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terça-feira, 26 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25308: O Spínola que eu conheci (36): A história do Mário, da CART 2478, contada pelo Manuel Mesquita, da CCAÇ 2614 ("Os Resistentes de Nhala: 1969/71", ed. autor, 2005)

1. No tempo em que fazíamos inquéritos "on line" (funcionalidade que já não está disponível no Blogger), pusemos um dia à votação a seguinte questão:  "Dos 3 últimos Com-Chefes da Guiné, aquele de quem tenho melhor opinião é...". 

Os três nomes apresentados eram, por ordem de antiguidade no CTIG, Arnaldo Schulz, António de Spínola e Bettencourt Rodrigues.

O número total de votos apurados foi de  166. E a "sondagem" encerrou em 15/10/2015, às 15h32. Os resultados não nos supreenderam. 

O general Spínola apareceu destacadíssmo, reunindo mais de 70% dos votos:

  • António de Spínola (1968/73) > 119 (71,7%)
  • Bettencourt Rodrigues (1973/74) > 14 (8,4%)
  • Arnaldo Schulz (1964/68) > 10 (6,0%)
  • Nenhum deles > 16 (9,6%)
  • Não sei / não tenho opinião > 7 (4,2%)

2. Era inegável a "popularidade" de Spínola, no seu tempo, enquanto Com-chefe e Governador-Geral da Guiné (funções que acumulou tal como o seu antecessor, Arnaldo Schulz, e o seu sucessor, Bettencourt Rodrigues), se bem que as opiniões aqui expressas também  possam estar "enviesadas" pela época em que os respondentes estiveram na Guiné (e no pressuposto de que  todos eram antigos combatentes na Guiné). 

A história do Mário,  que se reproduz a seguir,  vem ajudar a perceber melhor o porquê da "popularidade" do general.  Era um comandante-chefe que fazia questão de estar próximo dos seus homens e que os visitava amiudadas vezes, nomedamente no mato (que era a "frente de batalha")... E resolvia no momento problemas do quotidiano da tropa e dos militares, muitas vezes à revelia da máquina burocrática do exército.

Como lembrou, aqui, em comentário ao poste P25238, o cor art ref Morais Silva, "a  sua severidade e exigência perante as falhas dos seus militares era proporcional ao grau de responsabilidade e ao posto do infrator. Apreciava quem cumpria e é obrigatório lembrar o especial cuidado que tinha com os feridos em combate que diariamente visitava no HM 241"

São estas e outras "pequenas histórias" que faltam na biografia deste cabo de guerra, escrita pelo historiador Luís Nuno Rodrigues (apesar de volumosa) (Spínola: Biografia". Lisboa. A Esfera do Livro, 2010, 748 pp.. il.)

2. Com a devida vénia, fomos repescar a história do Mário, ao livro do Manuel Mesquita “ Os resistentes de Nhala: 1969/71” (Ed. de autor, s/l, 2005, pp. 121/123) (**).
 
O autor pertenceu à CCAÇ 2614 / BCAÇ 2892 (Bissau, Nhala e Aldeia Formosa, 1969/71) . E o Mário  à CART  2478, que esteve em Gadamael.

O Mário

por Manuel Mesquita

Apareceu-me lá em Aldeia Formosa, em determinada ocasião, e sem que nada o fizesse prever, um moço que conheci na nossa adolescência. Nunca houvera grande amizade entre nós, mas somos conterrâneos. Foi uma alegria encontrarmo-nos na mesma guerra em terras tão longínquas. [Era] o Mário de Fontelas [. concelho de Peso da Régua]  .

Contou-me um pouco da sua vida, convidei-o a ir viver para o meu quarto. Visitou as instalações, agradaram-lhe as condições e aceitou, era por pouco tempo.

Veio de outra companhia, a [CART] 2478 , instalada em [Gadamael] Porto, onde cumpriu 21 meses em rendição individual. Foi bem comportado. O capitão sempre lhe prometeu vir com a companhia no final, apesar de ter menos um mês e meio que eles. Acompanhou a companhia até Bissau, convencido de que vinha.

A [CART] 2478 embarcou [em 23 de dezembro de 1970, juntamente com o resto do BART 2865], o Mário ficou no cais a ver os companheiros embarcar e seguir.

