Dedicatória: "Para o Luís Graça, que conheceu e defendeu o nosso ex-Império, aqui repensado e evocado, com o abraço afectuoso do Eduardo Lourenço. Lisboa, [Feira do Livro,] 7 de Junho de 2014"
1. Não é habitual o nosso blogue dar "notícias da actualidade", e muito menos "necrológicas" (a não ser, obrigatoriamente, dos nossos amigos e camaradas da Guiné)... Mas, de vez em quando, abrimos algumas exceções: é impossível não falar da pandemia de Covid-19 que está a mudar as nossas vidas, desde março de 2020... Como também não podemos de deixar fazer uma referência à morte de um grande português, Eduardo Lourenço (Almeida, 1923 - Lisboa, 2020), um grande intelectual, da estirpe dos nossos maiores.
E se aqui fazemos uma referência ao seu nome e lamentamos o seu desaparecimento, é porque ele é também um pensador incontornável da nossa identidade, da nossa história, da aventura de Quinhentos, do nosso império, do nosso colonialismo, da nossa relação com o resto do mundo... Sem esqucer a "releitura" que fez dos nossos maiores poetas, Camões, Antero, Fernando Pessoa...
Falando do "império", ele nunca deve ter estado, que eu saiba, na Guiné, em Angola ou Moçambique (mas o seu pai, Abílio Faria, esteve, como capitão de infantaria, jukgo que SGE, no início dos anos 30, em Nampula). Mas teve um ano (1958/59), na Bahia, no nordeste brasileiro, e isso terá sido determinante na produção do seu pensamento sobre Portugal e os portugueses...
(...) "Curiosamente estamos nos anos 58-59 e esse é um momento em que no mundo, em todos os continentes, se verificava o fim das descolonizações. E evidentemente percebi que Portugal estava metido numa encruzilhada por estar à beira de um precipício num ponto de vista da perda dos interesses coloniais, uma vez que Angola e Moçambique caminhavam para uma emancipação inevitável. Mas em Portugal ninguém queria realmente saber disso. Foi aqui no Brasil que, paradoxalmente, comecei a interessar-me por este tema do império, da colonização, e no fundo foi aqui que nasceu a ideia de que não se podia ter uma leitura da história portuguesa, da cultura portuguesa, sem conhecer esta outra parte do que tinha sido o império português. Em última análise, portanto, todo o 'arrière plan' do 'Labirinto da Saudade' tem a ver com a minha estadia na Bahia" (...).
(*) Vd. poste de 17 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P15013: Notas de leitura (748): “Do Colonialismo como Nosso Impensado", Organização e Prefácio de Margarida Calafate Ribeiro e Roberto Vecchi, Gradiva Publicações, 2014 (Mário Beja Santos)
Não era das minhas relações, nunca privei com ele, terei estado duas ou três com ele ou perto dele, uma na Feira do Livro de Lisboa, em 2014, e outras duas em conferências ou colóquios, na Fundação Calouste Gulbenkian e no Centro Cultural de Belém, em datas que já não posso precisar. Foi, contudo, um privilégio poder ouvi-lo e vê-lo em vida, mesmo que acidentalmente.
Falei com ele apenas uns breves minutos, na Feira do Livro de Lisboa, em 7 de junho de 2014. Ele estava só e parecia ter todo o tempo do mundo, aos 91 anos.... Não era, naturalmente, um escritor de "best-sellers",não tinhas bichas de gente à cata de um autógrafo... Mas estava ali também para dar autógrafos, que a Feira do Livro também é uma Feira de... Vaidades...
Falei-lhe do nosso blogue, da minha condição de ex-militar na Guiné... e pedi-lhe para me autografar o seu livrinho, que acabava de sair em 2014, "Do colonialismo como nosso impensado" (*)... E foi por ele que soube que o seu pai também fora militar e que ele também passara pelo Colégio Militar, como muitos outros filhos de oficiais do exército....
Teve então a gentileza de me escrever três linhas de dedicatória, que reproduzo acima... Mas a impressão que guardei dele, mais forte, foi a de um homem, já com os seus 91 anos de "juventude", de uma humildade, afabilidade e empatia raras nos homens das letras e da academia...
Não vou repetir tudo aquilo que a comunicação social e as redes sociais têm dito deste português maior, um "príncipe da Renascença", que vai ser enterradado, hoje, na sua humilde aldeia fronteiriça de São Pedro do Rio Seco, Almeida, numa cerimónia íntima aberta apenas à família e aos seus poucos conterrâneos,
Os seus livros esgotaram-se nas lojas da FNAC. É sempre assim quando morre um um escritor famoso. Os portugueses são generosos na morte. Somos unanimistas no reconhecimento póstumo dos nossos intelectuais, e nomeadamente dos "estrangeirados",,, Só Pessoa morreu (quase) anónimo. E foi preciso alguém, como Eduardo Lourenço, "de fora", para lhe dar a dimensão universal e genial que ele, Fernando Pessoa, hoje tem...
