sábado, 8 de julho de 2017

Guiné 61/74 - P17559: Consultório militar do José Martins (24): D. Cecília de Freitas, Dama Enfermeira, equiparada a Alferes

Grupo de “Enfermeiras Militares 


1. Mensagem do nosso camarada José Marcelino Martins (ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70),  com data de 4 de Julho de 2017:

Caros amigos
Em época de "Centenário" junto texto sobre uma Dama Enfermeira que esteve na Grande Guerra e teve a sua última morada no Talhão dos Combatentes, em Loures.

Abraço
Zé Martins
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Nota do editor

Último poste da série de 12 de junho de 2017 > Guiné 61/74 - P17459: Consultório militar do José Martins (23): Sacavém na Grande Guerra - Os mobilizados e os tombados

Guiné 61/74 - P17558: Inquérito 'on line' (119): num total (provisório) de 35 respostas, até às 21h00 de hoje, menos de metade (17) entende que "em geral, o aerograma era seguro e rápido"... Comentários de: José Martins, Manuel Amaro e Carlos Vinhal

I. INQUÉRITO 
DE OPINIÃO: 

"EM GERAL, O AEROGRAMA 
ERA SEGURO 
E RÁPIDO" (*)


[Seguro=em geral,  não se extraviava, não se perdia, era devolvido em caso de erro no endereço, não era facilmente violável, não havia censura, a pessoa sentia-se à vontade para escrever o que lhe apetecesse ...]

[Rápido = em geral, demorava poucos dias a chegar ao destinatário]

Assinalar, diretamente, no canto superior esquerdo do blogue, uma das cinco hipóteses de resposta, de acordo com a perceção e e experiência de cada um, no TO da Guiné,

Em 35 respostas preliminares, temos os seguintes resultados;


1. Era seguro e rápido 17 (48,6%) 

2. Era seguro mas não rápido 3 (8,6%) 

3. Era rápido mas não seguro 9 (25,7%)

4. Não era nem seguro nem rápido 3 (8,6%) 

.5 Não sei / já não me lembro 3 (8,6%)

Total > 35 (100,0%)

O prazo de resposta termina na 5ª feira, dia 13, às 16h59.


2. Comentários dos nossos leitores

(i) José Marcelino Martins: 

Escolhi, no leque de respostas a hipótese dois: Era seguro, mas não rápido.

Pelo que sei, os "responsáveis pelos SPM", a nível de terreno, eram requisitados aos CTT e graduados em 1º Sargento. Alguns eram, na realidade, carteiros de profissão.

A velocidade com que faziam o trajeto variava, em função:
- Da quantidade de voos semanais, da TAP, que era quem os transportava;
- Da EPM [Estação Postal Militar] em Bissau, seguiam para os Batalhões;
- Dos Batalhões seguiam para as unidades, nível de companhia, que a distribuía ou enviava para os destacamentos que tinha, e de acordo com o ritmo de "transporte".

Portanto tudo variava. Até o esquecimento daquilo que era o que animava a malta

(ii) Manuel Amaro
Um aerograma entregue nos CTT do Aeroporto de Lisboa, até às 19.00 horas, era distribuído em Aldeia Formosa (Quebo), por volta das 16.00 horas do dia seguinte.

(iii) Carlos Vinhal;

Não é líquido um aerograma ser mais rápido que uma carta ou vice-versa porque a distribuição do correio no mato dependia das condições logísticas.
 
José Martins, o que expões,  não acontecia nas cartas?  Iriam as cartas de barco e chegavam mais depressa a Bissau? Os aerogramas não percorriam o mesmo calvário que as cartas? Ou tinham tratamento diferente chegados a Bissau?

Guiné 61/74 - P17557: Lembrete (23): Hoje, sábado, na Tabanca dos Melros (Fânzeres, Gondomar), apresentação do II volume do livro do José Ferreira, "Memórias Boas da Minha Guerra"... Daqui a um bocado, às 10h30, que de manhã é que se começa o dia... E como prenda o autor deixa aqui, em reedição, mais um dos seus microcontos, e que, não é por acaso, tem a ver com o tema da atualidade (do nosso blogue...), o Serviço Postal Militar (SPM), e as suas pequenas misérias e grandezas, já depois do 25 de Abril, no rescaldo da guerra colonial

Capa do II Volume do livro "Memórias
Boas da Minha Guerra", de José Ferreira
(Lisboa: Chiado Editora, 2017)
1. O Zé Ferreira teve a gentileza de convidar o nosso editor Luís Graça para apresentar o segundo volume do seu livro, justamente na Tabanca dos Melros... 

Desta vez conseguiu-se "compaginar" as agendas, como dizem os políticos da nossa praça, e o nosso editor Luís Graça está neste momento à espera que o Zé, vindo de Crestuma onde vive, passe pela Madalena (, localidades do mesmo concelho, Vila Nova de Gaia), para o levar até à Quinta dos Choupos - Choupal dos Melros (que fica em Fânzeres, Gondomar, e onde está sediada a Tabanca dos Melros).

Às 9h45 o Zé Ferreira vem-me buscar e eu estou ansioso por dar um abraço fraterno aos meus bons amigos e camaradas do Norte que vão estar presentes (há 70 inscrições para o almoço), incluindo o meu querido coeditor Carlos Vinhal (e a Dina), o Carlos Silva (um dos régulos da Tabanca dos Melros), o Jorge Teixeira (conhecido como o "bandalho-mor", chefe do Bando do Café Progresso), a par dos penafialenses Joaquim Peixoto, José Cancela e respetivas esposas ("sempre, sempre ao lado dos seus homens"!)...

Estarão, por certo, outros camaradas, incluindo tabanqueiros da grande Tabanca Pequena de Matosinhos. Não tenho aqui a lista dos convivas. Não tenho, por exemplo,  a certeza se o Gil Moutinho, o anfitrião, poderá estar presente, De qualquer modo, estou também ansioso por conhecer a sua "casa", de que tenho ouvido as melhores referências. Espero ainda encontrar outros "melros" como o David  Guimarães (que é aqui da Madalena, mas fez de Espinho a sua terra adotiva), os manos Carvalho (o António e o Manuel), ambos a jogar em casa,  e muitos outros mais... 

O "grande melro", cofundador e coeditor da Tabanca dos Melros, o saudoso  Jorge Portojo (1948-2017) estará seguramente connosco, em espírito: acabou de ser muito  condignamemte homenageado pela Tabanca dos Melros (e pela  tertúlia do Bando do Café Progresso) nó último convívio dos "melros", em 13 de maio passado.
A título de consolo, para quem não puder estar hoje na Tabanca dos  Melros, tomei a liberdade de escolher um dos "microcontos" do nosso escritor, José Ferreira  (que é de Fiães, concelho da Feira, mas que escolheu Crestuma, Vila Nova de Gaia, para amar, orar, viver, trabalhar, escrever e fazer campeões de canoagem!...). Como o tema está na ordem dia do nosso blogue (, aqui nunca se fala diretamente da atualidade do país...), vem a propósito repescar uma história que tem a ver com o SPM e o rescaldo da guerra colonial, já no pós-25 de Abril.

