencourt Rodrigues foi mesmo de helicóptero a Madina do Boé, ao lugar onde o PAIGC diz ter declarado a independência. A ideia que tenho da região é de que se trata de zonas desabitadas, abandonadas há anos pelas NT devido à ausência de interesse estratégico da região, no extremo sudeste da Guiné. O governador esteve lá durante uma dezena de minutos, numa espécie de comprovação da impossibilidade de o PAIGC haver usado aquela “zona libertada” para declarar a independência. Houve um jornalista alemão que acompanhou a comitiva do Bettencourt Rodrigues e redigiu uma crónica datada de Madina do Boé. A propaganda é necessária. Também é verdade que não encontraram viva alma na antiga povoação do Boé, destruída pela guerra em anos passados. Onde estavam os heróis do PAIGC que declararam a independência da Guiné em Madina do Boé? Talvez não estivessem longe, mas ninguém os viu. (...)

Guiné 63/74 - P12131: Blogpoesia (356): Foi no tempo... (António Graça de Abreu, ex-alf mil, CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74)


Abreu, António Graça de - Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura. Lisboa: Guerra e Paz, Editores. 2007, pp. 104-105. (Reproduzido com a devida vénia).

Mansoa, 24 de Maio de 1973


Foi no tempo
em que o riso das crianças
era azul como o mar
que inventei no fundo dos teus olhos.

Foi no tempo
em que eras a princesa
habitando o meu castelo,
de pedra, vento e sol poente.

Foi no tempo
em que amanhecias luz dentro dos meus braços

 e a tua boca desenhava espirais de fogo 
nos meus lábios abertos à loucura.

Foi no tempo
em que eu colhia rosas na covas do teu rosto,
esvoaçávamos por pinhais, montes e rios,
e o teu corpo
povoava as searas onde o trigo cresce.

Foi no tempo
em que o teu ventre soluçava
em ondas rubras de alegria
e viajavas na fúria doce do meu sangue.

Hoje, a guerra,
uma lágrima quente enevoando os dias.



[ex-alf mil, CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74; poeta, escritor, tradutor]

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Nota do editor: 

sexta-feira, 21 de junho de 2013

Guiné 63/74 - P11742: Tabanca Grande (402): Joaquim Luís Fernandes (ex-Alf Mil da CCAÇ 3461/BCAÇ 3863, Teixeira Pinto, 1973/74), residente em Maceira / Leiria, tabanqueiro nº 621

1. Mensagem do nosso camarada e novo tertuliano Joaquim Luís Fernandes, ex-Alf Mil da CCAÇ 3461/BCAÇ 3863, Teixeira Pinto, 1973/74, com data de 3 de Junho de 2013:

Caro camarada Carlos Vinhal:

Começo por agradecer a resposta pronta e favorável à minha participação no encontro do próximo dia 8 em Monte Real. Lá nos encontraremos.

Brevemente, após o nosso encontro, tenciono partilhar para o Blogue um pouco da minha passagem pela Guiné, pelo menos os aspetos que considere relevantes para os fins em vista.

Apresento-me:

(i) Joaquim Luís Fernandes, natural e residente em Maceira, concelho de Leiria.

(ii) Assentei praça (recruta) em janeiro de 1972 no RI 5 nas Caldas da Rainha com o número 06067572;

(iii) No 2º trimestre estive em Mafra na EPI e fiz o COM como Cadete de Infantaria;

(iv) No 3º trimestre voltei ao RI 5 como Aspirante a Oficial Miliciano e fui instrutor, dando aí uma recruta;

(v) Fui mobilizado em setembro ou outubro de 1972, mas só em 20 janeiro de 1973 tive voo para a Guiné, depois de longo adiamento que me deixou solto e sem quartel durante 3 meses;

(vi) Apresentei-me no QG em Bissau como Alf Mil de Infantaria em 20 janeiro de 1973 (data da morte de Amílcar Cabral) ficando (no famoso Biafra) a aguardar coluna de transporte para Teixeira Pinto onde iria ser integrado na CCaç 3461/ BCaç 3863 comandada pelo Cap Mil Gouveia;




(vii) Em Teixeira Pinto substituí, em rendição individual, o Alf Mil Marques, que tinha sido evacuado para a Metrópole; Comandei um Pelotão (grupo de combate "Os Americanos");

(viii) Tive como principais missões, a escolta de colunas e o patrulhamento de segurança e de reconhecimento ofensivo;

(ix) No fatídico dia 1 de fevereiro de 1973(*), domingo, fiz o meu primeiro serviço de Oficial Dia e o meu Grupo estava de piquete: um trágico "batismo" para um "pira".

