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segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25100: Notas de leitura (1660): "Os três rostos da Igreja Católica na Guiné" (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Julho de 2022:

Queridos amigos,
Frei Vicente, missionário franciscano, teve longa permanência na Guiné-Bissau (entre 1975 e 2012), escreveu obra, porventura memorial, no artigo que publicou na revista Itinerarium lança um longo olhar sobre os grandes momentos da missionação. Regista-se hoje o primeiro e mais longo desses períodos, que se estende até 1932, são séculos com diferentes levas de congregações que viveram as maiores atribulações quer com os portugueses quer com a agressividade do meio. Não tinham condições para irem até ao interior e com a crescente islamização da Guiné encontraram uma barreira que lhes parecia intransponível, as portas abertas eram facultadas fundamentalmente juntos das etnias animistas. Veremos como Frei Vicente reconhece que o período posterior à independência foi compensado pela atividade missionária franciscana nos domínios da saúde e educação, distinguiram-se figuras notáveis, como Dom Settimio Ferrazzetta, que num estado de debilidade total, e com o pleno reconhecimento dos credos religiosos mais influentes da Guiné, foi porta-voz do apelo à paz entre os contendores do chamado conflito militar de 1998-1999.

Um abraço do
Mário



Os três rostos da Igreja Católica na Guiné (1)

Mário Beja Santos

Na mesma revista Itinerarium n.º 227, referente ao primeiro semestre de 2022, dos franciscanos missionários, donde, aliás, já fizemos referência ao diário do Padre Macedo que testemunhou os primeiros anos da independência da Guiné-Bissau, vem um artigo assinado por Frei João Dias Vicente intitulado “Os três rostos da Igreja Católica na Guiné”, cujo teor merece ser referenciado por alguns aspetos inovadores da leitura historiográfica que ele faz.

Ele diz que em março de 2021 acabou de redigir algumas recordações avulsas sobre a sua experiência de missionário na Guiné-Bissau (1975-2012), a que deu o título de Guiné-Bissau, a minha segunda pátria. Procura agora neste texto tentar uma descrição das dimensões mais salientes da Igreja Católica neste país africano, desde as origens até aos nossos dias. Não deixa de exaltar o documento de referência obrigatória, a História das Missões Católicas na Guiné, escrito pelo Padre Henrique Pinto Rema, aqui se encontra uma visão global dos factos históricos mais salientes destes últimos cinco séculos.

No percurso histórico da missionação, Frei Vicente encontra três momentos maiores: a partir de 1533, data da criação da Diocese de Cabo Verde, que incluía a terra firme da Guiné, ou os Rios da Guiné, até 1932, data do regresso dos franciscanos à Guiné; o segundo momento ocorreu entre 1932 a 1977, data da criação da Diocese de Bissau e escolha do primeiro bispo; a terceira, de 1977 aos nossos dias.

Estamos, portanto, na primeira fase desse percurso, ocorre relevar a existência de uma desproporção enorme entre o campo da atividade missionária e o número de agentes missionários disponíveis para nela trabalhar. Fala-se concretamente da chamada Senegâmbia que durante os primeiros 200 anos ultrapassava em muito a atual Guiné-Bissau, incluía a Gâmbia, parte do Senegal e estendia-se para sul até à Serra Leoa. Não restam vestígios dos tempos primitivos. Há referências documentais à capelinha da Nossa Senhora da Natividade em Cacheu.

Os sacerdotes do clero secular foram os primeiros a ser enviados para os Rios da Guiné. Havia a visita anual de um sacerdote para administrar os sacramentos aos fiéis – eram os Visitadores. Frei Vicente recorda a especificidade da presença portuguesa em pequenos entrepostos, os missionários, por razões de saúde e segurança, tinham que com eles conviver, o que, regra geral, era fonte da maior animosidade, os missionários não se coibiam de criticar as condições degradantes do tráfico negreiro.

Depois dos Visitadores seguiu-se um período de congregações religiosas serem chamadas para a missionação em toda esta região continental. Primeiro, chegaram os padres carmelitas, seguiram-se os jesuítas, introduziram um estilo de missionação itinerante que os levou de Bissau até à Serra Leoa, dois deles, os Padres Baltazar Barreira e Manuel Álvares, deixaram informações escritas de grande importância. A terceira vaga de congregações foi a dos franciscanos capuchinhos franceses, a Santa Sé tinha decidido também enviar missionários para a costa da Guiné, decisão que trouxe muito mal-estar entre Lisboa e a Curia Romana. A quarta congregação foi a dos franciscanos capuchinhos espanhóis que enviou três levas de missionários, entre 1646 e 1687. A quinta congregação foi a dos franciscanos portugueses da província da Piedade, mantiveram-se na região entre 1657 e 1673, altura em que foram substituídos pelos franciscanos portugueses. A sexta congregação teve por nome franciscanos portugueses da província da Soledade, será a mais duradoura nos Rios da Guiné, por mais de 150 anos.

Um grande e positivo impulso na evangelização foi dado pelo Bispo D. Frei Vitoriano Portuense, na última década do século XVII, fez duas viagens à Guiné. Acontecimento nunca esquecido foi a visita que o Bispo fez ao rei Becampolo Có, em fevereiro de 1696, o rei aceitou ser batizado e mudou o nome para D. Pedro, uma homenagem ao rei D. Pedro II. No virar do século XVIII, os franciscanos da Soledade foram aguentando quanto puderam as suas posições na assistência às principais praças da atual Guiné-Bissau e na assistência possível às populações dos Rios da Guiné até à Serra Leoa. Segue-se um período de decadência das Missões, uma das principais razões para o fenómeno deveu-se essencialmente às ideias filosóficas do iluminismo, do positivismo e do liberalismo.

A Senegâmbia portuguesa estreitava-se. Em 1778, as praças da Guiné sob o domínio português eram: Bissau, Geba, Farim e Ziguinchor. Já deixara de fazer parte deste núcleo da presença portuguesa a Gâmbia e a Serra Leoa.

Em 1802, só havia três frades na Guiné, os últimos frades na Guiné terão resistido provavelmente até 1823, como certifica o Procurador-geral da província da Soledade. Após a extinção das Ordens Religiosas, com o triunfo do liberalismo, foram os sacerdotes do clero secular que, com os bispos de Cabo Verde, aguentaram sozinhos os esforços por manter na Guiné a assistência religiosa possível nas principais praças sob domínio português. Isto para sublinhar que os quase 100 anos que se estendem desde 1834 até 1932 serão um tempo de crescente decadência.

(continua)

Missa na Guiné-Bissau, imagem do Arquivo Missionárias da Consolata, com a devida vénia
Fiéis católicos guineenses estiveram reunidos, de 8 a 9 de novembro corrente, na peregrinação Mariana 2017, na cidade de Cacheu. A peregrinação deste ano decorreu sob o lema “Maria ka bu medi pabia bu otcha graça diante di Deus (Maria não tenhais medo porque encontrastes a Graça do Pai, tradução livre)”
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Nota do editor

Último poste da série de 19 DE JANEIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25088: Notas de leitura (1659): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (8) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P24981: Historiografia da presença portuguesa em África (400): Pedido de subsídio para uma exploração geográfica e comercial à Guiné, 1877 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Maio de 2023:

Queridos amigos,
Há relatórios curiosos coincidentes com a Sociedade de Geografia de Lisboa. Já aqui em pronunciei, sob a forma de ensaio, sobre o que era o pensamento imperial destes sócios fundadores e acabo de encontrar um texto do sócio Ferreira de Almeida que exemplifica claramente que esta corrente imperial pretendia que vingasse uma crescente atração pela fixação dos territórios africanos, conhecê-los em profundidade, dar-lhes contorno e fronteiras, identificar as suas potencialidades, para isso era indispensável fazer explorações, viagens de estudo, é o que ele aqui vem propor junto de uma importante comissão da Sociedade de Geografia de Lisboa. É mais uma voz a alertar para a tentativa de supremacia dos franceses na região; vai sublinhando que aqueles produtos comerciais que a Senegâmbia oferecia deviam aparecer à vista do público, em Lisboa, quer para comerciantes e investidores quer para consumidores. Era uma novidade como proposta, mais tarde as expedições coloniais concretizarão tal propósito. Confirma-se que este anos 1870 foram de viragem no pensamento imperial.