[Com a devia vénia ao autor e ao editor (Chiado Editora, que não vai estar presente porque não faz a mínima ideia onde fica Fânzeres, e só se digna fazer promoções dos seus livros e autores em Lisboa, Porto e Coimbra)...Em boa verdade, o primeiro editor do José Ferreira foi o nosso blogue...]


2. Memórias Boas da Minha Guerra

VÍCIOS ESTRANHOS OU FRUTOS DA ÉPOCA

por José Ferreira

[in "Memórias Boas da  Minha Guerra", vol. II. Lisboa: Chiado Editora, 2017, pp. 184-187] (**)

Regressei de Angola, onde estive a trabalhar, logo após o 25 de Abril de 74. Vim de férias (“licença graciosa”, 4 a 5 meses  com prolongamento). Como funcionário camarário [, da Câmara Municipal de Cabinda], beneficiava de todas as regalias da função pública, às quais se juntavam ainda os benefícios de compensação pelo isolamento e/ou perigosidade. Para receber os vencimentos tinha que me deslocar a Lisboa, ao Ministério do Ultramar (ou Defesa Nacional), ali para os lados de Belém [, ou melhor, na avenida da ilha da Madeira, no Restelo].

Naquele dia, como cheguei mais tarde a Lisboa, aproveitei para almoçar na zona ribeirinha e esperar pelas 14h30 para ir receber o vencimento. Após o almoço, abeirei-me do Tejo, onde me chamou a atenção um jovem cabo miliciano, que olhava o horizonte, lá para o Farol do Bugio.
 – Então, como vai essa peluda? – perguntei-lhe.
 – Peluda, não. Direi mesmo que estou aqui fodido com a puta da tropa. 
– Não me digas? Agora que se deu o 25 de Abril, em que andais por aí à balda, de cabelo à Beatle e livres de ir para a guerra! – interpelei. 
– Pois, pois, mas isto ainda está muito confuso – respondeu o jovem, que continuou: 
– Ainda estão militares a ir lá para fora e o filho da puta do meu sargento quer mandar-me para lá. 
– Mas o sargento tem assim tanta força para isso? – perguntei.
– Este tem. É que eu há dias, no comboio, entusiasmei-me com esta coisa do 25 de Abri, e contei a um furriel a marosca em que o sargento andava envolvido. Pensei que o furriel era miliciano e, afinal, era outro chico e amigo do sargento – confessou o militar preocupado. 

E continuou: 
– Estava a contar sair por estes dias, tenho a namorada já grávida, lá na terra, perto de Amarante, e o capitão, que também deve mamar, já me avisou: "Ganha juízo, se não ainda levas com uma guia de marcha especial"– E continuou: – Os chicos protegem-se uns aos outros. 
– Também nunca gramei esses gajos – disse eu e acrescentei: – Estive na Guiné e passei por muitas merdas, mas procurei afastar-me sempre dessa cambada. Embora tenha de confessar que também havia alguns a merecer alguma consideração. Mas, afinal, como é possível essa preocupação? 
– Trabalho no SPM, Serviço Postal Militar. É por ali que passa toda a correspondência militar, incluindo as encomendas. Aquilo presta-se a muita vigarice. Há cartas em que o dinheiro sai com facilidade e, nas encomendas, há uma percentagem grande que fica por ali. Por outro lado, há encomendas de contrabando que não entram nos registos. E, como eu não queria nada, deixaram-me em roda livre, sem serviço e sempre desenfiado. Só que agora, meti o pé na poça e eles não perdoam. 

E continuou: 
– Há lá um grupo de sargentos e furriéis com o vício de jogar. E jogam forte. Este sargento, quando mete a mão ao bolso, até diamantes lhe aparecem nas mãos. Ele tem um colega que está nos Adidos, ali na Travessa da Calçada, atrás da Ajuda, junto de Lanceiros 2, que, muitas vezes, vai lá jogar. Ainda é mais viciado do que o meu sargento. Mas, agora, anda como uma barata, devido à diminuição de mortes no Ultramar. 
– O que é que isso tem a ver com o assunto? – perguntei. Ele logo respondeu: 
– O gajo deve ser o responsável pelo armazém onde passam os militares mortos. Já estava muito habituado ao rendimento das madeiras caras, que vêm a servir de caixões. Ele deve vender bem essas madeiras exóticas.

Uns seis anos depois, por altura das festas do S. Gonçalo [, em Amarante], participámos [, o meu clube,] numa prova de canoagem no Rio Tâmega. A largada, acima de Fridão, lançava-nos, em pequenas pirogas, para os vários perigos, bem patentes em quedas, rápidos, correntes e redemoinhos. Vencê-los era um prazer incrível. A nossa chegada junto da ponte era um espectáculo. Logo que cortávamos a meta, deleitávamo-nos a olhar para o público ruidoso que ocupava todos os espaços envolventes. Grandes momentos da minha canoagem! Enquanto aguardava a distribuição dos prémios, sinto uma mão no ombro esquerdo: 
– Não se lembra de mim?
– Não, não estou e ver… como – respondi.  Ele continuou: 
– Há uns anos estivemos a conversar em Belém, junto ao rio, estava eu fodido que não sabia que fazer à puta da vida. 
– Sim, sim, já me lembro – respondi e aproveitei logo para perguntar:
– E então, como é que te safaste? 
– Olha, tenho a agradecer muito o teu conselho. Acabei por contar tudo a um oficial de confiança e bem identificado com a revolução. Não o fiz como acusação, mas sim como defesa do que me poderia vir a acontecer. 
– E depois? – perguntei, bastante curioso. E ele continuou: 
– Foi porreiro! Deixaram-me em paz, tratavam-me como um lorde e mandaram-me logo embora. As coisas correram de tal maneira bem, que ainda hoje estou convencido de que foi milagre. Todos os anos aqui venho, ao S. Gonçalo, para agradecer essa graça, juntamente com a mulher e este rapazola que já quer ir para a canoagem. “Nasceu antes do tempo”, mas vai ser um grande campeão.

