quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

Guiné 61/74 - P21606: Os nossos seres, saberes e lazeres (426): Memórias de Paradela (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)

Paisagem de Paradela


1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), autor do livro "Brunhoso, Era o Tempo das Segadas - Na Guiné, o Capim Ardia", com data de 2 de Dezembro de 2020, trazendo algumas Memórias de Paradela:


MEMÓRIAS DE PARADELA

Francisco Baptista

Nesse tempo para ir de umas terras às outras, utilizavam-se os caminhos de terra, onde circulavam pessoas a pé ou a cavalo e carros de bois, no geral delimitados por muros toscos de pedra que os isolavam das propriedades. Havia muitos motivos e pretextos para os vizinhos se visitarem, laços de família, negócios, trabalhos em grupo ou de artistas, casamentos, festas anuais, etc. 

Já havia uma estrada municipal de macadame, via muito estreita, onde dificilmente cabiam dois automóveis a par, que saindo de Mogadouro comunicava através de ramais com Remondes, Brunhoso e Paradela no fim de linha. Pouco utilizada de resto porque quase não havia por lá automóveis, as distâncias eram maiores e as vistas melhores por caminhos antigos para quem gostava de apreciar,  com vagar, as culturas agrícolas, os prados, o gado e o arvoredo.

Em Brunhoso havia uma carrinha pequena, que andava sempre talvez a 20 Km à hora ou menos. O dono era um comerciante de cortiça, de apelido Sol, como tal concorrente do meu pai, não se falavam por estórias do tempo do meu avô que morreu cedo, que eu nunca consegui deslindar bem . O meu pai nunca falou disso mas havia uma família de trabalhadores da casa desses meus avós e dos meus pais que falavam mas, por serem muito fabuladores, eu não conseguia saber quando diziam ou não a verdade. Não mentiam mas tinham uma imaginação desenfreada que não conseguiam controlar.

Apesar disso, mesmo sem se falarem, o meu pai e o Sol tiveram sempre boas relações comerciais pois nunca se afrontaram um ao outro nesse âmbito.

Mais tarde, um lavrador inovador que tinha estudado em Coimbra, comprou um automóvel, penso que um Citroën,   já teria eu mais de 15 anos.

Todas as aldeias próximas comunicavam por caminhos entre si assim como com a Vila, onde se faziam as feiras e onde havia os grandes estabelecimentos comerciais.

Paradela fica três quilómetros a sul de Brunhoso. Saída pelo Fundão a trezentos metros, num cruzamento, derivamos à esquerda por um caminho pedregoso para as Rodelas do Fundo. Chegados aqui, vale bem a pena, fazer uma paragem. Para sudeste havia um pequeno vale com alguma água até ao Verão que corria no meio de uma regada (prado com ribeiro), antes de ficar coberto com árvores e arbustos que formavam uma pequena floresta cerrada, que ia dar ao ribeiro da Lagariça, quinhentos mais abaixo. A leste havia uma várzea extensa e fértil, a contrastar com o caminho percorrido. Terra funda e enxuta, a que chamavam Barriguinho, que produzia cereal com abundância, na sua maior parte propriedade de duas famílias ricas da terra. 

O meu pai tinha lá somente cerca de dois hectares, um deles trocou-o cedo por sobreiros, a sua maior paixão.
Paisagem com Brunhoso ao fundo

Maior campina de trigo era o Urzal, que confinava com Remondes, mas menos fértil, para o conseguir ser só em anos de muita chuva, pois as terras eram fracas para suster as águas. Como campo de trigo e centeio, o Urzal era impressionante porque se ligava a outras duas zonas de sequeiro, as Rodelas e os Lameirões. Era belo ver o trigo e o centeio verdejar ao vento nos meses de Março e Abril ou ver a grande campina loira nos meses de junho e julho antes das Segadas.

Depois do passeio por searas da minha mente indisciplinada,   voltemos ao caminho que a viagem é curta. A quinhentos metros das Rodelas do Fundo atinge-se o alto de uma colina que se chama Couço, onde está um marco geodésico a dividir os "termos " das duas freguesias. 

Em frente já em terrenos de Paradela iremos passar pelas eiras da terra, bastante grandes, uma zona de lameiros  algumas hortas, antes de entrarmos na povoação por uma das três ruas principais. À Praça a que os paradelences chamavam Pracinha, com muito orgulho, talvez por estar bem enquadrada e ter uma boa área, em terreno plano, iam desembocar as três principais ruas da aldeia, num lado está a Igreja Matriz, noutro havia uma taberna e um "soto" (mercearia no Nordeste) no outro. 