Um abraço do
Mário



Pedido de subsídio para uma exploração geográfica e comercial à Guiné, 1877 (1)

Mário Beja Santos

Dando voltas à cabeça de papeis votados ao esquecimento e alusivos às preocupações dos sócios da Sociedade de Geografia de Lisboa, no seu período iniciático, quanto ao conhecimento da Guiné, com auxílio da respetiva bibliotecária, dou-vos conta de um documento intitulado Pareceres N.º 3 da Comissão Portuguesa de Exploração e Civilização de África, desta instituição, com data de 19 de novembro de 1877, encontra-se um pedido de autorização assinado pelo sócio Ferreira de Almeida para subsidiar uma exploração geográfica e social à Guiné Portuguesa, estou certo e seguro de que não vou desapontar ninguém quanto ao teor do documento.

Após uma síntese histórica sobre o período dos Descobrimentos, chegamos ao nó da questão através de considerações preambulares, tomo conta de uma mentalidade e de um quadro ideológico emergente à noção do III Império:
“A emancipação, talvez prematura, mas natural do Brasil, deixou-nos livres de criarmos outro império e de explorarmos a nossa Senegâmbia que pelas suas condições pode assemelhar-se talvez à Guiana na América.
É preciso abandonarmos o péssimo sistema de apelar em tudo para os governos; podem entretanto influir eles de duas formas: primeiro cessando, a troco seja de que sacrifícios, de serem os primeiros concorrentes aos fundos disponíveis do mercado, porque então os capitais não encontrando lucro fácil, seguro e elevado, aventurar-se-ão em empregos comerciais, agrícolas e industriais não só no país como nas colónias; segundo, tornando conhecidas pelas explorações, e publicações de notícias, as condições das diversas colónias, etc. e incitando pelo exclusivo a formação de companhias comerciais e agrícolas. A colónia francesa do Senegal que desde o governo do general Faidherbe, em 1854, começou a alargar a sua área de desenvolvimento comercial, impôs a navegação francesa com exclusão de todas as outras nações.
A região da Guiné é de todos os nossos territórios além-mar talvez o menos conhecido. A primeira condição favorável que oferece ao nosso comércio é a sua proximidade da metrópole em relação às demais nações.”

O autor cita Travassos Valdez: “Na Guiné tudo denota ao viajante um país muito rico de produtos naturais, terras baixas e extensas, literalmente cobertas de uma vegetação pomposa, desde a mais perene e variada, facilitando a um governo previdente, forte e ilustrado os mais importantes recursos.”

E volta às suas considerações pessoais: “Os comerciantes portugueses na Guiné não são mais do que comissários dos comerciantes estrangeiros estabelecidos na Gâmbia e Goreia que por seu turno são as gentes das fortes casas comerciais de França e Inglaterra, América e Bélgica.”

Volta às suas considerações sobre o desenvolvimento agrícola para ele condição determinante, sem ele não haveria meio de fixar a colonização. E volta às suas considerações:
“Além das produções naturais da mancarra, madeira e arroz, parecem ser de fácil exploração o café e o algodão, pelo menos na região dos Mandingas (Geba e Farim) e nos Bijagós. Os artigos de comércio que vais avultam são além dos produtos agrícolas – goma, os couros, o marfim e o ouro; este comércio é feito das casas estrangeiras das colónias próximas francesa e inglesa e muito pouco por via de Cabo Verde com Portugal.
O atraso da hidrografia daquelas paragens, a falta de segurança e a dos mais rudimentares melhoramentos materiais, a exiguidade da população europeia e a ignorância das condições comerciais e agrícolas ditaram os artigos desserviço que julgámos indispensáveis fazer-se naquela região, a não ser ela alienada, a troco de uma centralização de domínio colonial da costa de Angola. Não é novo serem encarregues os exploradores de uma região de fundarem feitorias comerciais nos pontos em que pelo estudo que tinham feito da região se ofereçam condições de uma colónia: ultimamente foi o conde de Senelle encarregado de uma exploração naquelas condições, sobre os auspícios da Sociedade de Geografia de Lisboa. Propõe-se a Sociedade de Geografia de Lisboa a abrir uma subscrição para explorações geográficas: sem descrermos do patriotismo dos cidadãos portugueses, parece-me que a soma da subscrição não poderá atingir uma cifra que tenha um valor importante para a organização da expedição; mas em que esse capital pode condigna e justamente auxiliar a exploração é na criação em Lisboa de um depósito de géneros da Guiné que devem ser adequados pela permuta de artigos nacionais para o que servirá aquele capital; e onde o público, quer comerciante que consumidor, poderá apreciar os géneros e, pelos relatórios que os acompanharem, as condições comerciais e outras a que a permuta está sujeita, suas vantagem económicas, etc.”


Vamos ver na continuação deste texto e noutros seus contemporâneos que estava a alvorecer um novo conceito imperial: deslocar população para África com propósitos de colonização, impunha-se um desenvolvimento agrícola suscetível de dinamizar as trocas comerciais; o sócio Ferreira de Almeida é seguramente o porta-voz de uma conceção nas ligações comerciais entre Portugal e as suas colónias. E, como veremos adiante, faz uma proposta, contemporânea com as viagens que irão acontecer entre Angola e Moçambique, para identificar a geografia de uma colónia cuja dimensão se desconhece, ele fala claramente que é preciso conhecer a hidrografia, seguramente numa lógica do aproveitamento integral dos recursos hídricos para o transporte de mercadorias.

Procurava-se instituir uma moldura para a ocupação humana deste III Império, e um dos pontos mais curiosos desta proposta é a conjugação entre o conhecimento geográfico e a identificação das potencialidades económicas. Seguramente que a proposta não foi viabilizada, mas este documento denota uma mentalidade nascente quanto ao novo modo de olhar a ocupação de África. Sabemos que este desenvolvimento agrícola nunca passou das boas intenções, basta ler os relatórios dos chefes das delegações bancárias do BNU na Guiné, apareceram empresas com grandes planos e que rapidamente desapareceram. O colono branco não se fixou na terra, mas no comércio e serviços e com uma autoridade nos lugares mais inóspitos fez-se, sobretudo, representar pelo cabo-verdiano.


Largo Honório Pereira Barreto, freguesia do Beato
Gravura da época sobre povos da Senegâmbia
Indumentárias do povo da Gâmbia, 1823
Zulos, Kaffirs, Bechuana, Senegâmbia, gravura antiga

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 20 DE DEZEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24979: Historiografia da presença portuguesa em África (399): Magul, Moçambique, 8 de setembro de 1895: um marco na história da nossa artilharia

quarta-feira, 29 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24897: Historiografia da presença portuguesa em África (396): "Viagem ao arquipélago dos Bijagós", 1879, por Maximin Astrié (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Abril de 2023:

Queridos amigos,
Há para aqui um sexto sentido que me alerta para o facto de, pelo menos, ter folheado este opúsculo, não acredito tê-lo traduzido como hoje pretendo. Não é só rico em termos antropológicos. Temos forçosamente de nos interrogar o que era a nossa presença nos Bijagós, é inequívoco que a presença francesa tinha gradualmente ganho peso, eram as tais pretensões de ficar na posse das ilhas e estender o seu domínio até ao rio Nuno, sabemos como a diplomacia francesa saiu vitoriosa ao levar-nos a assinar a convenção luso-francesa de 12 de maio de 1886, tomaram posse de toda a região do Casamansa, cortaram-nos o caminho para os entrepostos da Serra Leoa. Devemos a este negociante francês um relato bem urdido, há que questionar porque nunca tenha sido publicado em português.