Já no dia da minha chegada (noite) tive a praxe da ordem. Um ataque ao quartel (ou simulacro) que me apanhou de "calças na mão", isto é, já deitado, sem conhecer o quartel, sem arma distribuída;

Os camaradas que partilhavam o quarto comigo, Alf Mil Henriques e Alf Mil Batalha, fardam-se rapidamente, pegam nas armas e deixam-me numa situação pouco agradável a ouvir os rebentamentos e as rajadas sem saber o que fazer. O que me valeu foi que o ataque (ou simulacro) foi rápido e não aconteceu nada. Apenas um ferido ligeiro no manuseio de arma de fogo, um morteiro 80.

Mas já me estou a alongar e por hoje fico-me por aqui.

Apenas quero manifestar o meu agrado por ir encontrar em Monte Real o camarada Joaquim Mexia Alves, pessoa que admiro e estimo e que desconhecia como ex-militar da Guiné.

Dos camaradas que pertencem ao blogue e com os quais me cruzei e que de algum modo e por algum tempo convivi, no BCaç 3863 em Teixeira Pinto e Bachile, identifiquei o então Capitão, hoje Maj Gen Abílio Afonso, o médico ex-Alf Mil Mário Bravo e o ex-Alf Mil José Sousa Pinto, com os quais gostaria de partilhar algumas memórias e fotos.

Espero vir a encontrar muitos mais, especialmente do meu Grupo de Combate e da minha Companhia.

E por hoje é tudo.

Um abraço cordial para toda a equipa e até sábado.
Joaquim Luís Fernandes


Monte Real, 8 de Junho de 2013, VIII Encontro da Tertúlia > Joaquim Luís Fernandes à direita da foto
Foto: © Rui Silva (2013). Todos os direitos reservados.


2. Comentário de C.V.

Caro camarada Joaquim Luís Fernandes, começo por te endereçar um abraço de boas-vindas em nome dos editores e da tertúlia em geral.

Entraste da melhor maneira possível na nossa Tabanca Grande ao teres participado no VIII Convívio da nossa tertúlia, em Monte Real, no passado dia 8 de Junho, onde tiveste a oportunidade de conhecer alguns camaradas e as respectivas famílias. Esperamos que tenhas gostado do ambiente e que voltes a estar na nossa companhia nos próximos anos. Tenhamos todos saúde.

Na tua apresentação referes um grave incidente no dia 1 de Fevereiro de 1973. Socorrendo-nos do nosso camarada António Graça de Abreu e do seu "Diário da Guiné", reproduzimos as páginas 73 e 74 onde está descrito aquele trágico acontecimento e as suas consequências. Infelizmente aconteceram muitas situações semelhantes, uma das quais com a 27.ª C.Comandos, numa coluna auto entre Mansoa e Mansabá, que julgo ter originado um morto e vários feridos, assistidos, primeiro em Mansabá, com posterior evacuação para o HM 241 de Bissau.

Não referes a data de regresso à (então) Metrópole, que não deve ser a mesma do BCAÇ 3863 já que eles regressaram em Dezembro de 1973, sendo tu ainda muito periquito. Por onde andaste em 1974?

Estamos disponíveis para receber e publicar as tuas fotos (legendadas) e os teus textos, pelo que poderás começar a trabalhar assim que entenderes.
Alguma dúvida que te suscite não hesites em nos contactar.

Pessoalmente, fico também ao teu dispor.
Recebe um abraço do camarada e novo amigo
Carlos Vinhal
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Notas do editor:

(*) - Excerto do "Diário da Guiné, Lama, Sangue e Água Pura", do nosso camarada António Graça de Abreu, pág. 73/74:

(...) Canchungo, 1 de Fevereiro de 1973

É uma hora da manhã, escrevo sereno, lúcido, sem paixão, tudo de enfiada.

Ver viver, ver morrer, três homens mortos, sete feridos graves, quatro ligeiros. A causa próxima foi um desafio de futebol, a causa remota foi o destino e o facto de estarmos numa guerra.

