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sexta-feira, 25 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26077: Notas de leitura (1737): Notícia de um conflito interétnico sangrento na ilha de Bissau, em 1931 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Outubro de 2024:

Queridos amigos,
Feitas as contas ao quadro de hostilidades que o Governador Soares Zilhão vai punir, temos uma guerra sangrenta na Península de Bissau que vitimou sobretudo Mancanhas, e das averiguações feitas apurara-se que os Grumetes tinham extravasado competências, procedimento inaceitável para a potência colonial soberana, e daí a dureza dos castigos, para serem exemplares. Estávamos em 1931, a pacificação de Canhabaque chegará em 1936, tudo leva a crer que há uma mudança radical de atitudes e já com a governação de Ricardo Vaz Monteiro e fundamentalmente com a política do desenvolvimento aplicada pelo comandante Sarmento Rodrigues, tirando a ilha de Bissau do seu isolamento.

Um abraço do
Mário



Notícia de um conflito interétnico sangrento na ilha de Bissau, em 1931

Mário Beja Santos


Continua ativa uma certa historiografia que responsabiliza integralmente a potência colonial pelo acirramento dos conflitos interétnicos, fazendo tábua rasa de que antes da chegada dos portugueses toda a região tinha os seus reinos com as suas permanentes hostilidades, agressões, rapinas e arrebanhamento de escravos; simultâneo à chegada da presença portuguesa nessa difusa região a que se chamou Senegâmbia, assistia-se à desagregação do Império do Cabo, que foi acelerada por esses mercadores portugueses (mais tarde vieram concorrentes espanhóis, holandeses, franceses e britânicos); as regras do mercado foram completamente alteradas, os mercadores evitavam envolver-se em conflitos interétnicos. Há também outra acusação de que, com a consolidação da ocupação e pacificação, os portugueses dividiam para reinar, estavam do lado dos Fulas e antagonizavam os Balantas, por exemplo.

Nada disto em termos históricos pode ser visto a preto ou branco. E nada como pegar num acontecimento, tirar a prova dos nove de que os conflitos interétnicos existiram ao arrepio da estratégia colonial.

No suplemento ao Boletim Oficial n.º 39, de 1931, o Governador João José Soares Zilhão, com a data de 20 de outubro faz publicar a seguinte portaria:

“É do conhecimento público que esta colónia foi sobressaltada pelo desencadear em Bissau de uma desordem gravíssima entre as tribos Papel e Mancanha, cujas povoações se aglomeram nos subúrbios da cidade de Bissau e seus arredores até ao sítio de Bissauzinho, cobrindo assim aproximadamente a metade Este da ilha de Bissau, que agricultam em conjuntos com algumas povoações Balantas, que não intervieram diretamente nos acontecimentos.

É igualmente sabido que parte da ilha de Bissau a Oeste do Bissauzinho, incluindo esta povoação, se conservou perfeitamente submissa e ordeira, respeitando deste modo, como devia, as autoridades. Do domínio público é também que, a seguir às desordens sangrentas de 27, 28 e 29 de setembro, os estado de sítio da ilha de Bissau organizou no mesmo dia uma repressão sistemática da grave perturbação da desordem que rebentou em 27, atingiu o ponto agudo em 29 que, apesar das medidas de coação tomadas pelo corpo de Polícia de Bissau, causou a morte a numerosos indígenas, sobretudo da tribo Mancanha, entre os quais inocentes mulheres e inocentíssimas crianças, que foram vítimas de única circunstância de pertencerem a uma tribo, com a qual andava, havia muito tempo, de rixa a tribo dos Papéis.

Não pode ignorar-se nem desconhecer-se a perturbação política e económica, que tal alteração de ordem veio causar, fazendo gastar os serviços das colunas de polícias e auxiliares Fulas, dinheiros deveriam ser aplicados a fins úteis do fomento da colónia e à assistência do indigenato, assistência que este Governo sempre manteve cuidadosamente, pelo organismo de curadoria, que é chefiado pelo Diretor dos Serviços e Negócios Indígenas.

Do conhecimento público é ainda que nos motins e assassínios de setembro intervieram vários indígenas assimilados, conhecidos pela designação de Grumetes, já instigando direta ou indiretamente os Papéis já agindo pessoalmente nos ataques à arma branca contra os Mancanhas.

Ora, o facto de indígenas há muito sujeitos ao domínio português resolverem dirimir entre eles estas questões para cuja resolução existem os Tribunais Indígenas de 1.ª Instância, presididos pelos administradores e o Tribunal Superior funciona na direção dos Serviços e Negócios Indígenas, representa um desrespeito gravíssimo das leis nacionais e um atentado contra a ordem interna da colónia. E os indígenas sabem-nos muito bem porque à administração soberana recorrem – e têm recorrido sempre, para a resolução de casos graves e até de outros fúteis.