Era lá, ainda será, que se reuniam os homens a falar da agricultura, do tempo e a comentar as notícias da terra e as de fora. Uma das outras ruas, uma vai para norte em direção à estrada camarária, a outra mais pequena para o sul, na direção do Salgueiro, uma terra anexa com poucas casas a meio caminho do rio Sabor. 

Agora vive lá pouca gente como de resto em todas as aldeias, porém no tempo a que se reporta esta escrita, viviam lá três ou quatro casais todos com muitos filhos.
Pracinha de Paradela
Igreja de Paradela

Nesses tempos havia muito convívio entre aldeias vizinhas. Nas festas, em bailes, jogos de futebol e outros raros convívios a mocidade de uma terra e outra juntava-se muitas vezes. Os jogos de futebol eram muito renhidos e um pouco trauliteiros. O tio Chico Carrasco de Brunhoso, grande trabalhador, muito sociável e amigo da farra, sempre o admirei e muitas vezes convivi com ele, jogou até aos cinquenta anos ou mais, era defesa, a bola podia passar mas o homem não. No fim do jogo era homem para convidar as duas equipas beber à taberna ou ao café.

Nos bailes de Brunhoso, os rapazes de Paradela, sempre melhor arranjados, procuravam agradar e dançar com as raparigas da terra, e elas como mulheres talvez se mostrassem sensíveis à apresentação dos cavalheiros, o que desagradava aos seus conterrâneos, que muitas vezes depois do baile, escorraçavam os "estrangeiros" à pedrada. 

Havia muita picardia de parte a parte mas apesar disso nunca houve danos ou ferimentos visíveis entre eles. Os de Brunhoso detestavam que os de Paradela, vaidosos e fanfarrões, lhes quisessem roubar as raparigas, que eles consideravam suas. Diziam, entre outras maldades: "Paradela com sol a casa" para os desvalorizar e denegrir.

Em tudo isso havia alguma verdade, os de Paradela mais vaidosos, não trabalhavam tanto, os de Brunhoso mais negligentes no vestir, mas trabalhavam muito. Porém nas festas anuais depois do futebol conviviam como amigos e rivais que se respeitam e iam comer às casas dos que faziam a festa.

Algumas regras dos bailes:

Uma jovem depois de se recusar a dançar com algum rapaz, não podia mais dançar nesse dia.

Geralmente os rapazes convidavam as jovens mas a determinado momento havia um mandador que dizia: "Valsas das damas!", a partir daí eram elas que convidavam os rapazes.

O normal era irem só solteiros mas também podiam entrar casados. Algumas vezes, poucas, me encontrei com o meu pai, que era melhor dançarino do que eu, em bailes de Brunhoso. Tive uma prima, muita amiga, que em bailes de família, em casa dela, me tentou muitas vezes ensinar. Dizia-me: Chico faz assim, dois passos para um lado, um para o outro. Eu trocava os passos, era indomesticável!

Uma noite no arraial de Paradela encontrei uma moça alegre, vistosa e divertida, parecia a rainha do baile, fui dançar uma vez com ela e continuamos a dançar, estava descontraído, ia falando e ela a ouvir-me com muitos sorrisos mas nisto o meu amigo que me tinha dado boleia e que tinha o pé mais pesado do que eu, nunca o vi dançar, chamou-me para irmos embora. Estragou-me a festa, em silêncio chamei-lhe todos os nomes, mesmo os mais ordinários.

O padroeiro da festa de Paradela a que eu e os meus irmãos íamos sempre, convidados pela grande família que lá tínhamos, era S. Calisto que foi Papa nos primeiros anos do cristianismo e mártir também, tal como as padroeiras de Brunhoso e Remondes. A Igreja Católica santificou muitos mártires e pô-los nos altares das igrejas de toda a Terra provavelmente para os pobres se resignaram à sua vida miserável. Entretanto, em Roma, depois da conversão de dois Imperadores romanos, cresceu o luxo, a pompa e a devassidão.
Rua de Paradela

O clima da terra era idêntico aos das aldeias ribeirinhas do Sabor próximas, mais quente na ladeira onde havia oliveiras e amendoeiras e mais frio nas proximidades da povoação, onde se cultivava o trigo, o centeio e a cevada e onde estavam as hortas. A distribuição das terras era desigual, muitos pobres com uma hortinha, poucas oliveiras e pouca terra onde semear os cereais, três ou quatro lavradores ricos e alguns mais remediados.