[Revisão e fixação de texto: LG]
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(**) Vd. também poste de 28 de janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9411: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (13): Vícios ou frutos da época

Guiné 61/74 - P17556: Parabéns a você (1284): José Zeferino, ex-Alf Mil Inf do BCAÇ 4616 (Guiné, 1973/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 4 de julho de 2017 > Guiné 61/74 - P17541: Parabéns a você (1283): Jorge Ferreira, ex-Alf Mil Inf da 3.ª CCAÇ (Guiné, 1961/63)

sexta-feira, 7 de julho de 2017

Guiné 61/74 - P17555: Serviço Postal Militar (SPM): o aerograma... multiusos: da simples correspondência postal ao marketing político, comercial, religioso e... artístico... Continuo a guardar quase todos os aerogramas e cartas que enviei aos meus pais... Talvez a pensar nos meus netos... (Belarmino Sardinha, ex-1º cabo radiotelegrafista STM, Mansoa, Bolama, Aldeia Formosa e Bissau, 1972/74)






Um exemplo de como o famoso aerograma, nascido em 1961 no seio do Movimento Nacional Feminino, podia ter (ainda tem...) múltiplos usos, para além da sua função principal que era facilitar a correspondência postal entre os militares mobilizados para o ultramar e as suas famílias e amigos.

Fotos: © Belarmino Sardinha (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de 4 do corrente, de  Belarmino Sardinha  (ex-1.º Cabo Radiotelegrafista STM, Mansoa, Bolama, Aldeia Formosa e Bissau, 1972/74),

Boa tarde Luís e Carlos,

Lembrei-me de escrever isto e enviar-vos. Como estamos a falar de SPM (*), aproveito para vos lembrar de um anterior texto que enviei e foi publicado. Tratava-se de um aerograma que recebi na Guiné, enviado por alguém de uma religião, sem que eu soubesse quem, com palavras de conforto ao mesmo tempo que procurava catequizar-me para a causa (**).

Além dos aerogramas de familiares e amigos havia estes e eventualmente outros.

E como de aerogramas se fala, aproveito para vos apresentar um trabalho cujo catálogo foi inspirado no correio aéreo (aerograma) dos militares em serviço, à data, nas províncias ultramarinas, que me foi entregue num almoço da Tabanca do Centro e que eu guardei por achar interessante. Trata-se de uma escultura levada a efeito por Nuno Sousa Vieira e Rita Gaspar em Novembro de 2004, a convite da Câmara Municipal de Leiria, cujo presidente da Câmara foi também militar na Guiné, trabalho esse que pretende homenagear o papel da mulher no contexto da guerra.

Falo agora dos aerogramas por mim enviados. O conteúdo nunca manifestou qualquer interesse, ao contrário de alguns camaradas que já aqui publicaram, eu nunca falei sobre as condições que tinha ou aquilo que fazia ou o que se passava, limitava-me a perguntar como era o estado de saúde dos meus pais e referindo que a minha saúde ia bem como sempre, lamentava a falta de assunto e lembrava que o mais importante era a passagem do tempo.

Desconheço se a censura era apertada ou não sobre este tipo de correio. Já com o correio pago, carta, posso dizer que uma vez dei por haver algo estranho, umas fotos que enviei nunca chegaram, mas foram caso único e desconheço a razão, suspeito, mas nunca consegui apurar a verdadeira causa. Quanto à circulação do correio, em termos de tempo, aerogramas ou cartas, sempre me pareceram normais, havia alguma demora apenas quando mudava de SPM.

Continuo a guardar quase todos os aerogramas e cartas que enviei aos meus pais. Por mais que uma vez estive tentado a deitá-los fora, mas depois dá-me um remoque e acabam por ficar, talvez a pensar que os netos poderão interessar-se e gostar de saber o que se passou, não com o avô, mas sobre a história do País, aquela que parece quererem apagar ou esquecer. Mas mesmo mantendo tudo interrogo-me, valerá a pena?

Enfim, quem cá ficar que decida o que fazer com estes papéis.

Belarmino Sardinha
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Leiria > O projeto SPM, dos artistas plásticos Nuno Sousa Vieira e Rita Gaspar Veira, com apoio da Liga dos Combatentes .- Núcleo de Leiria e Junta de Freguesia de Leiria
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Prezado Jovem

Que neste momento, quando receber este aero, esteja de boa saúde junto dos seus amigos, são os nossos votos. 

Somos como já deve saber, pelo carimbo que está na parte de fora, “O Correio Áureo”.
O Correio Áureo é um departamento das Assembleias de Deus, formado por dezenas de jovens que pretendem que os militares possam receber através do serviço de correspondência, apoio moral, revistas “Novas de Alegria” e “Caminhos”, literatura, Bíblias, Novos Testamentos etc.
A criação deste departamento foi ideia de um furriel miliciano, membro da Assembleia de Deus de Lisboa, quando prestava a sua comissão na província da Guiné. 

A missão do “Correio Áureo” é além de tudo, a de edificar espiritualmente os militares incrédulos. Isto é, aqueles que ainda não andam neste maravilhoso caminho. 

Talvez o jovem esteja agora a pensar a que caminho eu me estou a referir. (...)

Guiné 61/74 - P17554: Notas de leitura (975): “a Presença Portuguesa na Guiné: História Política e Militar 1878-1926”, Caminhos Romanos, 2016 (3) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Junho de 2017:

Queridos amigos,
O que aqui se regista corresponde a um período de grande instabilidade na administração e nas atividades militares. É de um número impressionante as rebeliões, o rasgar de tratados, a presença da régulos poderosos que vêm até do exterior devassar a província. Momento há em que parece que Bissau vai colapsar, o Geba parece intransitável, a ocupação de Cacine é difícil, em Lisboa os políticos não sabem que destino hão de dar à Guiné, é bem provável que este estado de desorientação esteja associado às sequelas do Ultimato e da gravíssima crise financeira que atravessou a vida do país, neste período.
Vão aparecer ideias para criar companhias do tipo majestático, cairá tudo por água. Ainda irá aparecer um distinto general, Dias de Carvalho, que a pedido de um marquês italiano estudará as potencialidades económicas da província, o general produzirá um documento importantíssimo, nem sempre apreciado pelos investigadores, paciência.

Um abraço do
Mário


A presença portuguesa na Guiné: história política e militar 1878-1926, 
Por Armando Tavares da Silva (3)

Beja Santos

Dentre os mais importantes trabalhos historiográficos referentes à Guiné, é da mais elementar justiça pedir a atenção de todos os interessados para uma investigação de grande fôlego: “a Presença Portuguesa na Guiné: História Política e Militar 1878-1926”, Caminhos Romanos, 2016.

Continuo a insistir que o leitor se previna: são mais de 960 páginas, uma belíssima apresentação gráfica, poder-se-á mesmo adjetivar que é inexcedível, um bom acervo fotográfico e um conjunto de mapas que facilitam a leitura de tão avultado miolo. O investigador escolheu aquele período peculiar que vai das primícias da autonomização da Guiné face a Cabo Verde até à chegada da Ditadura Nacional, correspondente na colónia a uma fase que prometia arranque económico, num quadro de uma certa pacificação, em que a administração colonial se estava a disseminar por pontos importantes no território.