Mas, se a ignorância de indígenas num estado ainda bárbaro pode perceber-se, a intromissão numa rixa gravíssima (como foi a que se produziu em setembro) de elementos assimilados, os Grumetes, que tudo devem à nação dominadora, desde o vestuário europeu que aprenderam a usar, até à instrução que recebem das várias escolas desta colónia, representa a mais formidável deslealdade e a mais descaroável ingratidão possíveis para com a Mãe Pátria.

E tais Grumetes administravam justiças em indígenas em suas propriedades ou concessões, intrometiam-se em questões indígenas, exercitando atos de procuradoria e advocacia, que só competem naturalmente, ao diretor dos Serviços e Negócios Indígenas e respetivos agentes. Assim, pois, cometiam atos de clara indisciplina contra a leis e regulamentos nacionais, como se prova das averiguações agora levadas a efeito.”

E postos um conjunto de considerandos o Governador expulsa da Guiné e deporta para a colónia de S. Tomé e Príncipe por uma certa quantidade de anos régulos e chefes de povoação e assimilados, de acordo com a listagem que aqui se publica.

Escusam de me perguntar se tão dura sentença foi por diante, ou até se houve comutação das penas; o que prova esta decisão do Governador Zilhão é que diferentes tribos na ilha de Bissau pretendiam um claro espaço de autodeterminação que a potência colonial jamais podia tolerar E escusado é lembrar que a Península de Bissau tem um longo histórico de hostilidades a quem vivia dentro da fortaleza e das muralhas da vila. O que nos leva a perguntar o que foi efetivamente a pacificação da Península de Bissau feita pelo capitão João Teixeira Pinto, em 1915.


Uma imagem muito antiga
Outra imagem muito antiga de Bissau
Aviação do antigamente na Guiné, imagem restaurada, Casa Comum/Fundação Mário Soares
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Nota do editor

Último post da série de 21 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26065: Notas de leitura (1736): Regresso a um clássico da historiografia guineense: A questão do Casamansa e a delimitação das fronteiras da Guiné (3) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26044: Notas de leitura (1735): Regresso a um clássico da historiografia guineense: A questão do Casamansa e a delimitação das fronteiras da Guiné (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Junho de 2023:

Queridos amigos,
Era para mim um imperativo regressar a um ensaio de altíssima qualidade sobre uma questão que se tornará crucial para entender os termos em que os representantes portugueses assinaram em Paris a convenção luso-francesa, em 12 de maio de 1886. Maria Luísa Esteves dá conta do rol de adversidades que pesaram na ténue presença portuguesa na Guiné ao longo de séculos, confinada a fortaleza-feitorias, o assalto persistente de franceses, ingleses e holandeses para tomarem posições e quando se chegou à Restauração estávamos reduzidos a uma Senegâmbia portuguesa que em termos de litoral se aproximava às fronteiras de hoje, porque no interior aventuravámo-nos no interior até Geba, e pouco mais. E é muito agradável recordar o trabalho incansável de Honório Pereira Barreto, um dos pais da Guiné-Bissau, lamentavelmente ignorado nos dias de hoje. O último texto será dedicado aos termos da convenção luso-francesa e às sucessivas etapas da delimitação das fronteiras, processo só concluído na década de 1930.

Um abraço do
Mário



Regresso a um clássico da historiografia guineense:
A questão do Casamansa e a delimitação das fronteiras da Guiné (2)


Mário Beja Santos

No repositório das obras admiráveis, de leitura obrigatória para melhor compreender a historiografia luso-guineense, avulta o impressionante trabalho de Maria Luísa Esteves, A Questão do Casamansa e a Delimitação das Fronteiras da Guiné, edição conjunta do Instituto de Investigação Científica e Tropical e do INEP, 1998. Trata-se de uma revisitação, o anseio de um novo olhar sobre tão importante narrativa, isto depois de ter lido e aqui comentado o texto do tenente da Armada Real, Cunha Oliveira, que coordenou em 1888, do lado português, a comissão mista que procurou resolver questões encrencadas na delimitação das fronteiras, tudo produto de quem assinou a convenção luso-francesa de 12 de maio de 1886 não fazer a menor ideia das delicadezas da topografia da região.

Continuando o histórico sobre a presença portuguesa na região, a autora recorda que ao porto de Bissau afluíam os produtos e os escravos vindos das regiões do rio Geba e de outros pontos. Vai surgir a primeira fortaleza. O governador Veríssimo Carvalho da Costa obteve do régulo de Bissau licença para a construção da fortaleza, iniciou-se em 1687. Para fazer face às despesas da construção, fundou-se a Companhia de Cacheu e Cabo Verde, no início de 1690, e estabeleceu-se a capitania-mor em Bissau em 1692. Mas o tempo não soprava de feição a favor da Guiné. O governo, ofuscado pelo brilho das riquezas do Brasil, deixava o porto de Bissau à mercê da ambição dos franceses. D. José I imprimiu um novo rumo à política ultramarina, seguiu para a Guiné a nau Nossa Senhora da Estrela e mais três navios, levavam homens e apetrechos para construir uma nova fortaleza. E a exploração da costa da Guiné foi dada à Companhia do Grão-Pará e Maranhão, com obrigação de acabar as obras da fortaleza.

