1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Junho de 2022:
Queridos amigos,
Nisto das viagens não há chegada que não tenha partida, neste caso parte-se inconsolável, ainda por cima era a 1ª viagem depois da pandemia, houvera passamentos na ilha, gente muito estimada, caso de uma comadre, uma grande afeição, caso de um médico oftalmologista, alguém que cuidara dos meus olhos em Bissau, depois da explosão de uma mina anticarro, amizade para sempre. E logo no dia da partida, não ter conseguido despedir-me do professor António Machado Pires, meu professor de Cultura Portuguesa, que me recebia sempre com atenção e desvelo e um livro de oferta, uma grande perda, exímio mestre, a cultura seguramente que dará pela sua falta. Escusado de referir que estou pronto a regressar, haja circunstância, é tudo uma questão agora de bombear essa circunstância, dou-me bem nesta atmosfera de paz, de pontas, picos, águas em cascata, a bagacina a estalar sobre os pés. Adeus, até à próxima viagem!
Um abraço do
Mário
Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (62):
De novo em São Miguel, é infindável a romagem de saudade - 7
Mário Beja Santos
É o meu último dia em São Miguel e pesa-me a consciência, nada de remorsos, viajante que se preza sabe que há limites entre o chegar e partir, mas este mais de meio século a calcorrear esta terra de feteiras, lagoas, faróis a apontar para o vasto oceano, pontas de sossego e desassossego, variações cromáticas a perder de vista, o exotismo dos parques, a constante afabilidade dos encontros, quer com amigos quer aqueles a quem se pede uma informação, toda esta escorrência de sons da água e do vento, aqui chegam comigo, e onde quer que esteja, depois de um avião aterrar em Lisboa, é a sempre e obsidiante vontade de aqui tornar, cada um de nós determina o Paraíso na terra, faz parte da sacrossanta autonomia da vontade, gostos não se discutem.
Pedira no Hotel Terra Nostra para voltar a visitar o espaço do antigo casino, dou-me bem com o regionalismo pictórico de Domingos Rebelo, não era possível, só que gente muito amável da receção cumpriu o prometido, recebi imagens que vou religiosamente guardar, de festas e panorâmicas com que o artista embelezou este belo espaço Arte Deco, tão bem conservado. Conforme as gravuras juntas.
É o último passeio pelo Parque Terra Nostra, mas é sempre o primeiro, deambulo com a saudade afogueada, imagino que já percorri todo o Nordeste, que estive sentado no jardim da Povoação, que conversei com um amigo do Faial da Terra, que aqui mesmo nas Furnas assisti a uma procissão com visita aos enfermos, posso fechar os olhos e antever o que o autocarro me irá oferecer de panorâmicas até Ponta Delgada, tenho uma visita surpresa ainda a fazer. Aqui ficam algumas imagens soltas da vegetação do parque, da casa sobranceira à piscina vigiada pelo busto de Thomas Hickling, a quem indubitavelmente devemos origem deste espaço edénico, só falta ouvir-se o murmúrio das águas, e depois o caminho da lagoa das Furnas e a vegetação que se avista do Parque José do Canto, chega de lágrima no olho, caminha-se para a paragem de autocarro, irresistível não registar a bruma que se levanta, pois adeus e até à próxima, e lembranças aos amigos que nos guardam estima e uma pequena oração para todos os que já partiram.
Não há visita a São Miguel que não inclua o bater à porta do meu querido professor de Cultura Portuguesa, António Machado Pires. Vimo-nos 1 ano antes da pandemia, era sempre uma questão de ritual, uma visita à Igreja do Colégio, uma entrada apressada na Biblioteca Municipal, por cima do Jardim Antero de Quental, para cheirar novidades editoriais, atravessado o jardim batia-lhe à porta. Tinha seguramente problemas sérios de visão, os olhos já entaipados com lentes escuras, conversámos de tudo e de nada, recebi prenda, Páginas Sobre Açorianidade, voltámos ao passado, quando me apresentei como estudante-militar para fazer a cadeira, sempre com aquele timbre de voz modulada, sem excitações, que lhe conheci ao longo destas décadas, deu-me o fardos das matérias, tudo bem organizado, foi um gosto preparar-me para tal exame, e ficou o encanto de nos revermos, sentia que gostava da minha companhia, a visita de um antigo aluno, de outras eras.
Bati à porta, com alguma insistência. Passou alguém e disse-me que o Sr. Professor já não vivia ali, na rua mais acima, e deu-me o número e a indicação de uma campainha. Ninguém atendeu, por absurdo não levava agenda. Mais tarde, o meu amigo Mário Reis disse-me que nesse preciso dia falecera a mulher, e que o professor tinha a saúde abalada, era o que sabia.
E agora, no preciso instante em que me despeço desta viagem, a sentida dor de uma perda, era um professor de comunicação rara, ouvi-lo falar sobre a cultura novecentista e ir mais atrás ao sebastianismo, era puro deleite, sempre a voz compassada, a gesticulação medida. Tudo isso perdemos, dou sempre comigo a pensar nos gigantes da cultura que aqui se ergueram, e permanecem, é uma dádiva do Espírito Santo, com certeza. E até à próxima viagem!