Um abraço do
Mário



Viagem ao arquipélago dos Bijagós, 1879 (1)

Mário Beja Santos

A Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa possui um exemplar de Viagem ao Arquipélago dos Bijagós, por Maximin Astrié, negociante francês em Bolama, Luchon, 1880, o exemplar foi uma oferta de Godefroy Gairaud, vice-cônsul de Portugal em Carcassonne. Lembro-me perfeitamente de ter deitado uma vista de olhos a este texto, mas não me recordo de o ter traduzido no essencial, tem elementos até de caráter antropológico do maior interesse. E ficamos claramente a perceber que em 1878 a nossa presença nos Bijagós era por demais ténue. Vamos então ao essencial do texto. Astrié começa por informar o leitor que o arquipélago dos Bijagós está situado na costa ocidental africana entre a Senegâmbia e a Serra Leoa. Com exceção de Bolama, que tem sido civilizada há cerca de 2 séculos pelos portugueses, servindo de entreposto no tráfico de escravos durante muito tempo, estas ilhas são praticamente desconhecidas.

Estamos em Bolama em 1878, recebi de Marselha um telegrama convidando-me a explorar os Bijagós, em caso afirmativo deveria viajar rapidamente até Marselha. O telegrama fora-me enviado pelo sr. Aimé Olivier, homem extraordinário que fundara estabelecimentos na Ásia e África. Acedi viajar até Marselha, fui recebido com um calor tão comunicativo, tinha tal entusiasmo a expor as esperanças que depositava no futuro comercial do país nestas regiões. Não hesitei um instante em aceitar a missão. Cheguei a Bolama em 1 de fevereiro de 1879. Comecei as minhas explorações por Orango, havia dois motivos para me ter decidido primeiramente por esta ilha: é a mais importante do arquipélago e possuiu o mistério de ruídos misteriosos.

É governada pelo rei Oumpané Bijougoth, é um déspota, possuidor de uma tal crueldade que afasta do seu território todos os estrangeiros. Embarquei na chalupa Marie com mais cinco homens na equipagem, incluindo um intérprete de nome Samba Sala, um piloto e um cozinheiro. Recebera na véspera do agente consular francês em Bolama uma carta do seguinte teor: “Meu caro senhor Astrié, tomei conhecimento que se quer aventurar na ilha de Orango. Na minha qualidade de compatriota e amigo, creio dever-lhe pedir energicamente que desista deste projeto. O rei dessa ilha pratica tais atrocidades, como é o caso agora dos marinheiros austríacos que naufragaram nessas terras. Não gostava de o ver exposto a tais perigos, a prejuízos pessoais que porventura exigiriam a intervenção do governo francês; e assinava." Não me demovi, a resolução estava tomada.

Ultrapassadas as dificuldades, viajou-se até Orango. Confesso que não foi sem uma certa emoção que munido de um óculo fui verificando as sinuosidades desta terra, donde talvez eu não voltasse. Fomos recebidos com demonstração de grande regozijo, o intérprete parlamentou com os indígenas, fiquei a saber que o rei me receberia na sua morada.

A tabanca ou residência do rei ficava a cerca de 1,5 km da praia. Chegámos a uma autêntica floresta de laranjeiras no meio da qual ficava a residência do rei, uma casa redonda composta de uma paliçada de bambus e com teto de palha. O rei esperava-me sobre um pódio, uma espécie de peristilo informe onde ele habitualmente praticava a justiça. Estava sentado sobre um escabelo em madeira. Era um homem de cerca de 35 anos, olhos penetrantes, nariz de abutre, coberto por uma tanga. Trazia uma espécie de chapéu alto, tal como usam todos os reis do arquipélago. Vi que tinha na sua coxa direita uma ferida horrível, asquerosa, com pus esbranquiçado, indicador de uma doença muito espalhada pelas populações da costa ocidental africana. De tempos a tempos sua majestade pressionava esta ferida horrenda com os seus dedos e depois limpava-se com um gesto desprovido de nobreza no seu ministro da Justiça. Ofereceu-nos escabelos e começámos a conversar, com recurso a intérpretes.

Muitos viajantes têm o hábito deplorável de se apresentar como se estivessem a conversas diretamente com os indígenas para lhes conhecer a língua. Com o recurso de Samba Sala, o rei dirigiu-me as seguintes palavras: “Quer o Irã, o mais poderoso dos deuses, que tudo o que vou dizer seja a expressão da verdade. Quer o Irã que da tua parte não me mintas. Vou imediatamente oferecer um sacrifício a todos os deuses. Fala, o que vieste fazer a estas ilhas?”

A população envolvia-nos, o círculo fechava-se cada vez mais, senti um odor nauseabundo que exalavam todos estes corpos untados de óleo de palma rançoso. O rei fez um gesto significativo com o bastão que empunhava, a multidão obedeceu-lhe alargando o círculo, ficando mais distantes de nós. Ofereci a sua majestade os presentes da praxe (um lenço para o pescoço, uma faca de talho, tabaco em folhas, um garrafão de aguardente). Recorrendo a Samba Sala, respondi nos seguintes termos: “Diz ao rei que estou pronto a satisfazer todas as suas questões com sinceridade. Vim a Orango para fazer com ele o comércio das nozes de palma, amendoim e borracha. Trago-lhe todos os produtos dos brancos (dinheiro em guinéus, tabaco e aguardente)”. Ao ouvir a palavra aguardente cresceu um murmúrio na multidão. E o rei respondeu: “Diz a este branco que compreendi todas as suas palavras. Vamos agora oferecer um sacrifício aos deuses e agiremos segundo a sua resposta.” E retirou-se, encarregando dois ministros de preparar a cerimónia. Durante os preparativos, trouxeram-nos laranjas, ananases e vinho de palma.

Reparei que uma jovem negra que se colocou atrás de mim com as pontas dos dedos procurava tocar-me o pescoço e manifestava o desejo de me ver o peito. Entendi não lhe recusar este favor e abri ligeiramente a minha camisa e a minha camisola de flanela. A multidão deixou escapar um clamor de espanto, tal a surpresa que lhe causava a brancura da minha pele. Não quis ficar sem resposta. É usual naquelas tribos da costa africana manifestar a sua galantaria às mulheres pressionando com delicadeza os seios e a extremidade superior do fémur, e o maior elogio que se possa fazer da sua beleza é a de mostrar admiração causada pela firmeza destas partes do corpo. Aproximei-me dela e cumpri o dever de responder à sua delicadeza. Mas nesse tempo o rei apareceu no limiar da porta e lançou-me um olhar que não tinha nada de amistoso, aquela jovem era uma das suas favoritas. Será a este fútil incidente que devo atribuir os acontecimentos seguintes?

A uma centena de metros do alpendre onde tínhamos conversado havia uma espécie de praça publicada cercada de laranjeiras e bananeiras. Tinham trazido todos os ídolos da ilha. Os mais belos eram grotescas estátuas em madeira, grosseiramente esculpidas e encimadas com uma espécie de chapéu alto. Havia também divindades secundárias, com cornos de cabra. A multidão esperava a chegada do rei para presidir ao sacrifício. Apareceu finalmente, pôs-se ao meu lado, sempre acompanhado dos seus ministros. A um sinal do rei, o sacerdote, após alguns salamaleques apresentou ao ministro da Guerra um soberbo galo que abanava vigorosamente a cabeça enquanto o ministro da Justiça o segurava pelas patas. Finalmente, o facalhão do sacerdote abateu-se sobre o pescoço do galo que caiu, decapitado, e se revolteou por terra em convulsões de agonia. O galo afastava-se claramente de mim e acabou estendido uns metros à frente. A assistência parecia ter ficado atónita e o rei levantou-se, sem proferir uma palavra. Os deuses tinham-se revelado desfavoráveis para mim. Anunciaram-me que eu estava preso.

