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sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

Guiné 61/74 - P26496: Notas de leitura (1772): Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné: Uma mulher singularíssima, Bibiana Vaz, século XVII (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Novembro de 2024:

Queridos amigos,~

Philip Havik já com o estatuto de reformado, prestou e está a prestar um relevantíssimo trabalho em prol da cultura portuguesa, e em diferentes domínios. Recordo o trabalho que ele fez com o António Estácio, de saudosa memória, sobre os chineses em Catió; este nosso confrade António Estácio que escreveu sobre Nha Carlota e Nha Bijagó, duas senhoras de grande peso da sociedade guineense, crioulas muito apreciadas e com grande poder comercial. Achei por bem publicar aqui algumas intervenções que ele deixou em trabalhos e dizer que quando quiser intervir no nosso blogue é só bater à porta, não precisa de pedir licença, aqui a Guiné é soberana, pelo amor que lhe dedicamos.

Um abraço do
Mário



Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné:
Uma mulher singularíssima, Bibiana Vaz, século XVII (1)


Mário Beja Santos


Vamos a partir de hoje publicar um conjunto de trabalhos assinados por um distintíssimo investigador, há muito ligado a Portugal, com ênfase na medicina tropical e em estudos orientados para a Guiné colonial. 
Um pouco do seu currículo:

Philip J. Havik (doutorado em Ciências Sociais pela Universidade de Leiden, Países Baixos) foi investigador principal do Instituto de Higiene e Medicina Tropical da Universidade NOVA de Lisboa. 

Trabalhou como investigador na Research School for African, Asian and Amerindian Studies (Universidade de Leiden, Países Baixos) e no Instituto de Investigação Científica Tropical (IICT) em Lisboa. Ensinou antropologia colonial e pós-colonial na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa.

Foi Research Fellow no African Studies Centre (ASC) da Universidade de Leiden e investigador associado do Centro de Estudos de História Contemporânea (IHC) da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa. Autor/coautor de mais de 80 publicações, incluídas dezenas de artigos em revistas e capítulos de livros.

O trabalho a que hoje vamos fazer referências intitula-se Matronas e Manonas: Parentesco e Poder Feminino nos Rios da Guiné (Século XVII)

Começa por sumariamente historiar a condição da mulher, o seu escasso poder de decisão fora do meio doméstico e como a partir da abertura do espaço atlântico e com a presença de africanas ativas em todo o tipo de serviços em cidades como Lisboa e Sevilha, verdadeiras bestas de carga, se deu uma barafunda de géneros que foi aproveitada por mulheres que souberam criar espaços de manobra ao nível do trabalho, da religião e em rituais de toda a ordem. Seja como for, o desempenho da mulher nas sociedades africanas foi relegado para dois domínios fundamentais: a reprodução e a força de trabalho. Daí a herança e a identidade do grupo passarem geralmente pela linha feminina.

Quando a África Subsariana entrou no imaginário Ocidental, o comércio de escravos já era bem conhecido, mediado exclusivamente por berberes e árabes no espaço do Mediterrâneo. Deu-se depois a interação afro-atlântica, as notícias deste continente começaram progressivamente a ocupar um lugar na realidade em que as lendas de monstros e feras do Mar Ignoto se transformaram em ouro, marfim e outras preciosidades. 

Escravas africanas inundaram cidades europeias, no continente africano as relações afro-atlânticas produziram povoações mercantis, assistiu-se, mesmo que superficialmente, à cristianização dos quadros das redes comerciais, falava-se em cristãos e gentios. Estes cristianizados, descendentes afro-atlânticos, nascidos nas capitanias ou presídios, elevaram a importância da mulher, que nos chamados rios do Guiné do Cabo Verde, que passou a ter um papel chave nestes ambientes comerciais, assimilando diferentes papéis como curandeiras e conselheiras e mães dos “filhos espúrios”. 

A mulher passou a ser a garantia de sobrevivência em terras alheias, era um mundo com repartição de tarefas que se veio a estruturar nas redes comerciais da Costa Ocidental Africana a partir do século XVI e até fins do século XIX; e, claro está, veio a ter fortes incidências no século XX em que a Nhá ou Sinhara substituía, como Mindjer Garandi, o comerciante, por qualquer razão ausente.

