Meu Capitão, um dia destes vou sair com o pelotão. Ai vai, para onde? Para onde costumamos ir, Faquinas, Sitató, para esses lados! Tem mas é juízo, pá, o
Didi logo. Já tivemos Comos (1) que chegasse, não precisamos de mais sarilhos! A paz nesta zona foi conquistada por nós e, se eles passam sem problemas, nós também não os temos tido. Convém às duas partes, é bom não esquecer. Cuidado, meu capitão!
O pessoal está cá há muitos meses, demasiados, falta-lhe pouco tempo para regressar à metrópole. Precisa mais de quem o proteja do que gente que o meta ao barulho, o Capitão para eles.
Mas Cuntima é uma pista desimpedida para meterem minas e armas no Oio, são trilhos pisados de fresco, passam todos os dias. A minha ideia? Sair daqui sem espalhafato, a outras horas, permanecer na zona até eles aparecerem. Se vamos sempre para o mesmo sítio montar emboscadas, se nunca os encontramos e se o caminho está sempre pisado de fresco, só não os apanhamos se não quisermos, ou então se formos azelhas.
Ao princípio da tarde numa conversa com o Furriel
Covas, escolheu-se quem deveria sair. A seguir reuniu-se o pelotão na presença do Capitão, que fez questão de assistir à partida.
Vamos dar uma volta por aí, quem quer vir? Voluntários, só voluntários, o Capitão a atalhar, e o pelotão todo a dizer, eu vou. Tu, tem mas é juízo! Mas eu também quero ir, meu Capitão, o soldado a insistir! Dos Furriéis só não foi o
Duarte que não tinha jeito para voluntário. Vinte e dois deram o passo em frente, mais um guia indígena e cinco auxiliares nativos.
Saíram da zona em viaturas, em direcção à fronteira. Uns minutos depois, apearam-se e internaram-se no mato, por um caminho que mal se via, de há tanto tempo não passar ali ninguém.
Foram andando com cuidado, devagar, mais separados uns dos outros, sem grandes barulhos. Afinal, o pessoal sabe andar no mato. Avistaram a tabanca de Faquina Mandinga, abandonada há muito. Chegados perto do local onde costumavam emboscar-se, prosseguiram pelas margens do trilho, até à fronteira.
Para os lados de Sitató (1), quase em frente a Koldá, no Senegal, viram um local descampado. Os trilhos todos marcados com pegadas recentes. Esconderam-se atrás de arbustos e de pequenos baga-baga. Uma volta pelo pessoal para ajustar algumas posições individuais. Estabeleceram uma frente de cerca de 100 metros, ao longo do trilho que vinha do Senegal, com a bolanha em frente, um ângulo de visão de mais de 180 graus. Todos na expectativa, prontos para o que desse e viesse. E dispostos a esperar, pelo menos até ao meio-dia do dia seguinte. Mas eles devem aparecer antes.
Deitou-se com a G3 ao lado, tirou do casaco a Agfa que recebera de Angra uns dias antes, para o caso de haver motivos.
Eram para aí 17, 17 e 30, quando se ouviu uma voz muito baixa dizer, vêm aí gajos! É agora, o coração a dizer-lhe conta comigo. No meio de um silêncio enorme, uma culatra puxada atrás, um barulho que até eles devem ter ouvido. Já? A que propósito?
Uns tiros, uma rajada, depois uma girândola de rajadas para o descampado em frente, tudo em pouco mais de um minuto. Sacos pelo chão, gritaria, um preto a mancar com uma bicicleta ao lado, a tentar montar para cima dela, uns tipos caídos a gemer, um nem se mexia, os valentes alentejanos pareciam que estavam a jogar
rugby, todos ao monte para cima deles, para aí 5 ou 6, filhos desta e daquela. Eram poucos para tantos sacos, de arroz, sal e cola, duas bicicletas, granadas, duas caixas com munições, uma Mauser, portuguesa em tempos, livros de leitura em português, correspondência… Uma pequena secção de reabastecimento do PAIGC posta fora de combate em pouco mais de meia hora.