2. Vale a pena, isso, sim, ver e ouvir a entrevista dada pelo Eduardo Lourenço, à jornalista da RTP Fátima Campos Ferreira, em 25 de abril de 2016. O programa (50' 19''), foi gravado no Centro de Arte Contemporânea da Fundação Calouste Gulbenkian. Disponível aqui, na RTP Play.
No passado dia 1, dia da sua morte, vi (ou revi) essa entrevista e, no meu diário, anotei, ao correr da pena, algumas observações de que tomo a liberdade de reproduzir aqui alguns excertos (**):
(...) Foi uma entrevista intimista. As questãoes postas não eram apenas dirigidas ao filósofo e ao ensaísta mas também, e sobretudo, ao homem, ao beirão, ao cidadão, ao português.ao europeu. (...)
(...) Entrevistadora e entrevistado, estão sentados, a uma mesa, com dois copos de água em cima do tampo. Ele é filmado muitas vezes de lado, de perfil, e de repente pareceu-me ver o perfil, também beirão, de Salazar. (...)
(...) Para um homem que esteve, inicialmente, próximo do existencialismo,as questões que lhe são postas não podiam ser mais...existencialistas: Deus, o sentido da vida, a morte, a condição humana, o amor, a liberdade, a relação com os outros, a família, o ser português... e europeu.
(...) Do Colégio Militar, guarda melancolia...Foi-lhe difícil estar um ano, fechado num colégio intermo. Tirou-lhe a alegria da família e dos irmãos. Reconhece, no entanto, que lhe dei disciplina para a vida. (...)
(...) Qual teria sido o caminhos seguido pelos outros seis irmãos ? Não se falou disso, nem nas naturais dificuldades que teria uma família numerosa, nos anos 30. O vencimento de um oficial subaltermo do exército, nessa époa, era baixo. Lembra-se de pastar cabras com a avó e a singuralidade de cada ser humano é uma das coisas que o fascina (...)
(...) Ganha uma bolsa, vai para França e aí conhece a futura mulher... O ter podido sair do país e tornar-se um 'estrangeirado', foi muito importante para a sua reflexão e para sua obra... Tem outro distancimamento crítico e afetivo que nunca teria se tivesse feito carreira académica na Universidade de Coimbra onde se licenciou em ciências histórico-filosóficas. Foi assistente do professor de filosofia Joaquim Carvalho. (...)
(...) Não fez uma carreira académica típica, nunca se doutorou, ao que eu saiba. E em França era um estrangeiro, não dominando perfeitamente a língua, logo no início... Ironia: é hoje considerado um dos grandes pensadores europeus, e o maior pensador português do século XX... Mas não dá importância aos inúmeros prémios e condecorações que recebeu em vida, em Portugal, em França e muitos outros sítios. (...)
(...) Vê-se que é um homem ponderado não é palavrosos, mede as palavras, tem um discurso bem estruturado, encantatório, poético, metafórico, aguarda um, dois ou três segundos antes de responder às perguntas da jornalista... Com o típico gesto pensador, que põe a mão direita sobre parte da testa e da face....Controla as suas emoções, o tom de voz é sereno, mesmo quando há questões que o inquietam, a crise demográfica, o declínio da Europa, a lenta mas crescente invasão da França e doutros países oriundos de outras cultutas e religiões.. Faz referência explícita aos povos islâmicos e ao terrorismo fundamentalista islâmico, preocupa-o a incapacidade da Europa para encontrar respostas, a solidão do Papa, a crise do cristianismo... E, a claro, fala da morte, a impossível experiência da nossa própria morte. (...)
Para quem quiser saber mais sobre o Eduardo Lourenço, ver aqui a sua página oficiosa, organizada pelo Centro Nacional de Cultura.
Por exemplo, ficamos a saber, da sua biografia:
"1941 Pensa entrar na Escola do Exército mas desiste dos cursos preparatórios militares na Faculdade de Ciências e presta provas de aptidão à Licenciatura em Ciências Histórico-Filosóficas, tendo sido admitido; 1944 Conclui o 4º ano da licenciatura em Ciências Histórico-Filosóficas; 1945 Frequenta o Curso de Oficiais Milicianos; 1946 A 23 de Julho conclui, com 18 valores, a licenciatura de Ciências Histórico-Filosóficas defendendo a tese intitulada O Idealismo Absoluto de Hegel ou O Segredo da Dialéctica; 1947 É convidado, pelo Prof. Joaquim de Carvalho, para Assistente (20 Outubro 1947-20 Outubro 1953) do Curso de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra – Presta serviço militar na Guarda, como alferes miliciano, no Batalhão de Caçadores 7"...
3. A Fundação Calouste Gulbenkian está a editar, desde há uns anos, as suas obras completas, que são numerosas. E em parte inéditas. O espólio de Eduardo Lourenço está à guarda da Biblioteca Nacioanl e está a ser estudado pelos especialistas.