 Philip Havik estuda a figura de Bibiana Vaz de França, nascida em Cacheu, membro de um clã poderoso da localidade. Ela é assumidamente uma das poucas vozes femininas que se fazem ouvir no universo limitado da palavra escrita. Cacheu era então um centro importante da rede comercial atlântica do tráfico de escravos, povoação elevada a vila em 1605; foi fundada por tangomaos, ou seja, aqueles que negociavam por conta própria, em colisão frontal com a política do monarca. Cacheu era um pequeníssimo entreposto de onde saiam aproximadamente 3 mil escravos por ano.

Um bom número de comerciantes tinha ascendência sefardita e cabo-verdiana, daí a designação pejorativa de tangomaos. Quando, por decisão régia, se criaram companhias de comércio com pretensões monopolistas, como a Companhia de Cacheu e Rios de Guiné, em 1676, o meio local recebe-o muito mal, os moradores iniciais denunciar os desvios e a prepotência de notáveis nomeados por Lisboa. 

O clã dos Vaz de França e dos Gomes eram muito influentes em Cacheu, de modo que o casamento de Bibiana com Ambrósio Gomes, este com ascendência sefardita e africana, trouxe vantagens mútuas. Ambrósio ocupara o lugar de capitão-mor durante alguns anos, e com o fim do contrato da companhia, Bibiana, um seu irmão e sobrinhos, constituíram um forte núcleo local, era uma rede de negócios que se estendia do Rio Gâmbia até à Serra Leoa. Quando o conselho Ultramarino deliberou que Bibiana devia fazer partilhas, ela já havia colocado maior parte dos bens fora do alcance do novo capitão-mor. Atenda-se agora a estas observações de Philip Havik:

“O novo comandante da praça de Cacheu, seguindo à letra o antigo contrato da companhia, proibiu a vinda de embarcações estrangeiras. A revolta do povo não tardou: em 25 de março de 1684, prenderam o dito capitão à saída do hospital enviando-o para Farim, para uma casa de Bibiana, onde permaneceu por espaço de 14 meses. Bibiana encabeçou o movimento de revolta, ela, seguida pelo povo ‘cristão’, decidiram não mais admitir capitães do reino nem das ilhas de Cabo Verde, nem portugueses negociando com o gentio, mas só com moradores da praça. Foi um duro golpe para os interesses dos portugueses; os moradores de Cacheu fizeram muitas petições contra os efeitos nefastos resultando-se da criação da comissão da companhia majestática, e passar a negociar n mato, esquivando-se a pagar direitos aos cofres reais – na realidade os bolsos dos capitães-mores e da companhia. Cacheu não era mais do que um entreposto empobrecido, desprovido de contribuintes e fontes de receita, cuja administração se encontrava no meio hostil, assolado, judeus, crioulos e gentios.”

Deu-se a reação das autoridades em Lisboa, Bibiana, o irmão e outro cúmplice no levantamento foram presos da cadeia da Ribeira Grande. O ponto curioso da historiografia anda à volta do facto de só muito tarde se ter vindo a conhecer os tramites desta sublevação. Presa em Cabo Verde, doente e iletrada, enquanto as autoridades procuravam secretariar e apreender os bens de Bibiana e família, ela e o irmão receberam um perdão real, a Corte, ciente da situação catastrófica do comércio português na costa receava perder ainda mais influencia. Daí a reabilitação de Bibiana. 

Mas havia outros pontos a favor dela. Depois de reabilitada, em sinal de agradecimento, ofereceu-se para construir um forte em Bolor, local estrategicamente situado na entrada do rio Cacheu, deu como garantia a sua pessoa e todos os seus bens.

Em jeito de conclusão, o investigador recorda o mundo de intriga que acompanhou o caso Bibiana Vaz, mulher africana, cristã, viúva, comerciante, armadora/parente de linhagens da terra dos donos di chon, ela liderou uma revolta contra uma autoridade alheia.

Enfatize-se um outro ponto que o autor chama a atenção: “Apesar das múltiplas petições feitas pelos moradores de Cacheu contra os efeitos nefastos resultantes da criação da companhia e contra e prepotência dos capitães-mores que chamaram todo o comércio para sim, não houve, por parte da Metrópole nem das ilhas, intervenção alguma. A resistência dos moradores ficou patente no facto da maioria andar a negociar e a morar no mato, esquivando-se de pagar direitos aos cofres reais.”

Voltando a comentários de Philip Havik:

“O governador de Cabo Verde e os capitães-mores saem-se mal desta história, muitas vezes agindo com base em raciocínios mesquinhos e vingativos. Cúmplices da crise em que mergulhou o tráfico português ao longo dos anos, as autoridades de Lisboa e da Ribeira Grandes, tinham perdido todo o controlo sobre a situação. A fraqueza da posição portuguesa no comércio da Costa da Guiné não permitia mais que o perdão de Bibiana".