Em 1783, uma nova empresa vai tomar a responsabilidade do comércio, denomina-se Sociedade do Comércio das Ilhas de Cabo Verde, durou pouco, foi dissolvida em 1786. É neste contexto que a autora recorre a uma caracterização feita por Teixeira da Mota como síntese do sistema económico: “Durante séculos, pontificou a ‘economia de resgate’, com feitorias e fortalezas para a proteger. O sistema de trocas constava em contas, vidros, objetos metálicos, panos e álcool trocados por escravos, marfim e oiro. Havia produtos da Europa ou das ilhas de Cabo Verde e faziam-se trocas com o comércio regional: nozes de cola, ferro e até arroz da Serra Leoa por escravos do Cacheu e do Gâmbia.” Ao findar o século XVIII, Portugal possuía espalhados pela costa da Guiné centros de tráfico negreiro com as suas feitorias-fortaleza.

Mas numa atmosfera de tanta adversidade, evitou-se a formação de mais núcleos e assim os pontos mais importantes eram Cacheu, Bissau, Geba, Ziguinchor e Farim. Este era o panorama da Guiné. E se lhe juntarmos a existência de feitorias inglesas e francesas e o contrabando feito pelos barcos americanos, temos a visão completa desta colónia ao findar o século XVIII, é um quadro de decadência que se irá agravar com a repercussão no Ultramar das lutas fratricidas (que culminarão com o fim do absolutismo miguelista).

Franceses e ingleses procuram expulsar os portugueses da região, recorde-se a ocupação de Bolama pelos ingleses. Nem a França nem a Inglaterra respeitavam os direitos de Portugal à Guiné e apenas consideravam sob a sua autoridade os pontos onde exista força militar. Este quadro sociopolítico-económico fica desenhado com o fim da escravatura.

A autora projeta agora a sua reflexão para a “luta” pela posse do Casamansa. Até 1828, volta a recordar-se, os centros de povoamento sobre domínio português eram pouquíssimos: Bissau, Geba, ilha de Bolama, Cacheu, Fá, Farim, Ziguinchor, Bolor e Bolola (Buba). Os franceses penetraram no rio Casamansa em 1828, procede-se à compra de território ao régulo de Borin, na margem esquerda do Casamansa. Nesse mesmo ano, um negociante francês instala-se na Ilha dos Mosquitos ou de Carabane, na embocadura do Casamansa. A diplomacia portuguesa reage em Paris, protesto inútil, as usurpações irão continuar.

Honório Pereira Barreto distingue-se pela perspicaz e contumaz política de compras do território para Portugal. Em 1836, por via diplomática, chega a informação que os franceses estavam a organizar companhias para irem estabelecer feitorias na Guiné, acima de Ziguinchor, e que tencionavam enviar tropa para fazerem frente a qualquer ação dos portugueses. No ano seguinte, os franceses instalam-se na ponta de Jemberém, e, mais tarde, na aldeia mandinga de Selho. Honório Pereira Barreto protesta junto das autoridades francesas, envia cartas ao governador em Cabo Verde. Aspeto curioso, em 1838, D. Maria II ordena a Honório Pereira Barreto a construção de dois forte, um no mesmo braço do rio onde os franceses em 1828 tinham fundado um estabelecimento, e outro acima de Selho. Era uma medida de grande alcance, mas não vieram os meios financeiros necessários.

No meio de trocas diplomáticas sulfúreas, com as autoridades francesas a fazer ouvidos de mercador, a diplomacia francesa monta uma fantasia: que desde o século XVI está presente no Senegal, que há mais de dois séculos que exerce direitos de posse, comércio e soberania desde o Cabo Branco até à Serra Leoa. Chega-se ao desplante de dizer e escrever que os normandos tinham chegado à Guiné antes dos portugueses. E segue-se um período em que não há correspondência entre Lisboa e Paris. Depois, veio a reação de Lisboa com a enumeração exaustiva das razões históricas da presença portuguesa na chamada Senegâmbia, Paris não responde a estas notas. É neste contexto completamente desfavorável que o Visconde de Santarém enviou, em 1841, uma cópia da sua Memoria sobre a prioridade dos Descubrimentos dos Portugueses na costa d’Africa occidental, acrescentando-lhe alguns capítulos no ano seguinte. O embaixador em Paris, Visconde da Carreira, reforça a argumentação invocada pelo Visconde de Santarém com documentos existentes no Museu Britânico, todos eles elucidativos que monarcas franceses, ingleses e espanhóis aceitavam inequivocamente a soberania portuguesa na região. Os políticos franceses resistem, tergiversem, demoram a responder, Carreira continua na sua luta sem se dar por vencido e continua a enviar notas a expor ao governo francês as razões de Portugal. Não obtém resposta. O ponto curioso da artimanha usada pelos políticos franceses, quando recebiam o embaixador português, era a de assegurar-lhe que o governo de Paris não pretendia a soberania nem a exclusividade do comércio de costa. Por mais argumentos válidos que Lisboa apresentasse, por mais fortes que fossem as suas razões, nada abalava nem desviava o caminho que fora traçado pela ambição da França, que, como a Inglaterra, procurava alargar a sua influência sobre regiões que não lhe pertenciam, nunca atendendo a direitos históricos. Era o começo de uma nova política comercial (imperial) em que predominava o princípio da ocupação efetiva que virá a ser consagrado na conferência de Berlim.