Do barco acenavam-lhe [com] a alegria de partir. No cais o Mário chorava o desgosto da promessa por cumprir. (…) Naquela hora, uns com o coração recheado de alegria e o Mário com o coração apertado pelo desgosto.

Ficou quase dois meses no quartel dos Adidos e, quando contava vir para Lisboa, mandaram-no para a CCAÇ 2614 [em Aldeia Formosa]. Nós com mais de 21 meses, ele com 23. Nós vínhamos em breve, ele não poderia vir connosco, era candidato a ficar lá depois de nós.

− É uma injustiça –digo eu.

− É um castigo, sem nunca ter merecido uma punição. É ter a certeza duma missão cumprida, sem saber quando termina a minha comissão. Já servi a Pátria!

− É uma dor de alma, que só não a sente quem tem um coração de pedra.

O Mário estava no segundo pelotão. Com o pelotão desfalcado há tanto tempo, mandam agora um soldado preencher um vaga. Integrou-se, e a tudo obedecia e cumpria naturalmente (nem poderia ser de outra forma).

Somos [, entretanto,] informados que o Com-Chefe nos iria visitar para provavelmente nos entregar as medalhas de missão cumprida. Tentei a todo o custo convencer o Mário de que se devia dirigir ao Com-Chefe, falar e expor o seu caso, ainda que [ele]fosse o nosso general.

Era um domingo de tarde, nós estávamos [dispensados] de serviço. Uniformizados a rigor, estávamos na parada antes da hora prevista. Não revelámos o nosso plano a ninguém.

Chegou a avioneta e logo o clarim convida-nos à formatura. (…)

É, sem dúvida, sua Excia. o gen Spínola, fiquei contente. Começa o seu discurso, dizendo que tinha as medalhas de comissão cumprida para nos dar. Saudou-nos por tal e informou que ficaríamos ali mais algumas semanas até chegar a companhia que nos [iria substituir, a CCAÇ 3399, em 27 de agosto de 1971].

Eu tinha vontade de tocar o meu amigo para se apresentar, mas estávamos em sentido e o grupo é outro. Uma voz forte e determinada se levanta, lá da outra zona e…

− Sua Excelència, meu general, dá-me licença ?

A admiração foi geral, toda a gente queria olhar, mas… Eu tremia.

O general António Spínola interrompe a conversa com o comando do batalhão [BCAÇ 2892, Aldeia Formosa, 1969/71] , e [diz]:

− Avance e apresente-se.

O Mário conhece os cânones militares, cumpre e diz porque está ali, donde veio, o tempo cumprido, este batalhão não lhe podia prometer que o levava, poderia ver partir mais um companhia, era de rendição individual, não poderia saber quando teria a missão cumprida, depois de já ter naquele momento mais de 24 meses de zona de guerra na Guiné…

Aquele frente a rente não foi longo mas toda a gente o ouviu. O general mandou que o seu ajudante de campo (um capitão ‘comando’) tudo registasse e disse:

− Fizeste bem em falar, meu rapaz. Ainda não é hoje que recebes a tua medalha. Ficarias cá depois desta companhia embarcar. Não vais hoje comigo, porque é impossível, mas embarcarás daqui [a] esta semana para Bissau, vais para Lisboa no primeiro barco.

Deu ordens ao comando para deixarem descansar até ao fim, que lhe [tratassem] do espólio, sairia dali dentro de dias para Bissau para aguardar transporte para Lisboa.

O general partiu, nós ficámos com as medalhas de missão cumprida e o Mário estava agora feliz. Parabéns, justiça finalmente [fora] feita, justiça estava a fazer-se.

Todos os militares sabiam que a comissão na Guiné era de 22 a 23 meses no total. E de 22 a 24 no máximo para os de rendição individual.

Passados três dias, o soldado Mário estava a tomar a avioneta na pista de Aldeia,com todo o espólio feito.

Fonte: Excertos de Manuel Mesquita, “ Os resistentes de Nhala: 1969/71”. (Ed. de autor, s/l, 2005, pp. 121/123) (Com a devida vénia...)