Este artigo vem publicado em:
https://www.academia.edu/42757187/Matronas_e_Mandonas_parentesco_e_poder_feminino_nos_rios_de_Guin%C3%A9_s%C3%A9culo_XVII_

Nha Bijagó (1871-1959)
Nha Carlota (1889-1970)
Arredores de Cacheu, ida à fonte, 1900
O Forte de Cacheu e a estátua de Diogo Gomes, mutilada
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Nota do editor

Último post da série de 10 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26481: Notas de leitura (1771): A colonização portuguesa, um balanço de historiadores em livro editado em finais de 1975 (5) (Mário Beja Santos)

domingo, 21 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23543: In Memoriam (449): Gratas recordações do confrade António Júlio Emerenciano Estácio (1947-2022) (2): Uma viagem a Bissau para saber mais sobre a mítica Nha Carlota (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de hoje, 19 de Agosto de 2022 do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70):

Queridos amigos,
Antes do António Estácio partir em 2006 para Bissau, numa daquelas conversas espúrias em voz baixa num recanto da biblioteca da Sociedade de Geografia, fiquei a saber quem era Nha Carlota, nem ela a conheceu pessoalmente nem me foi referenciada nas minhas passagens por Bissau. Reli empolgado a sua inquirição em vários lugares da Guiné onde foi encontrar testemunhos sobre esta negociante que se distinguia por receber em sua casa, em Nhacra, quem quer que lhe batesse à porta, ao cheiro dos seus petiscos, tudo gratuíto, os amesendados só pagavam as bebidas. Uma longa história de negócios e como nos romances mantém-se no mais completo dos segredos a sua vida privada desde que chegou à Guiné, em 1911, até ter casado em finais de 1936, com um antigo empregado, companheiro até ao fim dos seus dias. Um nome que se tornou uma lenda, pela generosidade e afabilidade, leem-se os testemunhos de quem a conheceu e não é difícil perceber a reverência pela Senhora de Nhacra. Que bonito gesto, o do António Estácio, deixar cinzelado no seu tão belo testemunho, a história desta mulher.

Um abraço do
Mário



Gratas recordações do confrade António Estácio:
Uma viagem a Bissau para saber mais sobre a mítica Nha Carlota


Mário Beja Santos

Não sei exatamente se foi em 2005 ou no princípio de 2006 que a subir a escada que dá acesso à Biblioteca da Sociedade de Geografia o António Estácio dá-me a seguinte notícia: imagina que vou a Bissau, recebi apoio para investigar um pouco mais sobre a Nha Carlota. Surpreso, perguntei-lhe quem era a dita. “Nunca foste comer a canja de ostra a Nhacra, em casa da Nha Carlota? Havia ali a melhor cozinha da Guiné, era a senhora mais conceituada da região, com grandes negócios, era ela quem arrematava tudo, o marido ficava atrás, era lendária a sua generosidade”. Ficámos por aqui, cada um foi à sua vida, uns bons meses depois voltou e disse-me que se entregava de alma e coração a pôr todos os seus apontamentos em forma de livro. E em 2010 ofereceu-me Nha Carlota, Carlota Lima Leite Pires, edição sua. Como oportunamente escrevi em recensão aqui feita, era mais uma prova do deslumbramento do António Estácio por pessoas devotadas à sua terra natal e que se tinham distinguido por praticar o bem. Ele replicava escrevendo uma narrativa em sua memória. E esta é digna de pedra mármore.

Muita investigação, bateu à porta de muita gente, foi bem acolhido no essencial, e deixa-nos uma Nha Carlota a roçar a intemporalidade. Não esconde a profunda admiração pela biografada: “É bem o arquétipo de alguém que, oriunda de Cabo Verde e moldada pela dura escola da vida, atingiu invulgar notoriedade na Guiné, onde viveu cerca de seis décadas.” Era conhecida por Nha (Senhora) Carlota do Cumeré ou de Nhacra, visto ter tido negócios em ambas as povoações. Sabe-se que faleceu no Hospital da Parede em setembro de 1970, fica por apurar de que tipo de fratura foi ali tratar, segundo o médico terá sido de fratura do colo do fémur, que obriga à imobilidade e suscita problemas cardíacos.