Voltemos a Honório Pereira Barreto. Enquanto se está a dar este combate diplomático, o governador, quase na sombra e sem alarde, procura por meio de convenções com chefes indígenas Banhuns e Felupes, trazer novos territórios para a Coroa, à volta de Ziguinchor. Entre 1844 e 1845, firma em seu nome pessoal e à sua custa doze contratos de compra de terrenos. Em 11 de abril de 1844 foram celebrados contratos entre ele e os naturais de Jagubel e Afinhame.

Mas a este tempo já se vive numa atmosfera de tensões na região do Casamansa, assim vai acontecer em Selho e Jagubel, procuram-se todos os expedientes para impedir o comércio nesta área do Casamansa. A autora descreve ao detalhe a ação deste notável governador, os tratados celebrados com os chefes gentílicos que asseguravam que aos portugueses cabia o exclusivo direito de fazerem estabelecimentos e alfândegas e que a navegação e o comércio estrangeiro ficavam sujeitos à fiscalização portuguesa. De igual modo, é meticulosa a apresentar a ação portuguesa na Guiné, dado conta dos diferentes incidentes graves no Casamansa (o caso da ponta de Adiana, o caso Laglaise, o incidente de M’Bering). E assim, nos vamos encaminhando para os termos da convenção de 12 de maio de 1886, e por último teremos as sucessivas fases para determinar as fronteiras da Guiné.

O marco 173 está situado em Chão Baiote, junto à tabanca Kassu, na praia de um dos muitos cursos de água da Baixa Casamansa. A linha de fronteira atravessa Kassu, deixando um bairro na Guiné-Bissau e outro no Senegal. O marco está instalado num espaço aberto, apenas frequentado por vacas que, para fugirem às moscas, buscam as zonas perto de água. Imagens de Lúcia Bayan, já publicadas no blogue, com a devida vénia.
Casamansa, a imagem do atrito
Imagem da ilha de Goreia, junto a Dacar
Imagem de pesca no rio Casamansa

(continua)
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Notas do editor

Vd. post de 7 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26018: Notas de leitura (1733): Regresso a um clássico da historiografia guineense: A questão do Casamansa e a delimitação das fronteiras da Guiné (1) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 11 de outubro de 2024 > lGuiné 61/74 - P26036: Notas de leitura (1734): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, ano de 1879 a 1880) (24) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 11 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25935: Historiografia da presença portuguesa em África (441): A Guiné Portuguesa em 1878 - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1880 e 1881 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de julho de 2024:

Queridos amigos,
Peço particular atenção à súmula apresentada seguramente pelas autoridades oficiais sobre a Guiné Portuguesa, em 1878, é explícita quanto à exiguidade da presença portuguesa. Entramos agora em novo Boletim Oficial, já existe a província da Guiné.Como se fez referência aquando da leitura do Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde e da Costa da Guiné, um Boletim Official é uma das muitas ferramentas de que se mune o investigador, carece de cruzamentos com outras fontes. No caso vertente, sugiro sem nenhuma hesitação, o levantamento apreciável que Armando Tavares da Silva fez no seu livro monumental "A Presença Portuguesa na Guiné, História política e militar, 1878-1926", Caminhos Romanos, 2016, logo os dois primeiros capítulos, referentes aos estabelecimentos portugueses no Distrito da Guiné em 1878 e à atividade do primeiro governador da Guiné, Agostinho Coelho, entre 1879 e 1881, revelam-se de grande importância.