O governo de Gonçalves dos Santos é contemporâneo do ultimato inglês e de uma crise monetária que assola o país. Vai melhorar ligeiramente o efetivo de meios navais e prosseguem incidentes um pouco por toda a parte: Mamede-Paté é um régulo que escraviza gente; morre Mamadi-Paté-Bolola, um sério responsável por parte do despovoamento do Forreá, segue-se um período de inquietação na região Sul; Mussá Moló continua a agir como um salteador; no presídio de Geba, o Tenente Sebastião Casqueiro vive rodeado de régulos hostis. O governador pergunta a Lisboa se não se devia abandonar o presídio, transferi-lo para S. Belchior, na margem direita do Geba, vive-se a inquietação permanente receando os ataques de Mussá Moló.

Chega a Geba um oficial experiente, Zacharias de Souza Lage, comunica ao governador o perigo que se corre com Mali Boiá que tinha adquirido grandes forças de Mussá Moló e de Mamadi-Paté-Coiada, prevê-se um grande ataque, o governador reage: suspende as garantias no território de Geba; determina que as forças militares destacadas em Geba e Sambel Nhantá se juntem às operações, concentram-se forças que embarcam com destino a Geba. Souza Lage começa a atacar tabancas rebeldes, irão prolongar-se; também os balantas de Nhacra e Cumeré se manifestam sublevados. No ano de 1891 Bissau entra novamente em tormenta, o autor descreve-os com largueza. Gonçalves dos Santos escreve para Lisboa e deixa claro de que não há domínio algum fora as muralhas da praça, a justiça é inoperante e deixa o seguinte alerta:

“O gentio branco e mulato estão mancomunados com os gentios e grumetes para nos desrespeitarem e desacatarem a autoridade: e os estrangeiros colaboram neste vil procedimento".

E conclui ser forçoso acabar com este estado em Bissau, reduzindo a ilha à obediência. Bissau vive uma insubordinação prolongada, teme-se mesmo um desastre, sai uma coluna em direção aos revoltosos, é atacada. O governador telegrafa ao ministro informando a perda de quatro oficiais e de que o inimigo é calculado em 6 mil combatentes e está bem armado.

O governador é exonerado, é um período tremendo em que também há insubordinação entre as forças dentro de Bissau, depois de várias conversações com os revoltosos de Intim e Antula chega-se à paz. O novo governador é o Tenente-Coronel Luiz Vasconcelos e Sá, vem à procura de paz em Bissau onde está interrompida a atividade comercial. É nesta altura que os Papéis e Grumetes de Bissau procedem a uma petição em que confessam publicamente a fidelidade e obediência ao governo, requerendo um pedido formal de perdão. Vale a pena ler este texto:

“Senhor! 
Os povos Papéis e Grumetes de Bissau, que em Fevereiro do ano corrente foram considerados rebeldes, com suspensão de garantias, por haverem ousado pegarem armas contra a Mãe-Pátria, compenetrados hoje da sua impotência, conhecendo o poder das mãos de Vossa Majestade, e reconhecendo o erro em que haviam caído, vêm com o devido respeito, implorar a Vossa Majestade o perdão de suas culpas. 
Real senhor! 

Os suplicantes, confinados no amor paternal que a clemência, abraçada com a justiça de Vossa Majestade, sempre prodigalizou aos povos da Guiné Portuguesa, principalmente aos Papéis e Grumetes de Bissau, vêm hoje depor aos pés do mui digno delegado de Vossa Majestade nesta província as duas peças Krupp que ficaram no campo, no último ataque, pedindo ao mesmo Excelentíssimo Senhor se digna recebê-las como garantia da obediência e submissão dos suplicantes às leis de Portugal, a fim de ele conseguir que Vossa Majestade, usando da faculdade que confere a Carta Constitucional, concede aos suplicantes a amnistia de que carecem, para seu sossego, para honra e glória de Portugal, e para o completo restabelecimento da Ordem em Bissau”.

Há insubordinação militar em Geba; Musá Moló continua irrequieto em Farim, atacando os povos daquela circunscrição, o coordenador está indeciso em fazer guerra, a turbulência em Geba parece não ter fim. Souza Lage passa a Comandante-Militar e Administrador de Bissau, é o tempo em que se procede a obras de fortificação, o que não impede a continuação de incidentes à volta, este governador bem não queria mas está por resolver a instabilidade em Geba, as tropelias de Mussá Moló. É nesta altura que a Guiné passa a ser distrito militar autónomo.

Em 1893 põe-se de novo a questão da ocupação de Cacine e Bissau está novamente sobre aliança. O assunto de Bissau é de extrema, esboça-se uma nova operação mas é notória a falta de meios, era preciso pôr cobro ao estado insustentável de Bissau, o que vai dar origem a uma nova operação na ilha de Bissau em 1894. Em Lisboa, os políticos não sabem que destino dar para haver algum desenvolvimento na província. É uma fase em que se idealiza a concessão do território a uma possível companhia majestática. Um ministro faz publicar um decreto concedendo a Matheus Augusto Ribeiro de Sampaio e ao Conde Valle Flor terrenos incultos e desocupados para explorações agrícola, mineiras, comerciais e industriais. Exigia-se a constituição legal de uma companhia, havia uma disposição que permitiria que os territórios da Guiné voltassem a fazer parte integrante de Cabo Verde. A conceção nunca virá a efetivar-se.

Aproveitando transporte marítimo, Vasconcelos e Sá segue para Geba, é bem acolhido pelos régulos, irá escrever para Lisboa informando como veio aquela área sempre em rebelião, sujeita a razias e a guerras étnicas. Estamos em 1895, temos novo governador, é o Capitão-Tenente Eduardo João da Costa Oliveira. O seu primeiro ofício enviado ao governo traça um quadro absolutamente desolador do estado da província, as coisas correm mal no Forreá, em operação ir-se-á ocupar Contabane e é neste período que regressa Pedro Ignacio de Gouveia como governador.

(Continua)
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Nota do editor

Vd. postes anteriores:

3 de julho de 2017 > Guiné 61/74 - P17536: Notas de leitura (974): “a Presença Portuguesa na Guiné: História Política e Militar 1878-1926”, Caminhos Romanos, 2016 (2) (Mário Beja Santos)

30 de junho de 2017 > Guiné 61/74 - P17526: Notas de leitura (973): “a Presença Portuguesa na Guiné: História Política e Militar 1878-1926”, Caminhos Romanos, 2016 (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P17553: "Tite (1961/1962/1963) Paz e Guerra", brochura de 2002, da autoria do nosso camarada Gabriel Moura do Pel Mort 19 (3): Págs. 17 a 24

Capa da brochura "Tite (1961/1962/1963) Paz e Guerra"

Gabriel Moura


1. Continuação da publicação do trabalho em PDF do nosso camarada Gabriel Moura, "Tite (1961/1962/1963) Paz e Guerra", enviado ao Blogue por Francisco Gamelas (ex-Alf Mil Cav, CMDT do Pel Rec Daimler 3089, Teixeira Pinto, 1971/73).
 


(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 4 de julho de 2017 > Guiné 61/74 - P17542: "Tite (1961/1962/1963) Paz e Guerra", brochura de 2002, da autoria do nosso camarada Gabriel Moura do Pel Mort 19 (2): Págs. 09 a 16

quinta-feira, 6 de julho de 2017

Guiné 61/74 - P17552: Inquérito 'on line' (118): "Em geral, o aerograma era seguro e rápido"... Prazo de resposta até 5ª feira, dia 13, às 16h59


Guiné > Zona leste > Bambadinca > CCAÇ 12 (1969/71) > Pista de Bambadinca > Ao fundo, o muro do cemitério ... Uma DO 27 na pista... Tímhamis uma relação de amor-ódio para com a D=-27, ara uma pequena aeronave, monotor, que adorávamos quando nos trazia de Bissau os frescos e a mala do correio ou, no regresso, nos dava boleia até Bissau, para apanharmos o avião da TAP e ir de férias... Era uma aeronave preciosa nas evacuações (dos nossos feridos ou doentes militares, bem como dos civis)... Era um "pássaro" lindo a voar nos céus da Guiné, quando ainda não havia o Strela... Em contrapartida, tínhamos-lhe, nós, os infantes, um "ódio de morte" (sic) quando se transformava em PCV (ponto de comando volante) e o tenente coronel, comandante do batalhão, ou o segundo comandante, ou o major de operações, ou outro "xico-esperto qualquer" ia ao lado do piloto, a "policiar" a nossa progressão no mato... Quando nos "apanhavam" e ficavam à nossa vertical, era ver os infantes (incluindo os nossos "queridos nharros") a falar, grosso, à moda do Norte, com expressões que eram capazes de fazer corar a Maria Turra..."Cabr..., filhos da p..., vão lá gozar pró c..., daqui a um bocado estamos a embrulhar e a levar nos corn...". Também os nossos comandantes operacionais (capitães QP ou milicianos) não gostavam nada do "abelhudo" do PCV, em operações no mato... Mas, enfim, fica aqui a lembrança mais positiva, a do transporte do correio aéreo, no âmbito do Serviço Postal Militar (SPM), Foto do álbum de Arlindo T. Roda, ex-fur mil da CCAÇ 12 (1969/71).

Foto: © Arlindo T. Roda (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

I. INQUÉRITO DE OPINIÃO: 

"EM GERAL, O AEROGRAMA ERA SEGURO E RÁPIDO" (*)

[Seguro=em geral não se extraviava, não se perdia, era devolvido em caso de erro no endereço, não era facilmente violável, não havia censura, a pessoa sentia-se à vontade para escrever o que lhe apetecesse ...]

[Rápido = em geral demorava poucos dias a chegar ao destinatário]


Assinalar, diretamente, no canto superior esquerdo do blogue, uma das cinco hipóteses de resposta, de acordo com a perceção e e experiência de cada um, no TO da Guiné, entre 1961 e 1974:

1. Era seguro e rápido
2. Era seguro mas não rápido
3. Era rápido mas não seguro
4. Não era nem seguro nem rápido
5. Não sei / já não me lembro



Prazo de resposta: 5ª feira, 13/7/2017, 16h59


II. Comentário do editor:



Há quem defenda que o SPM foi o melhor serviço que a tropa criou em tempo de guerra. No entanto, nunca foi avaliado pelos "utentes" (os militares, os seus familiares e amigos, etc.). Mais de meio século depois da sua criação (em 1961), ainda vamos a tempo de dar a nossa opinião... Comecemos pelo aerograma, uma "genial" criação do Movimento Nacional Feminino,   isento de franquia postal (porte e sobretaxa aérea), e cujo transporte (entre Lisboa e Bissau, no caso da Guiné) era assegurado, em geral, pela TAP, de borla... (Presumo que a FAP também colaborasse.)


Pergunta-se: será que o aerograma era mesmo "seguro e rápido" ? Alguns de nós (e as nossas namoradas, esposas, amigos, familiares, etc.), achavam o aerograma mais "impessoal", preferiam a carta, devidamente estampilhada,  expedida "por avião" (, de resto, como o aerograma)... Mas como era paga (porte mais sobretaxa aérea), achávamos que tinha tratamento especial, diferente do aerograma... Seria o equivalente hoje ao "correio azul"... 

Além disso, achávamos que a carta era mais "íntima", prestando-se melhor á confidências (políticas, amorosas, filosóficas, etc.), podíamos inclusive enviar no envelope uma fotografia (ou mais folhas de papel de carta), o que era taxativamente proibido no aerograma... 

Mas a maioria de nós, militares, e sobretudo as praças, não se podiam dar ao luxo de pôr no correio (SPM) muitas cartas, por causa da "guita", daí a opção pelo aerograma, de distribuição gratuita pelo Movimento Nacional Feminino e com expedição sem encargos... (Para o ano de 1974, o MNE fez uma encomenda de 32 milhões de aerogramas, nunca pensando que esse ano seria também o o seu último ano de vida.)

Camarada, responde ao nosso inquérito sobre o "SPM do nosso contentamento"... A tua opinião é muito importante (LG).





Foto: © A. Marques Lopes (2005). Todos os direitos reservados




Foto: © Alberto Nascimento  (2010). Todos os direitos reservados

Podia-se "escrever nas entrelinhas" dos aerogramas... Temos aqui dois exemplo de utilização do aerograma especial do Natal de 1968, concebido pelo Movimento Nacional Feminino... No primeiro caso, o nosso camarada A Marques Lopes, que era, na altura, alf mil da CCAÇ 3, em Barro, na região do Cacheu, mandou à irmã e ao cunhado um aerograma com o seguinte teor:

"Querida irmã e cunhado, um Natal feliz e que o Ano Novo seja sempre melhor que o anterior. António Manuel"... 

E ao canto superior direito, por cima do presépio, acrescentou: "Uma ginginha!.. Pois dar de beber à dar é o melhor"...

O desenho, do lado esquerdo, foi "vandalizado": (i) há tabancas a arder; e (ii) a criança e o soldado "sangram"... Sobre este aeograma natalício, o A. Marques Lopes, um dos nossos primeiros camaradas a entrar para o nosso blogue,  comentou o seguinte em 2005: "Este é mais outro aerograma que descobri. Mandei-o, pelo Natal, em 1968. O que eu quis transmitir é que eram natais de morte e que o que procurava era esquecer, dando de beber à dor".

No segundo caso, temos a cópia do aerograma original que o nosso camarada Alberto Nascimento, veterano da guerra da Guiné (ex-sold condutor auto, CCAÇ 84, Bambadinca, 1961/63) reutilizou para desejar a todos os membros da Tabanca Grande votos de  "um Natal muito feliz e um bom 2011"...

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Notas do editor:

(*) Vd. postes de:

6 de julho de 2017 >  Guiné 61/74 - P17550: O Serviço Postal Militar (SPM) do nosso contentamento: cartas e aerogramas... (E, a propósito, o que é feito dessas 10 toneladas de correio diário que circulavam nos vários teatros de operações durante a guerra ?)

27 de junho de 2017 > Guiné 61/74 - P17518: Antologia (76): "O Correio durante a guerra colonial", por José Aparício (cor inf ref, ex-cmdt da CART 1790, Madina do Boé, 1967/69)... Homenagem ao SPM - Serviço Postal Militar, criado em 1961 e extinto em 1981.

(...) O serviço prestado pelo SPM foi notável. Muito para além dos números impressionantes de milhões de aerogramas, cartas, encomendas, vales do correio e valores declarados, por eles tratados e enviados; durante os anos de guerra a expedição média diária foi de 10 toneladas de correio (!!!) para um total transportado de 21 mil toneladas. É que nunca falhou, mesmo nos locais mais perigosos, difíceis e isolados, e os prazos médios entre a expedição e a recepção eram mínimos. (...) 

(**) Último poste da série > 31 de maio de 2017 Guiné 61/74 - P17418: Inquérito 'on line' (117): Imagens com história: a minha ida a Fátima (4/4/1965) e a minha chegada ao Cais da Rocha Conde de Óbidos (4/4/1974) (Jorge Araújo)

Guiné 61/74 - P17551: "Resumo do que era a Guiné Portuguesa há vinte anos e o que é já hoje", da autoria do 2.º Sargento Ref António dos Anjos, Tipografia Académica, Bragança, 1937 (3): Págs. 24 a 32 (Alberto Nascimento, ex-Soldado Condutor Auto)


1. Terceira parte da publicação do livro "Resumo do que era a Guiné Portuguesa há vinte anos e o que é hoje", da autoria do 2.º Sargento António dos Anjos, 1937, Tipografia Académica, Bragança, enviado ao Blogue pelo nosso camarada Alberto Nascimento (ex-Soldado Condutor Auto da CCAÇ 84 (Bambadinca, 1961/63).


(Continua)
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Nota do editor

Poste anterior da série de 3 de julho de 2017 > Guiné 61/74 - P17538: "Resumo do que era a Guiné Portuguesa há vinte anos e o que é já hoje", da autoria do 2.º Sargento Ref António dos Anjos, Tipografia Académica, Bragança, 1937 (2): Págs. 15 a 23 (Alberto Nascimento, ex-Soldado Condutor Auto)

Guiné 61/74 - P17550: O Serviço Postal Militar (SPM) do nosso contentamento: cartas e aerogramas... (E, a propósito, o que é feito dessas 10 toneladas de correio diário que circulavam nos vários teatros de operações durante a guerra ?)


"Este Aerograma foi-me devolvido tal como está, traçado de balas ou estilhaços na emboscada de 26/10/1971, efectuada à Coluna Piche-Nova Lamego, em que faleceram o Alf Mil Soares, o 1º. Cabo Cruz, o Sold Cond Ferreira e o Sold Manuel Pereira, todos da CART 3332.Guardo-o religiosamente comigo..." (*)

Documento que nos foi enviado pelo nosso grã-tabanqueiro  Carlos [Alberto Rodrigues] Carvalho, ex-fur mil da CCAV 2749/BCAV 2922, Piche e Ponte Caium, 1970/72, irmão da nossa amiga Júlia Neto e, portanto, cunhado do nosso saudoso Zé Neto. Muito provavelmente o aerograma ia no saco do correio... Pelo que se depreende, o destinatário do aerograma era um seu familiar, possivelmente a sua mãe (Rosa Maria Silva Simão Melo Rodrigues de Carvalho), que vivia em Lamego.  Não temos tido notícias deste camarada. Página no facebook: Carlos Alberto Carvalho.


Carta


José Casimiro > Cacine, 22/5/73:

Queridos pais: Vou-lhes contar uma coisa difícil de acreditar como vão ter oportunidade de ler: Guileje foi abandonada [a bold, no original], ainda não sei se foram os soldados que se juntaram todos e abandonaram o quartel, ou se foi ordem dada pelo Comandante-Chefe, mas uma coisa é certa: GUILEJE ESTÁ À MERCÊ ‘DELES’ [, em maíusculas, no original].

Não sei se as minhas coisas todas estão lá, ou se os meus colegas as trouxeram. Tinha lá tudo, mas paciência.

Se foi com ordem de Bissau que se abandonou a nossa posição, posso dar graças a Deus e dizer que foi um milagre, mas se foi uma insubordinação, nem quero pensar…

Mas… já não volto para lá!!! Não tinha dito ainda que Guileje era bombardeada pelos turras há vários dias e diversas vezes por dia. Os soldados e outros não tinham pão, nem água. Comida era ração de combate e não se lavavam. Sempre metidos nos abrigos e nas valas. A situação era impossível de sustentar. Vosso para sempre (…).



Aerograma


José Casimiro > Guileje, 22/4/1973

Meu querido pai: Hoje foi um dia de fartura cá no Guileje, recebi nada mais nada menos do que 10 cartas, uma das quais era uma que eu tinha mandado à avó, e que foi devolvida, pois não existe o nº que me disseram, no Largo das Fonsecas. Adiante...

Pai, recebi as "cacholas", até dá para gozar. Recebi o salpicão - estava uma delícia. Quando eu chegar aí, não deve haver peixes no rio nem nomar. Quanto a a fotos de pretas [, desenho de um corpo  feminino parcial.], eu já tinha arranjado, e mandei os rolos para Cufar, para o irmão da Ana levar aí a casa, mas ele não pôde ir de férias, e vai mandar aqui para Guileje, e eu mando para Bissau, pois aqui já não revelam

Quando puder mandar rolos, mande. A Olinda (Montijo) tem-me escrito. A mãezinha que gaste  do meu dinheiro para remédios, é um desejo meu que gostava que fosse cumprido, ok ? Retribua os cumprimentos à D. Elisa e família. Mando-os também para todos os vizinhos com que eu me dava bem. Para todos em casa um grande beijo (A BIG KISS) [, desenho de uns lábios]. Sempre vosso,  J. Casimiro.



Carta


José Casimiro > Gadamael, 26/6/73


NOW WE HAVE PEACE [, em inglês, finalmente temos paz]

Minha querida mãezinha:


É com imensa ternura que, mais uma vez, lhe dedico uns minutos do meu pensamento. Neste momento batem 8 horas numa emissora de London [sic] que ouvimos no rádio.

Então, como têm passado todos aí em casa, enquanto o vosso soldadinho finalmente tem sossego, pois os turras não nos têm chateado, nestes últimos dias ?!

Ontem chegou uma companhia nova aqui, veio substituir a companhia daqui, e há-de vir uma outra, daqui a uns dias, para nos substituir. Vai haver bebedeira, pela certa, e vamos para o Cumeré, para completar a Companhia, substituir mortos e feridos graves. O capitão também foi ferido gravemente, e foi evacuado para a Metrópole. O outro capitão, o daqui, também foi ferido.

Há já alguns dias que vivemos em paz de espírito, e agora, desde há alguns dias fui nomeado instrutor de um novo grupo de milícias (pretos, 40). Ensino-lhes desde armamento a táctica de combate a ginástica. É um passatempo e não saio para o mato, pela primeira vez em oito meses, feitos ontem, dia 25.

Já passou a nuvem negra que tapava o nosso amor, entre mim e a Ana, até ando mais feliz, pois embora não quisesse, ela não me saía do pensamento, pois gosto muito dela.

Parece que há um aumento de 500$00 a partir de Março e que recebemos tudo junto em Agosto. Mande dizer quanto marca o saldo B[anco] B[orges]. & Irmão.

 Um beijo para ser dividido igualmente entre todos, do militar J. Casimiro.


[Na vertical, na margem esquerda: Pax, Now we make love not war [Paz, agoramos fazemos amor e não guerra; na margem direita, PAZ]


1. O ex-fur mil op esp José Casimiro Carvalho [. foto à direita, c. 1973[, com residência na Maia, confiou-me, no I Encontro Nacional da Tabanca Grande (Ameira, Montemor-o-Novo, 14 de outubro de 2006), uma pequena colecção de aerogramas e cartas que escreveu à família durante o período em que esteve em Guileje e depois Cacine e Gadamael, coincidindo com o abandono de Guileje pelas NT. A unidade a que ele pertencia - a CCAV 8350, Os Piratas de Guileje - esteve lá entre dezembro de 1972 e maio de 1973.

Depois do regresso à metrópole, em 1974, ele entrou para Brigada de Trânsito da Guarda Nacional Republicana (BT/GNR),  primeiro como soldado e depois como agente patrulheiro. Está aposentado. De qualquer modo, quem o conhece (e conheceu na Guiné), nunca dirá dele que era um daqueles milicianos "politizados", com posições críticas face à guerra colonial e ao regime político de então. Como, de resto, a grande maioria dos milicianos e demais militares, incluindo os do quadro permanente, que durante 13 anos fizeram a guerra do ultramar (ou guerra colonial), na esperança, em todo o caso,  que o poder político acabasse por encontrar uma solução (política) para aquela maldita guerra que prometia eternizar-se...

Apresentamos acima um exemplo de um carta, devidamente selada (correio aéreo), e de um aerograma, amarelo, sem franquia,  enviados pelo nosso camarada José Casimiro Carvalho (ex-fur mil op esp, CCAV 8350) à família. A carta tem data de 22/5/1973, e foi remetida de Cacine, onde ele estava retido. Nesse mesmo dia, Guileje fora abandonado pelas NT.  O aerograma tem data de 22/4/1973, e é expedida de Guileje. Uma segunda carta é já de Gadamael, e tem data de 26/6/1973. (**)

No aerograma, dirigido ao seu "querido pai",  o nosso camarada tem uma conversa trivial, diz que está feliz por ter recebido nada menos do que 10 cartas, além das encomendas postais... Há uma evidente cumplicidade entre dois homens, pai e filho, mas não há inconfidências relativamente à situação militar...

Já nas cartas, há matéria que poderia ser considerada muito "sensível" e "classificada", como por exemplo o abandono de Guileje por parte das NT...e, um mês depois de terríveis combates  em Gadamael, o J. Casimiro Carvalho informa a sua "querida mãezinha" de que finalmente há paz, e que está a haver rendição de tropas, que a sua companhia, a CCAV  8350,  vai para o Cumeré, e que vai haver bebedeira, pela certa, e que ao mesmo tempo houve mortos e feridos graves, incluindo dois capitões, um dos quais evacuado para a metrópole!...

Ora, se eu alguma vez escrevesse uma carta destas para casa, era um terramoto, deixava os meus pais e irmãs a sangrar de dor!...De qualquer modo, muitos de nós nunca escreveriam cartas deste teor, não só para poupar a família mas também por autocensura.

Em suma, o J. Casimiro Carvalho, que não esconde nada aos pais,  parece usar o aerograma para a "conversa da treta" e as cartas para as inconfidências, as informações sobre a situação militar, etc.  Era algo de intuitivo para os militares,  o aerograma, na sua perceção, prestava-se mais à devassa, à violação... Ou seria o contrário ?


2. As questões que se podem pôr hoje, em relação à satisfação e confiança no Serviço Postal Militar (SPMS)  (***), são as seguintes: 


(i) o nosso correio era seguro ?



(ii) o aerograma, sem franquia,  era mais seguro 

do que a carta selada ?



(iii) a malta fazia autocensura ou, pelo contrário, escrevia, 

nos aerogramas e cartas,  tudo o que lhe apetecia ?



(iv) o correio era rápido ? quanto dias demorava a chegar ? (dependendo de a distribuição ser feita por avioneta
 ou por coluna auto)



(v) as cartas, os aerogramas, os valores declarados e  as encomendas postais não se extraviavam ?



(vi) houve camaradas que escreveram mas não chegaram a pôr no corrreio aerogramas e/ou  cartas com medo de serem abertos e lidas pelas autoridades militares e/ou  pela PIDE / DGS ?



(vii) era frequente (ou, pelo contrário, era raro) dar-se informações detalhadas sobre a situação político-militar tanto na Guiné como na Metrópole ?

A resposta a estas questões dá pano para mangas,,,e para alimentar o nosso blogue neste verão...


3. Relendo as  cartas que o meu cunhado José Ferreira Carneiro escreveu  à irmã, Alice Carneiro (****), constato que o aerograma, em Angola, não seria tanto fiável quanto a carta; podia levar um mês a chegar, enquanto a carta (, por via área,) demorava três dias a chegar a casa dos pais...

O correio era muito importante, nos dois sentidos. O aerograma tranquilizava as nossas famílias. Mas também é verdade que podia veicular boatos de toda a espécie, a par de informações que, para as chefias militares, deviam ser classificadas ou reservadas...

Recordo-me de, em finais de maio de 1969, quando cheguei à Guiné, o terror do "periquitos" eram então as histórias que se contavam de Gadembel e de Madina do Boê. Tanto a retirada de uma e outra ainda estavam na memória de muita gente. O nosso grã-tabanqueiro, Henrique Cerqueira, por sua vez, tinha mais confiança no aerograma do que na carta. Mas as nossas namoradas e esposas não gostavam nada de receber o aerograma em vez da carta, que o diga o nosso Manuel Joaquim! (*****).