A minha avó materna, que teve alguns irmãos, só teve uma irmã que casou em Paradela. Sendo muito amigas,  cultivaram sempre essa amizade e transmitiram-na à família. A minha mãe só teve irmãos, e as irmãs fazem tanta falta às mulheres, cultivou muito a amizade com as primas duma terra ou de outra. 

Recordo-me de ir lá às festas e ser disputado para almoçar por três ou quatro casas de parentes, os meus irmãos também se tivessem idade para tal, o meu pai muitas vezes, a minha mãe quase nunca, pois estava ocupada com os filhos mais novos ou com a lida da casa.

Tinha lá outra prima, filha de um tio dela, com quem tinha boas relações, embora menos próximas, algumas vezes fui também a casa dela, convidada pelo filho que era da minha idade, infelizmente já falecido há alguns anos.

As primas da minha mãe eram hospitaleiras e simpáticas, os maridos, as filhas e os filhos delas também.

De Paradela era o Jorge, uma alma simples, tinha algum atraso mental, muitas vezes aos domingos e quase sempre em dias de festas em Brunhoso, passava por lá, ficava um pouco à conversa com os rapazes e abalava dizendo que ia beber água a Remondes. 

Outro homem muito recordado em casa dos meus pais era um pequeno lavrador que numa feira de Mogadouro vendeu uma vaca ao meu pai. Foi com um irmão meu a acompanhar a vaca a Brunhoso e o meu irmão conta que foi sempre a chorar. Era uma vaca valente, pouco meiga mas rápida e cheia de génio, o meu pai manteve a descendência dela enquanto pôde, teve filhas e netas valentes como ela. Demos-lhe o nome igual ao apelido do lavrador que mais a chorou.

Para concluir não posso deixar de contar um episódio da minha vida de garoto que me ficou gravado na memória:

Teria 8, 9 ou dez anos, terei sido convidado por um rapaz de Paradela, amigo, primo, não recordo quem, para ir jogar futebol com eles. O que recordo, a minha memória nunca apagou, é que depois de passar pela Praça, na rua de cima que dá para a estrada apareceu à minha frente uma rapariga próxima da minha idade, um pouco magra e mal arranjada, que de uma forma desabrida me perguntou se gostava dela. 

 Eu não gostei confesso, mas por compaixão disse-lhe que sim, segui o meu caminho para o campo de futebol que era mais acima depois de virar à direita numa colina sobranceira à aldeia. Não sei se as bolas rematadas para esse lado com força não sairiam costa abaixo. Quando cheguei estavam lá muitos contemporâneos meus. Formaram-se equipas e não sei se por ser bastante alto e atlético valorizaram muito a minha presença. Eu que nunca soube jogar futebol, tinha tão pouco jeito para isso como mais tarde para dançar, fui muito incentivado e aplaudido, até parecia um craque estrangeiro.

Foi o meu dia de glória no plano desportivo.

Esses rapazes puros e generosos apostaram na minha carreira desportiva, e fizeram-me correr de alegria no regresso à minha aldeia. Depois o sonho acabou, para mim nunca tinha começado, eles quiseram acreditar nele, agradeço-lhes de todo o coração.

Gostei de conhecer Paradela e as suas gentes, passei lá muitos dias felizes.
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Notas do editor

Último poste da série de Francisco Baptista de 21 de Novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21564: Os nossos seres, saberes e lazeres (421): Memórias de Remondes (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)

Último poste da série de 28 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21589: Os nossos seres, saberes e lazeres (425): Na RDA, em fevereiro de 1987 (5) (Mário Beja Santos)

7 comentários:

Anónimo disse...

Meu Amigo

Os meus protagonismos em comentários a este blogue estão a tornar-se exagerados para o “ meu gosto” e,não menos, para o lugar nesta bicha de pirilau na picada.

A genuinidade dos teus textos entra-nos pelos olhos dentro por não habituais nos tempos que correm..... entre as gentes que escrevem.
Mesmo quanto aos bem mais importantes olhos da alma.
Seja Brunhoso,Paradela,Abisko,Karesuando ou Jookomokk,todos gritam verdades iniludíveis.

Para não escritores como eu as imagens dizem sempre o que não conseguimos exprimir em palavras.
Daí o ter-te enviado o vídeo sobre o Mercado de Inverno de Jookmokk-2019.
Cidadezinha da Laponia sueca que, apesar de situada bem dentro do Círculo Polar Árctico,quase poderia espelhar um mercado provincial lusitano.
Vídeo,quanto a mim,tão genuíno como os teus textos.
Sinto-me feliz por encerrar o meu período “comentarista” referindo-me a um texto teu.