Já estaria casada com João José Pires em finais de 1936, mas teve uma filha e um filho antes do casamento com este seu antigo empregado. É suposto que tenha nascido em 1889, o António Estácio visitou o cemitério de Bissau e lá fez as suas deduções para chegar a esta data. Era natural de Santo Antão, terá chegado à Guiné em 1911, ela teria então 21 ou 22 anos. E descreve-a: “Alta e de tez clara, constituía uma bela figura, direi mesmo imponente, cujo resoluto olhar irradiava uma grande determinação. A opinião pública é unânime em realçar-lhe a simplicidade no convívio e a hospitalidade, bem patente na lhaneza do seu trato com que a todos recebia.” Era uma admiradora incondicional de Salazar, havia no seu espaço íntimo uma fotografia do ditador, poucos se atreviam a chacotear o seu nome, e em casos tais ela pedia para as pessoas não voltarem. Altruísta, pródiga a ajudar quem precisava, célere a interceder em benefício de terceiros.

E vamos acompanhando a investigação testemunhal, sempre que necessário o António Estácio pôs-se ao caminho para ouvir depoimentos de quem com ela fez negócios, conviveu, recebeu conselhos ou era seu afilhado, deixou-os em grande quantidade. E há a ternura das imagens, naquela viagem de 2006 fez o possível e o impossível para obter imagens de Nha Carlota, que dá à estampa na sua bela narrativa. Quando chegou a luta armada, a sua vida social foi sujeita a grandes alterações, apoiava primordialmente os militares sediados em Nhacra, continuava a abastecer-se em Bissau, viajava através do Impernal na maré-baixa, sempre acompanhada por dois guardiões balantas, a sua sombra, mas nunca ninguém a molestou.

Limito-me a discorrer sobre este texto que vim propositadamente reler à mesa onde ele se sentava, outra homenagem inequívoca não lhe sei prestar, mas seria impensável findar este punhado de recordações sem citar o final do seu livro:
“A ingratidão dos homens e a inexorável voragem dos anos tardam em prestar a merecida distinção. A postura assumida e reconhecida, permitiram-lhe ombrear com grandes vultos da sociedade guineense, pelo que a sua evocação se me afigura ser de elementar justiça. E, embora nunca com ela tenha privado, esta foi a forma que encontrei para lhe tributar o meu reconhecimento, lamentando não ter tido o engenho e arte suficientes para a enaltecer como merecia.”

Como estás enganado, António Estácio, o que há de mais cativante nessa viagem de 2006 foi este processo de enaltecimento completamente desinteressado a uma mulher de boa vontade, que parecia destinada a ficar exclusivamente na memória da tradição oral africana. E nesta secretária em que tanto labutaste já estão mais três livros para te referenciar, tu és credor de todo o nosso agradecimento.

Carlota Lima Leite Pires
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Nota do editor

Último poste da série de 18 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23536: In Memoriam (448): Gratas recordações do confrade António Júlio Emerenciano Estácio (1947-2022) (1): Um homem bom, um estudioso que ligou a China à Guiné, sua terra natal (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Guiné 61/74 - P20611: Historiografia da presença portuguesa em África (197): "Nha" Carlota (1889-1970) e Artur Lopes Nunes (1909-2007), dois portugueses de antanho



Guine-Bissau > Bissau > Av Amílcar Cabral (antiga Av República) > Foto do estabelecimento de Nunes & Irmão Lda, hoje Coimbra Hotel & Spa.

"Um hotel no centro da cidade, junto a Catedral de Bissau. Oferece aos hóspedes um espaço com piscina, ginásio, spa e também sala de reuniões para os hóspedes em viagem de negócios. O restaurante do hotel tem um buffet variado e segundo os hóspedes, muito saboroso. O pequeno almoço é servido num bonito e bem tratado jardim. O hotel fica a poucos metros de locais que merecem a sua visita, como por exemplo, o do Porto de Bissau, a zona mais antiga da cidade, Bissau Bedjo e a Praça dos Mártires de Pindjiguiti."

Tem também uma livraria, a livraria Coimbra. O Hotel está instalado no antigo estabelecimento, um dos mais importantes ds época colonial, da firma Nunes & Irmão Lda, fundada por Artur Lopes Nunes (1909-2007). O negócio continua na família há 3 gerações.