Um abraço do
Mário


A Guiné Portuguesa em 1878
Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1880 e 1881 (1)


Mário Beja Santos

Preparava-me para começar a leitura do Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa quando dei pela existência de uma brochura onde fazia o ponto da situação das colónias portuguesas numa edição em língua francesa, Imprensa Nacional, 1878. É um texto de síntese, mas que permite ao leitor confirmar o que era a exiguidade da presença portuguesa naquela porção da Senegâmbia. Diz o autor que até perto dos finais do século XVI Portugal possuía ainda todo o território que se estendia do Cabo Verde (ponto continental) até à Serra Leoa, numa extensão de costa de 450 milhas. Durante o domínio filipino Portugal perdera todo o território ocupado a norte do Cabo de Sta. Maria e a sul do Cabo Verga. A Guiné Portuguesa compunha-se de três municipalidades: Cacheu, Bissau e Bolama, esta última compreendendo a Ilha das Galinhas. Todo o Distrito da Guiné é muito insalubre, sobretudo de junho a dezembro; as chuvas começas perto do fim de maio e duram até ao fim de setembro. O ardor do sol e a humidade das noites são bastante danosas para a saúde, sobretudo de quem acaba de desembarcar. Uma doença chamada no país por carneirada pode provocar muitas moléstias, os todos os que resistem a estas situações penosas passaram a gozar de uma excelente saúde. A Guiné Portuguesa contém 1386 fogos e 6154 indivíduos, da metrópole há 37 homens e 3 mulheres, provenientes de outras províncias ultramarinas 419 homens e 217 mulheres, mais 56 estrangeiros e 6 estrangeiras. O autor passa em revista as três municipalidades.

Cacheu compões de Casa Forte e compreende a população dos arredores do rio S. Domingos, do presídio de Bolor, Ziguinchor e Farim. Estas feitorias têm cerca de uma milha quadrada de extensão cada uma. A agricultura reduz-se sobretudo à produção de arroz. Cacheu fornece uma espécie de arroz chamado arroz de Gâmbia, que é muito apreciado na Europa e se pode comparar ao arroz da Carolina. Abundam a cera, o marfim, o óleo de palma ou de dendém; há igualmente algodão branco em abundância e incenso. Os portos de Cacheu, de Bolor e Ziguinchor estão bem abrigados.

Bissau compõe-se do Forte de S. José e dos presídios de Fá e de Geba no interior, no território dos Mandigas. A extensão de cada uma destas feitorias é semelhante ou aproximada às feitorias de Cacheu bem como os tipos de produção. O Forte de S. José está praticamente envolvido por seis povoações que são governadas por régulos, dependentes do rei de Intim. O porto de Bissau tem em frente o Ilhéu do Rei ou dos Feiticeiros; à semelhança de Farim e Ziguinchor, são os pontos que alimentam o comércio de Cacheu, Geba fornece a Bissau os principais artigos do seu comércio.

Bolama compreende a Ilha das Galinhas, o arquipélago dos Bijagós, na embocadura do Rio Grande. As produções daqui são geralmente as mesmas que as das outras municipalidades da Guiné. No entanto, Bolama produz mancarra de muito boa qualidade; a pesca é muito produtiva e abundam as tartarugas nas águas destas ilhas. A ilha de Bolama foi cedida a Portugal em 1607 pelo rei de Guinala. O autor depois explica a tentativa de apropriação por parte dos ingleses e verte o texto da sentença do presidente dos Estados Unidos Ulisses Grant, versão inglesa.

O autor informa que o Governador Geral de Cabo Verde visita Bolama em 30 de setembro de 1870 e tomou solenemente posse da ilha em 1 de outubro; Bolama está coberta de plantações, tem excelentes madeiras e o seu clima é bastante salubre, goza de um grande movimento comercial e a fertilidade do seu solo assegura-lhe um futuro de prosperidade. A Ilha das Galinhas, dada por Damião, rei de Canhabaque, ao coronel português Joaquim António de Matos que a ofereceu à coroa de Portugal em 1830; é uma ilha bastante fértil, produz excelentes madeiras, possui água em abundância, pescam-se tartarugas de que se recolhe o âmbar; o seu melhor porto não é acessível a não ser a pequenas embarcações.

É este o essencial do que se dizia da Guiné em 1878, a um ano da sua separação de Cabo Verde, passando de distrito a província.

Concluída a leitura do Boletim Official do Governo de Cabo Verde e da Guiné, incluindo os primeiros meses de 1880, começa-se agora a folhear o Boletim Oficial da Província da Guiné Portuguesa, na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa. Esclarece-se o leitor de que há lacunas, os primeiros números são inexistentes com reduzidos a folhas praticamente elegíveis, entra-se a sério no documento no Boletim N.º 12, com data de 25 de setembro. Há imensas parecenças com as matérias que se encontram no Boletim Oficial de Cabo Verde, informações sobre pessoal que vai em gozo de férias, quais os papéis que devem ser escritos em papel selado, nomeações, transferências, embarcações que vão em socorro de outras, com os respetivos agradecimentos e louvores, arrematações em hasta pública, movimento marítimo, mensagens de gratidão, etc.