Não foi esta mas era uma coluna de abastecimentos do PAIGC, escoltada por elementos armados. Imagem do Centro de Documentação Amílcar Cabral, Fundação Mário Soares. Com a devida vénia.Um trabalhão pegar naqueles alentejanos e pô-los de regresso, com os prisioneiros feridos em padiolas improvisadas. Levou mais tempo a regressarem do que a irem, está bom de ver. Iam fazendo perguntas aos infelizes que tinham sido apanhados, para onde tanto arroz, para família, e livros, para meninos da família aprender a ler, cola para a família também, e que família é essa? Família muito grande, não é?
E quem foi o artolas que resolveu puxar a culatra atrás? Quem usa Mauser aqui, os milícias, quem havia de ser! Tinha que ser, meu alfero, turra vinha lá! Mas porquê, logo quando eles estavam a entrar na zona de morte?
Este sim, foi um baptismo de fogo! Era assim que gostaria que fosse sempre, apanhá-los à sorrelfa, sem darem por ela.
Avistaram Cuntima ao longe, a noite já fechada, os petromaxes acesos, e, junto ao arame farpado, militares e muita população civil. O Capitão ao encontro deles, então?
Eu não lhe dizia que era uma questão de horário, meu Capitão? Tudo bem, queira Deus que este episódio não nos traga problemas. Vá-me dando pormenores, vamos para o posto de rádio, vá falando (3).
Uma desorganização total, meu Capitão. Cada um a fazer o que lhe deu na mona, a abrirem fogo quando lhes apeteceu, a correrem todos a monte, sem segurança nenhuma, o gajo da culatra...
Espera-lhe pela volta, o
Didi a virar costas, quem havia de ser?
Mas a guerra, de facto, tomou conta de Cuntima. Foi como se tivessem mexido num enxame de abelhas. Uma ou duas semanas mais tarde, a outras horas, nova emboscada, e desta vez ninguém puxou a culatra antes. Depois, umas minas, a seguir um ataque a Cuntima. Nunca mais houve paz ali.
A fronteira ali tinha sido riscada num mapa, era mais administrativa que outra coisa, não correspondia a nenhuma divisão real entre as pessoas ou etnias. Familiares viviam de um lado e do outro, às vezes mudavam-se com as famílias todas atrás.
Em Cuntima fazia-se muita psicossocial. O médico, o dr. Lourenço, um açoriano da Terceira, era um homem bom, com espírito muito prático, não protestava com as condições precárias. Era preciso, fazia-se. Sempre disposto a dar uma ajuda àquelas populações, não interessava a que horas. Mais que uma vez o doutor tivera que ir ao Senegal ver gente doente. A tropa conduzia-o até à fronteira, depois entregava-o aos guardas senegaleses que o acompanhavam até à tabanca dos doentes.
No passado, aquela gente nunca tinha tido um apoio tão grande como agora. Ajudavam-se os nativos na construção das casas, providenciavam-se mosquiteiros, faziam-se desinfestações, limpavam-se caminhos, abriam-se outros. Nunca faltavam voluntários para ajudar. Nem precisavam de arregaçar as mangas, andavam quase todos em tronco nu. De facto, naqueles dois ou três anos, desde que o PAIGC tinha iniciado a guerrilha, estava a fazer-se mais por aquela gente do que nos outros anos todos para trás. Isto, se se levasse em conta o que se via feito até então. Quase nada. A guerra tem destas coisas.
A companhia militar estacionada em Cuntima, Colina do Norte como era agora chamada, tinha um efectivo a rondar os 150 homens, a esmagadora maioria já a poucos meses de regressar à metrópole. Alguns, muito poucos, estavam lá em rendição individual, para tapar as falhas que ocorrem sempre. Esse era o caso do
Gil. Os outros alferes, o
Didi e o
Ferreira tinham partido de Estremoz com o batalhão 490.
O
Didi tinha o tamanho de um português, um ar de bem-nascido, com o sotaque do Rio de Janeiro, muito pronunciado. Totalmente contra, insinuava estar tão próximo dos guerrilheiros como das tropas que comandava. Um bom coração para as questões humanitárias, sempre pronto a ajudar, quase sempre de má vontade para tudo o que fosse acção ofensiva contra a guerrilha.
O
Ferreira mantinha-se ao largo destas discussões, não se manifestava, por cansaço ou por outro motivo. Falava da namorada e da mãe, com os olhos brilhantes para as fotos ao lado da cama. Tinha ganho no Como a imagem do alferes mais operacional da companhia, os soldados falavam dele com respeito, via-se que tinha ascendente.