Costumes bijagós, imagem publicada em Panorama, revista portuguesa de arte e turismo, Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo, nº10/11, 1954
Régulos bijagós, fotografia de Luís Paulo Ferraz, com a devida vénia
Figura feminina ancestral bijagó, Irã, 1890, coleção particular
Pescador bijagó lançando redes, retirado do Correio da Manhã, com a devida vénia

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 22 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24872: Historiografia da presença portuguesa em África (395): O problema das florestas da Guiné portuguesa, anos 1950 (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 15 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24852: Historiografia da presença portuguesa em África (394): "Cabo Verde, Formação e Extinção de Uma Sociedade Escravocrata (1460-1878)"; Obra de referência para a História de Cabo Verde e da Guiné, Porventura a investigação de maior envergadura de António Carreira (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Abril de 2023:

Queridos amigos,
O seu a seu dono, António Carreira continua a ser de leitura obrigatória para quem estuda Cabo Verde e Guiné. Obviamente que as fontes se têm vindo a diversificar e surpresas não faltam. O nosso mais notável geógrafo do século XX, Orlando Ribeiro, encontrou no Arquivo Histórico Ultramarino memórias de António Pusich, alguém natura de Ragusa (Dubrovnik), que conheceu em Turim o nosso ministro, o conde de Linhares, veio para Lisboa, e fez vida em Cabo Verde, onde foi governador, acabou por sofrer as consequências das lutas políticas do seu tempo. Temos nas suas memórias dados importantes sobre o povoamento, caso das ilhas de S. Vicente e do Sal, uma exposição sobre a qualidade do terreno e do clima, a proveniência dos seus habitantes, a divisão dos terrenos e o modo de os cultivar, tem mesmo pormenores bastante curiosos, cinjo-me a uma citação: "A cultura do milho, feijão e abóbora merece o primeiro cuidado destes insulares. A qualidade este fruto não é igual em todas as ilhas, pois o milho das ilhas do Fogo e da Brava é superior ao das outras ilhas, por ser miúdo, mais pesado e mais farinhoso. O feijão de Santiago e de Santo Antão é também melhor que o das outras ilhas e não se corrompe com tanta facilidade. A abóbora é quase igual em todas elas, e é abundante e mui boa." Temos aqui um retrato altamente impressivo para melhor entender os grandes acontecimentos da História de Cabo Verde do século XIX. O país tem uma história de literatura riquíssima, merecia que a conhecêssemos melhor, é nela que se vê despontar a riqueza do sentimento euroafricano.

Um abraço do
Mário



Obra de referência para a História de Cabo Verde e da Guiné,
Porventura a investigação de maior envergadura de António Carreira (2)


Mário Beja Santos

A primeira edição de Cabo Verde, Formação e Extinção de Uma Sociedade Escravocrata (1460-1878), por António Carreira, data de 1972, é uma investigação de arromba que começa nos contratos de arrendamento, os regastes nos Rios da Guiné, referencia lançados, cristãos-novos, como se obtinham os escravos e quais os seus preços, as mercadorias envolvidas, as companhias monopolistas, o povoamento de Cabo Verde e a formação do crioulo, a abolição da escravatura. Trabalho solitário (obviamente com sugestões preciosas de peritos à altura), que o investigador, sempre tão modesto, apresenta como a pequena história de Cabo Verde. E não se esquece de explicar a capa, utilizou um desenho de “Casa Grande, situada em S. Martinho Grande, nos arredores da Praia, a única sobrevivente da época escravocrata”.

Já se falou um tanto dos primeiros séculos depois do descobrimento (há ainda incertezas de quem chegou primeiro), dos contratos de arrendamento, o tráfico de escravos, as companhias monopolistas, as fomes e secas. É tempo de introduzir o crioulo, tema que merece a António Carreira uma posição um tanto controversa, outros contestam a sua tese.

O povoamento era feito com brancos, nobres e plebeus, degredados e escravos. Ainda no século XV vieram casais do Algarve em companhia de António de Nola. As áreas foram divididas em donatarias e começou o povoamento de Santiago e Fogo, a mestiçagem ia-se processando e dando frutos. O número de brancos nunca foi grande. Carreira observa que a imigração branca (forçada) tomou maior vulto no século XIX. “De 1802 a 1882 (nem em todos os anos) foram mandados para as ilhas 2433 degredados, uma média de 38 indivíduos por ano. O comportamento destes delinquentes, alguns autênticos facínoras, mostrou-se pernicioso e influiu bastante no dos escravos e no dos homens livres – pretos e mestiços. De modo geral, os degredados foram distribuídos pelas várias ilhas, embora em Santiago tivesse ficado o maior número. Adaptaram-se com facilidade e as relações com pretos e pardos seguiram o seu curso.”

É evidente que havia discriminação baseada na chamada “diferença de sangue” (cristãos e judeus). No decurso do tempo, Carreira anota três fases distintas da composição da sociedade cabo-verdiana: diminuto número de europeus e apreciável quantidade de escravos da costa da Guiné; poucos europeus e um pequeno número de estrangeiros, brancos naturais das ilhas, mulatos, escravos nascidos nas ilhas ou trazidos dos Rios de Guiné; reduzido número de europeus, brancos nascidos nas ilhas, um número crescente de mulatos e pretos nascidos e de libertos, uns e outros já nados aqui. De onde vieram esses escravos? Fundamentalmente, da Senegâmbia, os estudiosos, a própria literatura de viagens põe ênfase na Gâmbia, nos Jalofos, nos Rios da Guiné, mas também no rio Senegal e por extensão até à Serra Leoa. A questão é mais importante do que se pensa, chega em entroncar no dado ideológico da unidade Guiné-Cabo Verde, seriam povos irmãos, os contestatários da argumentação de Amílcar Cabral negam que a História seja comum, quer pela formação da sociedade escravocrata e proveniência dos escravos, quer pela língua e o substrato cultural. Nem tudo ficou resolvido com a separação efetiva dos dois países, a discussão ideológica subsiste, mas perdeu o calor que teve nos anos 1980. Agora o crioulo.

“Só as relações mantidas nas ilhas de forma contínua, assídua, pacífica e prolongada dos brancos com os escravos, nas casas-grandes e nas plantações, podia levar à formação de um meio eficiente de comunicação pela palavra falada. Contrariamente, a permanência do branco nos portos fluviais da costa africana foi durante largo tempo precária, sem estabilidade nem continuidade que pudesse permitir relações suscetíveis de dar lugar à formação de uma língua. Em nosso entender, o crioulo foi criado nas ilhas de Cabo Verde e, posteriormente, levado para os portos fluviais do continente, da chamada costa da Guiné, pelos mulatos e pretos-forros, quando os brancos os utilizaram como elo de ligação com os negros não aculturados, e com a finalidade de assegurar as relações comerciais. Mulatos e pretos-forros, todos eles crioulos na língua, com robustez física para suportar os rigores do clima, viraram lançados e, desse modo, tornaram-se os grandes agentes da propagação do crioulo naquele setor da costa.”

E Carreira socorre-se da opinião de Baltasar Lopes: “Suponho que o crioulo falado na Guiné é, não uma criação resultante diretamente do contacto do indígena com o português, mas sim o crioulo cabo-verdiano de Sotavento levado pelos colonos idos do arquipélago.” E Carreira também observa: “O crioulo falado na área Senegal-Gâmbia-Rio Nuno é um tanto diferente de o das ilhas. Não se deve estranhar que assim seja. Mesmo em Cabo Verde o crioulo de Santiago, mais aproximado do do Maio, é foneticamente diferente do do Fogo.” Fiquemos por aqui, a tese é polémica e contestada, basta pensar nos trabalhos de Benjamim Pinto Bull sobre o crioulo da Guiné-Bissau.

A obra de Carreira muda de rumo, fala-nos dos assaltos dos corsários, na situação social na época que antecedeu a abolição da escravatura, como esta ocorreu, e a importância que tiveram os tratados assinados entre Portugal e Inglaterra. Procurando sintetizar o que de mais essencial há neste trabalho de indiscutível envergadura, destaca-se: o período de formação da sociedade cabo-verdiana nas ilhas de Santiago e Fogo (séculos XV e XVI); período de transição para o aparecimento de uma pequena burguesia local (século XVII); o tempo de uma sociedade semilivre e decorrente da abolição da escravatura (inicia-se com a emergência de grupos multirraciais, marcados por estatuto social até ao virar do século XIX, em que se consolidou um classe dominante composta por reinóis, brancos da terra e alguns pretos – é este grupo que possui as melhores terras e controla o sistema económico, tem perto de si a classe intermédia que possuiu uma grande amplitude em Barlavento e reduzido número em Sotavento, na base da pirâmide o campesinato, trabalhadores indiferenciados e escravos ainda não completamente libertos.