Esta tarde houve um jogo de futebol entre o pessoal branco do Batalhão 3863 e a tropa branca e negra do aquartelamento do Bachile [, CCAÇ 16, constituida sobretudo por militares manjacos, do recrutamento local9. Não sei se por culpa dos brancos ou dos negros, decerto por culpa de ambos, o jogo descambou em grossa pancadaria o que levou o coronel [, pára, Rafael Durão, comandante do CAOP1,] a intervir, a assestar uns tantos socos em não sei quem e a dar voz de prisão a dois negros.

Cerca das oito da noite, foi recebida aqui uma comunicação rádio do capitão branco do Bachile, a braços com uma insubordinação dos militares negros. Quarenta africanos armados haviam saído do aquartelamento e marchavam a pé para Canchungo, a fim de tirarem da prisão os seus dois camaradas detidos. Aprontaram-se imediatamente cerca de cinquenta comandos da 38ª. Companhia e o coronel seguiu com eles.

Na ponte Alferes Nunes, já próximo do Bachile, os Comandos ficaram e o coronel avançou sozinho, no jipe, ao encontro dos soldados africanos. Graças à sua coragem, ao respeito que impõe a toda a gente - é o “homem grande” branco -, à promessa de libertar os presos, os soldados negros regressaram pacatamente ao Bachile.

Aqui em Teixeira Pinto estávamos na expectativa, não sabíamos o que ia acontecer. Em frente do edifício do CAOP, eu conversava com o major Malaquias, com um alferes da 38ª [CCmds] e outro do Batalhão quando ouvimos um grande rebentamento muito próximo. Que será? Um minuto depois chegou a informação, via rádio. Era preciso preparar imediatamente o hospital, havia mortos e feridos.

No regresso dos comandos, à entrada da vila, rebentara uma caixa cheia de dilagramas – granadas disparadas pelas G 3 com um dispositivo especial – em cima de um Unimog onde vinham catorze homens. Dois mortos de imediato, os restantes feridos vinham a caminho. Corremos para o hospital. Os comandos chegaram.

Como vinham, meu Deus! Um furriel morria na sala de operações. As suas últimas palavras para o Pio [de Abreu], o médico, foram: “Doutor, cuide dos outros, eu estou bem.”

Nas macas, no chão de pedra do hospital jaziam feridos graves, corpos semi-desfeitos, barrigas, intestinos de fora e quatro rapazes só com alguns estilhaços. Não ouvi um queixume, mas havia muitos homens a chorar.

Era preciso evacuar os feridos para o hospital de Bissau. Onze horas da noite, iluminámos a pista com os faróis das viaturas e com as mechas acesas em muitas garrafas de cerveja cheias com petróleo, distribuídas aí de dez em dez metros ao longo do campo de aviação. Aterraram quatro DO. Ajudei a transportar feridos entre o hospital e as avionetas, num dos nossos Unimog. Dois deles iam muito mal, cravados de estilhaços, em estado de choque ou coma, não sei se escaparão.

O condutor do Unimog em cima do qual as granadas rebentaram é um dos meus soldados, do CAOP 1, Loureiro de seu nome, com apenas oito dias de Guiné. Ia a conduzir, não sofreu uma beliscadura. Trouxeram-no cambaleando, o espanto, incapaz de falar. Evacuados os feridos, fui buscá-lo, abracei-o, sentei-o na minha cadeira na secretaria, animei-o, bebemos quatro águas Castelo.

Foi um acidente de guerra. Corpos ensanguentados, dilacerados, muitos homens destruídos, não apenas os mortos e os feridos.
[...]

- Último poste da série > 29 de maio de 2013 > Guiné 63/74 - P11651: Tabanca Grande (401): Joaquim Moreira Cardoso, ex-Soldado TRMS do Pel Mort 4574 (Nova Lamego, 1972/74)

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Guiné 63/74 - P11000: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (21): A morte de Amílcar Cabral e a mudança do CAOP1 para Mansoa

1. No seu Diário da Guiné, o António Graça de Abreu (AGA) mostra que eram um homem atento ao que se  passava à sua volta. Dois dias depois  relatava a notícia da morte do Amílcar Cabral. Poucos militares, e nomeadamente os operacionais, tinham acesso às emissões diárias de rádio ... .. Aqui se reproduz três excertos do Diário do AGA, com a devida vénia, referentes aos dias 22, 23 e 25 de janeiro de 1973...