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Notas do editor
Poste anterior de 30 DE JULHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23473: Os nossos seres, saberes e lazeres (514): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (61): De novo em São Miguel, é infindável a romagem de saudade - 6 (Mário Beja Santos)
Último poste da série de 4 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23493: Os nossos seres, saberes e lazeres (515): Visita de um grupo de sócios do Núcleo de Matosinhos da Liga dos Combatentes à exposição "O Cristo das Trincheiras", em Fátima, em Abril de 2015 (Abel Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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sábado, 6 de agosto de 2022
sábado, 30 de julho de 2022
Guiné 61/74 - P23473: Os nossos seres, saberes e lazeres (515): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (61): De novo em São Miguel, é infindável a romagem de saudade - 6 (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Junho de 2022:
Queridos amigos,
É sempre assim, esta relutância em cumprir o programa à risca, amanhã é dia de regresso a Ponta Delgada, sinto-me tão bem aqui neste Vale das Furnas que quero vir o mais proximamente possível. Arrumo as últimas recordações, o regresso será em autocarro, lá em cima também se vê uma bela paisagem a caminho de Vila Franca do Campo e do seu inevitável ilhéu de sentinela, haverá passagens por Água de Alto, tenho pena de não poder subir à ermida de Nossa Senhora da Paz; e temos depois a Lagoa, está em franco crescimento, ali perto temos o porto e o Convento de Nossa Senhora da Conceição num local um tanto mítico, a Caloura, mas também a Ribeira Chã, que sempre me surpreendeu por aquele traço antigo que guarda entre a paisagem e o povoamento. E de Ponta Delgada vos falarei mais adiante. A cabeça anda às voltas para o próximo passeio, quando voltar a São Miguel, sim, tenho que regressar ao nordeste, à Tronqueira e a à Ponta da Madrugada, estou cada vez mais convencido que foi ali que Deus começou a criação do mundo.
Um abraço do
Mário
Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (61):
De novo em São Miguel, é infindável a romagem de saudade - 6
Mário Beja Santos
Estou a viver o penúltimo dia no paraíso, estes milhares de árvores e espécies arbustivas amainam-me o espírito, tal como o tanque de água férrea, os furtivos cursos de água, as coleções de plantas endémicas que não sei decifrar mas que são uma fantasia cromática sem igual, e então as camélias, os fetos, as azálias, aqui no centro na doçura do tempo, resolvi trazer comigo poemas de Natália Correia, a quem fiquei a dever muitas atenções, caso de um belo poema que me ofereceu para o meu primeiro livro publicado, corria o ano de 1981, chama-se Poema Posto em Saudade, e percorre esta minha adorada ilha, aqui fica um extrato: “Em Ilha verde e anilada/Por farturas de pastel,/deu a criação morada/Ao Arcanjo São Miguel./ Que lânguida maravilha/De terra no mar deitada/Quando a luz enlaça a Ilha/Pela cintura delicada!/Matas silentes e lúcidas/Do bosque primordial./Paz de pastos e poentes,/carmins que purpuram o mar.” Folheio as suas obras e dou com outro belo poema, tem a força de um Te Deum a mil vozes, é um bilhete de identidade, e gera-se-me a cumplicidade pela desmedida oração genesíaca, um quase sentido de eterno retorno que embala todo o qualquer açoriano: “Ilhas haverá muitas, letras de um dúbio beija-flor salpicando o mapa como a realidade dividida em horas. Um geográfico fascínio de pistolas abandonadas em bancos públicos, numa violenta imposição das mãos magnéticas dos suicidas. Mas isso não é ilha, é habitar a ilha, pelos dias inegáveis do regresso. Por isso, com a cumplicidade do peso húmido da morte, eu digo que a rigor só há uma ilha, a única, a minha, meu mistério selado pelos arbustos altivos da desaparecida”. E medito enquanto calcorreio avenidas e veredas, lagos e tanques, quanto este vigor primitivo, este coberto florestal, estas águas férreas, já em saudade me preparam para aqui voltar, tão rapidamente quanto possível. E de relance acarinho o olhar por inhames, magnólias em botão, azálias exuberantes, como se o mundo para mim tivesse nascido nesta ocasião.
Flores quase ciclâmicas, desvairados cursos de água, musgo, a água é elemento necessário, é fermento das grotas, da precipitação dos céus, recordatória de que há um imenso oceano a toda a volta, aqui estão microcosmos que o Homem pode domesticar, o oceano é aquele abismo que marca a distância ou a saudade em voltar.
Uma avenida leva à outra, ou à surpresa de uma pequena praça ou recinto florido, desta sombra, tão agradável em dia de quentura o que mais me embevece é o tom do céu e marcha vertiginosa das nuvens.
Nestas águas férreas repousei e não pude resistir a vir aqui à noite para colher o contraste, não é desejável por aqui esbracejar à noite, envolve perigos de vida, mas feliz fiquei com o produto da imagem, lembrou-me um quadro de uma cidade à noite, não sei de quem e qual sítio.
Despeço-me do dia mirando o edifício da Junta de Freguesia das Furnas, tudo num aprumo, até há para ali uma fonte com água a correr, o dia fina-se, vou agora pensar nas últimas imagens que me quero e vos quero oferecer, amanhã é o regresso a Ponta Delgada.
(continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 23 DE JULHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23454: Os nossos seres, saberes e lazeres (514): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (60): De novo em São Miguel, é infindável a romagem de saudade - 5 (Mário Beja Santos)
Queridos amigos,
É sempre assim, esta relutância em cumprir o programa à risca, amanhã é dia de regresso a Ponta Delgada, sinto-me tão bem aqui neste Vale das Furnas que quero vir o mais proximamente possível. Arrumo as últimas recordações, o regresso será em autocarro, lá em cima também se vê uma bela paisagem a caminho de Vila Franca do Campo e do seu inevitável ilhéu de sentinela, haverá passagens por Água de Alto, tenho pena de não poder subir à ermida de Nossa Senhora da Paz; e temos depois a Lagoa, está em franco crescimento, ali perto temos o porto e o Convento de Nossa Senhora da Conceição num local um tanto mítico, a Caloura, mas também a Ribeira Chã, que sempre me surpreendeu por aquele traço antigo que guarda entre a paisagem e o povoamento. E de Ponta Delgada vos falarei mais adiante. A cabeça anda às voltas para o próximo passeio, quando voltar a São Miguel, sim, tenho que regressar ao nordeste, à Tronqueira e a à Ponta da Madrugada, estou cada vez mais convencido que foi ali que Deus começou a criação do mundo.
Um abraço do
Mário
Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (61):
De novo em São Miguel, é infindável a romagem de saudade - 6
Mário Beja Santos
Estou a viver o penúltimo dia no paraíso, estes milhares de árvores e espécies arbustivas amainam-me o espírito, tal como o tanque de água férrea, os furtivos cursos de água, as coleções de plantas endémicas que não sei decifrar mas que são uma fantasia cromática sem igual, e então as camélias, os fetos, as azálias, aqui no centro na doçura do tempo, resolvi trazer comigo poemas de Natália Correia, a quem fiquei a dever muitas atenções, caso de um belo poema que me ofereceu para o meu primeiro livro publicado, corria o ano de 1981, chama-se Poema Posto em Saudade, e percorre esta minha adorada ilha, aqui fica um extrato: “Em Ilha verde e anilada/Por farturas de pastel,/deu a criação morada/Ao Arcanjo São Miguel./ Que lânguida maravilha/De terra no mar deitada/Quando a luz enlaça a Ilha/Pela cintura delicada!/Matas silentes e lúcidas/Do bosque primordial./Paz de pastos e poentes,/carmins que purpuram o mar.” Folheio as suas obras e dou com outro belo poema, tem a força de um Te Deum a mil vozes, é um bilhete de identidade, e gera-se-me a cumplicidade pela desmedida oração genesíaca, um quase sentido de eterno retorno que embala todo o qualquer açoriano: “Ilhas haverá muitas, letras de um dúbio beija-flor salpicando o mapa como a realidade dividida em horas. Um geográfico fascínio de pistolas abandonadas em bancos públicos, numa violenta imposição das mãos magnéticas dos suicidas. Mas isso não é ilha, é habitar a ilha, pelos dias inegáveis do regresso. Por isso, com a cumplicidade do peso húmido da morte, eu digo que a rigor só há uma ilha, a única, a minha, meu mistério selado pelos arbustos altivos da desaparecida”. E medito enquanto calcorreio avenidas e veredas, lagos e tanques, quanto este vigor primitivo, este coberto florestal, estas águas férreas, já em saudade me preparam para aqui voltar, tão rapidamente quanto possível. E de relance acarinho o olhar por inhames, magnólias em botão, azálias exuberantes, como se o mundo para mim tivesse nascido nesta ocasião.
Metrosideros, de cabeleira ao vento, terão séculos ou milénios?
Aí, para dezembro de 1967, o comandante do Batalhão Independente de Infantaria nº18 deu-me instruções para preparar o discurso endereçado aos recrutas, metia juramento de bandeira. Fui num fim de tarde para o café Gil e nada de melhor me ocorreu do que falar do que estava a viver, o sentir-me bem naquele espaço de basalto e lava, aquele cornucópia de flores, as que mais me assombravam eram as azálias e as hortênsias, estávamos no inverno, aqui a natureza revela sempre exuberância, e jamais esquecera a pátina dos plátanos, todos aqueles tapetes de terra musgosa, as hortênsias prontas para disparar nos meses próximos, estava-me na lembrança a primeira ida às furnas, estrada de paralelepípedos, flanqueada por quilómetros de hortênsias, fez-se então paragem na Lagoa, amor à primeira vista, passeio pela freguesia, demorada visita ao parque, e só depois o Pico de Ferro. E deu-me para ir alinhavando as letras do tal discurso, fazer uma ode àquelas gentes que me foram dado conhecer na Ilha Verde, uns vindos da Graciosa ou de Santa Maria, outros de São Miguel, falar de um povo destemido, com provas dadas no mundo baleeiro, profundo conhecedor das artes da navegação, de tais espaços saíram presidentes da República, poetas e escritores de primeira plana, missionários e grandes músicos, se Portugal se fizera ao mar, ao mar ali se lançaram as gentes do arquipélago, e com que reconhecimento internacional. E no discurso apareceram azálias e hortênsias, que o açoriano trata com esmero e fascínio, é o que lhe brota da terra e que sobressai, em contraste, do basalto e da lava e da bagacina.Flores quase ciclâmicas, desvairados cursos de água, musgo, a água é elemento necessário, é fermento das grotas, da precipitação dos céus, recordatória de que há um imenso oceano a toda a volta, aqui estão microcosmos que o Homem pode domesticar, o oceano é aquele abismo que marca a distância ou a saudade em voltar.
Uma avenida leva à outra, ou à surpresa de uma pequena praça ou recinto florido, desta sombra, tão agradável em dia de quentura o que mais me embevece é o tom do céu e marcha vertiginosa das nuvens.
Nestas águas férreas repousei e não pude resistir a vir aqui à noite para colher o contraste, não é desejável por aqui esbracejar à noite, envolve perigos de vida, mas feliz fiquei com o produto da imagem, lembrou-me um quadro de uma cidade à noite, não sei de quem e qual sítio.