O livro cuja capa reproduzimos acima é uma obra que reúne escritos de várias épocas, tendo como fio condutor uma reflexão sobre o nosso "colonialismo", e que é publicado, em 2014, com "40 anos de atraso"...
Gostaríamos, um dias destes, de poder deixar aqui a nossa "nota de leitura" pessoal dessa obra. Como dizem os organizadores, trata-se de um volume que reúne "textos publicados e inéditos, completos e fragmentários do Eduardo Lourenço sobre o 'problema colonial' português' ". O índice (resumido) dá uma ideia da riqueza do conteúdo do livro: Limiar; contornos e imagens imperiais: I. Crítica da mitologia colonialista (década de 60 até 1974); II.No labirinto dos epitáfios imperiais (1974/75 e depois); III. Heranças vivas.
Como Eduardo Loureno reconheceu foi fundamental a sua ida para o Brasil (em maio de 1958 foi, por um ano, como professor convidado da Universidade da Baía, reger a cadeira de Filosofia):
______________
Notas do editor:
(*) Vd. poste de 17 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P15013: Notas de leitura (748): “Do Colonialismo como Nosso Impensado", Organização e Prefácio de Margarida Calafate Ribeiro e Roberto Vecchi, Gradiva Publicações, 2014 (Mário Beja Santos)
(**) Último poste da série > 29 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21593: Manuscrito(s) (Luís Graça) (194 ): À laia de despedida de uma Garça gentil...
6 comentários:
“Não sou da altura que me vêem,
mas sim da altura que os meus olhos podem ver”
(Fernando Pessoa)
Melhor definição de um pensador como Eduardo Lourenço?
Porque seria o mesmo Eduardo Lourenço um admirador e leitor assíduo de Pessoa?
“Coisas “.....
J.Belo
E,inesperadamente,veio-me à memória um monólogo (dito em voz bem alta para....ser ouvido) por parte de um então Capitão, medalhado ao mais alto nível por feitos na Guiné e Moçambique.
Sentado ao balcão do Bar de Oficiais da EPI e olhando displicente para entrevista (na TV) a Eduardo Lourenço :
-“Esta gajada do antigo reviralho apesar de velhos nunca mais morrem!”
Seria o ano de 1977?
Saindo de Portugal com destino a França em busca da liberdade não existente em plena ditadura salazarista,Eduardo Lourenço escreveu no seu diário em 1949:
“Sou estrangeiro apenas à poucas horas.
E tanto bastou para encontrar a palavra decisiva do meu destino.
Estrangeiro.Ausente.Sozinho,entregue à clarividência desta noite sem ninguém conhecido à minha volta, descobri que nunca fui outra coisa
desde a minha infância.”
Palavras.
Felizmente escritas antes de o medalhado Capitão ter..... nascido.
Um abraço
J.Belo
José Belo, já agora acrescenta este excerto de uma entervista de 2007,ao jornal "Público":
LMQ - Como é que foi mudar-se de Portugal para França, naquela época? [1949]
EL - Imagine o entusiasmo e o espanto de chegar a Bordéus (em 1949) e, na rua principal, ver uma grande faixa de propaganda do Partido Comunista Francês. Veja o que é sair do país de Salazar, atravessar o de Franco, que ainda era bem pior, e chegar a um sítio onde aquilo era uma coisa normal. Naquele momento, a França era o país da liberdade. Eu, que aqui cortara com os meus amigos comunistas – enfim, deixei de os ver mas nunca cortei com eles: o Joaquim Namorado chamava-me “reaça” mas sempre com um grande sorriso –, fui-me dar lá fora com muita gente do partido. Mas não era o mesmo PC, era um PC que culturalmente estava sob o fogo do olhar dos outros e que era o actor e o objecto de uma discussão que durou anos. Quando cheguei a França, o PCF era dominante no plano cultural. Mesmo o Sartre, embora tenha travado a sua guerra, sentia-se muito fascinado. Era o espírito da época. Eu sempre estive interessado nessas discussões, mas as minhas certezas em relação ao que não podia admitir nunca variaram. (...)
http://www.eduardolourenco.com/biografia/1949-Bordeus.html
O nosso Zé Belo ao escrever, medalhado ao mais alto nível,terá involuntariamente esquecido:
Por merecimentos comprovados.
Manuel Teixeira
Pensou e escreveu Eduardo Lourenço: "Há outros que (…) buscam por sua conta a melodia única que lhes explicará o tempo que é o seu próprio tempo, e que não sossegam enquanto o não inventam e se perdem nele para se salvar. São eles os que nós chamamos poetas, são os que acrescentam criação à criação e assim renovam o mundo."
Eduardo Lourenço (1923-2020)
Abraço,
António Graça de Abreu
António. jukgo que é do livro "Tempo e Poesia", agora reeditado pela Gradiva. Fundamental para poetas (como tu) ou aprendizes de poeta (como eu)...
Ainda não comprei nem li, mas é obrigatório. Obrigado pela citação.
Um alfabravo. Luis
Enviar um comentário