Um grande abraço do J.Belo

Anónimo disse...



Amigo José Belo:

Eu gostaria de ler e comentar como tu mas não tenho nem tua habilidade nem a tua erudição. Escrevo histórias de vidas simples com palavras simples, tudo o mais falta nos meus textos, talento, inspiração e sabedoria. Talvez haja alguma centelha de espírito que me terá ficado dos tempos de garoto quando sozinho ao guardar as vacas de dia ou os melões à noite, perscrutava os horizontes e observava as estrelas. Muito pouco para me poder comparar com alguém que saiba escrever realmente. Tu que és como a lua, um passageiro do espaço, com uma grande e rica história de vida devias escrever sobre ela pois tens muita matéria e bons instrumentos. Escreve e ensina-me a escrever, por favor.
Um grande abraço

Francisco Baptista

Anónimo disse...

Palavras com tanto de amigas como de imerecidas.
Palavras que,mesmo depois de atravessarem uma fria e escura Europa em Dezembro (literalmente “isolada” e assustada Europa)chegam a este extremo do extremo Norte da Escandinávia mantendo o tão especial calor da amizade lusitana.
São Amigos como tu,que tenho tido o privilégio de conhecer em ambos os lados do Atlântico, que sempre me fazem encolher os ombros e sorrir quando os que me não(!) conhecem referem o meu pseudo-isolamento masoquista.
Com Amigos verdadeiros....isolado?
Eu?

E,como por aqui se diz: Tack för dina vänliga ord!

J.Belo

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Francisco, quem é que te meteu na cabeça és um freco escritor ?... Isto é prosa da boa, e mais do que isso, o que escreves sobre Brunhoso e as terras à volta, como Paradela, e sobre as memórias da tua infância, é tocante... O bom escritor é, como o pianista, sabe tocar as teclas certas para libertar as nossas emoções...

A nossa infância marca-nos para sempre, mesmo que a gente, passados estes anos todos, já tenha dela fracas reminiscências... Não é o teu caso, a tua memória é de elefante e fotográfica...

Um dia eu gostaria de poder ainda de calcorrear esses caminhos, contugo como guia... Que sorte, tiveste uma infância feliz e tens memória disso, e um grande talento para nos transmitir isso, essa felicidade da infância, que é irrepetível...

Um abraço fraterno. Luís

Joaquim Luis Fernandes disse...

Os que de nós viveram a sua infância, adolescência e parte da juventude, em ambientes rurais, sentirão de modo particular e com emoção, o reviver destas memórias, de lugares e de outros tempos, como muito bem o faz o nosso camarada e amigo Francisco Baptista.
Nesses lugares e nesses tempos, apesar da dureza da vida e de tudo o mais, éramos felizes e não o sabíamos.

Agora batem as saudades!
Desses lugares e do seu bucolismo ou do que eles evocam?
Ou o desejo de voltarmos a ser novos?
Melhor será aceitarmos-nos como somos e reviver o passado sem nostalgia.

Escreve mais, Francisco Baptista. Serei teu leitor atento. E desculpa pela minha longa ausência.

Forte abraço
Joaquim Luís Fernandes

Anónimo disse...



Caro Luís Graça. quando me escrevem amigos que eu tenho por mais capazes em talento literário, na escrita e interpretação de textos, sinto que tenho de posicionar num lugar mais abaixo na escala de competências."Sutor, ne ultra crepidam" Tu sabes de quem falo, tem tal como tu uma cultura vasta , tens longos diálogos com ele que eu gosto de ouvir à distância.
Por vezes penso que uma pessoa não se deve desvalorizar, nem envaidecer, para nos denegrir ou elogiar existem os outros. Nós perante qualquer pequeno êxito que alcancemos devemos agir com naturalidade e serenidade.
De qualquer forma, agradeço todo o mérito que me atribuis.
Um grande abraço

Francisco Baptista

Anónimo disse...



Amigo Joaquim Luís Fernandes, deixaste de aparecer, custou-me confesso mas estavas no teu direito, todos temos o direito de estar ou não estar num convívio alargado, faz parte da liberdade de cada um. Gostei de te rever de novo mas não tinhas que pedir desculpa.
Muito obrigado pelo elogio que me dás e pelo incentivo também.
Espero igualmente pelos teus textos.
Um grande abraço

Francisco Baptista