O trabalho de Carreira não esquece a emigração, mas também o regresso à terra de origem, pautado pela vontade de quem triunfou lá fora se colocar ao lado dos brancos da terra. Deram-se profundos arranjos e disposições no edifício social, ao longo do século XIX, foi o tempo de um povoamento como jamais acontecera. Carreira também enfatiza a importância do papel do clero. Importa não esquecer que a difusão do ensino nas ilhas ocorreu logo nos primórdios do povoamento, o bispado de Cabo Verde surgiu em 1532 e é tido como primeiro do género em toda a África. Em meados do século, os dignatários desse cabido eram já cerca de três dezenas, abrangiam mestres-escola e mestres de gramática. Moldou-se, assim, um substrato cultural, a par do enraizamento de valores e crenças tradicionais, e o cristianismo conseguiu cobrir o vazio espiritual de populações arrancadas do continente. Este clero contribuiu para uma postura multirracial, que gerou uma dimensão ímpar na identidade cabo-verdiana (e diga-se sem hesitação até hoje).

Igreja da Nossa Senhora do Rosário, Cidade Velha, Cabo Verde, Património Mundial
Ruínas da antiga Sé Catedral da Cidade Velha, retirado do blogue Alma do Viajante, com a devida vénia
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Nota do editor

Último poste da série de 8 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24831: Historiografia da presença portuguesa em África (393): "Cabo Verde, Formação e Extinção de Uma Sociedade Escravocrata (1460-1878)"; Obra de referência para a História de Cabo Verde e da Guiné, Porventura a investigação de maior envergadura de António Carreira (1) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24831: Historiografia da presença portuguesa em África (393): "Cabo Verde, Formação e Extinção de Uma Sociedade Escravocrata (1460-1878)"; Obra de referência para a História de Cabo Verde e da Guiné, Porventura a investigação de maior envergadura de António Carreira (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Abril de 2023:

Queridos amigos,
Dificilmente se entenderá o comércio de escravos na ampla faixa da Senegâmbia, a partir do século XV, e depois em espaços mais reduzidos, nomeadamente após o período filipino, sem decifrar a narrativa como tão admiravelmente António Carreira desenvolve na sua magna investigação Cabo Verde, Formação e Extinção de Uma Sociedade Escravocrata (1460-1878). 

Os primeiros colonos aportaram à ilha de Santiago em 1462, na Ribeira Grande, ali se fundou uma feitoria, daqui emergiu uma sociedade como nunca o português tinha forjado, com base na miscigenação prolongada, três grupos étnicos foram formando este espaço insular: brancos (os reinóis), negros maioritariamente provenientes da costa africana e de Angola, e mestiços, aqui convivem os "senhores" (portugueses, italianos, espanhós, flamengos...), os brancos da terra (os mestiços) e os escravos (a grande maioria da população). 

Começa-se por habitar Santiago e Fogo, só mais tarde se estenderá a ocupação efetiva das outras ilhas. Como Carreira sublinha, a designação de escravos de confissão ou ladinos irá ser atribuídas àqueles que frequentaram a catequese e que ascenderam a um patamar que se aproximava do modelo civilizacional de então. Como escreve Carreira, o papel dos agentes do Cristianismo em Cabo Verde foi decisivo na formação cultural das populações em missões, colégios e escolas de todo o espaço insular, e os seus frutos são visíveis nos dias de hoje.

Um abraço do
Mário



Obra de referência para a História de Cabo Verde e da Guiné,
Porventura a investigação de maior envergadura de António Carreira (1)


Mário Beja Santos

A primeira edição de Cabo Verde, Formação e Extinção de Uma Sociedade Escravocrata (1460-1878), por António Carreira, data de 1972, é uma investigação de arromba que começa nos contratos de arrendamento, os regastes nos Rios da Guiné, referencia lançados, cristãos novos, como se obtinham os escravos e quais os seus preços, as mercadorias envolvidas, as companhias monopolistas, o povoamento de Cabo Verde e a formação do crioulo, a abolição da escravatura, trabalho solitário, que o investigador, sempre tão modesto, apresenta como a pequena história de Cabo Verde. E não se esquece de explicar a capa, utilizou um desenho de “Casa Grande, situada em S. Martinho Grande, nos arredores da Praia, a única sobrevivente da época escravocrata”.

Atenda-se ao que nos diz na nota explicativa:

“Na redação, como é meu velho hábito, não me preocupei em apurar o estilo. Expressei-me informalmente sem qualquer pretensão de fazer trabalho literário. Fui dominado apenas pela ideia de clareza e da honestidade na exposição e apreciação dos problemas, dando sempre o ‘seu ‘ a ‘seu dono’. 

O tema tratado é ingrato e por motivos diversos não entusiasma a maioria dos leitores. Seja por preconceito próprio de uma educação tradicionalista (no mau sentido do termo), seja por receio descontentar certos setores, tudo quanto envolva a apreciação do tenebroso período da escravatura mexe com a maneira de ser de algumas camadas da nossa sociedade. Todavia é preciso vencer esse sentimento de culpa acerca de um passado para o qual as atuais gerações nada puseram, nem depuseram. E isso só se consegue mostrando as duas faces da questão: a boa e a má, comprovadas por documentação honesta e incontestada. 

É indispensável ver o problema da escravidão no seu próprio tempo e segundo a mentalidade da época.
Neste particular é de apontar o exemplo da Inglaterra. Nenhuma nação negociou tanto como ela em escravos. Com esse negócio amealhou lucros fabulosos. Em certo sentido, e no seu interesse direto, arvorou-se em campeã do abolicionismo. Nessa campanha usou de todos os processos, lícitos e ilícitos. Abusou da sua força. Publicou livros sobre o tráfico, nuns descrevendo os seus horrores e condenando-o; em outros defendendo a sua manutenção. E não parece que haja algum inglês que tenha qualquer sentimento de culpa pelo que os seus antepassados fizeram – e numa escala nunca igualada por nenhum outro povo.”


São incontestáveis os pontos de coincidência, as linhas tangentes nas histórias de Cabo Verde e Guiné. Carreira descreve metodicamente os contratos de arrendamento, o papel exercido pelos mercadores em Santiago; dedica um aprimorado capítulo à figura dos lançados ou tangomaos (em espaço separado aqui se referenciou cuidadosamente o pensamento do autor sobre este fenómeno que acabou por ser marcante sobre a presença portuguesa no continente); situou a atividade de judeus autênticos ou de cristãos novos bem como de fidalgos no tráfico de escravos e tece a seguinte observação:

“As medidas restritivas da fixação de residência de fidalgos e de cristãos novos em Santiago e nos Rios de Guiné, inseria-se no plano manuelino de perseguição de judeus e cristãos novos, e para além da questão religiosa, no receio deles se fixarem e, com o seu conhecido tato comercial, prejudicarem ainda mais o negócio dos cristãos e do próprio monarca.”

Prossegue a exposição sobre as operações de captura e vamos percecionando que o espaço onde se exerce este comércio é inicialmente o correspondente ao da Senegâmbia, mas a área, um tanto aproximada do que é hoje a Guiné, deu um enorme contributo a este tráfico, como ele observa:

“De Arguim ao Gâmbia a melhor mercadoria para a compra de escravos era o cavalo; do rio Gâmbia para Sul passava a ser a manilha de latão. Compreende-se perfeitamente esta preferência. Nas áreas alagadas, na floresta húmida, o cavalo não tinha grandes condições de sobrevivência. A mosca do sono por um lado, o alto grau de humidade, o mosquito e os pastos pouco adequados, por outro, condenavam a sua presença. As populações das rias (do Gâmbia para Sul) não o conheciam nem o sabiam tratar convenientemente. 