Despeço-me do dia mirando o edifício da Junta de Freguesia das Furnas, tudo num aprumo, até há para ali uma fonte com água a correr, o dia fina-se, vou agora pensar nas últimas imagens que me quero e vos quero oferecer, amanhã é o regresso a Ponta Delgada.
(continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 23 DE JULHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23454: Os nossos seres, saberes e lazeres (514): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (60): De novo em São Miguel, é infindável a romagem de saudade - 5 (Mário Beja Santos)
sábado, 23 de julho de 2022
Guiné 61/74 - P23454: Os nossos seres, saberes e lazeres (514): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (60): De novo em São Miguel, é infindável a romagem de saudade - 5 (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Junho de 2022:
Queridos amigos,
Conheci a Lagoa, o Vale das Furnas e o Parque Terra Nostra na semana que precedeu o Natal de 1967, foi paixão à primeira vista, não há visita a esta ilha mágica sem peregrinação a este recanto de inumeráveis belezas. Ofereceram-se depois o livro "Um Inverno nos Açores e um Verão no Vale das Furnas", obra dos irmãos Joseph e Henry Bullar, edição antiga, de 1949, ardeu numa tempestade de fogo na Guiné, em março de 1969, tenho dado voltas para o reencontrar, consta que vai ser reeditado finalmente. Oferecido por João Hickling Anglin, tinha bonita dedicatória, um relato amorável de um irmão que acompanha outro muito doente, que ali vinha restaurar forças e salvar os pulmões, uma bonita coletânea de observações sobre aquela gente que vivia exclusivamente da terra e que para eles tinham uma estranha alegria de viver, até nas suas manifestações de fé e no langor das suas danças. Venho aqui com uma imensa alegria, banhar-me nestas águas férreas, calcorrear o parque, deambular entre as fumarolas e mastigar um cozido de louvar a Deus.
Um abraço do
Mário
Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (60):
De novo em São Miguel, é infindável a romagem de saudade - 5
Mário Beja Santos
Chegou a hora de arrumar algumas recordações desta inolvidável visita. Percorri alguns dos lugares que me são mais queridos em Ponta Delgada, de jardins a museus; de autocarro andei pela zona da Bretanha e fui até aos Mosteiros, um itinerário que vai da costa sul à costa norte; palmilhei a Lagoa, aí encontrei um monumento aos antigos combatentes, registei os mortos na Guiné; houve viagem meteórica na região da Povoação, tinha saudades do Faial da Terra, já percorri em toda a sua extensão a Lagoa das Furnas, o dia de hoje é todo ele para o Vale das Furnas (ou será Vale Formoso das Furnas?), estou cheio de ansiedade por fazer o primeiro passeio pelo Parque Terra Nostra, estou num território onde não há praias mas há plátanos, cedros, metrosideros, inúmeras camélias, as mais delicadas variações cromáticas, já me foi dado fruir paisagens a perder de vista e de se perder a vista nela, agora é tudo uma concentração dos rugidos vulcânicos e de floresta exótica, expressiva do mundo inteiro. Ao gizar o programa desta visita tão breve ainda pensei peregrinar pelas três principais lagoas, começando pelas Sete Cidades e acabando no Fogo. Mas rendi-me, seria uma insensatez passarinhar e fingir que ver, estou feliz com a decisão, de assentar arraiais nas Furnas, sei que é um dos lugares mais conhecidos, estimado pela grandiosidade do conjunto, há aquele esplendor do que é avistado no Salto do Cavalo ou no Pico do Ferro, mas já estou como li no guia turístico, “as Furnas não são um lugar para se dizer o que é, mas para ser ver como é”.
Estamos, pois, no fundo da cratera de um vulcão, quem se perde nesta imagem, ainda por cima não marcada por todos aqueles vapores das fumarolas que tanto impressionam o turista, até pode não atender que lá ao fundo na costa arribaram os povoadores, foram desbastando toda aquela massa florestal, bem impressionados com estes rugidos infernais como seguramente tomariam como um aviso de Deus. Aqui há águas termais, toda esta serrania penhascosa em derredor, sente-se o quente e o húmido, é a Corrente do Golfo que marca toda a ilha, toda a região arquipelágica. Não se imagina vendo esta imagem que a escassos metros a terra treme e ruge, as lamas revolteiam-se, e ali ficamos especados a inalar vapores enxofrados.
É um espetáculo incansável, deu-me para pensar que os tais povoadores e os donatários julgaram ver até um dia chegar uma explicação científica, as Furnas estão hoje no concelho da Povoação, e o povoamento iniciou-se exatamente naquela costa entre a Povoação e Fila Franca do Campo, um cronista, de nome Gaspar Frutuoso, deixou-nos o registo desses tempos primordiais. Eu pasmo-me sempre com todo este caleidoscópio que S. Miguel oferece, as distinções marcantes entre o que se vê no Nordeste, na Fajã de Baixo ou na Fajã de Cima, na Ribeira Grande ou na Ribeira Quente, nos Fenais da Luz ou nas Sete Cidades ou na Lagoa do Fogo ou em Água Retorta, parece que o bom Deus aqui engendrou um puzzle de altos e baixos, do cachoar oceânico, daquelas reentrâncias que parecem destinadas à pura meditação. Feita esta cogitação para os meus botões, parto para o Parque Terra Nostra, atenção é a primeira visita.