No Boletim N.º 13, de 9 de outubro, aparece a constituição de uma comissão permanente de saúde pública, visa-se melhorar as condições de salubridade, “removendo ou modificando as causas mais conhecidas das doenças que se generalizam em épocas determinadas.” É decisão tomada pelo primeiro governador, Agostinho Coelho. Mas o ponto forte deste número do Boletim é dado pelo tratado de paz feito em Buba, em 27 de setembro último, entre Sambel Tombom e Sambá Mané, subchefe dos Fulas-Pretos:
“1.º - Passa a haver paz e concórdia entre os Fulas-Pretos existentes no Forreá e os Fulas-Vermelhos do território de Buba.
2.º - Os Fulas-Vermelhos comprometem-se, para esta paz ser inalterável, a entregar as espingardas e mais armamentos tomados em Sambafim.
3.º - Logo que sejam entregues as armas, os Fulas-Pretos sairão do território de Buba e conservar-se-ão no sítio que neste tratado é convencionado.
4.º - O chefe dos Fulas-Pretos e a sua gente serão passados em embarcações para o território de Bolola, ficando por esta forma proibidos de passarem pelo território de Buba.
5.º - O chefe do Forreá, Sambel Tombom, terá sempre em Buba um filho seu representante da sua autoridade com quem o Governo se entenderá sobre as questões do interior.”


Assina Gabriel Fortes e os dois chefes em litígio, a grande novidade, conforme o leitor pode ver na imagem é o texto do tratado vir em português e na língua árabe.

Estamos agora em 1881, temos o Boletim n.º 2 de 22 de janeiro que faz referência ao estado sanitário de Gorée e dos arredores, dizendo que o estado é bom e que em S. Luiz é excelente, a última morte por febre amarela tinha tido lugar na noite de 25 para 26 de dezembro. Quem assina é o cônsul de Portugal, Jean Guiraud, que também confirma que não se verificou nenhum caso nem na cidade nem no hospital nem nos campos e nem mesmo nos navios de comércio. É uma informação curiosa, como o leitor se recordará está em aberto o contencioso com a França sobre o Casamansa, só ficará resolvido pela Convenção Luso-Francesa de 12 de maio de 1886. É por isso que a apreciação do cônsul vem assinada pelo chefe de saúde em Bolama, Pereira Leite de Amorim, temos novas informações, paira sempre o espectro do regresso da febre amarela.

Mas este Boletim introduz uma novidade, a administração do concelho de Bolama publica o movimento dos presos, neste caso o referente ao mês de dezembro do ano anterior. Poderá ser ruma mera curiosidade, faz-se referência. Como o leitor poderá ver na imagem, há de tudo: embriaguez, desordens, pancadaria com ferimentos, roubos. A administração do concelho de Bolama irá repetir mensalmente o movimento dos presos.

No Boletim N.º 5, de 26 de fevereiro, a repartição de saúde informa que a Junta de Saúde recebeu tubos de linfa vacínica, e que se procede à sua inoculação todos os domingos, das 7h às 9h. No Boletim N.º 7, de 19 de março, o presídio de Geba imite o relatório referente ao mês de janeiro, nestes termos:
Sossego público – não foi alterado em todo o mês.
Estado sanitário – foi regular. O número de óbitos verificados em todo o presídio foi de quatro, sendo dois maiores de 60 ano e dois menores, um de quatro anos e outro de um, sendo a morte deste último produzida por desastre.
Agricultura – quase nula, limitando-se à cultura da cebola.
Indústria – tecidos de algodão e sabão para consumo do presídio, esteiras e cestos.
Instrução pública – tem funcionado a escola com regularidade, frequentada por 20 alunos.
Estado alimentício – bastante escasso, devido talvez à continuação das guerras.

(continua)


Bolama em 1912
Carta da província da Guiné, 1912
Carta da colónia da Guiné, 1933
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Nota do editor

Último post da série de 10 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25926: Historiografia da presença portuguesa em África (440): em 1934 já se temia e discutia a transferência da capital, de Bolama para Bissau...

quarta-feira, 15 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25528: Historiografia da presença portuguesa em África (423): João Vicente Sant’Ana Barreto, o primeiro historiador da Guiné portuguesa (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Dezembro de 2023:

Queridos amigos,
A narrativa que agora se apresenta corresponde a um período dramático da nossa presença naqueles pontos da costa ocidental africana. O domínio filipino, questão hoje consensual, foi catastrófico para o império ultramarino português e reduziu a presença portuguesa a um enclave, aproximado ao que é hoje a Guiné-Bissau, isto em termos de faixa litoral, a Convenção Luso-Francesa de 12 de maio de 1886, se bem que nos tenha tirado a região do Casamansa, assegurou uma extensão até ao interior, a França acautelou que não tivéssemos acesso ao Futa-Djalon. Em estado de penúria quando se deu a Restauração, D. João IV pretendeu concentrar em Cacheu a área comercial da região, mais tarde cresce a importância de Bissau, mas sempre na presença de concorrentes que pretendiam erradicar a presença portuguesa. Criam-se companhias majestáticas, de pouca duração. É uma época de implantação de praças e praças-feitorias: Cacheu, Farim e Bissau, só mais tarde teremos acesso controlado no rio Geba e no Rio Grande de Buba.