Nos primeiros trinta anos de Quinhentos as espécies mais utilizadas e as cotações seguidas variavam consoantes os setores. Assim temos:
- No rio Senegal, terra de jalofos, dava-se 1 cavalo por 10 escravos;
- No rio Gâmbia, ou Cantor, 1 cavalo por 7 escravos. 
- No rio Grande de Buba, terra de biafadas, 6 a 7 cavalos ou 20 a 25 manilhas de latão; ou 10 a 14 cavalos; ou ainda 6 a 7 cavalos por 1 escravo.
- No rio de S. Domingos e na Serra Leoa (1526) segundo os valores estabelecidos nos regimentos dos capitães dos navios do trafico, cada escravo podia ser adquirido por qualquer das seguintes quantidades de mercadorias: 17 ou 18 côvados mouriscos de pano; 38 a 40 alaqueca (pedra semipreciosa); duas mantas de Alentejo; 40 a 50 manilhas de latão; 5 bacias grandes de barbeiro; 1,5 côvados do Reino de pano vermelho (?); 30 a 40 côvados mouriscos de lenço francês.”


E, mais adiante, Carreira refere que em toda a Guiné a valia da cera de 3 quintais por negro era um pagamento corrente (opinião do investigador P. António Brásio). O autor não esquece também do preço dos escravos em moedas quando eram reexpedidos com destino a Lisboa, Antuérpia, Sevilha, Índias de Castela, dá-nos referências de preços até ao fim da escravatura.

Carreira dedica um capítulo para a indicação das diferentes mercadorias levadas à costa africana, que vão desde panos, mantas, contaria e muitas outras. Trata igualmente com cuidado os contratos de arrendamento das áreas dos tratos e regastes. 

O período filipino, abundantemente estudado também no que toca à presença portuguesa na costa ocidental africana, deixa claro como se ia reduzindo a presença comercial, tornara-se precária, cada vez mais distante, a conceção entre Arguim e Cabo Verde, eram holandeses e franceses que usufruíam então a posição vantajosa; aliás, os holandeses irão ocupar a fortaleza de Arguim em 1638. Tentar-se-á animar todo este tráfico com uma sucessão de Companhias e revitalizar a importância de Santiago como placa giratória da reexpedição de escravos.

Vale a pena retomar o discurso de Carreira:

“Cabo Verde e a Guiné atravessaram no final do século XVII aos meados do século XVIII um período difícil, durante o qual se acentuou a decadência: crise de comércio, ausência absoluta de navegação nacional e com tudo isso a progressiva fuga de capitais e de homens brancos, mestiços e pretos, tanto os de Cabo Verde como os de Cacheu.

Todo o período decorrido até à instalação da Companhia do Grão-Pará e Maranhão, ficou marcada pela ruína das vilas e das fazendas agrícolas, pela fuga de homens brancos, pela queda vertical das atividades económicas – desde o comércio de géneros e mercadorias até ao de escravos.”


E há as crises de fome e de epidemias, outra via para o despovoamento, Carreira vai anotando as datas destas calamidades até ao século XIX, é indispensável estar atento a estes acontecimentos para se entender a resiliência e a vontade de emigrar do cabo-verdiano. Obviamente que o autor dedica muita atenção à ocupação e exploração das ilhas, ao braço escravo como força de trabalho, refere o algodão e a urzela como os primeiros géneros da economia destes ilhéus, vem depois a cana do açúcar, a tecelagem, as produções de subsistência, os milhos, os feijões, a batata-doce a mandioca, um pouco de vinho. O pescado era economicamente insignificante, um quase recurso alimentar, faltavam embarcações capazes de permitir uma saída para o largo.

Não menos relevante é a narrativa tecida pelo autor quanto à religiosidade, já que datam da primeira década de 1500 as primeiras leis para a ministração do batismo aos escravos. Aparecem assim os ladinos, batizados e ensinados a trabalhar e a falar a língua portuguesa (certamente que o crioulo. Faziam-se batismos em massa, os missionários não escondiam o que pensavam da escravização injusta, daí as tentativas tendentes a obter a ladinização dos escravos, um dos caboucos que irão fundamentar a identidade cabo-verdiana e a sua cultura. Assim se cristianizaram as gentes de todas as ilhas. 

“E de tal forma a semente deu seus frutos desde os alvores de Quinhentos, que no decurso deste quase meio milénio, a doutrina e a moral cristã, se propagaram de geração em geração radicando-se no espírito das atuais 270 mil almas que povoam o arquipélago. E terá havido algo de parecido em qualquer outra terra portuguesa, nos trópicos ou no equador?”

Igreja da Nossa Senhora do Rosário, Cidade Velha, Cabo Verde, Património Mundial
Ruínas da antiga Sé Catedral da Cidade Velha, retirado do blogue Alma do Viajante, com a devida vénia

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 1 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24813: Historiografia da presença portuguesa em África (392): "Cabo Verde, Formação e Extinção de Uma Sociedade Escravocrata (1460-1878)", por António Carreira; Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, 1972 (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 18 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24768: Historiografia da presença portuguesa em África (390): Grandes surpresas na publicação "As Colónias Portuguesas", Revista Ilustrada (5) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Março de 2023:

Queridos amigos,
Algumas destas lamúrias e comentários dramáticos, como o de Teixeira de Aragão que sugere a alienação da colónia por só dar prejuízo e não possuir riquezas, tem a ver com a atmosfera geral de política portuguesa sacudida pelo Ultimato, havia mesmo uma corrente parlamentar que punha, em desespero de causa, a entrega de algumas parcelas coloniais a companhias majestáticas, chegou a ser proposto uma para a Guiné que seria administrada pelo italiano, marquês de Liveri e Valdusa, este inclusivé pediu os contributos do general Dias de Carvalho para lhe fazer um relatório sobre a Guiné, de que resulta um documento que ainda hoje é referencial; a Guiné vive a ressaca das guerras do Forreá, o profundo desgosto da perda do Casamansa, chegou António da Silva Gouveia, ele vai aparecer na lista dos correspondentes de As Colónias Portuguesas; o estilo das notícias que vêm da Guiné são marcadamente cáusticas, lamentosas, as queixas chegam mesmo à posição dos governadores escolhidos pelo ministro da Marinha e das Colónias, deixa-se nas entrelinhas que são ineptos ou impreparados. Não voltaram a haver imagens da Guiné, as que encontrei, referentes designadamente a Angola e Moçambique, são de inexcedível importância. Oxalá que toda esta publicação venha a ser digitalizada, alterará, estou certo, alguns ângulos da investigação colonial. E confesso que estou a despedir-me desta revista a muito custo, foi para mim uma verdadeira revelação.

Um abraço do
Mário



Grandes surpresas na publicação As Colónias Portuguesas, revista ilustrada (5)

Mário Beja Santos

A publicação As Colónias Portuguesas, Revista Ilustrada, publicou-se entre 1883 e 1891, era inequivocamente dirigida à classe política, não descurava a atração de investimentos, procurava dar informação aos funcionários da administração colonial e a potenciais estudiosos do Terceiro Império. Comecei, na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa, por percorrer o volume referente a 1883 e a 1884. Não posso esconder o entusiasmo que sinto ao folhear estas páginas, elas comportam informações que, por um lado, corroboram o que a historiografia vai lavrando, e, por outro lado, temos inesperadamente acesso a testemunhos que se afiguram genuínos, um dos redatores efetivos, António A. F. Ribeiro terá montado uma rede de contactos e o que vai aparecer sob a forma de correio parece-me de insofismável valor.

Devo esclarecer o leitor que a partir de agora, isto é, os números ferentes a 1890 e 1891, o manuseio da publicação é delicado, dado o adiantado estado de deterioração das folhas, e digo isto com imenso pesar, o acervo de ilustrações é de insofismável importância e o que nos é dito pelos correspondentes na Guiné de modo algum pode ser iludido, a despeito, claro está, de o enfoque de quem escreve assesta primordialmente nos interesses económicos e das preocupações dos comerciantes.