O AGA [, foto à direita, em baixo, Cufar, 1973,] escrevendo a quente, em cima dos acontecimentos, não acertou no nome do homem que veio substituir o líder assassinado; e, por outro lado, safou-se a tempo, por escassos dias, de apanhar com o 25 de abril na Guiné ... ("Têm um novo secretário-geral, Vítor Monteiro de seu nome, formado em Economia por Lisboa. Os caminhos de tudo isto dependem da evolução da própria África, do auxílio que outros países darão ao PAIGC, a resolução final do conflito já não será para os meus dias de Guiné, é um processo longo que passa também por Portugal"). (LG):
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Canchungo, 22 de Janeiro de 1973

Mataram o Amílcar Cabral.

Ontem, às sete da noite, andava a sintonizar diferentes postos na rádio e ouvi, em mau francês, algumas palavras contra o colonialismo português. Vinham do Senegal. Logo de seguida era Leopold Senghor, o presidente do Senegal que fazia o elogio do Amílcar Cabral, morto.

Ouvi depois mais postos, Conacry e os comunicados do PAIGC em português, francês e inglês, ouvi a BBC. Mas ainda não cheguei à conclusão sobre quem matou Amílcar Cabral e como se deu o assassínio. Os homens de Conacry falam de traidores ao serviço do imperialismo português e mundial. Dizem que têm os assassinos já presos e entregues ao PAIGC que fará justiça. A versão do governo português será diferente, com certeza, falar-se-á de lutas intestinas no partido do chefe morto, da imaginação delirante do Sékou Touré, tal como aconteceu quando da operação “Mar Verde”, a invasão portuguesa de Conacry, em Novembro de 1970.[1]

Verdade é que o Amílcar Cabral está morto e se interessa saber quem o matou e porquê, importa mais ainda saber, ou pelo menos prever, o que será o PAIGC sem ele, aqui na guerra em que estou comprometido.

O pessoal vai dizendo que a Guiné aquecerá em grande, tentarão tirar vingança nos portugueses. Muito sinceramente, duvido. Os guerrilheiros têm pouca força militar de conjunto, em dez anos de guerra não conseguiram tomar sequer um aquartelamento português.
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[1] Sobre os meandros sinuosos que levaram à morte de Amílcar Cabral, com interessantes descrições do quotidiano dos guerrilheiros no interior da Guiné-Bissau, ver Oleg Ygnatiev, Três Tiros da PIDE, quem, porquê e como mataram Amílcar Cabral, Lisboa, Prelo Ed., 1975. Mais rigoroso, o notável trabalho de investigação levado a cabo por José Pedro Castanheira, intitulado “Quem mandou matar Amílcar Cabral” no jornal Expresso, Revista, 16.01.1993, depois editado em livro, sob o mesmo título, Lisboa, Ed. Relógio de Água, 1995.
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Canchungo, 23 de Janeiro de 1973

Sete meses de Guiné, cumprido um terço do martírio comprido.

Agora os dias têm de galopar. Dizem-me que até aos catorze meses de comissão é um pulo. Depois, para o fim, é outra vez a angústia, o sofrimento, pensar que a ordália militar está a terminar e nunca mais acaba.


Canchungo, 25 de Janeiro de 1973

A morte do Amílcar Cabral  [, foto à direita,] do Arquivo Amílcar  Cabral / Fundação Mário Soares,] talvez não vá alterar o rumo da guerra, não se têm registado mais ataques e flagelações, existirá uma certa confusão dentro do PAIGC, parece que têm um novo secretário-geral, Vítor Monteiro de seu nome, formado em Economia por Lisboa. Os caminhos de tudo isto dependem da evolução da própria África, do auxílio que outros países darão ao PAIGC, a resolução final do conflito já não será para os meus dias de Guiné, é um processo longo que passa também por Portugal.

Entretanto, já estava prevista antes da morte do Cabral a mudança de lugar do nosso CAOP 1. O coronel chegou ontem de Bissau e trouxe a bomba. Dentro de dez dias vamos mudar de poiso, juntamos os trapinhos com a 38ª. Companhia de Comandos e o nosso destino será Bula ou Bissorã ou Mansoa. Para melhor, para pior? Só Deus sabe.

Estávamos preparados para a possibilidade de mudança. Se o quartel onde nos instalarmos estiver sujeito a frequentes flagelações e ataques, haveremos de arranjar uns buraquinhos onde nos meter.