José Carneiro, 1º cabo trms, de rendição individual,
Camabatela,  norte de Angola, 1969/71
José Carneiro > Camabatela 16/06/70

Querida mana Chita: 

 Estou a escrever uma carta porque os aeros [aerogramas] chegam a demorar cerca de um mês até chegarem ao seu destino, isto quando não são devolvidos. Estou mesmo muito aborrecido com isto. Pensei agora só escrever cartas, mas de 15 em 15 dias. Assim as cartas só demoram 3 dias a chegar a vossa mão. Tens que escrever é para a caixa postal. Que achas? Assim não repetimos as notícias. Quando receberes carta minha, peço-te que telefones aos pais para ficarem descansados. Está bem assim? (*)



Henrique Cerqueira > Comentário de 6/12/2012 (**)

[ foto à esquerda: Henrique Cerqueira,  ex-fur mil, 3.ª CCAÇ/BCAÇ4610/72, e CCAÇ 13, Biambe
e Bissorã, 1972/74; vive no Porto]:



(...) Para mim o aerograma tinha uma grande vantagem em relação à carta envelope normal. É que no aerograma havia maior possibilidade de enviar informações que o Estado (PIDE/DGS) considerava de teor político e assim os censurava. 

Tinha que haver o cuidado de colar bem as margens. Assim os censores tinham uma maior dificuldade em violar o aerograma e, como eram aos milhares, havia que contar com a "burrice preguiçosa" dos tais indivíduos. Este foi um conselho dado por um agente da DGS que na altura estava em Bissorã.(Era um novato e ainda com as ideias pouco contaminadas). 

Aliás quando o tive de acompanhar a Bissau no pós-Abril e sob detenção, tive mais uma vez a possibilidade de verificar que o indivíduo politicamente era mesmo um pouco "inocente". Ou seja era mais um "recrutado" pelo objectivo monetário e não político. 

Eu próprio senti na pele essa pressão de recrutamento um pouco antes do 25 de Abril. Felizmente resisti conforme pude, pois que até ameaças de repatriamento da família para a metrópole eu recebi. Como já disse, eu tinha a mulher e filho comigo em Bissorã nos últimos nove meses da comissão.

Um abraço a todos e viva o "aerograma" que até era de borla. (****)

4. Haverá, por certo, outros camaradas com opinião qualificada sobre a organização e o funcionamento do Serviço Postal Militar (SPM) , a sua alegada independência face à PIDE / DGS, e à própria hierarquia militar, as demoras do correio, os eventuais extravios, e sobretudo o risco de violação da correspondência. 

Em suma, o SPM era mesmo o do nosso contentamento? Era o melhor serviço que a tropa nos prestava? Nunca nos fizeram um inquérito... de satisfação... Mas, meio século depois, ainda vamos a tempo de fazê-lo, mesmo que o SPM tenha sido extinto em 1981 e a guerra acabado em 1975, com o regresso dos últimos soldados do império...

Mas haverá por certo muitas cartas e aerogramas ainda por salvar... Vamos fazer um apelo aos filhos e netos dos nossos camaradas, esposas, madrinhas de guerra, antigas namoradas, amigos, amigas,  etc., para que salvam o "património epistelográfico" dos nossos "rapazes"...

O que é feito dessas 21 mil toneladas de correio que circularam durante a guerra colonial? As "cacholas", os salpicões, os queijos, o bacalhau, etc., isso comeu-se e fez-nos muito bom proveito... A "guita" gastou-se em "putas e vinho verde", como diria esse rapaz holandês de nome impronunciável por um "tuga" e que nunca foi à guerra, um tal Jeroen Dijsselbloem... Mas as cartas e aerogramas que escrevemos e recebemos, camaradas?!... O que é feito delas?... A maior parte foi parar ao caixote do lixo, mas outros apodrecem nos nossos baús...

Parabéns aos camaradas e às amigas que já aqui partilharam parte do seu espólio postal: o Mário Beja Santos, a Cristina Allen, o Manuel Joaquim, o Renato Monteiro, o José Ferreira Carneiro, a Alice Carneiro, o J. Casimiro Carvalho, o António Graça de Abreu, o José Teixeira, o Armor  Pires Mota, o Silvério Dias, o Albano  Mendes de Matos e outros (cito de cor!)...
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 24 de novembro de  2010 >Guiné 63/74 - P7327: Facebook...ando (1): O aerograma traçado de balas ou estilhaços na emboscada de 26/10/1971, na estrada Piche-Nova Lamego, e em que morreram 4 camaradas da CART 3332 (Carlos Carvalho)

(**) Vd. postes de:

5 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1699: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (1): Abatido o primeiro Fiat G 9

13 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1727: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (2): Abril de 1973: Sinais de isolamento

14 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1759: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (3): Miniférias em Cacine e tanques russos na fronteira

24 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1784: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (4): Queridos pais, é difícil de acreditar, mas Guileje foi abandonada !!!

18 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1856: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (5): Gadamael, Junho de 1973: 'Now we have peace'

Vd. também poste de

1 de maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9837: Cartas de Gadamael: maio e junho de 1973 (J. Casimiro Carvalho, Fur Mil Op Esp, CCAV 8350, Guileje, 1972/73)

(***) Vd. poste de 27 de junho de 2017 > Guiné 61/74 - P17518: Antologia (76): "O Correio durante a guerra colonial", por José Aparício (cor inf ref, ex-cmdt da CART 1790, Madina do Boé, 1967/69)... Homenagem ao SPM - Serviço Postal Militar, criado em 1961 e extinto em 1981.

(...) O serviço prestado pelo SPM foi notável. Muito para além dos números impressionantes de milhões de aerogramas, cartas, encomendas, vales do correio e valores declarados, por eles tratados e enviados; durante os anos de guerra a expedição média diária foi de 10 toneladas de correio (!!!) para um total transportado de 21 mil toneladas. É que nunca falhou, mesmo nos locais mais perigosos, difíceis e isolados, e os prazos médios entre a expedição e a recepção eram mínimos. (...)


(*****)  Vd. poste de 19 de junho de  2013 > Guiné 63/74 - P11732: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (16): Aerogramas e insuficiência das mensagens

(...) O aerograma foi um óptimo meio de comunicação mas sempre o olhei como um substituto menor da tradicional carta usada nas relações afectivas, principalmente no discurso amoroso (ou fizeram-me crer nessa menoridade). Tendo, muitas vezes por preguiça, desleixo, cansaço ou mesmo falta de tempo, recorrido ao aerograma para manter uma periodicidade regular na minha correspondência de guerra, nunca ninguém se me “queixou” do seu uso, exceto a namorada. Receber aerogramas em vez de cartas, era coisa de que ela não gostava nada. Mas lá foi disfarçando … até já não poder mais. (...)