Um abraço do
Mário



João Vicente Sant’Ana Barreto, o primeiro historiador da Guiné portuguesa (2)

Mário Beja Santos

Data de 1938 a História da Guiné, 1418-1918, com prefácio do Coronel Leite Magalhães, antigo governador da Guiné. Barreto foi médico do quadro e durante 12 anos fez serviço na Guiné, fizeram dele cidadão honorário bolamense. Médico, com interesses na Antropologia e obras publicadas sobre doenças tropicais, como adiante se falará.

Barreto expõe detalhadamente as consequências do domínio filipino, tanto no império ultramarino português em geral como no caso da costa ocidental africana em particular, a nossa presença na Senegâmbia apagou-se, ficámos reduzidos ao enclave que virá a ser conhecido como Pequena Senegâmbia. A concorrência, designadamente de holandeses, franceses e ingleses, de um lado, e da presença dos comerciantes espanhóis, por outro, deixou os interesses portugueses em estado crítico. No relatório que o Governador de Cabo Verde, D. Francisco de Moura, dirige a Filipe III, em 1622, refere não só a desorganização administrativa com a presença de todo e qualquer concorrente, como acentua como o comércio espanhol agravava a situação financeira das Praças. Calculava D. Francisco de Moura que nessa época deveriam sair da costa africana cerca de 3 mil escravos em três ou quatro naus castelhanas que iam anualmente à Guiné sem tocarem em Santiago, importando em perto de 100 mil cruzados os prejuízos da Fazenda Real em direitos sonegados. Estes comerciantes contrabandistas podiam, por isso, pagar pelos escravos um preço superior àquele que os negociantes moradores de Cabo Verde podiam oferecer, daí a pobreza e decadência dos interesses da região.

A fundação da capitania de Cacheu começa em 1630. Segundo a narrativa de André Álvares de Almada, a atual povoação de Cacheu principiou a formar-se por volta de 1588. É neste contexto que Barreto faz o reconhecimento da importância do Tratado Breve dos Rios da Guiné: a descrição dos Jalofos, o desmembramento do império do Grão-Jalofo, a chefia da família Budumel, a importância de Goreia, onde se encontravam instalados os mercadores ingleses e franceses, o papel dos lançados, o reino de Ale, povoado dos Barbacins, com a povoação de Joale, mais a sul o reino de Barçalo, habitado por Barbacins, Jalofos e Mandingas, e depois o reino de Cantor, que é um reino dos Mandingas entre Casamansa e Geba, os Bijagós, Biafadas e Nalus, e a viagem até à Serra Leoa, obra que culmina com um voto: “Permita Deus que em dias de Sua Majestade, El-Rei D. Filipe, vejamos esta terra povoada de cristãos.”

Passamos agora para o capítulo 4.º, o período que sucede à Restauração de 1640. Barreto volta a recordar que os 60 anos da dominação filipina levaram a Holanda e a Inglaterra a apossar-se do Império português do Oriente, de Ormuz a Malaca, deixando-nos apenas alguns pontos de apoio na costa ocidental da Índia. No Atlântico, os holandeses haviam tomado os fortes de Arguim, Goreia, Mina, S. Tomé, Luanda, Congo e alguns pontos do Brasil. O domínio português na Costa da Guiné, que no reinado de S. Sebastião se estendia desde o Cabo Branco até à Costa da Mina, estava reduzido, em 1640, à estreita faixa compreendida entre os rios de Casamansa e Bolola.

A situação comercial e financeira da Guiné, insista-se, era catastrófica, os mercadores castelhanos e estrangeiros tinham criado a indisciplina e a anarquia, recorde-se que o carregamento de escravos se fazia diretamente da Guiné para a América Espanhola. Para remediar o mal e acudir à quebra de rendimentos, procurou-se estabelecer relações entre a Guiné e o Brasil, desviando para Pernambuco os carregamentos que até ali seguiam de preferência para Antilhas.

O capítulo 5.º marca as iniciativas da Restauração. D. João IV mandou construir a fortaleza de Cacheu, encarregando Gonçalo Gamboa Ayala, que teve carta de Capitão-mor em 16 de julho de 1641. Iria começar a relativa autonomia da Guiné com a construção desta fortaleza, onde se vão sucedendo peripécias de toda a ordem, desde sublevações a ataques dos povos vizinhos. Os interesses espanhóis tudo fizeram para que a fortaleza lhes caísse nas mãos, mas a revolta foi sufocada. Criou-se um imposto especial para os navios que negociavam com as Antilhas, e em 1642 foi franqueado o comércio na Guiné aos cabo-verdianos.