(Seleção, revisão / fixação de texto, parenteses retos, correção de gralhas: LG)

__________

Nota do editor:

Último poste da série > 3 de maio de 2022 > Guiné 61/74 - P23225: O Spínola que eu conheci (35): um militar de caracter reservado, com quem me cruzei várias vezes em Bissau no desmepenho das minhas funções na Rep ACAP - Repartição de Assuntos Civis e Ação Psicológica (Ernestino Caniço)

terça-feira, 19 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25288: O Cancioneiro da Nossa Guerra (16): "Aldeia Formosa" e "Adeus Aldeia Formosa" (CCAÇ 2614 / BCAÇ 2892, Nhala e Aldeia Formosa, 1969/71)


Guiné > Região de Quínara> Buba > 1ª C/BCAÇ 4513/72 (Bula, 1973/74) > Proteção aos trabalhos de construção da nova estrada Buba - Aldeia Formosa (via Nhala).

Foto (e legenda): © António Alves da Cruz (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. No seu singelo ļivro de memórias "Os Resistentes de Nhala, 1969/71" (ed. de autor,  s/l, 2005, 144 pp.) (*), o nosso camarada Manuel Mesquita (CCAÇ 2614 
/ BCAÇ 2892, Bissau, Nhala e Aldeia Formosa, 1969/71) transcreve a letra de duas canções, que se cantarolavam em Aldeia Formosa:

(...) "Em Aldeia  o pessoal canta, para esquecer a saudade, ou porque já estamos perto do fim. Pegaram na melodia da marcha do Bairro Alto, vencedora em 1960 (talvez), 'Bairro Alto e seus amores tão delicados'...) (op. cit, pág, 120). 

Nenhuma das duas letras em título...  Mas também circulam por aí como "Aldeia Formosa" e "Adeus, Aldeia Formosa"...  A primeira é uma paródia às colunas auto na temível picada Buba - Aldeia Formosa (que no final da guerra passou a aser uma estrada alcatroada)... Vamos acrescentá-las ao Cancioneiro da Nossa Guerrra  (**).


ALDEIA FORMOSA 

Aldeia e as colunas a seguir
Para Buba,  com a malta,
Sujeita a ir para não vir
Com aquilo que nos falta.

São emboscadas e minas,
Bolanhas e covazinhas,
Viaturas rebocadas.
Deitaram - nos isto à sorte
De procurarmos a morte
Nestas tão reles estradas,

Refrão:

Viaturas velhas, mesmo a cair,
E, mesmo assim, a malta tem que seguir,
São tristes chaços, em procissão,
Andam mecânicos com as chaves de mão em mão.


(Nota: Na página "A viola é do fado", lê-se que "esta marcha data de 1938 e é da autoria de Carlos Neves. Diz-nos Daniel Gouveia, no seu excelente livro ' No fado tudo se canta' que a letra original de Nuno de Aguiar foi várias vezes alterada pelos fadistas. Sugere-se, a esse respeito, a leitura da variante cantada por Carlos do Carmo."). 

2. A segunda letra é já relativa ao fim da comissão, e ao  "regresso"  do pessoal da CCAÇ 2614, que se vai processar, numa primeira fase,  em coluna auto,  de Aldeia Formosa até Buba, passando por Mampatá, Uane e Nhala (que ficou no coração dos "resistentes")  (op. cit, pp 124/125).


ADEUS, ALDEIA FORMOSA

Adeus, Aldeia,  Formosa mas feia,
Com turras a atacar,
Adeus, Aldeia, que eu levo na ideia
De não mais cá voltar.

Despedi-me das bolanhas sem igual, 

Das bajudas da Tabanca, 
Dos alfaiates do rio Corubal,
Antes quero a minha branca.

Ai, ai, ai!...,
Não me importo de ir à toa,
O que eu quero é ver Lisboa
E a terra que eu cá sei.

Ai, ai, ai!...,
Já deixei as matacanhas, 
Pântanos e montanhas
E a Nhala que eu amei.

(Nota: A letra encaixa-se na  música da "Canção da Papoila", do filme "Maria Papoila", de Leitão de Barros, 1937: música de Raul Ferrão, letra de Alberto Barbosa, José Galhardo e Vasco Santana; Lisboa, Sassetii & C.ª Editores, 1937. Fonte: Museu do Fado)

(Seleção, revisão / fixação de texto, notas: LG)



Capa do livro do Manel Mesquita, 
"Os Resistentes de Nhala", ed. de autor, 2005, s/l, 2055, 144 pp. 
(Gráfica: Quadra - Produções Gráficas Lda, Vila Nova de Gaia.)
(Contactos do autor: tel 22 762 07 36 | telem 963 525 912)
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Notas do editor: