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domingo, 22 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24781: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (11): E na hora da nossa morte, ámen!


Contos com mural ao fundo (11) >   E na hora da nossa morte, ámen!

por Luís Graça (*)


"O meu país é o que o mar não quer"
 (Ruy Belo, 1973)



Porra, meu irmão, meu herói, estou no teu velório!... Ainda não estou em mim!... Afinal, nunca me preparei, em vida, para este momento, para este papel!... Mesmo que já tenha feito o luto do pai, da mãe, do Jorge...  Estou de coração destroçado!... Mas sou incapaz de chorar...  Vim logo que soube da notícia. Foi a mana que me telefonou ontem.

Desta vez, a “gaidja”, como tu lhe chamavas, a puta da gadanha da morte, trocou-te as voltas... Tanto a fintaste, na equitação, na guerra, na boémia, nos amores, na estrada, no jogo, na vida... e foi ela agora que te pregou a rasteira e te cortou, rente, o fio o que te ligava à vida!... Na modorra da paz, da decadência, da depressão dos "quatro vintes", como dizem os franceses!... Aos "quatre-vingts", aos oitenta, meu irmão, veio o xeque-mate, a última emboscada, a estocada final!...

Bem podia ser eu a estar aí esticado que nem um carapau seco, de botas altas, já gastas, cambadas, engraxadas para a ocasião!... A cerimónia fúnebre, a tua última parada, a tua última formatura!... As mãos em oração, elevadas ao céu qual estátua jacente de um agora apeado condestável!... O caixão aberto, o rosto coberto de lenço de linho, bordado, da nossa mãezinha!

Os gatos pingados, os safados,  sabem do seu ofício. Vestiram-te a farda nº 1, já muito puída do uso e dos anos, com os amarelos dos galões de coronel desbotados... A cruz de guerra ao peito e as tuas demais medalhas e condecorações de uma vida dedicada à tropa. E até a espada, não se esqueceram da tua espada de defensor do Império e da Nação. Espada ou sabre ? Estavas sempre a dar-me nas orelhas, porque eu confundia a espada e o sabre...

Tu, que noutra encarnação só poderias ter sido um cavaleiro andante, um temível condestável, um bravo e fero guerreiro do Império!... Desculpa a ironia, estou a ser cruel, mesmo que saibamos, tu e eu, que nem sempre líamos as coisas pela mesma cartilha... O catecismo foi o mesmo, o batismo, a primeira comunhão, o crisma...

Porra, meu irmão, meu amigo, meu companheiro, meu camarada... Chegou a tua vez, como chegará a minha.  A avaliar pelas estatísticas da morte dos homens em Portugal já estavas na linha da frente com os pés para a cova... Mas eu não me conformo com isso, nem dou qualquer valor às médias estatísticas com que nos infernalizam a vida...  Ou talvez não, matematicamente falando, se calhar já tinha chegado a tua hora, o teu dia, o teu mês, o teu ano. Há a predestinação, há o deve-e-haver do Criador e dos seus "informáticos"... (Desculpa a blasf+emia, mas eu acho que até Deus já tem cimputador.) 

Não importa, para quem te amava, a morte bateu cedo demais à tua porta!... É sempre injusta e cruel a morte de quem amamos.

E, no entanto, era uma morte anunciada, diz a tua viúva alegre, encolhendo os ombros, conformada, e fingindo limpar uma lágrima furtiva, tão afetiva e socialmente hipócrita como as falinhas delicodoces de amor com que te engatou no Rio de Janeiro... Mas quem sou eu, afinal, para julgá-la?!.. A ela e a ti, que aos 65 ainda te julgavas um garanhão!

O teu médico oncologista, esse, não te escondeu (nem podia esconder) a verdade... "A verdade nua e crua, doutor!", foste tu a implorar-lhe, qual quê!, a dar-lhe uma ordem taxativa!...  Como se o médico fosse o teu pobre alferes miliciano, que chorava baba e ranho quando sofreu a primeira baixa mortal, lá na serra do Mapé, no planalto dos Macondes!... Ainda guardei esse aerograma, um dos poucos que me escrevias de Moçambique... Sempre foste muito preguiçoso para escrever para mim e para os pais.

Porque um homem, doutor, tem o direito de despedir-se da vida e de morrer em paz com a vida, com os outros e com Deus, suplicou (ou sentenciou ?) o capelão militar quando já estavas nos cuidados paliativos, no terminal da morte, no hospital militar (segundo me contou a nossa mana, que vive aí no Grande Porto, e que te acompanhou nas últimas horas)... 

Que atroz ironia, que insulto, como se a gente soubesse como isso se faz!... Isso, de um gajo despedir-se da vida, e ter direito a uma boa morte. Como se nos tivessem ensinado, na família, na escola, na catequese, na igreja, no seminário, na Academia Militar, na tropa, na guerra…, a arte de bem morrer!... Ensinaram-te, isso sim, a andar a cavalo em toda a sela... E a jogar bridge. E a dansar o tango. E a fumar um bom charuto. E a pegar num copo de cognac. Ou a conduzir um descapotável. 

Também lá andei, na guerra, mas nunca pensei na minha própria morte, mesmo vendo a morte, ali tão pertinho, a meu lado. Aos vinte e poucos anos, em qualquer guerra, não há combatente que não tenha desenvolvido um forte sentimento de imortalidade... Terrível ilusão!...É por isso que há heróis!... E soldados desconhecidos, mortos aos milhares, nas trincheiras e nos desembarques anfíbios das Grandes Guerras...

Imagina, mano, pediram-me para te fazer o teu elogio fúnebre, amanhã, na igreja, na missa de corpo presente!|... Mas eu não sei se serei capaz de dizer duas coisas a teu respeito, que valha a pena dizer, em público, e que não sejam meras palavras de pompa e circunstância, como vocês, militares, gostam.

Invade-me a angústia, o pânico, o pudor... Não quero dececionar-te, muitos menos aos teus filhos e netos, aos teus amigos, aos teus camaradas, que eu não conheço ou conheço mal... Sobretudo não me peças para repetir essa grandessíssima mentira, com que te formataram, a de que “é doce morrer pela Pátria!”… A tua Pátria, a minha Pátria, a nossa Pátria ? A Pátria deles ? Qual delas, afinal ?... Bolas, a morte é sempre amarga, seja na cama, seja no campo de batalha...  

Eu sempre ficava confuso quando tu chegavas a casa, oficial e cavalheiro, impecável no teu uniforme e as insígnias da arma de cavalaria, de bota alta e pingalim... Destroçavas corações nos bailes das debutantes... Casaste, ao menos, com uma gaja rica, que te sustentou os teus vícios, e te deu três filhos, que sempre achaste "maravilhosos,  feitos entre três comissões"... 

E depois, meu mano, ao fim e ao cabo, o que é que eu sei de ti, depois destes anos todos de separação, física e emocional ? (O teu casamento separou-nos.)... 

Não sei se fostes um bom amante, um bom homem, um bom pai, um bom cidadão ou até mesmo um bom militar. Sei que fostes um bom irmão, um bom amigo, um bom português. E que até nem eras mau cavaleiro, ainda ganhaste uns concursos de equitação quando eras novo e eras bonitão e sobretudo não havia guerra, ou havia paz podre, com algumas  nuvens negras que ninguém tomava como sinais premonitórias da borrasca que se abateria sobre a nossa pobre Pátria, velha e cansada de carregar um império que não se pagava (nem se defendia) a si próprio... 

E talvez isso me baste, ou deveria bastar-me: foste um homem bom, um bom irmão. É o mínimo que eu poderia dizer de ti. É o mínimo que se pode dizer de qualquer gajo minimamente decente. 

Porra, poderia estar eu no teu lugar. E no meu íntimo só posso regozijar-me por estar vivo... Ou ainda vivo, aos setenta (que vou fazer dentro de semanas)!... Podia lá ter ficado, na Guiné, morto por uma roquetada ou uma mina. Pergunto-me: quantos anos ainda me restam ?... "Temei a velhice, porque ela nunca vem só!", dizia-nos o nosso avô de Ponte de Lima.

Quando olho para ti, ou para o que ainda sobra de ti, aí deitado na urna aberta, no teu esquife, arrepio-me… O raio da morte não tem pudor… E exala um cheiro tão forte, a cabra, que afugenta os vivos... Daí as flores, as coroas de flores, e as ervas aromáticas, os sprays de perfume  com que a gente a tenta esconjurar, afugentar, enganar, porventura engalanar, e sobretudo negá-la e esquecê-la...

Os guineenses, animistas, no meu tempo, faziam o "tchoro", comiam, bebiam, dançavam, choravam e homenageavam o morto, com bandos de jagudis à volta da morança para partilharem também as migalhas da festa... 

A nossa Igreja, na morte, apodera-se de nós, do nosso cadáver, e incita-nos, aos vivos, ao arrependimento, ao nojo, ao jejum e à abstinência, à secura de sentimentos e emoções... Que este é um vale de lágrimas, que a vida é uma passagem, que estamos em trânsito, mas que no fim teremos, os justos, a eterna recompensa da glória de Deus, o privilégio, a graça, de nos podermos sentar à Sua direita... Repara: nunca à Sua esquerda...

É verdade, és o “mano velho”, o “morgado”, e eu sou o “caçula” da família, como tu me chamavas, quando vieste de Angola, lembras-te ?…"Coberto de pó e glória!",  exclamava eu, quando recebia uma fotografia tua,   já adolescente e e a estudar para padreco.  Pouco mais de uma década  nos separa, mas podíamos ter sido irmãos gémeos, sempre o disseste ou, se calhar, o desejaste… E eu sempre te admirei, nessa altura. Incondicionalmente.

Porra, não morreste de pé, e ainda bem,  de espada em riste, a defender o "quadrado", como os nossos gloriosos antepassados, nas ditas guerras de pacificação do Império, agarrados à bandeira das quinas, branca e azul, no caso do tio-bisavô António, em Chaimite, em Moçambique, e já a verde-rubra, no caso do tio-avô José, no Cunene, em Angola…

Claro que tinhas de seguir a carreira das armas, estava inscrito no teu ADN, numa família de nobres tradições como a nossa, mas arruinada, que deu alguns bravos soldados à Pátria… Desde 1640, oriundos do terceiro estado, o povo, que o novo rei, o Senhor Dom João IV, o primeir0 da dinastia de Bragança, irá nobilitar... Tinha um lugar especial na nossa sala de jantar, com o retrato sobre o topo da nossa mesa comprida que só se usava em dias de festa... A casa cheia, a alegria dos nossos pais, a reunião anual da família extensa, do clã...Lembras-te ?  

Dizem que foi feita, a mesa, pelo nosso avô paterno,  com grossas tábuas de um centenário carvalho que travou um duelo de morte com um ciclone... As raízes, são sempre as raízes que nos tramam, as raízes telúricas, quando nos faltam, quando nos falham... Vê a nossa casa solarenga, hoje em ruínas: salvou-a a mana, que fez dela um alojamento local... De guerreiros acabámos em hoteleiros!... Triste sorte, se queres que te diga...

Habituámo-nos a viver "do soldo e do saque", como ironizava (quando falava da história da família) o nosso avô materno, Francisco, professor primário, jacobino, antimilitarista, republicano dos quatro costados, quezilento, desmancha-prazeres,   que casou, contrariado, a filha numa família monárquica (e muito pouco ou nada liberal, tenho hoje que acrescentar)… 

Mas o amor falou bem mais alto, o que era raríssimo naquele tempo, em que os casamentos ainda eram de conveniência, negociados pelas famílias e regados com vinho fino... A nossa mãe foi uma santa, uma heroína, uma mulher do seu tempo, mas de grande têmpera: quis casar por amor, contra as convenções sociais e as paixões políticas que dilaceravam as duas famílias... 

Enfim, não dávamos apenas soldados, a verdade seja dita: demos também padres, missionários, administradores, magistrados, embaixadores, mestres-escola e, seguramente, freiras e frades, pelo menos até 1834… E, pelo meio, muitos filhos da mãe, como em todas as famílias...

Porra, mano, não sei se foste um bom cristão. Assalta-me agora essa dúvida.  Não pesei o teu saco de pecados, nem sei se os pecados têm peso… Acho que sim, há alguns hediondos, que devem pesar toneladas. 

Mataste ? Nunca falámos disso, mas talvez tenhas matado na guerra, onde andámos os dois, cada um para seu lado, e com motivações bem diferentes… Se mataste macondes, eu também devo ter morto balantas. De resto, não se ganha uma cruz de guerra sem matar um ou mais inimigos, uma boa dúzia deles, no mínimo… Mas na guerra matar não é crime... E, se for na guerra santa,  é um dever sagrado, se forem infiéis ou "turras", conforme o Deus a quem rezas.

Torturaste ? Violaste ? Roubaste o tesouro nacional ? Desonraste o exército e a tua arma, a cavalaria ? Desejaste a mulher do teu comandante, do teu camarada ou do teu subordinado  ? Cometeste adultério ? Evocaste o santo nome de Deus em vão ? Adoraste o bezerro de ouro ?... 

Não sou juiz, muito menos o do Juizo Final… Mas não vou pôr as mãos no fogo por ti, no que diz respeito aos pecados mortais... E já nem sequer me lembro de quantos eram, os que nos ensinaram na catequese. Eu, dantes, sabia isso tudo na ponta da língua, a começar pelos dez mandamentos da lei de Deus... E, lembras-te, quando nos íamos confessar, ao abade,  fazíamos figas com a mão atrás das costas. Fostes tu que ensinaste...

Porra, mano querido, olho para o teu cadáver, ponho a mão na tua testa, gelada como o granito da nossa casa, e causas-me horror e dó: o que fazem a um gajo depois de morto!... Com milhões de micróbios em marcha para, na linha de desmontagem,  te limpar a carcaça, por dentro e por fora...

Mas, que importa?!, se amanhã, ao meio-dia, vais parar ao crematório. Aqui perto, em  Paranhos. E tudo acaba lá, a mais de 900 graus centígrados. Limpo, asséptico, indolor. Ou talvez não, para nós que fomos ou ainda somos cristãos (se queres saber, eu ainda o sou)... Os gatos pingados, esses, entregam um pequeno pote com as tuas cinzas à viúva, tiram as luvas das mãos, tomam um banho, voltam a vestir o fato e a gravata, e metem-se no carro a caminho do aconchego do lar, doce lar…

E a tua gaja, a viúva alegre, essa, ainda vai gozar metade da tua pensão de reforma de herói nacional, com um marmanjo qualquer que ela há-de conhecer no Facebook ou no ginásio onde faz Pilates e olhinhos sofridos de Barbie, a pestanejar de rimel, aos putos de vinte anos, cheios de testosterona… (Não tive sorte com as tuas mulheres.)

Mas o que estás para aí a rosnar entre dentes ? Oiço já mal, mas mesmo assim sou capaz de reconstituir o teu pensamento, a tua voz, cavernosa, de ventríloquo, que vem, senão das profundezas do Inferno, pelo menos do outro lado do rio que acabas de atravessar, na barca de Caronte…

“Meu sacana!, desta vez passaste-me a perna!... Não pediste a bênção ao mano velho, como te ensinaram os nossos pais. Foste um cobardolas de merda, podias ter sido solidário comigo... Podíamos ter feito a nossa viagem juntos, sempre era menos penosa. Iríamos empoleirados, divertidos, na minha Chaimite, a cantar as canções da nossa alegre infância que eu te ensinei, na Mocidade Portuguesa... Tu, um lusito de palmo e meio!.  Sempre tínhamos as férias grandes para estarmos juntos, na nossa quinta, apesar da diferença de idades!... Essa seria a tua derradeira (e verdadeira) prova de fraternidade, de amor e de amizade!... Mas não tenho esse direito, o de te pedir o supremo sacrifício da vida, nem que fôssemos irmãos gémeos verdadeiros!... Espero que ainda tenhas, ao menos, uma longa vida para te poderes ir lembrando, de quando em vez, com saudade, deste teu pobre amigo, mano e mentor”…

E como vais querer ser lembrado ? Como um herói?!

“Sim, justamente como um herói. Lembras-te como tu me dizias ?!... Sempre tiveste a mania de recorrer à mitologia grega, com referências eruditas, chatas p'ra burro, para um gajo como eu que era de cavalaria, e que nunca gostei de estudar: ‘Meu herói, mais do que um homem, menos do que um deus’... Sempre me chamaste 'meu herói’... E eu até gostava, confesso, mas sem nunca te levar a sério. Quero, por isso, que te lembres de mim como um herói. Sempre gostei da tua definição de herói, mais do que homem, menos do que deus...”

Seja, então, feita a tua última vontade, grande cavaleiro!

“Podia ter morrido pela Pátria!?... Com Honra e Glória!... Mas, não, acabei por ser um burocrata da tropa, no fim da carreira, num daqueles serviços do Exército que ninguém quer chefiar"...

Deixa-te de tretas, tivemos muitas discussões em vida, sobre isso. E sobre o teu militarismo. Sempre foste um bocado militarista. Que tu tenhas recebido a cruz de guerra, tudo bem. E foi bem merecida. Felizmente que não foi a título póstumo... Estou a ser egoísta, desculpa lá, queria eu dizer: não fiquei, assim, privado de conviver contigo, mais estes quarenta e tal anos...

“É doce morrer pela Pátria”: ensinaram-me na Academia Militar, uma escola de valores e virtudes que tu nunca tiveste o privilégio de conhecer… E, se bem me lembro, onde nunca me foste ver, a não ser no juramento de bandeira, com os pais e a mana. Sem esquecer o Colégio Militar, de que guardo as melhores recordações e onde fiz amigos para a vida. Chamas a isto militarismo ?”

Não, aí já não te acompanho, nem nunca te acompanhei, a partir dos meus 18 anos, quando rompi com o passado. Bem sabes que nunca tive jeito para a tropa, como tu e os nossos antepassados  que seguiram a carreira das armas. E fiquei com fobia aos internatos. Fiz o que tinha a fazer, como português e cidadão, que foi o serviço militar obrigatório. Honrei a palavra dada ao nosso pai... Não fugi. E fui "infante", tropa-macaca, como a gente dizia na Guiné... 

Já tu tinhas dado uma volta pelo Índico, em 1958, quando eu entrei para o Seminário… E mal sabias tu que a Pátria te voltaria a chamar, desta vez, para Angola, três anos depois... Sempre receei ter que ir a Lisboa, com os pais, ao 10 de junho, para receber uma qualquer cruz de guerra tua, a título póstumo... Tinha esses pesadelos, que me aterrorizvam à noite, confesso...

“A nossa querida e saudosa mãe queria que eu fosse para padre, contrariando o avô, o pai dela, que era anticlerical, como sabes... E o nosso pai, esse, queria que eu seguisse a tradição da família… Acabei por ir para o Colégio Militar e entrar na Academia, graças aos pergaminhos da nossa casa e à nobreza da nossa linhagem… Mas sei que o nosso pai, que Deus lá tem, teve de fazer das tripas coração. Vivíamos acima das nossas possibilidades, com as míseras rendas dos caseiros e os roubos do feitor... Mais uma vez, valeu-nos a cunha do nosso primo general, que foi sempre um grande e leal amigo da família...”

O seminário sempre era mais barato. Ir para Lisboa era um pesado encargo para a família. E a nossa mãe, com a sua intuição, o seu sexto sentido, parece que estava a adivinhar que os tempos que aí vinham, não eram propriamente cor de rosa... 

Sobrou para mim, que acabei por ir para Montariol, em Braga... Já que tinha um filho oficial do Exército, um garboso oficial e cavalheiro, faltava-lhe, à nossa mãe, um missionário, barbudo, de sotaina branca, para dilatar a fé e o império. Mas eu cedo percebi que os votos de pobreza, obediência e castidade eram um fardo demasiado pesado para um jovem que não tinha cometido nenhum crime lesa-família ou lesa-pátria, só queria afinal viver, e viver a vida do seu tempo… E que tempos, esses, os dos anos 60, meu irmão!

Fui aguentando, à custa de muitos sacrifícios pessoais, de muito ranger de dentes, com  muito cinismo à mistura, só para não dar um desgosto à nossa mãezinha... Quando ela morreu, precocemente, ainda tão jovem, tão cedo e tão linda, eu já estava em teologia, no Seminário da Luz, em terra de mouros... Há muito que tinha perdido a vocação ou percebido que não tinha jeito nem feitio para missionário franciscano desterrado para Angola, Guiné ou Moçambique...

Voltei ao Norte. Mal tive tempo de respirar o ar livre da noite do Porto (que na altura era uma chungaria), chamaram-me para a tropa e, de seguida, meteram-me num barco, misto de carga e passageiros, direitinho à Guiné. 

“Já eu tinha passado por Moçambique, foi lá que me cobri de honra e glória, e ganhei esta cruz de guerra que ostento, com orgulho, ao peito... E já tinha trinta e muitos”…

Em boa verdade, eu tive infância (e tão feliz!), mas não tive nem adolescência nem juventude... Tal como tu, que passaste os teus melhores anos entre a caserna e o ultramar… Envelheci, pelo menos uma década, no seminário, na tropa, na guerra...

Quando voltei da Guiné, fui à procura do tempo perdido... Andei na noite, na má vida, com más companhias, desperdiçando o resto dos meus verdes anos, dando cabo do fígado e arriscando a saúde, com uísque marado e as gajas da noite... Felizmente, ainda não havia, nesse tempo, o VIH/Sida... Ou estava em incubação...

À beira do abismo, na 23ª hora, conheci a Manela, que me levou, de novo, para o caminho do bem... Estamos casados há 40 anos. Foi o segundo anjo da guarda que conheci na vida, depois da enfermeira paraquedista que me levou para o hospital militar de Bissau, e me salvou do inferno de... Ai!, porra, já não me lembro (ou não quero lembrar ?!) do raio do sítio onde apanhei uma mina anticarro que matou uma meia dúzia dos nossos…  Começava por um G, de Guiné... Guigiti? !... Peço-te desculpa pela branca... Como também não me lembro do nome desse anjo que veio do céu, para me salvar. Imperdoável!... A minha memória já não é o que era... Ainda gostava de a conhecer, a essa enfermeira paraquedista, se por acaso ainda for viva, como espero...

Acabou-se a guerra, para mim, nesse dia. E lá percorri as estações do calvário: Hospital Militar, em Bissau, Hospital Militar Principal, na Estrela, depois o Centro de Reabilitação de Alcoitão...  Muitos meses em tratamento e recuperação, uma prótese no calcanhar, enfim, foram as medalhas que eu trouxe da Guiné... E tenho uma pensão de merda como Deficiente das Forças Armadas. 

Nunca ninguém me foi visitar, nem sequer as senhoras do Movimento Nacional Feminino... E muito menos o meu pai, o que eu entendo e até perdoo: Vila Nova de Cerveira ficava longe da capital e o pai, não sei se te lembras, já estava doente... A nossa mãe, essa, já tinha partido para a beira do Padre Eterno.

“Tiveste azar, irmãozinho… Os manos do meio, esses, lá se foram desenrascando, pior ou melhor. O António foi 'a salto' para França, para grande desgosto dos pais, era refratário e tornou-se um comuna de merda… O Jorge, depois do magistério primário, livrou-se da tropa, com um grande cunha de um médico militar do Porto; a mana,  essa, lá casou, tarde e a más horas, com um servidor público, chefe de finanças de Braga”…


Sabes ?!, nunca te contei isto!... Aos dez anos quis ficar órfão e depois morrer, quando fui para o Seminário de Montariol. É monstruoso, tenho que o admitir: desejei a morte dos nossos pais!... Eles, coitados, já não estão cá, e espero que não me oiçam... Mas, se me estão a ouvir, que me perdoem!... Agora, eu não sei é se Deus me vai perdoar. Nunca contei o segredo, nem sequer ao meu confessor nem ao meu diretor espiritual... Estou-te a contá-lo, pela primeira vez, e sei que me vais saber escutar,  entender e perdoar....

"Achas que é normal um puto querer morrer na flor da idade ? Ou sentir um secreto prazer em imaginar-se órfão de pai e mãe ?... Eras um monstrozinho!"...


Sim, quis matá-los!... Sentia-me só, abandonado, terrivelmente só, perante Deus Todo Poderoso… Para trás de mim, e cada vez mais distante, ficava o mundo… Um a um via desaparecer, separados por  vidro fosco e espesso, os rostos que me eram familiares e queridos, os dos meus pais, irmãos, tios, primos, mas também os dos meus amigos e colegas de escola… Um vidro cada vez mais grosso transformado em muralha instransponível...

“Também passei por esse choque, essa angústia, a da separação, quando fui para o Colégio Militar, lá longe, na capital do império… Passava da nossa casinha, da nossa quinta, da nossa querida família extensa, onde conviviam três gerações, para um casarão, uma instituição castrense dominada, aos meus olhos de puto, por seres poderosos, prepotentes, mesquinhos... Tive medo, sobrevivi às praxes, enfim, sabes como era naquele tempo... Mas nunca me passou pela cabeça essas ideias malucas de suicídio ou de orfandade... Sempre foste, afinal, um puto mimado, sobretudo pela mãe e pelo avô Francisco que te queria fazer doutor de letras!"...

Em boa verdade, eu sentia-me abandonado por todos, e até por ti, que eras o meu herói, o meu ídolo, o meu anjo da guarda!...

“Não te podia valer, por muito que o quisesse!... No início do último trimestre de 1958, eu já estava na Índia como alferes... Uma eternidade para lá chegar, seguimos o caminho de Vasco da Gama, deixámos tropa e material em Angola e em Moçambique…”

E tu, meu sacana ?!... Sempre foste um mulherengo, um escravo do gineceu,   um gajo fraco com as mulheres, como eu mais tarde vim a descobrir!...Na altura, fiquei chocado e dececionado contigo, que eras o meu ídolo, quando te apanhei, nu em pelota, no espigueiro, montado na filha de um dos nossos caseiros... 'Boa como o milho', rías-te tu, meu safado... Armado em pinga-amor, um Dom Juan minhoto, caíste mais do que uma vez como a mosca no vinagre…

"Cala-te, não sejas ingrato!... Ainda te quis levar às putas em Vigo!...Mas, tu, parolo,  quiseste ficar virgem até à ordenação de padre!... Ah!, ah!, ah!...
 Eh!, e nada de aldrabices, essa filha do caseiro era a Joaquina das Bouças, ficámos até bons amigos. Estamos quites, tratei-lhe do passaporte e paguei-lhe a passagem de comboio para França, lá casou com um mouro de Moura ou Mourão, um gajo do Sul..."

Abelhudo, era o que tu eras!... Sempre atrás do mel, sem te importares com os sarilhos de saias que arranjavas e as aflições que causavas à nossa pobre mãezinha... Ficas a saber que não posso com a gaja que te caçou há 15 anos, no carnaval do Rio de Janeiro, ainda estavas viúvo de fresco... Nem sei que idade tem, a tua  'coronela', muito mais nova do que tu!... Deve ter a idade dos teus filhos mais velhos, os do teu primeiro e trágico casamento... E que eu mal conheço, nunca ou raramente foi às últimas  festas da família. Felizmente que não tens filhos da brasileira...

“Não te admito que fales assim da minha legítima esposa, e agora viúva, face à lei de Deus e dos homens… Se me pudesse pôr de pé, ainda te dava com o pingalim na cabeça e depois um valente murro nas ventas”…


Desculpa, mano velho, não tenho o direito de me intrometer na tua vida privada e na vida da tua família, e das tuas mulheres com quem, se calhar por ciúmes, nunca simpatisei… 

Estou apenas irritado comigo próprio, zangado  com o resto do mundo... E com Deus, se queres saber! (E que  Ele me perdoe!)...Estou eu a querer falar contigo, baixinho, a sussurrar contigo, que já estás no mundo dos mortos, estou eu aqui a não querer perturbar o sono eterno dos que viajam contigo na barca de Caronte, e ouço, ao lado, as gargalhadas despudoradas da sacana da tua viúva e dos seus amigos e até dos nossos primos… Alguém, tenho impressão que um gajo do teu curso, deve estar a contar uma anedota porca do tempo do Colégio Militar ou da Academia ou do Spínola na Guiné..

Mas que falta de pudor, de compostura e sobretudo de respeito por ti, que estás em câmara ardente, recebendo a derradeira homenagem dos teus familiares, amigos e camaradas de armas!...

Acho que me vou retirar, com a tua licença... Durmo mal, vou descansar um pouco, estou zangado,  volto amanhã,  para rezar por ti e encomendar a tua alma... Vais ter com o nosso pai e a nossa mãe, e o nosso Jorge, coitado, que Deus também já lá tem... Espero amanhã estar mais calmo e pedir a Deus que me perdoe, se me excedi e se O irritei. Deus não gosta que O irritem.

Vou rezar por ti e pedir a Deus perdão pelos teus e pelos meus pecados. Nunca me hei esquecer das palavras que a nossa mãezinha nos obrigava a rezar: antes de irmos para a cama, e depois da oração ao anjo da guarda, vinha a Avé Maria que terminava com o "E na hora da nossa morte, ámen!".

Ah!, já me esquecia, a Manela, que tirou um peito há pouco tempo, não pode acompanhar-te na tua despedida da Terra da Alegria (ela lê muito o poeta Ruy Belo) mas manda-te, por mim,  o último chicoração. Ela sempre gostou de ti, mesmo com todos os teus defeitos. 

Volto depois de amanhã para Lisboa.

© Luís Graça (2019). Nova versão, revista e melhorada, nesta data.

Nota do autor: este é um texto literário, um conto, narrado em tom muito confessional e intimista. Alguns vocábulos ou expressões, mais "duros", que podem ferir a suscetibilidade do leitor, têm que ser relevados e entendidos dentro dos limites da liberdade criativa e do espírito aberto do "livro de estilo" do nosso blogue.

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Nota do editor:

(*) Último poste da série : 5 de outubro de 2023 > Guiné 61/74 - P24726 Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (10): I want you, dead or alive!

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24082: Tabanca Grande (544): Mário Arada Pinheiro, cor inf ref, que, além de 2º cmdt do BCAÇ 2930 (Catió, 1971/73), esteve na 2ª Rep, no QG/CCFAG, e foi comandante-geral de milícias, substituindo o major Carlos Fabião... Senta-se à sombra do nosso poilão, no lugar nº 871.



O nosso novo grã-tabanqueiro, nº 871, cor inf ref Mário Arada Pinheiro (de momento não temos nenhuma foto dele),  foi substituir  o major inf Carlos Fabião  como comandante do Comando Geral de Milícias, aqui na foto,  de autor desconhecido, reproduzida com a devida vénia. In: Afonso, A., e Matos Gomes, C. - Guerra colonial: Angola, Guiné, Moçambique. Lisboa: Diário de Notícias, s/d., pp. 332 e 335.  


1. Mensagem do cor inf ref Mário Arada Pinheiro:


Data - 14/02/2023, 11:43
Assunto - Comissão na Guiné


Vamos lá a ver se chega ao seu destino...

Mário Arada de Almeida Pinheiro, breve cv militar:

(i) nascido em 12/12/1932;

(ii) 1ª, 2ª e 3ª classes feitas na Lourinhã. 4ª em Samora Correia, Benavente;

(iii) exame de admissão ao liceu - Santarém;

(iv) entrei para o Colégio Militar em 1943 onde fiz o curso liceal (nº 164/1943, segundo a
 Revista ZacatraZ nº 196, março de, 2017)

(v) entrei na Academia Militar em 1951, acabando em 1954;

(vi) tirei o tirocínio em Mafra em 1954/55;

(vii) alferes em 3/11/1955, tenente em 1/12/1957, capitão em 1/12/1960 (Mafra, EPI), tenente-coronel 7/9/1976 no Colégio Militar, coronel em 2/11/1980:

(viii) entretanto estive colocado no RI 5 (Caldas da Rainha), tendo passado 6 meses na Escola Prática de Engenharia em Tancos a tirar o curso de Sapadores.

(ix) depois, 4 anos em Leiria (SHAPE, RI 7);

(x) Depois, Colégio Militar, como responsável pela Instrução Militar;

(xi) 1ª comissão no ultramar,  em Moçambique, de 1961/63, tendo sido evacuado por tuberculose pulmonar. 4 meses internado no Hospital Militar de Belém, após o que fiz 3 anos de serviços moderados no Colégio Militar;

(xii) em 1968 embarquei para 2ª comissão , e 2 anos, em Moçambique;

(xiii) regressei em 1970 e estive no Estado Maior General das Forças Armadas;

(xiv) depois, Batalhão de Chaves, após o que fui convidado para Lamego como director das operações especiais, após o que dirigi um curso de formação de sargentos.

(xv) 3ª comissão, na Guiné, de 16/9/71 a 21/9/73, no comando do BCÇ 2930 (Catió, 1971/73),

Inicialmente, estive em Catió, cerca de 1 ano, onde substituí o 2º comandante que tinha sido evacuado com um cancro.

Tínhamos 2 companhias, sendo uma de milícias guineenses, 1 pelotão de artilharia de 10,5 cm, 1 pelotão de canhões sem recuo de 5,7 cm, 1 pelotão de morteiros de 81 mm. Outras Companhias do Batalhão: Cufar, Bedanda, 2 grupos de combate em Cabedu, Cacine, Gadamael e Guileje.

Como era 2º comandante, acumulava com chefe das informações e mensalmente deslocava-me a fazer a inspecção administrativa de todas as companhias do batalhão.

O Comandante de Bedanda, da CCÇ 6,  na altura era o capitão de cavalaria Ayala Botto.

Quando o BCAÇ 2930 regressou a Lisboa, eu só tinha um ano de Guiné pelo que fui transferido para Bissau,  sendo colocado na Repartição de Operações,  do Comando Chefe, na Amura,  cujo chefe era o tenente coronel Firmino Miguel.

Passados cerca de 3 meses, fui convidado e nomeado comandante geral das milícias para substituir o major Carlos Fabião que regressara a Lisboa após 8 anos de Guiné.

Além das milícias, tinha também sob o meu comando as companhias africanas tal como os pelotões de caçadores nativos num total de cerca de 13000 militares.

Ainda estava eu em Catió quando o PAIGC estreou os mísseis antiaéreos Strela (russos), abatendo no corredor de Guilege um Fiat cujo piloto era o tenente Pessoa, que conseguiu ejetar-se, tendo caído em cima de umas árvores no corredor de Guilege. Foi salvo na manhã seguinte por uma equipa, transportada de helicóptero, e protegida por um heli-canhão. O comandante de força era o comando guinéu Marcelino da Mata.

Se me quiserem pôr qualquer questão, apesar da minha cabeça com 90 anos, e desde que me recorde, sempre à vossa disposição.

Um grande abraço do,

Arada Pinheiro

2. Comentário do editor LG:

Mário, magnífico, eureca!... Já cá chegou, depois de algumas tentativas falhadas, por erro no meu endereço.

Vivam esses 90 anos, feitos já no passado dia 12 de dezembro, e essa cabecinha!... Vou apresentá-lo à Tabanca Grande, mesmo não tendo ainda as duas fotos da praxe.. Peça à sua neta para digitalizar uma ou duas fotos do seu álbum, e mandar-mas depois por email: (i) uma mais ou menos atual; (ii) outra do tempo da Guiné ou da até da Escola do Exército / Academia Militar...

Descobri, que no Colégio Militar o meu amigo era o nº 164/1943, segundo a Revista ZacatraZ nº 196, março de, 2017. Mas não há muito mais informação a seu respeito, já que não faz uso das redes sociais,

De qualquer modo, deixe-me dizer aos restantes "amigos e camaradas da Guiné" que se reunem aqui, sob o o poilão da Tabanca Grande, que o Mário é meu conterrâneo, eu pelo menos considero-o como tal: casado com uma senhora lourinhanense, cujo pai ainda conheci, tem casa de verão na Praia da Areia Branca e somos sócios do GAPAB - Grupo dos Amigos da Praia da Areia Branca...(Eu muito mais recentemente, sou "periquitio" em relação ao Mário que é um histórico.)

No verão passado, apresentámo-nos um ao outro e foi então que soube que o Mário tinha  feito uma comissão na Guiné, em 1971/73, como major.  Fiquei encantado com a sua afabilidade, memória, sentido de humor e amor por aquela terra e aquela gente. Confidenciou-me algumas histórias saborosas, do tempo que ainda privou com o seu / nosso (eu sou de 1969/71) comandante-chefe, o gen Spínola. 

Foi na sequência de uma das nossas primeiras conversas, no VIGIA (sede da GABAP),  que o meu amigo  me facultou, a título de empréstimo, um exemplar autografado do livro de memórias do ten gen Aurélio Manuel Trindade, "Panteras à solta: No sul da Guiné uma companhia de tropas nativas defende a soberania de Portugal", escrito sob o pseudónimo Manuel Andrezo. O teor da dedicatória é o seguinte: "Ao meu amigo Pinheiro com muito respeito e consideração para que se lembre sempre da Guiné, terra que ambos admiramos. 13/12/2020. Aurélio Trindade." 

Recorde-se que foi a partir daqui que tomei a liberdade de fazer e publicar várias "notas de leitura" do livro em questão. E fomos falando, ora no VIGIA ora ao telemíovel. Depois de lido, devolvi-o, naturamente, e disse ao Mário que teria muito gosto em vê-los sentados à sombra do nosso poilão, a si e ao seu amigo Aurélio Trindade.

O Mário aceitou, logo de bm grado, o convite para se juntar à nossa tertúlia, sabendo que ela não tem qualquer agenda política, servindo apenas para os antigos combatentes da Guiné partilharem memórias (e afetos). Temos várias tabancas onde n0s reunimos periodicamente, de norte a sul do país E a mais próxima de si (que vive em Paço de Arcos ) é a Tabanca da Linha, em Algés. Espero quer um dia destes possamos lá aparecer juntos, mau grado as nossas mazelas. Para já, seja bem vindo à Tabanca Grande, a mãe de todas as tabancas. O seu lugar (por ordem cronológica de entrada) é o nº 871,


 3. Ficha de unidade > Batalhão de Caçadores nº 2930
  
Identificação: BCaç 2930
Unidade Mob: BC 10 - Chaves
Cmdt: TCor Inf Castro Ambrósio | TCor Inf Carlos Frederico Lopes da Rocha Peixoto | TCor Inf Ernesto Orlando Vieira Correia 
2º Cmdt: Maj Inf Ernesto Orlando Vieira Correia | Maj Inf Mário Arada de Almeida Pinheiro
OInfOp/ Adj: Maj Inf Duarte Leite Pereira | Maj Inf Mário Arado de Almeida Pinheiro
Cmdt CCS: Cap SGE Manuel Pereira de Carvalho
Divisa: "Sempre Excelentes e Valorosos"
Partida: Embarque em 25Nov70; desembarque em 04Dez70 | Regresso: Embarque em 130ut72

Síntese da Actividade Operacional

Era apenas composto por Comando e CCS, não dispondo de subunidades operacionais orgânicos.

Em 16Dez70, após sobreposição com o BArt 2865, desde 07Dez70, assumiu a responsabilidade do Sector S3, com sede em Catió e abrangendo os subsectores de Bedanda, Catió, Cufar, Guileje, Gadamael e Cacine.

Com as subunidades que lhe foram atribuídas, desenvolveu intensa actividade operacional de patrulhamento, reconhecimentos e de vigilância da fronteira, especialmente na zona do corredor do Guileje, tendo ainda os seus aquartelamentos e aldeamentos sido alvo de frequentes e fortes flagelações,
especialmente quando situados junto da fronteira. 

Além disso, coordenou e impulsionou a execução dos trabalhos de construção dos reordenamentos de
Catió, Cacine e Gadamael, entre outros e os trabalhos da estrada Catió-Cufar.

Dentre o material capturado mais significativo, salienta-se: 4 pistolas-metralhadoras, 4 espingardas, 2 lança-granadas foguete, 87 granadas de espingarda e 68 minas.

Em 21ago72, foi rendido no sector pelo BCaç 4510/72 e recolheu a Bissau, onde se manteve aguardando embarque.

Observações - Tem História da Unidade (Caixa nº 92 - 2º Div/4º Sec, do AHM).

Fonte: Excertos de Portugal. Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África, 1961-1974 [CECA] - Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 7.º volume: Fichas das Unidades. Tomo II: Guiné. Lisboa: 2002, pág. 150

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Nota do editor:

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

Guiné 61/74 - P21604: Manuscrito(s) (Luís Graça) (195): In Memoriam: Eduardo Lourenço (1923-2020), pensador maior da nossa história, da nossa cultura, da nossa identidade como povo




Capa e contracapa do livro de Eduardo Lourenço (1923-2020), "Do Colonialismo Como Nosso Impensado" (. Organização e prefácio: Margarida Calafate Ribeiro e Roberto Vecchi). Lisboa: Gradiva, 2014. 348 pp.

Dedicatória: "Para o Luís Graça, que conheceu e defendeu o nosso ex-Império, aqui repensado e evocado, com o abraço afectuoso do Eduardo Lourenço. Lisboa, [Feira do Livro,] 7 de Junho de 2014"


1. Não é habitual o nosso blogue dar "notícias da actualidade", e muito menos "necrológicas" (a não ser, obrigatoriamente, dos nossos amigos e camaradas da Guiné)... Mas, de vez em quando, abrimos algumas exceções: é impossível não falar da pandemia de Covid-19 que está a mudar as nossas vidas, desde março de 2020... Como também não podemos de deixar fazer uma referência à morte de um grande português, Eduardo Lourenço (Almeida, 1923 - Lisboa, 2020), um grande intelectual, da estirpe dos nossos maiores. 

E se aqui fazemos uma referência ao seu nome e lamentamos o seu desaparecimento, é porque ele é também um pensador incontornável da nossa identidade, da nossa história, da aventura de Quinhentos, do nosso império, do nosso colonialismo,  da nossa relação com o resto do mundo... Sem esqucer a "releitura" que fez  dos nossos maiores poetas, Camões, Antero, Fernando Pessoa... 

Falando do "império", ele nunca deve ter estado, que eu saiba, na Guiné, em Angola ou Moçambique (mas o seu pai, Abílio Faria,  esteve, como capitão de infantaria, jukgo que SGE,  no início dos anos 30, em Nampula). Mas teve um ano (1958/59), na Bahia, no nordeste brasileiro, e isso terá sido determinante na produção do seu pensamento sobre Portugal e os portugueses...

Não era das minhas relações, nunca privei com ele, terei estado duas ou três com ele ou perto dele, uma na Feira do Livro de Lisboa, em 2014, e outras duas em conferências ou colóquios,  na Fundação Calouste Gulbenkian e no Centro Cultural de Belém, em datas que já não posso precisar. Foi, contudo,  um privilégio poder ouvi-lo e vê-lo em vida, mesmo que acidentalmente.

Falei com ele apenas uns breves minutos, na Feira do Livro de Lisboa, em 7 de junho de 2014. Ele estava só e parecia ter todo o  tempo do mundo, aos 91 anos.... Não era, naturalmente, um escritor de "best-sellers",não tinhas bichas de gente à cata de um autógrafo... Mas estava ali também para dar autógrafos, que a Feira do Livro também é uma Feira de... Vaidades...

Falei-lhe do nosso blogue, da minha condição de ex-militar na Guiné... e pedi-lhe para me autografar o seu livrinho, que acabava de sair em 2014, "Do colonialismo como nosso impensado" (*)... E foi por ele que soube que o seu pai também fora militar e que ele também passara pelo Colégio Militar, como muitos outros filhos de oficiais do exército.... 

Teve então a gentileza de me escrever três linhas de dedicatória, que reproduzo acima... Mas a impressão que guardei dele, mais forte, foi a de um homem, já com os seus 91 anos de "juventude", de uma humildade, afabilidade e empatia raras nos homens das letras e da academia...

Não vou repetir tudo aquilo que a comunicação social e as redes sociais têm dito deste português maior, um "príncipe da Renascença", que vai ser enterradado, hoje, na sua humilde aldeia fronteiriça de São Pedro do Rio Seco, Almeida, numa cerimónia íntima aberta apenas à família e aos seus poucos conterrâneos,  

Os seus livros esgotaram-se nas lojas da FNAC. É sempre assim quando morre um um escritor famoso. Os portugueses são generosos na morte. Somos unanimistas no reconhecimento póstumo dos nossos intelectuais, e nomeadamente dos "estrangeirados",,, Só Pessoa morreu (quase) anónimo. E foi preciso alguém, como Eduardo Lourenço, "de fora", para lhe dar a dimensão universal e genial que ele, Fernando Pessoa, hoje tem...

2. Vale a pena, isso, sim, ver e ouvir a entrevista dada pelo Eduardo Lourenço, à jornalista da RTP Fátima Campos Ferreira, em 25 de abril de 2016. O programa (50' 19''), foi gravado no Centro de Arte Contemporânea da Fundação Calouste Gulbenkian. Disponível aqui, na RTP Play.

No passado dia 1, dia da sua morte,  vi (ou revi) essa entrevista e, no meu diário, anotei, ao correr da pena, algumas observações de que tomo a liberdade de reproduzir aqui  alguns excertos (**):

(...) Foi uma entrevista intimista. As questãoes postas não eram apenas dirigidas ao filósofo e ao ensaísta mas também, e sobretudo, ao homem, ao beirão, ao cidadão, ao português.ao europeu. (...)

(...) Entrevistadora e entrevistado, estão sentados, a uma mesa, com dois copos de água em cima do tampo. Ele é filmado muitas vezes de lado, de perfil, e de repente pareceu-me ver o perfil, também beirão, de Salazar. (...)

(...) Para um homem que esteve, inicialmente, próximo do existencialismo,as questões que lhe são postas não podiam ser mais...existencialistas: Deus, o sentido da vida, a morte, a condição humana, o amor, a liberdade, a relação com os outros, a família, o ser português... e europeu.

(...) Do Colégio Militar, guarda melancolia...Foi-lhe difícil estar um ano, fechado num colégio intermo. Tirou-lhe a alegria da família e dos irmãos. Reconhece, no entanto, que lhe dei disciplina para a vida. (...)

(...) Qual teria sido o caminhos seguido pelos outros seis irmãos ? Não se falou disso, nem nas naturais dificuldades que teria uma família numerosa, nos anos 30. O vencimento de um oficial subaltermo do exército, nessa époa, era baixo.  Lembra-se de pastar cabras com a avó e a singuralidade de cada ser humano é uma das coisas que o fascina (...)

(...) Ganha uma bolsa, vai para França e aí conhece a futura mulher... O ter podido sair do país e tornar-se um 'estrangeirado', foi muito importante para a sua reflexão e para sua obra... Tem outro distancimamento crítico e afetivo que nunca teria se tivesse feito carreira académica na Universidade de Coimbra onde se licenciou em ciências histórico-filosóficas. Foi assistente do professor de filosofia Joaquim Carvalho. (...)

(...) Não fez uma carreira académica típica, nunca se doutorou, ao que eu saiba.  E em França era um estrangeiro, não dominando perfeitamente a língua, logo no início... Ironia: é hoje considerado um dos grandes pensadores europeus, e o maior pensador português do século XX... Mas não dá importância aos inúmeros prémios e condecorações que recebeu em vida, em Portugal, em França e muitos outros sítios. (...)

(...) Vê-se que é um homem ponderado não é palavrosos, mede as palavras, tem um discurso bem estruturado, encantatório, poético, metafórico, aguarda um, dois ou três segundos antes de responder às perguntas da jornalista... Com o típico gesto pensador, que põe a mão direita sobre parte da testa e da face....Controla as suas emoções, o tom de voz é sereno, mesmo quando há questões que o inquietam, a crise demográfica, o declínio da Europa,  a lenta mas crescente invasão da França e doutros países oriundos de outras cultutas e religiões.. Faz referência explícita aos povos islâmicos e ao terrorismo fundamentalista islâmico, preocupa-o a incapacidade da Europa para encontrar respostas, a solidão do Papa, a crise do cristianismo... E, a claro, fala da morte,  a impossível experiência da nossa própria morte. (...)

Para quem quiser saber mais sobre o Eduardo Lourenço, ver aqui a sua página oficiosa, organizada pelo Centro Nacional de Cultura. 

Por exemplo, ficamos a saber, da sua biografia

"1941 Pensa entrar na Escola do Exército mas desiste dos cursos preparatórios militares na Faculdade de Ciências e presta provas de aptidão à Licenciatura em Ciências Histórico-Filosóficas, tendo sido admitido; 1944 Conclui o 4º ano da licenciatura em Ciências Histórico-Filosóficas; 1945 Frequenta o Curso de Oficiais Milicianos; 1946 A 23 de Julho conclui, com 18 valores, a licenciatura de Ciências Histórico-Filosóficas defendendo a tese intitulada O Idealismo Absoluto de Hegel ou O Segredo da Dialéctica; 1947 É convidado, pelo Prof. Joaquim de Carvalho, para Assistente (20 Outubro 1947-20 Outubro 1953) do Curso de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra – Presta serviço militar na Guarda, como alferes miliciano, no Batalhão de Caçadores 7"...

3.  A Fundação Calouste Gulbenkian está a  editar, desde há uns anos,  as suas obras completas,  que são numerosas. E em parte inéditas. O espólio de Eduardo Lourenço está à guarda da Biblioteca Nacioanl e está a ser estudado pelos especialistas. 

O livro cuja capa reproduzimos acima é uma obra que reúne escritos de várias épocas, tendo como fio condutor uma reflexão sobre o nosso "colonialismo", e que é publicado, em 2014, com "40 anos de atraso"... 

Gostaríamos, um dias destes, de poder deixar aqui a nossa "nota de leitura" pessoal dessa obra. Como dizem os organizadores, trata-se de um volume que reúne "textos publicados e inéditos, completos e fragmentários do Eduardo Lourenço sobre o 'problema colonial' português' ". O índice (resumido) dá uma ideia da riqueza do conteúdo do livro: Limiar; contornos e imagens imperiais: I. Crítica da mitologia colonialista (década de 60 até 1974); II.No  labirinto dos epitáfios imperiais (1974/75 e depois); III. Heranças vivas. 

Como Eduardo Loureno reconheceu foi fundamental a sua ida para o Brasil (em maio de 1958 foi,   por um ano, como professor convidado da Universidade da Baía, reger a cadeira de Filosofia):

(...) "Curiosamente estamos nos anos 58-59 e esse é um momento em que no mundo, em todos os continentes, se verificava o fim das descolonizações. E evidentemente percebi que Portugal estava metido numa encruzilhada por estar à beira de um precipício num ponto de vista da perda dos interesses coloniais, uma vez que Angola e Moçambique caminhavam para uma emancipação inevitável. Mas em Portugal ninguém queria realmente saber disso. Foi aqui no Brasil que, paradoxalmente, comecei a interessar-me por este tema do império, da colonização, e no fundo foi aqui que nasceu a ideia de que não se podia ter uma leitura da história portuguesa, da cultura portuguesa, sem conhecer esta outra parte do que tinha sido o império português. Em última análise, portanto, todo o 'arrière plan' do 'Labirinto da Saudade' tem a ver com a minha estadia na Bahia" (...).

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 17 de agosto de  2015 > Guiné 63/74 - P15013: Notas de leitura (748): “Do Colonialismo como Nosso Impensado", Organização e Prefácio de Margarida Calafate Ribeiro e Roberto Vecchi, Gradiva Publicações, 2014 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 13 de julho de 2020

Guiné 61/74 - P21166: Tabanca Grande (499): Raul Castanha, ex-alf mil PM, CPM 3335 (Bissau, jan 1971 / jan 1973): senta-se à sombra do nosso poilão no lugar nº 813


 Raul Castanha, ex-afl mil PM, CPM 3335 (Bissau, 1971/73)



Raul Castanho (2017)
1. Mensagem do nosso leitor e camarada Raul Castanha:

Data .quarta, 8/07, 09:45
Assuntio - Blog

Muito bom dia.

Sigo e consulto com frequência o seu blog e gostaria de saber como é possível enviar eventualmente comentários sobre alguns temas.

Também fui militar na Guiné Bussau e tenho algum conhecimento sobre eventos desse tempo.

Os meus agradecimentos.

Raul J.L. Castanha

2. Resposta do nosso editor na volta do correio

Caro Raul:

Temos muito gosto em que colabore, com a sua experiência, militar e humana da guerra da Guiné (1961/74), nesta comunidade virtual de antigos combatentes... Tratando-se de um blogue, a edição de textos, fotos e outros documentos tem de ser feita através da "mediação dos editores"... Pode usar o meu mail profissional: luis.graca.prof@gmail.com

A inserção de comentários é totalmente livre e instantânea; veja, na coluna (estática) do lado esquerdo do blogue como é que se pode comentar e qual é a nossa "política editorial"...

Mas o mais simples é o camarada "dar a cara" e juntar-se aos 810 [, à data de hoje, 812,] membros da nossa Tabanca Grande (tertúlia): para o efeito, basta mandar 2 fotos pessoais, uma antiga e outra atual, com duas linhas de apresentação (nome, posto, arma, unidade, locais por onde passou no CTIG, duração da comissão de serviço, etc.).

Nestes 810 [, hoje 812,]  membros (10 % dos quais infelizmente já morreram) há camaradas das 3 armas, e incluem-se nesta lista tanto antigos milicianos e militares do recrutamento local, como sargentos e oficiais do quadro.

Com 16 anos, e mais de 12 milhões de visualizações, 21 mil postes, mais de 100 mil comentários, e um espólio documental notável (mais de 100 mil imagens...), o nosso blogue é também uma valiosa fonte de informação e conhecimento. A sua missão principal é partilhar memórias...Também procuramos construir "pontes lusófonas".

Mantenhas. Um alfabravo, Luís Graça.

3. Resposta do Raul Castanham com data de 9 do corrente:

Aqui vai a informação solicitada:

(I) Nome: Raul José Lima Castanha

(ii) Posto; Alferes Miliciano PM

(iii) Arma: Cavalaria

(iv) Unidade: RL2, Lisboa e CPM 3335, Guiné

(v) Esteve em Bissau com esporádicas deslocações a Mansoa e Bula

(vi) Comissão:  desde Jan71 a Jan73

Espero que seja conforme. Saudações.
Raul Castanha

4. Comentário do editor LG:

Caro Raul, como antigos camaradas que fomos, no CTIG, tratamo-nos por tu, de acordo aliás com os usos e costumes da Tabanca Grande: Ès bem vindo à nossa tertúlia. Vais ficar sentado à sombra do poilão (mágico, simbólico, fraterno, protetor...), no lugar nº 813.

És o primeiro representante da tua CPM 3335 a integrar, formalmente, a Tabanca Grande.  De resto, a única referência que temos, no nosso blogue, a um companhia de polícia militar é a CPM 2537, cujo pessoal embarcou, comigo e os meus camaradas da CCAÇ 2590 (futura CCAÇ 12), no T/T Niassa, em 24 de maio de 1969.

E se a memória não me atraiçoa,  creio mesmo que és  primeiro oficial (miliciano) de uma companhia de polícia militar a integrar a nossa Tabanca Grande, ao fim destes anos todos.

Vejo que a CPM 3335 tem página de grupo no Facebook. criada por ti em 2013, e que estamos a seguir. Tens também página pessoal no Facebook desde 2014...

E fico a saber, a teu respeito, porque é público, que:

(i) és da colheita de 1949 (18 de maio);

(ii) és "alfacinha";

(iii) foste analista (informático) num grande banco;

(iv) tiraste gestão estratégica no ISLA - Instituto Superior de Línguas e Administração;

(v) passaste pelo Colégio Militar (Curso de 1959/66);

e, (vi) na tropa, pela EPC - Escola Prática de Cavalaria, Santarém (2º turno / 1970).

Ficas miminamente apresentado aos amgos e camaradas da Guiné. Temos muita malta do teu tempo, no CTIG. A tua comissão correspondeu a um período muito rico de acontecimentos, sendo então governador-geral e comandante-chefe o general António Spínola (1968.1973). Por certo que te cruzaste  por ele mais vezes do que eu, que sou de 1969/71, e que estava do interior do território.

Espero que te sintas bem,  entre antigos camaradas dos três ramos das Forças Armadas que passaram pelo TO da Guiné (1961/74). E que possas partilhar algunas das tuas histórias e memórias desse tempo e dos lugares que melhor conheceste (Bissau, Mansoa, Bula).

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Nota do editor:

Último poste da série >  13 de julho de 2020 > Guiné 61/74 - P21164: Tabanca Grande (498): Manuel Rei Vilar, líder do projeto Kasumai, irmão do saudoso cap cav Luís Rei Vilar (Cascais, 1941 - Suzana, 1970)...Senta-se à sombra do nosso poilão no lugar nº 812

sábado, 22 de outubro de 2011

Guiné 63/74 - P8937: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (15): Os desenfianços no Colégio Militar

1. Mensagem do dia 19 de Outubro de 2011, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), enviou-nos mais uma das suas histórias e memórias.


HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES (15)

ESSA ESTÁ MUITO BOA!
O COLÉGIO MILITAR!... OUTRA VEZ.

Os alunos do C.M. eram todos (serão ainda?) internos. Passavam apenas o fim de semana em casa com os pais ou com os encarregados de educação; regressavam ao colégio no domingo, até às 22h00.
Durante a semana viviam em autêntica “clausura”; não podiam receber chamadas telefónicas nem eram autorizados a comunicar com o exterior.
Com certa frequência, porém, os alunos mais velhos desenfiavam-se durante a noite; iam até Carnide ou Benfica ou, por vezes, aventuravam-se a viajar até à Baixa da cidade. Cada um tinha os seus motivos e objectivos para dar o salto: namoro, lavar os olhos, o prazer de infringir a Lei, confortar o estômago, etc.
No último caso o petisco mais frequente constava de ovos com chouriço e, certamente, um copo de tinto... ou branco.

Uma das incumbências especias do oficial de dia era impedir que os alunos saltassem os muros depois de jantar ou depois do toque a recolher – tarefa extremamente ingrata de cumprir ou.. praticamente (quase) impossível.
Falhada esta obrigação, o oficial de dia devia tentar averiguar se algum aluno se ausentara indevidamente e tudo fazer para surpreender o(s) faltoso(s) no regresso às instalações do C.M.
Quando apanhados em flagrante – o que raramente acontecia - os prevaricadores eram punidos com três dias de privação de saída durante os fins de semana – pena aparentemente pesada – até porque durante sete ou oito anos – máximo – o aluno não podia ultrapassar quinze dias de castigo; se atingisse este limite, o aluno era automáticamente expluso.

Também era coagido a abandonar o C.M. o aluno que “chumbasse” duas vezes; o mesmo acontecia a quem fosse atribuida duas vezes a nota de “MAU”... em comportamento durante todo o curso.
Estes castigos podem até parecer, nos dias de hoje, fruto de legislação draconiana... mas não era tanto assim.

Entre os alunos do Colégio Militar a camaradagem não era palavra vã; acontecia permanentemente.
Sempre que um aluno cometia uma falta punível com privação de saída e já se encontrava muito perto do limite, logo outro aluno com “cadastro” limpo, ou com folga suficiente, se apresentava como sendo ele o infractor para que o companheiro não fosse expluso. Era uma maneira simpática de aliviar o fardo da disciplina para com os menos bem comportados.

Muitas vezes tínhamos a convicção (ou até a certeza) de que o aluno que se acusava não era o prevaricador... mas se ele “jurava” que era... nada mais a operar que aplicar-lhe o castigo proporcional correspondente à falta que alegava ter cometido.

Colégio Militar de Lisboa
Foto de Carlos Fidalgo, retirada do site Panoramio, com a devida vénia.

Um dia eu estava de serviço e conversei longamente com quatro alunos do 7ºano (graduados) que eram os comandantes das quatro companhias de alunos; veio à baila o “peso” exagerado ou não dos castigos por fuga nocturna; os “graduados” entendiam que o rigor das penas era excessivo. Eu defendi o contrário e justifiquei:
- Em primeiro lugar temos de ter em conta que mais de 90% dos transgressores (fugitivos) não são apanhados e, consequenetemente não são castigados; os restantes são detectados apenas porque tiveram azar ou porque foram burros. Se o aluno tem azar, quem aplica a Lei nada pode fazer para além da aplicação do castigo determinado; se o aluno é burro (ou pensa que os outros o são), deve ser severamente punido e consequentemente expluso se atingir o limite legalmente estipulado, porque no C.M.... não pode haver vagas para atrasados mentais.

Os alunos entenderam bem a segunda parte da minha exposição; perguntaram, no entanto, o que eu entendia por “azar”. Respondi com um exemplo dum caso recente e notório:
- Azarado foi o nº X; vigiou cuidadosamente os movimentos do oficial de dia; teve a certeza que naquele momento o oficial de serviço não conseguiria detectá-lo; aproximou-se “distraidamente” sorrateiramente da porta que dá acesso à parada; correu perpendicularmente em direcção à Estrada da Luz; lançou as mãos ao cume do muro (mais de 2 metros de altura) que separa o C.M. daquela via, saltando para o exterior; por pouco não “aterrou” em cima dum oficial que casualmente por ali passava àquela hora. Aquele oficial “laçou-lhe a luva” e foi entregá-lo ao oficial de dia. Não foi castigado... porque fez um bom planeamento da sua actuação... apenas não contou com o azar que quase o tramava. Além disso era um aluno bem comportado, o que pesou na decisão de não castigar.

Um dia, estando eu de serviço, um bom bocado depois do toque a silêncio e apagada a iluminação, entrei numa camarata dos alunos mais velhos; havia apenas a luz de presença, as “vigias”; esta iluminação foi sufuciente para me aperceber que em determinada cama havia um “boneco”. Os alunos usavam o travesseiro e por vezes até o capote para fazer o “boneco”, tentando ludibriar o oficial de serviço. Aquele boneco até estava mal feito o que não abonava a favor do transgressor.

Esperei uns minutos! Fui até à sala de leitura; havia ali uma janela aberta por onde alguem teria eventualmente saído. Aguardei ali cerca de meia hora! Ninguém apareceu! Deitei-me no lugar do “boneco”!

Um pouco mais tarde ouvi alguém sussurar fora da camarata:
- Passa agora! Caminho livre!

Logo quatro alunos entraram eufóricos na camarata, convencidos do sucesso da sua aventura. Um deles, ao chegar junto da cama e, apercebendo-se que eu a ocupava, exclamou:
- Essa está muito boa, meu Tenente! Mas os ovos com chouriço... ninguém nos tira! O resto logo se verá!

Neste caso também não houve castigo; fiquei pela reprimenda, aquilo que os alunos ouviam com muita atenção (fingiam) mas que, habitualmente, entrava por um ouvido e velozmente saía logo pelo outro, sem qualquer efeito prático; tive em conta que um deles estava no limite da explusão e ninguém poderia assumir aquela culpa, porque foram apanhados em flagrante; o tal que corria risco até nem era mau rapaz; estava prestes a concuir o 6ºano.

Como se depreende, embora as punições parecessem duramente rigorosas... na prática não eram tanto quanto pareciam.
Uns tinham boa sina para escapar incólumes; outros sendo surpreendidos, contavam apenas com o apelo ao coração e à benevolência de quem os interceptava. Havia muitos dias de sorte!

Belmiro Tavares
Ten. Mi. Inf.
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Nota do Editor:

Vd. último poste da série de 26 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8821: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (14): Soldados não viajam em 1.ª classe

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Guiné 63/74 - P8612: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (12): Louvores e condecorações

1. Mensagem do nosso camarada Belmiro Tavares, (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), com data de 20 de Julho de 2011:


HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES (12)

Louvores e Condecorações

Em texto anterior – o soldado Milhais ou soldado Milhão – abordei parcialmente este tema,... a talho de foice.
Para facilitar dou aqui como reproduzida a minha abordagem naquele texto ao tema em epígrafe.

Não será demais lembrar que este interessante assunto vai aqui ser tratado por um ex-oficial miliciano – já era! Se o autor fosse um oficial do Q.P. ele veria os factos por um outro prisma e a conclusão seria, óbviamente, mais ou menos diametralmente oposta à minha.
O certo é que eu fui miliciano e via as coisas com os meus próprios olhos – apenas isso – não tendo em conta o interesse dos profissionais.
Não quero que entendam que eu era indisciplinado, o mau da fita, ou que fazia tábua rasa dos regulamentos, actuando por minha conta e risco. Nada disso!
Uma coisa é a disciplina; outra é o que eu entendo sobre louvores e medalhas e o por quê da sua atribuição ou não.

Aqui e agora eu sou o autor e transmito a minha própria experiência – apenas isso.

Em Janeiro de 1967 fui galardoado com o Prémio Governador da Guiné e no dia 10 de Junho do mesmo ano fui condecorado com uma Cruz de Guerra fruto dum louvor muito especial, digo eu.

Qual terá sido, para mim, o galardão com maior significado?

Embora se trate de prémios diferentes, um “encherá mais e melhor as medidas” que o outro, independentemente do seu valor real ou subjectivo que cada um possa atribuir-lhe.

Muito raramente eu deixo de ter em conta a face pragmática das coisas.

Assim sendo, considero que o Prémio Governador da Guiné foi o mais importante porque me proporcionou uma vinda ao “Puto” e consequentemente uma “saída do inferno”, durante 35 dias com viagens pagas; até porque em Janeiro de 1966 eu já não podia ausentar-me da Guiné porque o tão desejado fim da comissão já se aproximava, embora com uma indolência difícil de tolerar.

A Cruz de Guerra, por outro lado, possibilitou que eu continuasse os estudos sem pagar proprinas; esta benesse era extensiva também à minha estimada prole caso algum viesse a frequentar o ensino público. Não era mau de todo! Mas...

Reverso da medalha: quando “recebi” a Cruz de Guerra eu já estava colocado no Colégio Militar. Havia ali muitas e variadas festas e nesses dias tínhamos de colocar as condecorações ao peito o que não era de todo agradável; ao deslocarmo-nos, por vezes em corrida, lá ia a medalha a badalar agressivamente e desconfortávelmente no tórax.

Um dia, estando de serviço, fui com um capitão fazer a costumeira apresentação ao General Director do Colégio; era o Gen. Luis Deslandes; quando ele entrava no Colégio os telefones grilavam logo em todos os locais anunciar: “chegou o Homem”; nunca vi uma coisa assim! Os alunos apelidaram-no de “Ajax, o mais poderoso”!

Por ser oriundo de Cavalaria, gostava de ser assiduamente inconveniente, usando e abusando de vocábulos mais ou menos grosseiros – mais ou menos é favor!

O Capitão e eu entrámos na antecâmara do seu gabinete; abeirámo-nos da porta e o capitão, depois de pedir licença, declarou respeitosamente:
- Apresenta-se o capitão F. que vai entrar de serviço!

O Director olhou (eu estava atrás) e respondeu secamente:
- Não aceito a apresentação!

O Capitão pediu licença para se retirar e colocou-se frente a uma espelho grande que eli havia; olhou com atenção e perguntou-me se havia algum motivo perceptível para que a apresentação não fosse aceite.
Eu respondi:
- Nada vejo de anormal; se o senhor não está em condições... eu também não estou!

O capitão fez nova tentativa; a resposta foi mais completa... mais contundente:
- Não aceito a apresentção porque... está mal fardado!

Dizer isto a um capitão, era uma autêntica afronta; muito mais grave era asseverá-lo na presença dum misero subalterno... mas o General tinha “pelo na venta” e ninguem ousava recalcitrar, qualquer que fosse a situação.

O capitão mirou-se de novo; o General aproximou-se e, dirigindo-se a mim, disparou:
- O senhor também está mal fardado!

Agora já doía mais!... porque se referia à minha pessoa.

De seguida o General perguntou aos dois:
- Os senhores não foram condecorados com a Cruz de Guerra? Onde estão os “indicativos”?

Referia-se a uma pequena placa metálica revestida com um nobre tecido com listas verticais verdes e vermelhas e uma minúscula cruz metálica sobreposta.
Senti um profundo desconforto, autêntica frustação até porque eu não sabia que era obrigatório usar “aquilo” mesmo na farda de serviço.

Fiquei convencido que, na verdade, aquela condecoração me provocava demasiados dissabores atrozes; Deixava de ser um louvor (fruto dum) para ser quase... um castigo severo.
Afinal qual dos dois galardões devia eu preferir? Sem dúvida o que escolhi acima.

Conheci casos em que os louvores eram dados... a metro; como quem lança milho às galinhas para não usar ternos mais agressivos e isultuosos.

Ainda no C.M. um Major, ao saber que ia sair para outra Unidade, decidiu louvar meio mundo. Ele era Comandante do Corpo de Alunos; quatro capitães do Q.P. e outros tantos alferes milicianos dependiam dele.

O senhor Major louvou os 4 oficias do Q.P. De seguida distribuiu louvores aos sete professores de Educação Física de quem não era chefe. Engrossou a lista: o capitão instrutor militar, o mestre de esgrima, o mestre de equitação e o capitão chefe de secretaria. Distribuiu também louvores a uns tantos professores civis e militares. Só não louvou patentes superiores à sua porque... a Lei não o permitia.

O seu lema, penso eu, seria: “eu dou um louvor a ti para que outro dê um louvor a mim; quanto mais louvores eu distribuir... mais imponente será o meu”.

Nesta altura do campeonato, alguém lhe sugeriu que não seria de bom tom louvar apenas oficiais do Q.P. esquecendo os milicianos de quem era chefe.
O major, incrivelmente, aceitou a recomendação e eu... fui a vítima. Fiquei profundamente aborrecido, furioso mesmo, porque fui louvado... “por ser cumpridor”. Se não fosse cumpridor haveria lugar a uma admoestação – e já gozas!

Só pode ser verdadeira e justamente louvado aquele que faz algo mais (bastante mais) do que aquilo a que está minimamente obrigado... ser louvado por ser cumpridor... nem ao careca lembra!

Na manhã do dia seguinte dirigi-me, apressado, à secretaria do C.M. e, perguntei, angustiado, ao capitão o que poderia eu fazer para que aquele elogio hipócrita não fosse transcrito para o minha “Folha de Serviço” de certo modo brilhante... pelo menos para mim era e é!

- Nada pode fazer!, informou o capitão; louvores não se discutem; além disso não foi o Sr. Major que o louvou; foi o nosso General por proposta, que o senhor considera injusta e injuriosa do Sr. Major.

Meti a viola no saco, inglóriamente... mas aguardei pela hora da “terrível vingança” que haveria de chegar mais cedo do que eu podia imaginar.

O Major saiu do Colégio; um sábado à tarde passou por lá; entrou na sala de oficias; eu estava de o oficial de dia; encontrava-me ali sozinho a dar umas “cacetadas” nas bolas de bilhar; ele estendeu-me a mão – a tal que redigiu aquele louvor fantasma e estúpido – eu, sem boina na cabeça, pus-me em sentido... esquecendo aquela vil mãozinha marota; ele virou as costas com o “rabo entre as pernas e... nunca mais o vi. Senti-me plenamente vingado,... mas aquele autêntico escarro lá foi parar à minha Folha de Serviço.
Que vergonha!

Por vezes as condecorações estão na base da “bronca”. Há muitos casos inéditos e insólitos (uns mais que outros). “Consta” que um antigo ministro raro de Salazar se deslocou a Angola no longínquo ano de 1961 por altura da “tomada” da Pedra Verde (conquista).

Visitava um qualquer quartel algures no Norte de Angola; eis que um grupo de soldados “cagados” de lama e de sangue entra na unidade; logo ali o ministro “apenduricalhou” aqueles “bravos” (!?) rapazes que – pasme-se! – vinham duma... monumental caçada!

Um dia em Farim, um alferes miliciano comandava, interinamente, a 1ª C.C.

Todos os dias, ao fim da tarde, o alferes ia de jeep até ao centro da vila para se encontar com os oficiais do Batalhão ali aquartelado.

O Alferes aproximava-se da “porta d’armas” quando o 1.º Sargento da Companhia, correndo, gritou, que esperasse para assinar a O.S.; o incauto alferes assinou... “de cruz”; naquela O.S. estava inscrito um louvor estrondoso e não merecido àquele 1.º Sargento – diga-se que se tratava dum bom “vendedor” daquilo que não lhe pertencia; lá ia auferindo umas boas “massas” traficando géneros que se destinavam aos soldados africanos e não só.

A dita O.S. chegou ao comando do BCav 490 cujo comandante a mandou anular, e substituir por outra, excluindo apenas o tal “auto-louvor”. Ele conhecia bem aquela “peça”!

Deve haver muita cautela, profunda ponderação para que louvores e condecorações... não sejam banalizados, abandalhados ou venham a causar situações embaraçosas ou mesmo... ridículas!

Acima de tudo... respeito, muito respeito pelas condecorações e pelos que abnegadamente as mereceram... até mesmo por aqueles que, merecendo-as, por juízos incógnitos de um qualquer “Deus” injusto, não foram condecorados.

Julho de 2011
Belmiro Tavares
Ten. Mil.
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Nota de CV:

Vd. poste de 26 de Julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8605: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (11): O Soldado Milhais ou O Soldado Milhão

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Guiné 63/74 - P8589: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (9): Um jogo de Xadrez... muito especial

1. Em mensagem de 30 de Maio de 2011, Belmiro Tavares, (ex-Alf Mil, CCAÇ 675 Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), recebemos esta memória:

HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES (9)

Um jogo de xadrez... muito especial

Nota inicial: o conteúdo deste texto não diz respeito à guerra do Ultramar, mas o autor é um ex-combatente.

No final dos anos sessenta – século passado – o xadrez era já bastante praticado no Colégio Militar, muito mais e melhor que em qualquer outra escola de Lisboa. Em cada uma das quatro salas de jogos – uma por cada companhia de alunos – havia vários tabuleiros para que os jovens, nas horas vagas, praticassem entre si.

Entre oficiais e professores também se jogava em larga escala, pelo menos em quantidade; havia alguns professores que eram “barras” em meu entender; eu, pessoalmente, era aprendiz de moço de cego.

A Direcção do Colégio “contratou” o campeão nacional da modalidade – Joaquim Durão – para incutir nos alunos o gosto pelo xadrez, para lhes ensinar as regras básicas e acompanhar de perto a evolução dos praticantes.

Aquele senhor – era o campeão nacional crónico – organizou um assinalável jogo de “simultâneas” em que ele enfrentaria quase duas centenas de alunos, entre os dez e os dezassete anos, de todos (?) os estabelecimentos de ensino da capital.

Eu fui nomeado, em O.S., para acompanhar os académicos do C.M.; à chegada, fiquei verdadeiramente surpreendido ao verificar que os “meus” alunos (eram 80) representavam quase metade do total dos concorrentes – 170 alunos.

Os Pupilos do Exército (outra escola de filhos de militares) concorriam com 43 alunos. Os restantes (47) representavam várias escolas “civis” da capital.