É um dos mais belos parques ao cimo da Terra, espraia-se por 12 hectares, tem mais de 2 séculos de vida. Tudo começou em 1775 quando o Cônsul dos Estados Unidos em S. Miguel, Thomas Hickling, aqui mandou construir a sua residência de verão, havia então 2 hectares. Em meados do século XIX iniciou-se o engrandecimento do parque, criaram-se jardins de água, plantaram-se alamedas e canteiros, vieram especialistas que procederam à construção do atual canal serpentiforme, deram ordenamento a grutas e avenidas e caminhos e chegaram plantas de vários continentes. O empresário Vasco Bensaúde adquiriu como complemento do Hotel Terra Nostra.
Estão aqui reunidos exemplares das principais plantas endémicas da ilha de S. Miguel, no jardim da flora endémica e nativa dos Açores. Prepare-se o visitante para o passeio paradisíaco neste jardim que tem tanto de exótico como de botânico, é uma sensação única andar a mirar a coleção de fetos, as vireyas, originárias da Malásia, daqui são provenientes os rododendros, saltamos para as azálias, na altura deste passeio estavam exuberantes em branco, vermelho e amarelo, vale a pena determo-nos a ver estas encostas que parecem cobertas de musgo, o que não falta aqui são araucárias, é indispensável ir até à coleção de camélias, temos aqui 800 exemplares de diferentes espécies e cultivares de camélias.
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Notas do editor
Poste anterior de 16 DE JULHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23434: Os nossos seres, saberes e lazeres (512): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (59): De novo em São Miguel, é infindável a romagem de saudade - 4 (Mário Beja Santos)
Último poste da série de 21 DE JULHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23449: Os nossos seres, saberes e lazeres (513): Retomadas as festividades à Senhora de Antime, em Fafe (Manuel Barros Castro, ex-Fur Mil Enfermeiro)
Queridos amigos,
Conheci a Lagoa, o Vale das Furnas e o Parque Terra Nostra na semana que precedeu o Natal de 1967, foi paixão à primeira vista, não há visita a esta ilha mágica sem peregrinação a este recanto de inumeráveis belezas. Ofereceram-se depois o livro "Um Inverno nos Açores e um Verão no Vale das Furnas", obra dos irmãos Joseph e Henry Bullar, edição antiga, de 1949, ardeu numa tempestade de fogo na Guiné, em março de 1969, tenho dado voltas para o reencontrar, consta que vai ser reeditado finalmente. Oferecido por João Hickling Anglin, tinha bonita dedicatória, um relato amorável de um irmão que acompanha outro muito doente, que ali vinha restaurar forças e salvar os pulmões, uma bonita coletânea de observações sobre aquela gente que vivia exclusivamente da terra e que para eles tinham uma estranha alegria de viver, até nas suas manifestações de fé e no langor das suas danças. Venho aqui com uma imensa alegria, banhar-me nestas águas férreas, calcorrear o parque, deambular entre as fumarolas e mastigar um cozido de louvar a Deus.
Um abraço do
Mário
Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (60):
De novo em São Miguel, é infindável a romagem de saudade - 5
Mário Beja Santos
Chegou a hora de arrumar algumas recordações desta inolvidável visita. Percorri alguns dos lugares que me são mais queridos em Ponta Delgada, de jardins a museus; de autocarro andei pela zona da Bretanha e fui até aos Mosteiros, um itinerário que vai da costa sul à costa norte; palmilhei a Lagoa, aí encontrei um monumento aos antigos combatentes, registei os mortos na Guiné; houve viagem meteórica na região da Povoação, tinha saudades do Faial da Terra, já percorri em toda a sua extensão a Lagoa das Furnas, o dia de hoje é todo ele para o Vale das Furnas (ou será Vale Formoso das Furnas?), estou cheio de ansiedade por fazer o primeiro passeio pelo Parque Terra Nostra, estou num território onde não há praias mas há plátanos, cedros, metrosideros, inúmeras camélias, as mais delicadas variações cromáticas, já me foi dado fruir paisagens a perder de vista e de se perder a vista nela, agora é tudo uma concentração dos rugidos vulcânicos e de floresta exótica, expressiva do mundo inteiro. Ao gizar o programa desta visita tão breve ainda pensei peregrinar pelas três principais lagoas, começando pelas Sete Cidades e acabando no Fogo. Mas rendi-me, seria uma insensatez passarinhar e fingir que ver, estou feliz com a decisão, de assentar arraiais nas Furnas, sei que é um dos lugares mais conhecidos, estimado pela grandiosidade do conjunto, há aquele esplendor do que é avistado no Salto do Cavalo ou no Pico do Ferro, mas já estou como li no guia turístico, “as Furnas não são um lugar para se dizer o que é, mas para ser ver como é”.
Estamos, pois, no fundo da cratera de um vulcão, quem se perde nesta imagem, ainda por cima não marcada por todos aqueles vapores das fumarolas que tanto impressionam o turista, até pode não atender que lá ao fundo na costa arribaram os povoadores, foram desbastando toda aquela massa florestal, bem impressionados com estes rugidos infernais como seguramente tomariam como um aviso de Deus. Aqui há águas termais, toda esta serrania penhascosa em derredor, sente-se o quente e o húmido, é a Corrente do Golfo que marca toda a ilha, toda a região arquipelágica. Não se imagina vendo esta imagem que a escassos metros a terra treme e ruge, as lamas revolteiam-se, e ali ficamos especados a inalar vapores enxofrados.
É um espetáculo incansável, deu-me para pensar que os tais povoadores e os donatários julgaram ver até um dia chegar uma explicação científica, as Furnas estão hoje no concelho da Povoação, e o povoamento iniciou-se exatamente naquela costa entre a Povoação e Fila Franca do Campo, um cronista, de nome Gaspar Frutuoso, deixou-nos o registo desses tempos primordiais. Eu pasmo-me sempre com todo este caleidoscópio que S. Miguel oferece, as distinções marcantes entre o que se vê no Nordeste, na Fajã de Baixo ou na Fajã de Cima, na Ribeira Grande ou na Ribeira Quente, nos Fenais da Luz ou nas Sete Cidades ou na Lagoa do Fogo ou em Água Retorta, parece que o bom Deus aqui engendrou um puzzle de altos e baixos, do cachoar oceânico, daquelas reentrâncias que parecem destinadas à pura meditação. Feita esta cogitação para os meus botões, parto para o Parque Terra Nostra, atenção é a primeira visita.
É um dos mais belos parques ao cimo da Terra, espraia-se por 12 hectares, tem mais de 2 séculos de vida. Tudo começou em 1775 quando o Cônsul dos Estados Unidos em S. Miguel, Thomas Hickling, aqui mandou construir a sua residência de verão, havia então 2 hectares. Em meados do século XIX iniciou-se o engrandecimento do parque, criaram-se jardins de água, plantaram-se alamedas e canteiros, vieram especialistas que procederam à construção do atual canal serpentiforme, deram ordenamento a grutas e avenidas e caminhos e chegaram plantas de vários continentes. O empresário Vasco Bensaúde adquiriu como complemento do Hotel Terra Nostra.
Estão aqui reunidos exemplares das principais plantas endémicas da ilha de S. Miguel, no jardim da flora endémica e nativa dos Açores. Prepare-se o visitante para o passeio paradisíaco neste jardim que tem tanto de exótico como de botânico, é uma sensação única andar a mirar a coleção de fetos, as vireyas, originárias da Malásia, daqui são provenientes os rododendros, saltamos para as azálias, na altura deste passeio estavam exuberantes em branco, vermelho e amarelo, vale a pena determo-nos a ver estas encostas que parecem cobertas de musgo, o que não falta aqui são araucárias, é indispensável ir até à coleção de camélias, temos aqui 800 exemplares de diferentes espécies e cultivares de camélias.
Monumento dedicado ao Marquês da Praia e de Monforte
Uma bela alameda, puxando um pouco pela imaginação até se pode pensar que estamos numa atmosfera asiáticas, o viajante sente-se consolado, sabe que chegar, contemplar e partir é uma história interminável, há sempre uma infinitude de ver e rever, logo aquelas calçadas onde estão em permanente diálogo o branco e o preto, as altitudes dos picos, o chá, o ananás e as hortências, os miradouros, as pastagens, os portos, as lombas e as canadas, ter o privilégio de ver passar os romeiros, estar sentado e ter tempo para que as cores da paisagem se matizem com as nuvens navegantes. E aqui neste Vale das Furnas há um cozido sem igual, até o estômago está em festa.____________
Notas do editor
Poste anterior de 16 DE JULHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23434: Os nossos seres, saberes e lazeres (512): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (59): De novo em São Miguel, é infindável a romagem de saudade - 4 (Mário Beja Santos)
Último poste da série de 21 DE JULHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23449: Os nossos seres, saberes e lazeres (513): Retomadas as festividades à Senhora de Antime, em Fafe (Manuel Barros Castro, ex-Fur Mil Enfermeiro)
sábado, 9 de julho de 2022
Guiné 61/74 - P23418: Os nossos seres, saberes e lazeres (511): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (58): De novo em São Miguel, é infindável a romagem de saudade - 3 (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Maio de 2022:
Queridos amigos,
Prossegue a romagem em território onde se viveu alguns meses, vai para 55 anos, tudo começou em Mafra, da Ilha de São Miguel se saltou para a Amadora para formar batalhão, dado como ideologicamente inapto fui recambiado para a rendição individual. Por desígnios da roda da fortuna até nasceu na Guiné uma grata amizade com médico oftalmologista, era inevitável deambular por lugares e espaços associados a gratas recordações, no dia-a-dia, após trabalho no quartel, era por aqui que se andava pelo próprio passo, e jamais esqueceu o aprazimento de tais vivências. Agora vai-se até ao interior, até à Bretanha e aos Mosteiros, requintes do rochedo vulcânico em perpétua conversa com a espuma do oceano.
Um abraço do
Mário
Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (58):
De novo em São Miguel, é infindável a romagem de saudade - 3
Mário Beja Santos
É imperioso regressar aos meus lugares mágicos, àqueles a que me afeiçoei, vai para cinquenta a e cinco anos. Era aqui à esquina, vindo da Rua de Lisboa, e depois de tomar o pequeno-almoço no mesmo local, merecendo sempre a distinção de um pãozinho quente com queijo da Ilha e galão, que tomávamos a viatura militar que nos conduzia aos Arrifes, o meu camarada Vasconcelos Raposo limitava-se a sair do Palácio da Conceição, onde vivia o Governador, lá íamos na caixa todos a monte, eram cerca de 7 quilómetros até chegarmos ao Batalhão Independente de Infantaria N.º 18, era seu comandante um distinto oficial Clodomiro Sá Viana de Alvarenga, demitiu-me de gerente de messe, eu, para evitar ficar encalacrado com dívidas, pus os oficiais a chicharro, ovos preparados de toda a maneira, carne guisada, houve levantamento, era gente fina, de boca delicada, agradeci a demissão, deixei as contas em ordem, passei a dormir sossegado, quem me antecedeu passou de facto um mau bocado, teve que desembolsar cerca de 100 contos, eu vivia a contar os meus 1100 escudos, até deu para convidar a minha mãe a visitar esta terra dos meus sonhos.
Aqui vim pedir, antes de regressar ao Continente, que o meu amado Jesus me desse o bom comando, saber ajudar, ser destemido e dar o melhor aos subordinados. Por razões que a Deus pertence, fui ouvido, deram-me bravos soldados guineenses para comandar, é um outro território de saudades, complementar a este. A imagem deste Deus-Homem sempre me acompanhou, sempre nos demos muito bem, irrecusável era esta visita, na parede lateral a este computador em que escrevo tenho uma réplica no registo do Senhor Santo Cristo feito por uma artífice de gabarito, a Graça Páscoa.
A igreja tem muita harmonia e belíssimos azulejos. Como gosto de apreciar a devoção alheia, espequei-me a ver quem entra, e de facto o ponto magnético é aquela grade, no ponto oposto a esta imagem, onde se conserva a relíquia que qualquer açoriano invoca, não só os tementes, mas todos aqueles que nesta relíquia encontram um dado indispensável do seu bilhete de identidade, faz parte da sua pertença.
Imagine-se, no sétimo ano dos liceus dávamos literatura do século XIX, e falava-se nos sonetos de Antero, o meu professor, Padre António Dias de Magalhães, estudara-o afincadamente, criava aos alunos uma atmosfera tão forte que era impossível não deixar de ficar impressionado com aquele Santo Antero que num ato de desvairo, num banco que tinha por cima a palavra Esperança pôs termo à vida, ainda hoje me perturba o que leva o ser humano ao suicídio, aqui fiquei em contemplação, não há nada como amar a vida até ao último dia, na ciência de que devemos dar a nós e aos outros de acordo com os talentos recebidos.
Perco-me a ver estes motivos da calçada, todos tão engenhosos e felizmente tão bem cuidados, há seguramente um apreço cultural nesta minha ilha mágica pelo chão bem tratado, a presença constante da lava que o Homem domestica para sua comodidade.
Aqui me venho prostrar diante deste altar que me parece uma renda de bilros, nada sei sobre esta devoção a São Sebastião, é um templo grandioso marcado pelo gosto dos primitivos povoadores (há dias, a ver o livro da minha neta de História e Geografia encontrei a barbaridade de se falar em colonização dos Açores, como é que é possível não se saber a diferença entre colonização e povoamento?), temos aqui bastante requinte manuelino, muito barroco, o templo é gracioso, impossível não percorrer os altares, primeiro o altar-mor, e depois as devoções, como aqui se mostram.
Vinha com a fisgada de poder visitar o tesouro, conversei com o sacerdote, tinha trabalho litúrgico pela frente, vinha acompanhado de um inglês e queria mostrar-lhe duas dalmáticas e duas casulas do século XIV, do que me foi dado perceber alfaias religiosas adquiridas depois da Reforma, aqui vieram parar, mas há muitos mais outros tesouros para ver, seguramente fica para a próxima viagem.
Tive sorte com a hora do dia, uma luz crua que não permite contraste com os tons de alvenaria e o rendilhado manuelino, tanto da porta principal como da lateral, com estes belos medalhões, a Igreja de São Sebastião tem conhecido intervenções capazes, não vejo nada desfigurado, é sempre com satisfação que ando à volta deste belo património, outro traço da identidade nacional, é com orgulho que olho para estes primeiros traçados da aventura portuguesa fora do Continente Europeu.
Finalizo por ora esta deambulação, primeiro as Portas da Cidade, todos os dias aqui me vinha enamorar deste ornamento de pedra que possui o dom não de ser volátil, mas de abraçar quem chega. E ali perto vejo a fachada de um prédio onde, no primeiro andar ia visitar José Luís Bettencourt Botelho de Melo, tudo começou na Guiné, limpou-me os olhos depois de uma mina anticarro, nasceu uma linda amizade, veja-se esta foto ali na praia do Pópulo, fomos comer, como era da praxe, os filetes de abrótea, na companhia da filha. Melancolia, perdi o amigo que aqui me recebia sempre de braços abertos. Deixo aqui o meu preito de homenagem.
(continua)
____________
Nota do editor
Último poste da série de 2 DE JULHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23404: Os nossos seres, saberes e lazeres (510): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (57): De novo em São Miguel, é infindável a romagem de saudade - 2 (Mário Beja Santos)
Queridos amigos,
Prossegue a romagem em território onde se viveu alguns meses, vai para 55 anos, tudo começou em Mafra, da Ilha de São Miguel se saltou para a Amadora para formar batalhão, dado como ideologicamente inapto fui recambiado para a rendição individual. Por desígnios da roda da fortuna até nasceu na Guiné uma grata amizade com médico oftalmologista, era inevitável deambular por lugares e espaços associados a gratas recordações, no dia-a-dia, após trabalho no quartel, era por aqui que se andava pelo próprio passo, e jamais esqueceu o aprazimento de tais vivências. Agora vai-se até ao interior, até à Bretanha e aos Mosteiros, requintes do rochedo vulcânico em perpétua conversa com a espuma do oceano.