Estamos em 1890, período onde irão intervir três governadores: Joaquim da Graça Correia e Lança (1890), Augusto Rogério Gonçalves dos Santos e Luís Augusto de Vasconcelos e Sá (1891). O leitor que se prepare para o tom amargo, fatídico, tristonho das notas expedidas para as colónias portuguesas. Logo a primeira:
“No Moniteur das colónias publicou ultimamente o Sr. Dureme, negociante francês que por largos anos residiu na Guiné, uma correspondência acerca da situação desta província portuguesa. A competência de quem a escreve veio demonstrar-nos com quanta razão nós, insistentemente, temos pugnado para que os poderes públicos lancem olhos de ver para esta possessão, que se vai rapidamente definhando. O Sr. Durem analisa as causas que na sua opinião principalmente têm concorrido para o abandono em que se acham quase todas as propriedades agrícolas da nossa Guiné. Atribui este triste resultado às guerras continuadas entre Fulas e Biafadas, ao empobrecimento do solo e aos impostos excecionais que oneram não só os géneros cultivados, mas também o solo, as casas de habitação, os armazéns de comércio.
Sem negarmos a importância destas diferentes causas, quase que poderemos reduzi-las todas a uma só, o errado sistema económico que seguimos na administração desta província. A Guiné está numa situação especial. Cingida por colónias estrangeiras, precisava de estar habilitada a lutar favoravelmente com elas nas suas relações comerciais. Precisava de ter uma legislação que se não prendesse com princípios gerais, e se não pretendesse amoldar a regras adotadas por outras regiões, mas que principalmente procurasse ocorrer às circunstancias especiais que ali se dão. Porque têm sucessivamente abandonado a Guiné tantas sucursais de casas francesas de Bordéus, de Marselha e do Havre que ali estavam estabelecidas? Porque têm sido transferidas para as colónias francesas ou abandonado o comércio da Guiné? Porque não podem lutar com as condições difíceis em que as coloca o nosso sistema tributário, e especialmente as dificuldades que tão insensatamente a nossa administração opões às transações comerciais num país que não pode, por qualquer lado que se encare, comparar-se com outros quer da Europa quer do Ultramar.”


Temos agora outra postura na secção de um outro número em 1890:
“Há dias apareceu num jornal um artigo que tinha por título – A província da Guiné Portuguesa necessita com urgência de um governador. Diremos que estamos plenamente de acordo. Em nenhuma província portuguesa se reclama, mais que na Guiné, a presença de um governador que saiba compreender bem as necessidades daquela província. Um governador inteligente, enérgico, prudente, conhecedor da província que administra, está habilitado a resolver, acertadamente, sobre os casos ocorrentes, porque conhece de perto as causas de muitos factos. Quem se interesse pelas nossas colónias, deve ter tido mais de uma vez ocasião de se amargurar ao ver as apreciações desencontradas, que aqui lhes chegam. O artigo a que nos referimos é firmado por um militar, o Sr. Francisco António Marques Geraldes.” E o autor desta nota explica acontecimentos relacionados com violência praticada por um régulo na região de Geba, que Marques Geraldes conhecia na perfeição. Indiretamente o texto deixa no ar a ideia de que era necessária mais autoridade, e essa faltava".

Estamos agora em 1891, o ano derradeiro desta publicação. Chamou-nos à atenção um outro considerando acerca dos colonos que mandávamos para África, no caso vertente Moçambique: “Passagens grátis para Moçambique. O paquete Luanda, da Mala Real Portuguesa, leva de Lisboa para a província de Moçambique grande número de indivíduos a quem o governo resolveu dar passagens grátis. Estes indivíduos não contraem por esse facto qualquer encargo com o Estado. São plenissimamente senhores da sua vontade, tanto na escolha do lugar para onde se destinam como nos meios de vida que aí puderem arranjar. Nós, porém, não podemos deixar de lamentar esta forma porque se deixam embarcar tantos desgraçados, velhos, novos, mulheres e crianças, tudo de embrulhada, sem saberem para onde vão, nem ao que vão. Não é esta decerto a emigração de que carece Moçambique.”

Com o título Carta sobre a Guiné temos agora a transcrição do jornal O Economista de um documento de Teixeira de Aragão referente à alienação da nossa possessão da Guiné:
“Alienar colónias é um princípio que nos parece dever ser olhado com todo o cuidado, e sõ extremos quer financeiros quer de ordem política administrativa poderiam desculpar tal passo, depois de esgotados todos os recursos de as fazer florescer. Estudem-se a sério as questões económicas administrativas particulares dos povos da Guiné, envide-se energia e escolham-se funcionários honestos e hábeis e a Guiné terá um futuro desafogado. Pedimos permissão para combater a opinião que se formou acerca da Guiné Portuguesa. A Senegâmbia Portuguesa acha-se exatamente nestas condições: o terreno que ali possuímos é de facto limitadíssimo, não encerra riquezas minerais, e são, por assim dizer, retalhos de que só podemos tirar proveito despendendo quantias fabulosas que nunca poderão ser compensadas. A ilha de Bolama é o maior trato de terreno que ali possuímos, o resto são verdadeiras tiras de terra importantes tais como, Bissau, Cacheu, Farim, Geba, as margens do chamado rio de Bolola, etc. Podíamos, é verdade, estender o nosso domínio até à zona que a última divisão territorial nos concedeu, mas para isso seria necessário sustentar ali uma numerosa força armada, que impusesse respeito ao gentio desenfreado da terra firme, que vivendo unicamente da rapina, bastante numeroso e aguerrido, faz continuas correrias nos terrenos que de direito possuímos. Acima de Geba encontram-se jazigos de ouro, mas aqueles terrenos ficaram compreendidos na zona francesa, pela demarcação a que ultimamente se procedeu. O gentio da Guiné, o mais pacífico, não se sujeita a um trabalho agrícola regular, costumado à sementeira do arroz e à mancarra, suficiente para as suas necessidades e que pouco trabalho lhe dá, difícil será submetê-lo e acostumá-lo a outras culturas. Ora, qualquer destes géneros é pobríssimo; o arroz, geralmente de má qualidade, vermelho a que chamam limpsado, e quase todo consumido na própria província; a mancarra, semente pouco oleosa, tem diminuído o preço no mercado, vendendo-se a buxula (cerca de 35 litros) à razão de 240 reis em fazendas, que pouco mais valem de 400 reis em dinheiro. Concordamos que as hostilidades que temos movido ao gentio da terra firme tenham prejudicado a Guiné, desviando o comércio para as possessões francesas e inglesas; mas também é certo que, em muitas ocasiões, essas guerras têm sido necessárias a fim de pôr cobro aos insultos, correrias e rapinas. Não podemos dizer, com verdade, que a Guiné não seja suscetível de desenvolvimento, mas esta demanda tais sacríficos da metrópole que não julgamos que possam ser feitos, nem, se o forem, possam um dia ser compensados. Julgamos, pois, um benefício e mesmo uma necessidade alienar a não só a Guiné como todas as colónias que, pela sua pequena extensão, não prometam futuro; isto em proveito de outras que, extensas e ricas, nos podem trazer prosperidade.”

(continua)

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Nota do editor

Último posta da série de 11 DE OUTUBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24746: Historiografia da presença portuguesa em África (389): Grandes surpresas na publicação "As Colónias Portuguesas", Revista Ilustrada (4) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 21 de agosto de 2023

Guiné 61/74 - P24574: Notas de leitura (1608): "Os Portugueses nos Rios de Guiné (1500-1900)", por António Carreira; edição de autor, Lisboa, 1984 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Setembro de 2021:

Queridos amigos,
António Carreira foi bastante ousado neste seu ensaio, não lhe faltou ambição, alerta o leitor, procura pôr à sua disposição informações sobre as principais causas da escassa presença portuguesa na região da chamada Senegâmbia Meridional, disseca as incúrias que incorreram para este fracasso, e desmonta a teoria da conquista da região cuja posse efetiva não ultrapassou cerca de 60 anos. Não foge à polémica e dá mesmo as suas razões para dizer que o crioulo que se fala na Guiné é visceralmente herdeiro do crioulo cabo-verdiano, é língua veicular recente, começou a titubear na década de 1920 e confirmou-se como língua franca na década de 1960. Benjamim Pinto Bull não concordaria com esta opinião e talvez outros estudiosos da génese do crioulo guineense. Estamos perante um ensaio que remexe nas entranhas da ocupação portuguesa, das relações comerciais, mantém-se atento àqueles grupos de judeus que se fixaram à volta do rio Senegal, estuda o comércio em torno do Casamansa, do Cacheu, do estuário do Geba, do Rio Grande de Buba; mostra o esforço desenvolvido na Restauração para se conseguir fixação no território. Enquanto tudo isto se passa, os guineenses vivem fora da economia de mercado, tudo se alterará com o cultivo em larga escala da mancarra e do arroz. Obra incontornável, não se percebe como se ficou numa edição modesta, é mais do que credora de uma nova edição para quem estuda a Guiné com bases no rigor dos dados e na desmontagem de mitos e falácias.

Um abraço do
Mário



Os Portugueses nos Rios de Guiné (1500-1900) – 2:
Leitura indispensável


Mário Beja Santos

António Carreira (1905-1988) foi um administrador colonial que deixou um impressionante legado historiográfico, a Guiné foi o centro dos seus trabalhos. Os Portugueses nos Rios de Guiné (1500-1900), edição de autor, Lisboa, 1984, é uma obra de leitura obrigatória, insere uma síntese admirável sobre diferentes incursões do autor nos campos da etnografia, da economia, do tráfico negreiro e o histórico da presença portuguesa na Senegâmbia meridional. Inevitavelmente, disserta sobre a questão do tráfico negreiro, fazia parte da permuta de mercadorias e bens por escravos, chamava-se resgate. A moeda surge mais tarde, no último quartel do século XVII, ganha então importância a pataca espanhola, em prata. Carreira observa que a difusão da prata amoedada deve-se quase exclusivamente aos espanhóis, a pataca impôs-se a todas as outras moedas no mercado do setor.

E refere os itinerários da escravatura:
“As carregações de escravos eram encaminhadas (pelo menos de 1468 a 1645/47) em regra para a ilha de Santiago e dali com destino a Portugal, Cádis, Sanlúcar de Barrameda, Canárias, Índias de Castela, Antilhas, Santo Domingo, Cartagena, Nova Espanha (México), Barbados, norte do Brasil. E o autor também elenca os géneros de origem africana movimentados em exclusivo na costa, caso do algodão e respetivos panos, âmbar, anil vegetal, nozes de cola".

De 1700 a meados de 1800, observa o autor, iremos assistir à desorganização das trocas comerciais, era grande a pressão dos régulos para fazer transações fora das alfândegas, a desorganização abriu as portas à desagregação – ruínas das fortificações, insuficiência das guarnições militares, recessão comercial, ausência de navios de longo curso, falta de rendimentos para as mais elementares despesas, assistiu-se a um apagamento de Cacheu, Farim e Ziguinchor. E tudo foi agravado pelas constantes lutas intestinas entre etnias e fações de uma mesma etnia, passaram a ser endémicas.

Tenta-se uma resposta, é criada a Companhia de Grão-Pará e Maranhão, entidade que teve no encargo, em exclusivo, a governação e a exploração económica das ilhas de Cabo Verde e dos presídios da Guiné, de 1755 a janeiro de 1758 – a empresa administrou os presídios, cobrou receitas públicas e pagou despesas com a manutenção desses organismos, adquiriu géneros de produção africana e, acima de tudo, escravos. Carreira dá-nos o contexto para a panaria cabo-verdiana e depois a guineense, os chamados “panos da terra”.

Todo o seu notável ensaio sobre quatro séculos de presença portuguesa nos rios de Guiné tem um cunho profundamente didático. Veja-se um exemplo:
“Capitania e suas dependências é a designação usada para definir o governo de Cabo Verde, sob cuja jurisdição estava a parte continental conhecida por ‘Rios de Guiné’. O esquema que podemos chamar divisão territorial baseou-se nas praças, presídios, pontos ou postos e feitorias. O número de praças, de presídios e postos manteve-se quase sempre o mesmo e nos mesmos locais até 1831, quando por razões ligadas à penetração francesa no rio Casamansa, se criaram dois postos militares, o de Bolor, na margem direita do Cacheu, e o de Gonzo, na margem esquerda do Casamansa".

Um outro dado importante que Carreira põe em destaque é o fim da supremacia Mandinga e a invasão dos Fulas. Tudo começa com a invasão do Cabu. Em 1850/1851 teve lugar o recontro mais violento conhecido por batalha de Bérécolom e cerca de 1853/1854 cresceu a intervenção dos Futa-Fulas. E dá-se a batalha de Turuban em que foram derrotados e submetidos os Mandingas, assim como os outros povos das regiões periféricas. O mesmo aconteceu com os Manjacos da Costa de Baixo que se sublevaram e se independentizaram do poder central. A presença portuguesa entrara num vespeiro. Com um novo poder do Cabu, com os Fulas-Pretos a libertarem-se dos Fulas-Forros e a encaminharem-se para o Sul, deu-se o confronto entre estes Fulas e os Beafadas. Todo o território do Cabu foi invadido por uma expedição procedente do Casamansa, dirigida por Mussá Mõló que se declarou porta-bandeira da libertação dos Fulas cativos ou Fulas-Pretos do domínio de outras etnias. Eclodiu um tipo de guerra de libertação acompanhado de pilhagens e escravização.

Foi uma guerra que se prolongou até cerca de 1899 e que teve aspetos desastrosos para a presença portuguesa, impotente para intervir numa autêntica Guerra Santa do Islão, o suserano do Cabu decretara em 1874 a anexação do território de Bolola, os derrotados eram escravizados pelos grupos islamizados dominantes, Fulas-Forros e Futa-Fulas. Todos os regulados à volta viviam em estado de terror. Quando acabaram as guerras, o Islamismo vingou, quase todo o Forreá aceitou o Islão, embora o povo tenha permanecido animista. Com toda a dificuldade da falta de recursos, foi nos presídios de Geba e Buba que se reagiu recorrendo a tratados de paz. Em 1881, assinou-se em Bolama, com certo aparato, o tratado de paz com os régulos Fulas, Futa-Fulas do Forreá e do Futa-Djalon. O tratado nunca foi cumprido, representou para Portugal um processo dilatório, um compasso de espera para permitir o rearmamento.

Chegada a hora de proceder às conclusões, Carreira é muito frontal quanto a tudo o que apreciou no seu trabalho:
“Parece lícito afirmar que até à segunda metade do século XIX a evolução do processo histórico da Guiné mostra que o território viveu quase fechado a culturas estranhas, com a sua economia de subsistência, esta auxiliada um tanto pela comercialização, em modesta escala, de couros, cera, algum marfim, panos e bandas de algodão. E escravos.
O comércio das praças cingia-se à troca de mercadorias importadas por géneros de cultivo ou de realização africanos. A moeda praticamente não funcionava.

A mancarra será cultivada em apreciável escala em 1919-1920. Os couros que se exportavam não provinham do território da Guiné. Pode dizer-se que só a partir daí as populações guineenses entraram na economia de mercado. As praças e presídios serviam de pontos de apoio para fins meramente mercantis – a europeus, mestiços e cristãos da terra. A convivência dos ocupantes das praças e presídios com as populações em derredor dependia da vontade das autoridades tradicionais.

Em nossa opinião, não se criou nenhum crioulo na área conhecida por Guiné. O que se deu foi a difusão dos rios da Guiné do crioulo nado em Cabo Verde. Havia elementos de ligação (os Línguas) que falavam o proto crioulo, o Pidgin. O crioulo cabo-verdiano só se transformou com intensidade em língua franca acessível a todas as etnias nos anos 1920 e seguintes e de forma rápida nos anos de 1960”
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A historiografia possui poucas sínteses deste valor, é deplorável que este trabalho não tenha vindo a ser reeditado, atendendo ao papel incontornável que ocupa nos estudos portugueses e guineenses.

Mapa de África (1689), de Van Schagen
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Nota do editor

Último poste da série de 18 DE AGOSTO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24565: Notas de leitura (1607): "Os Portugueses nos Rios de Guiné (1500-1900)", por António Carreira; edição de autor, Lisboa, 1984 (1) (Mário Beja Santos)