Os jornalistas presentes, apercebendo-se da desproporção entre “civis” e “militares”, começaram a “morder” nas fardas: - “pensam que são melhores que os outros”; isto não devia ser permitido”; “não devia haver mais de dez alunos por escola”, etc.

Um jornalista mais prudente perguntou-me por que motivo “levava” tantos alunos; e eu respondi:

- A intervenção da Direcção foi quase residual; apenas nos foi sugerido que não concorressem mais de quinze alunos por cada “ano”; perguntámos ao organizador se havia limites; ele respondeu negativamente; houve alguns ”cortes” de acordo com a informação dos “graduados“ (alunos do 7º ano).

O jogo começou! O ambiente entre os jornalistas era tenso, preocupante.
O primeiro aluno a ser derrotado – cheque-mate – era do Colégio Militar!

Os jornalistas passaram a ser contundentes mesmo agressivos no ataque às “fardas”. Alguém teve de pedir “silêncio” na sala; estavam a perturbar o ambiente.

Ao fim de três horas de competição já só havia 70 alunos em jogo dos quais 50 eram do C.M.
Os jornalistas começavam agora a olhar as “fardas” com mais respeito; pelo menos já não barafustavam com tanto azedume.

Mais uma hora de jogo: havia 18 resistentes – 15 eram do C.M. – autênticos heróis!
A “partida” continuava com grande desportivismo e boa disposição.

A certa altura havia apenas cinco alunos em prova – todos do Colégio Militar.
Rapidamente quatro alunos foram postos fora de combate; o Sr. Joaquim Durão, muito honestamente e respeitando o adversário, comentou:

- Muito dificilmente conseguirei vencer esta partida; creio que talvez não perca; se concordares, terminamos com um empate.

Cumprimentaram-se com respeito e admiração mútuos.

Nesta altura (já era tarde para o almoço!) Já não havia jornalistas na sala; certamente envergonharam-se das suas atitudes nada simpáticas e exageradas mas não tiveram coragem nem desportivismo de esperar até ao fim e pedir desculpa; era o mínimo que podia esperar-se. Tinham saído sorrateiramente (covardemente)... com a viola no saco.

Lisboa, 30 de Maio de 2011

Belmiro Tavares
Ten. Mil. Inf.
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Notas de CV:

- Foto do Tabuleiro de Xadez retirado do Blogue Taverna do Guerreiro, com a devida vénia.

Vd. último poste da série de 20 de Julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8577: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (8): As guerras de Bissau

sexta-feira, 13 de março de 2009

Guiné 63/74 - P4028: FAP (17): Do Colégio Militar a Canjadude: O meu amigo Tartaruga, o João Arantes e Oliveira (Pacífico dos Reis)

Guiné > Zona Leste > Gabu > Canjadude > CCAÇ 5 (1973/74), Os Gatos Pretos > Pista de aviação de Canjadude, iluminada durante a noite > "Fotografia tirada de uma das tais grandes rochas (grandes para a Guiné), ou seja, de uma das rochas em que estava colocado um posto de sentinela. Consegue-se ver ainda o heliporto, que não sei se já existia quando o José Martins passou por estas bandas[, em 1968/70]" (JC).

Foto: © João Carvalho (2006). Direitos reservados


1. Mensagem do nosso amigo, camarada e dedicado colaborador José Martins, ex- Fur Mil Trms, CCAÇ 5, Canjadude, 1968/70:

Boa tarde, aqui vai mais uma de aviadores.

Talvez, o que é mais que provável, o António Martins de Matos tenha conhecido o João Arantes e Oliveira, e queira dar algumas notas biográficas.

Um abraço, José Martins


2. MEMÓRIAS DA GUINÉ

Texto publicado na revista nº 173 - Outubro/Dezembro, 2008,
Associação dos Antigos Alunos do Colégio Militar:

Publicação Trimestral, 43º Ano. Fundador – Carlos Vieira da Rocha (189/1929); Director – Mário M. Silva Falcão (314/1936); Chefe de Redacção - Gonçalo Salema Leal de Matos (371/1949)

Da autoria de
José Manuel Marques Pacíficos dos Reis
Coronel de Cavalaria Reformado
Ex-aluno nº 363/1952 do Colégio Militar
Ex-Comandante da Companhia de Caçadores nº 5 – CTIG (Junho de 1968/ Septembro de 1969)(*)

[Com a devida vénia e autorização do autor. Fixação do texto e subtítulos, da responsabilidade do editor, L.G.]

Ao ter conhecimento do falecimento do meu amigo Tartaruga (137/1952), João Arantes e Oliveira, muito tempo depois do mesmo, vieram-me à lembrança os tempos que passámos no Gabú. A vida dos mortos está na memória dos vivos (Cícero). Para manter bem viva essa memória aqui a faço perdurar através de duas pequenas estórias que definem o carácter do nosso amigo Tartaruga.

(i) Um saco de sementes

Ao tempo estava a comandar a Companhia de Caçadores nº 5, aquartelada em Canjadude. A companhia era formada por soldados nativos todos desarranchados e por um pequeno número de militares da Metrópole. Os nativos comiam na tabanca. Os metropolitanos comiam do rancho com as limitações resultantes da logística (bacalhau e ovos liofilizados, falta de frescos, etc.).

Numa das muitas colunas ao Gabú (Nova Lamego) encontrei o Arantes e foi uma festa.
Entre cervejas confidenciei-lhe as minhas dificuldades logísticas. Não me pareceu que ele, na altura “pilotaço” na Base do Gabú, estivesse a ligar aos meus problemas. Os dias foram passando, operações e mais operações (tempo do General Spínola), quando no pequeno intervalo das mesmas aterra uma DO na nossa pista e sai lá de dentro o Tartaruga com um grande saco na mão e me diz:
- Olha, aqui tens a resolução dos teus problemas de frescos.

Entrega-me o saco.

Curioso, espreitei e estupefacto deparo com dezenas de saquetas com as mais variadas sementes: tomates, alfaces, couves, feijão, etc. Posteriormente confidenciou-me, com toda a simplicidade, que tinha ido à Metrópole e não se tinha esquecido da nossa conversa no Gabú. Claro que aquelas sementes foram ouro para todos nós.


(ii) O sistema americano no Vietname: sacos de serapilheira e... palha

O cenário é o mesmo. A reunião no Gabú é com os mesmos intervenientes. As minhas queixas eram diferentes.

Nesta altura um piloto mais “inteligente” ou mais “medroso” que os outros, que já vinham aterrando na nossa pista centenas de vezes, resolveu interditá-la até serem aumentados mais uns metros. Só quem esteve no ultramar é que pode aquilatar o problema de não ter uma pista operacional.

Enquanto não compactávamos os metros que faltavam com baga-baga, não recebíamos correio nem frescos (peixe, fruta, etc.). O Arantes compreendeu imediatamente o problema.
- Não há problema, pá. - E passou a explicar o sistema utilizado pela aviação americana no Vietname. - É tudo uma questão de sacos de serapilheira e palha! Deixa que eu levo-te os frescos.

E assim foi. No dia marcado vimos aparecer um DO a baixa altitude a rasar a pista. Ao passar por ela começaram a cair sacos de serapilheira do avião. Alguma coisa, no entanto, não estava correcta nos manuais americanos. Digo isto porque andámos a apanhar carapaus, sardinhas e pescada, conjuntamente com maçãs, em todas as árvores das redondezas.

Pequenas estórias que ilustram o camarada que infelizmente perdemos. Só espero que estas despretensiosas letras façam surgir o desejo de mais alguém cumprir a palavra de Cícero.
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Notas de L.G.:

(*) Vd. postes, da I Série, respeitantes a Canjadude e à CCAÇ 5:

23 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXXIV: O nosso fotógrafo em Canjadude (CCAÇ 5, 1973/74)

5 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXCIX: O ataque de foguetões a Canjadude, em Abril de 1973 (João Carvalho)

28 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXCIII: Cancioneiro de Canjadude (CCAÇ 5, Gatos Pretos)

4 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCIV: Os últimos dias de Canjadude (fotos de João Carvalho)

4 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCV: A última noite em Canjadude (CCAÇ 5) (João Carvalho)

5 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCVI: A dolce vita de Canjadude, até ao dia 27 de Abril de 1973 (João Carvalho)

6 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCIX: Salazar Saliú Queta, degolado pelos homens do PAIGC em Canjadude (José Martins)

7 deAbril de 2006 > Guiné 63/74 - DCLXXX: CCAÇ 5 - Os Gatos Pretos de Canjadude (José Martins)


(...) Com o fim da Operação Mabecos Bravios, realizada entre 2 e 7 de Fevereiro de 1969 e que procedeu à retirada da guarnição do aquartelamento de Madina do Boé e do destacamento do Cheche, junto ao Rio Corubal, a guarnição deste destacamento reuniu-se à sua unidade em Canjadude.

Quando em 20 de Abril de 1969, o grupo de combate destacado em Cabuca foi rendido por outra unidade, e a CART 2338 foi transferida para Nova Lamego, o aquartelamento de Canjadude passou a dispor da totalidade dos elementos da CCA5 5, passando a ser a unidade de fronteira com a zona do Boé, a partir de Nova Lamego.

(...) A Companhia de Caçadores nº 5 teve como comandantes:
- o Capitão Miliciano de Infantaria Barros e Silva (Abril de 1967 -Junho de 1968);
- o Capitão de Cavalaria Pacífico dos Reis (Junho de 1968- Setembro de 1969);
- o Capitão de Infantaria Ferreira de Oliveira (Setembro de 1969-Março de 1970);
- o Capitão de Infantaria Gaspar Guerra (Março de 1970- Maio de 1970);
- o Capitão de Infantaria Silveira Costeira (Maio de 1970-Abril de 1972);
- o Capitão de Cavalaria Figueiredo de Barros (Abrild e 1972-Maio de 1973);
- e o Capitão Miliciano de Infantaria Silva de Mendonça (Maio de 1973-Agosto de 1974).

Como comandantes interinos houve vários Alferes Milicianos que assumiam o comando na ausência e/ou impedimento dos titulares.

(...) De composição maioritariamente da etnia Fula instalada em chão Mandinga, registaram-se alguns atritos com a população civil, nomeadamente após o ataque ao aquartelamento de Canjadude efectuado em 3 de Agosto de 1970 e, quando na época seca, os civis fechavam os poços para que os militares não pudessem utilizar a água, mas que foram rapidamente sanados.

O número de militares que passaram por esta unidade deve rondar o milhar, correspondendo três quartos destes a efectivos do recrutamento local.

Quanto a baixas teve, no período da sua existência, 16 mortos em combate ou por doença, incluindo 5 metropolitanos, sofrendo ainda, no período de Janeiro de 1970 a Julho de 1973, pelos registos existentes, 23 feridos dos quais alguns tiverem de ser evacuados para o Hospital Militar de Bissau. (...)

12 de Maio de e 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLVI: Procissão em Canjadude ou devoção mariana em tempo de guerra (José Martins)