Terminam as aulas do Ciclo, a experiência rica de conhecer estes rapazes guinéus, acaba-se o dinheiro do meu labor como professor. A única solução é conformar-me com as reviravoltas do acaso. Os alunos hoje ficaram tristes quando souberam que íamos embora, disseram que nunca mais terão tão bons professores. Fiz pouco por eles, só agora os começava a conhecer, necessitava aí de mais um ano, e noutras condições, para verdadeiramente fazer o que tanto gosto, ensinar e ver o resultado do meu labor.

Foi bom ter dado aulas, esforcei-me por falar com clareza, objectividade e simplicidade. Acho que consegui.

Vou ter imenso trabalho com a mudança do CAOP. Conferir o material, cadeiras, secretárias, dossiers, lâmpadas, ventoinhas, frigoríficos, camas, lençóis, as armas, e embalar tudo. Devo fazer uma relação dos materiais que levamos, das vassouras ao copiador. O Peres, o furriel que trabalhava comigo foi-se embora, acabou a comissão. O meu novo subordinado é o furriel H., “periquito”, não conhece os cantos à casa mas já me disse que se estava cagando de alto e de repuxo para a guerra. Tem todo o direito, a questão é que deve trabalhar, as coisas têm de ser feitas, eu sou o responsável por todo o pessoal menor, não quero chatices com os bigs, os majores e o coronel. O furriel não ajuda, para defender a minha pele vou ter de usar o pequeno galão de alferes. Com o tempo tudo se resolverá. (...)

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Nota do editor:

domingo, 16 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10809: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (20): Notícias da minha antiga companhia, a CCAÇ 3460/BCAÇ 3863, e do meu substituto, o alf mil Potra


   1. No Diário da Guiné, do António Graça de Abreu (AGA), há apenas duas ou três referências à sua antiga companhia, ao seu substituto, o alf mil Potra, e ao comandante, o cap mil Morgado...  .. Aqui se reproduz alguns excertos  do Diário do AGA, com a devida vénia... Procuramos assim colmar a ausência de referências, no nosso blogue,  à CCAÇ 3460, esperando que outros leitores possam trazer informação complementar sobre essa subunidade (que andou por Bolama, Cacheu, Bianga e Bissau... (LG):   
                                 
(...) Canchungo, 18 de Setembro de 1972

Entrei para a tropa em Outubro de 1970. Durante seis meses em Mafra, com a recruta e especialidade, fizeram de mim um pequeno aspirante a oficial miliciano atirador de Infantaria. Fui colocado no Batalhão de Caçadores 5, em Lisboa, onde dei instrução a soldados durante um curto espaço de tempo. 

Segui para Tancos, para a Escola Prática de Engenharia e em dois meses tirei um curso de Minas e Armadilhas. Fui mobilizado para a Guiné e colocado no Regimento de Infantaria 1 na Amadora, para formar Batalhão, exactamente este Batalhão 3863 que veio para o chão manjaco. A minha companhia 3460 foi parar ao Cacheu, mas eu não parti para a Guiné juntamente com estes homens.[1] 

Uma operação a uma velha luxação crómio-clavicular no ombro direito, resultado de uma cena de pancadaria em que fui o personagem principal quando tinha dezassete anos, devidamente explorada, possibilitou-me a passagem aos serviços auxiliares. Fui reclassificado com a especialidade de Secretariado e desmobilizado. 

Fiquei no R I. 1, como simples alferes amanuense no batalhão de Mobilização. Permaneci na Amadora durante um ano e já estava convencido de que o Ultramar não seria o meu destino. Até que fui novamente mobilizado para a Guiné, destinado a este CAOP. Quando deixei de pertencer ao Batalhão 3863 e à sua companhia 3460 [2], fui substituído no lugar de comandante de um pelotão de trinta homens, todos operacionais, pelo alferes miliciano Potra. Vi-os partir, reencontrei-os agora aqui, conheço quase toda a gente do Batalhão.