Cortesia da página do Facebook de Hotel Coimbra




1. Há figuras, civis,  que atravessaram a história do séc. XX da Guiné-Bissau (*), e que merecem ser aqui recordadas, como é o  caso das "mulheres grandes" retratadas em livro pelo nosso amigo e camarada António Estácio, "Nha" Bijagó (1871-1959)  e "Nha" Carlota (1889-1970) (**) ... Ou "africanistas" como "Manel Djoquim", o homem do cinema ambulante (1901-1977), cuja história de vida é-nos contada pela sua filha mais nova, Lucinda Aranha. Mas também empresários como António da Silva Gouveia, que criou a Casa Gouveia, ou Artur Nunes, fundador, com o seu irmão Gentil, da firma "Nunes & Irmão Lda". (***)

A história que o Estácio conta do Artur Nunes e da "Nha" Carlota merece ser aqui recordada, como testemunho da forte personalidade desta mulher grande, que foi Carlota Lima Leite Pires (1889-1970) mas também dos valores (honradez, bom nome, reputação, integridade, palavra dada, lealdade, hospitalidade, morabeza, etc. ...) de uma época e que hoje parecem arredados do código de ética do mundo dos negócios.

"Apesar da sua avançada idade, Artur Lopes Nunes, que chegou à Guiné em 1927, referiu que 'Nha' Carlota era cliente  da firma 'Nunes & Irmão', a qual lhe fornecia, a crédito, entre outros produtos, aguardente, tabaco, tecidos, etc., que, por sua vez, ela revendia na loja que possuía no Cumeré e, mais tarde, em Nhacra." (pag. 81).

Entrevistado, em 2006 (, se não erro,)  por António Estácio, que reconheceu a sua "lucidez impressionante", declarou que ambos, ele e "Nha" Carlota, "sempre se deram bem mas isso não impediu que, a dado passo, tivesse ocorrido  uma situação mais delicada".

Ora o que é que aconteceu? "Certa vez, 'Nha' Carlota pretendia adquirir uns produtos sem que, como aliás era hábito, houvesse saldado o montante do fornecimento anterior."

O Artur Lopes Nunes aproveitou o ensejo para lhe lembrar essa dívida, e o respetivo valor. "Sem dar resposta, e naturalmente ofendida, 'Nha' Carlota continuou a ver a mercadoria e, pouco depois, retirou-se sem levar nada".

Passa-se um ou dois dias, até que a mulher grande voltou a Bissau, foi direita à loja do seu fornecedor, "trazendo um saco que entregou ao propietário, informando-o que era o pagamento da dívida." (pág. 82).

Artur Nunes (1909-2007).
Foto; cortesia
de António Estácio
Não sem surpresa, o Artur Nunes abriu o pesado saco e verificou que "estava cheio de moedas de um escudo e cinco tostões". Tanto quanto se lembrava a dívida rondava os dois mil escudos (ou "pesos"), ou seja, cerca de 2 contos, um valor razoável para a época.

(...) "Com sorriso, rematou dizendo:
- E eu pra ali fiquei a contar todo aquele montante em moedas! Como era de esperar, a quantia estava certa."

Moral da história: "Esta foi a melhor forma que 'Nha' Carlota encontrou para responder ao comerciante fornecedor onde tinha uma dívida por saldar e onde continuou sempre a gozar de crédito" (pág. 83).

Artur Lopes Nunes (1909-2007) era natural de Cadafaz, Góis, concelho do distrito de Coimbra. Morreu na Parede, Cascais, com 98 anos feitos. Tinha ido  para a Guiné, em 1927, com 18 anos, na qualidade de empregado da firma João Marques de Carvalho & Companhia, com sede em Bolama. Viajou no N/M "Aboím", na companhia do patrão e da esposa deste, bem como do novo governador da Guiné, o major de infantaria António Leite de Magalhães, nomeado para substituir o tenente coronel Jorge Frederico Velez Caroço.

Fonte: António  Estácio . Nha Carlota, figura esquecida da História Guineense – Ed. do autor, 2010, 116 pp. 
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 29 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20605: Historiografia da presença portuguesa em África (196): Relatório do Governador da Guiné, Contra-Almirante Francisco Teixeira da Silva, referente a 1887-1888 (Mário Beja Santos)


(**) Vd. poste de 20 de maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6434: Notas de leitura (109): Carlota Lima Leite Pires, 'Nha Carlota' (1889-1970), de António Estácio (Mário Beja Santos)


(***) Vd. poste de 30 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20608: Roteiro de Bissau: fotos de c. 2010, de um amigo do Virgílio Teixeira, empresário do ramo da hotelaria - Parte III

Vd, também poste de 3 DE MARÇO DE 2015

Guiné 63/74 - P14317: Historiografia da presença portuguesa em África (60): O caso da empresa Nunes & Irmão Lda., dos irmãos Gentil e Artur Nunes GENTIL E ARTUR NUNES. (Jorge Araújo)