Um abraço do
Mário
Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (58):
De novo em São Miguel, é infindável a romagem de saudade - 3
Mário Beja Santos
É imperioso regressar aos meus lugares mágicos, àqueles a que me afeiçoei, vai para cinquenta a e cinco anos. Era aqui à esquina, vindo da Rua de Lisboa, e depois de tomar o pequeno-almoço no mesmo local, merecendo sempre a distinção de um pãozinho quente com queijo da Ilha e galão, que tomávamos a viatura militar que nos conduzia aos Arrifes, o meu camarada Vasconcelos Raposo limitava-se a sair do Palácio da Conceição, onde vivia o Governador, lá íamos na caixa todos a monte, eram cerca de 7 quilómetros até chegarmos ao Batalhão Independente de Infantaria N.º 18, era seu comandante um distinto oficial Clodomiro Sá Viana de Alvarenga, demitiu-me de gerente de messe, eu, para evitar ficar encalacrado com dívidas, pus os oficiais a chicharro, ovos preparados de toda a maneira, carne guisada, houve levantamento, era gente fina, de boca delicada, agradeci a demissão, deixei as contas em ordem, passei a dormir sossegado, quem me antecedeu passou de facto um mau bocado, teve que desembolsar cerca de 100 contos, eu vivia a contar os meus 1100 escudos, até deu para convidar a minha mãe a visitar esta terra dos meus sonhos.
Aqui vim pedir, antes de regressar ao Continente, que o meu amado Jesus me desse o bom comando, saber ajudar, ser destemido e dar o melhor aos subordinados. Por razões que a Deus pertence, fui ouvido, deram-me bravos soldados guineenses para comandar, é um outro território de saudades, complementar a este. A imagem deste Deus-Homem sempre me acompanhou, sempre nos demos muito bem, irrecusável era esta visita, na parede lateral a este computador em que escrevo tenho uma réplica no registo do Senhor Santo Cristo feito por uma artífice de gabarito, a Graça Páscoa.
A igreja tem muita harmonia e belíssimos azulejos. Como gosto de apreciar a devoção alheia, espequei-me a ver quem entra, e de facto o ponto magnético é aquela grade, no ponto oposto a esta imagem, onde se conserva a relíquia que qualquer açoriano invoca, não só os tementes, mas todos aqueles que nesta relíquia encontram um dado indispensável do seu bilhete de identidade, faz parte da sua pertença.
Imagine-se, no sétimo ano dos liceus dávamos literatura do século XIX, e falava-se nos sonetos de Antero, o meu professor, Padre António Dias de Magalhães, estudara-o afincadamente, criava aos alunos uma atmosfera tão forte que era impossível não deixar de ficar impressionado com aquele Santo Antero que num ato de desvairo, num banco que tinha por cima a palavra Esperança pôs termo à vida, ainda hoje me perturba o que leva o ser humano ao suicídio, aqui fiquei em contemplação, não há nada como amar a vida até ao último dia, na ciência de que devemos dar a nós e aos outros de acordo com os talentos recebidos.
Perco-me a ver estes motivos da calçada, todos tão engenhosos e felizmente tão bem cuidados, há seguramente um apreço cultural nesta minha ilha mágica pelo chão bem tratado, a presença constante da lava que o Homem domestica para sua comodidade.
Aqui me venho prostrar diante deste altar que me parece uma renda de bilros, nada sei sobre esta devoção a São Sebastião, é um templo grandioso marcado pelo gosto dos primitivos povoadores (há dias, a ver o livro da minha neta de História e Geografia encontrei a barbaridade de se falar em colonização dos Açores, como é que é possível não se saber a diferença entre colonização e povoamento?), temos aqui bastante requinte manuelino, muito barroco, o templo é gracioso, impossível não percorrer os altares, primeiro o altar-mor, e depois as devoções, como aqui se mostram.
Vinha com a fisgada de poder visitar o tesouro, conversei com o sacerdote, tinha trabalho litúrgico pela frente, vinha acompanhado de um inglês e queria mostrar-lhe duas dalmáticas e duas casulas do século XIV, do que me foi dado perceber alfaias religiosas adquiridas depois da Reforma, aqui vieram parar, mas há muitos mais outros tesouros para ver, seguramente fica para a próxima viagem.
Tive sorte com a hora do dia, uma luz crua que não permite contraste com os tons de alvenaria e o rendilhado manuelino, tanto da porta principal como da lateral, com estes belos medalhões, a Igreja de São Sebastião tem conhecido intervenções capazes, não vejo nada desfigurado, é sempre com satisfação que ando à volta deste belo património, outro traço da identidade nacional, é com orgulho que olho para estes primeiros traçados da aventura portuguesa fora do Continente Europeu.
Finalizo por ora esta deambulação, primeiro as Portas da Cidade, todos os dias aqui me vinha enamorar deste ornamento de pedra que possui o dom não de ser volátil, mas de abraçar quem chega. E ali perto vejo a fachada de um prédio onde, no primeiro andar ia visitar José Luís Bettencourt Botelho de Melo, tudo começou na Guiné, limpou-me os olhos depois de uma mina anticarro, nasceu uma linda amizade, veja-se esta foto ali na praia do Pópulo, fomos comer, como era da praxe, os filetes de abrótea, na companhia da filha. Melancolia, perdi o amigo que aqui me recebia sempre de braços abertos. Deixo aqui o meu preito de homenagem.
(continua)
____________
Nota do editor
Último poste da série de 2 DE JULHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23404: Os nossos seres, saberes e lazeres (510): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (57): De novo em São Miguel, é infindável a romagem de saudade - 2 (Mário Beja Santos)
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