O Potra, o alferes nomeado em minha substituição na companhia 3460, devia encontrar-se no Cacheu, onde praticamente não há guerra. Está em Bissau, no hospital militar, sem a perna direita, desfeita pelo rebentamento de uma mina anti-pessoal. O Rocha, o alferes meu amigo que comanda um pelotão no Bachile é que me deu a notícia, no bar de oficiais do CAOP. Foi como se tivesse recebido um soco no estômago, caí como um pedregulho numa das cadeira de lona e lá permaneci um pedaço, sem mexer. Quantos homens sem pernas, quantos mortos, mas eu não os conheço e a vida continua!… Desta vez foi o Potra, podia ter sido eu. Que mal fez o rapaz para merecer tal sorte?

Ele permaneceu apenas durante dois meses no Cacheu. Como tinham militares a mais na vila, o Potra foi transferido para uma companhia de africanos em Mansabá, uma zona de muita porrada. Numa das saídas para o mato, pisou a mina anti-pessoal que lhe levou a perna.
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[1] Quando o batalhão 3863 deixou a Amadora e viajou para a Guiné, metamorfoseei a cantiga “Partindo-se” de João Roiz de Castelo-Branco, escrita no século XIV, assim:


Partem tão tristes os tristes,
Tão tristes de levar guerra
Que nunca tão tristes vistes
Outros nenhuns nesta terra.
Tão tristes, amargurados,
Tão doentes nesta vida,
Tão doídos, revoltados,
Em tempo de despedida.
Partem tão tristes, chorosos,
Tão longe de esperar bem,
Tão perdidos, tão saudosos
“Que nunca tão tristes vistes
Outros nenhuns por ninguém”.

[2] Para a história resumida do Batalhão de Caçadores 3863 e da “minha” companhia 3460, ver Resenha, 7º. vol., tomo II, pag. 157-158.
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(...) Canchungo, 25 de Setembro de 1972

No início de Outubro vou a Bissau, tratar da minha primeira viagem de férias a Portugal e comprar uma máquina fotográfica. Vai-me fazer bem sair daqui, mudar de ares. Como é que vou para Bissau? De avião, a passarola pode cair, de coluna, por estrada, estamos sujeitos a ser emboscados. Mas estas coisas são tão raras que nem se podem ter em conta. A morte não espreita atrás de cada palmeira. É verdade que todos os dias acontecem desgraças - o Potra ficou sem uma perna, -  mas é preciso não mistificar, nem mitificar a situação militar. Eu não sou um operacional, sei onde me meto.

Ultimamente isto tem andado num virote, a guerra A, B, C, tantas letras até ao fim do alfabeto! (...)

(...) Canchungo, 30 de Setembro de 1972

O capitão Morgado veio do Cacheu até cá, o que sucede com alguma frequência, para tratar de pequenas operações com o meu coronel ou de outros assuntos com o seu comandante de batalhão. O Morgado é miliciano e comandante da Companhia 3460, a que pertenci. Sempre mantivemos um bom relacionamento, é boa pessoa, afável no trato e nas ideias. Hoje dizia-me: “Você não sabe o que perdeu em não vir para a minha Companhia, aquilo lá no Cacheu é uma estância de férias formidável:” E ria, ria. Não lhe falei nos fuzileiros mortos, recordei-lhe apenas a perna desfeita do alferes Potra, meu substituto. Já não riu, não me falou mais nas delícias do Cacheu.

Mas é verdade que o lugar, uma das vilas mais antigas da Guiné, vive em paz, não é atacada. O problema é a Caboiana e Jopá, as zonas libertadas do PAIGC perto do Cacheu e de Canchungo. A companhia 3460 não vai lá, por isso vivem tranquilos.

Sinal de paz e boa vida, o capitão trouxe-nos uns quilos de camarão cozido, fabuloso, grande, gostoso, pescado nas águas do rio Cacheu.

(...) Mansoa, 15 de Maio de 1973


Não há evacuações de helicóptero directamente do mato por isso os rapazes de Mansabá chegaram aqui ontem, os corpos sujos, as caras cobertas de pó, os olhos cheios de lágrimas, com um soldado que tinha uma perna desfeita por uma mina. O médico fez o que pôde e depois o infeliz foi levado para o hospital de Bissau. Lembrei-me do alferes Potra, meu substituto, que também ficou sem perna em Mansabá. Compreender estes homens, o porquê disto tudo. Sem literaturas. Eu, quase sem reacção, o coração ainda dói mas a cabeça esfria.

[, Foto à esquerda:  o AGA, em Cufar, 1973]

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Nota do editor:

Último poste da série > 30 de outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10597: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (19): A pobreza em chão manjaco