Com o intuito de evangelização, saiu de Portugal a missão composta pelos padres Baltasar Barreira, Manuel Fernandes e dois auxiliares; Fernandes faleceu um mês depois e foi substituído em Santiago pelo padre Manuel de Barros. Segundo informa André Álvares de Almada, por volta de 1590 fazia-se em Cacheu cerca de 700 confissões na época da Quaresma. Vê-se perfeitamente que João Barreto leu a Relação anual das coisas que fizeram os padres da Companhia de Jesus, pelo padre Fernão Guerreiro. A propósito das feitorias no rio de Buba, Barreto refere o escrito Descripção da Guiné, por Francisco de Azevedo Coelho, datado de 1669, observando que se trata de uma das descrições mais antigas sobre os estabelecimentos portugueses no continente africano. Este Francisco de Azevedo Coelho é o mesmo Francisco Lemos Coelho de que noutro espaço já se fez referência, foi estudado por Damião Peres, e é sem dúvida alguma uma das figuras de referência da literatura de viagens do século XVII. Em 1676, foi estabelecida a Companhia de Cacheu, possuía um caráter majestático. Por contrato régio, a Companhia obrigava-se a completar as obras da fortaleza de Cacheu, a contrapartida era adquirir o exclusivo da navegação e comércio da Guiné. Barreto fala seguidamente das insubordinações de régulos contra Cacheu, a praça defendeu-se e os régulos acabaram por pedir a paz.

Entretanto, outros portos da colónia, como Bissau, tomaram certo incremento, ao mesmo tempo que as companhias privilegiadas francesas e inglesas ameaçavam invadir a estreita zona que ainda se conservava na posse de Portugal. E o autor faz um breve resumo da evolução da política de França e Inglaterra na África Ocidental. No caso inglês, Isabel I concedeu autorização para explorar a região situada ao sul do rio Nuno até à Serra Leoa, aqui se formou uma feitoria. Jaime I concedeu carta a uma nova sociedade denominada Os Aventureiros de Londres, estabeleceram-se na foz do rio Gâmbia, mas foi empresa de pouca duração. Achando desocupada a região da Gâmbia, os holandeses, que se encontravam na Goreia, fundaram ali as suas feitorias, de onde foram expulsos pelos ingleses em 1661. A circunstância foi aproveitada pela Companhia Francesa que trato de estabelecer várias sucursais ao longo do rio. Depois do Tratado de Utrecht, a Grã-Bretanha consolidou a posse da Serra Leoa. Em 1758, os ingleses expulsaram os franceses dos fortes de S. Luíz e Goreia. Barreto faz também uma relação sobre as colónias francesas e holandesas, bem como as vicissitudes que impenderam sob o Castelo de Arguim, que andou por várias mãos até ficar na posse da França, em 1724.

Aqui se inicia o capítulo 6.º, onde se destaca a capitania de Bissau. Por volta de 1685, o porto de Bissau era um centro comercial de relativa importância, por onde começavam a convergir os produtos agrícolas e escravos do interior das povoações situadas ao longo do rio Geba e ainda algumas das ilhas dos Bijagós. A Companhia do Senegal mandou empregados para Bissau, tal era a importância dos negócios. Na época formou-se a segunda Companhia de Cacheu com o nome de Companhia de Cacheu e Cabo-Verde. No final do século XVII, surge a primeira fortaleza de Bissau.

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 8 DE MAIO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25496: Historiografia da presença portuguesa em África (422): João Vicente Sant’Ana Barreto, o primeiro historiador da Guiné portuguesa (1) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25100: Notas de leitura (1660): "Os três rostos da Igreja Católica na Guiné" (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Julho de 2022:

Queridos amigos,
Frei Vicente, missionário franciscano, teve longa permanência na Guiné-Bissau (entre 1975 e 2012), escreveu obra, porventura memorial, no artigo que publicou na revista Itinerarium lança um longo olhar sobre os grandes momentos da missionação. Regista-se hoje o primeiro e mais longo desses períodos, que se estende até 1932, são séculos com diferentes levas de congregações que viveram as maiores atribulações quer com os portugueses quer com a agressividade do meio. Não tinham condições para irem até ao interior e com a crescente islamização da Guiné encontraram uma barreira que lhes parecia intransponível, as portas abertas eram facultadas fundamentalmente juntos das etnias animistas. Veremos como Frei Vicente reconhece que o período posterior à independência foi compensado pela atividade missionária franciscana nos domínios da saúde e educação, distinguiram-se figuras notáveis, como Dom Settimio Ferrazzetta, que num estado de debilidade total, e com o pleno reconhecimento dos credos religiosos mais influentes da Guiné, foi porta-voz do apelo à paz entre os contendores do chamado conflito militar de 1998-1999.

Um abraço do
Mário



Os três rostos da Igreja Católica na Guiné (1)

Mário Beja Santos

Na mesma revista Itinerarium n.º 227, referente ao primeiro semestre de 2022, dos franciscanos missionários, donde, aliás, já fizemos referência ao diário do Padre Macedo que testemunhou os primeiros anos da independência da Guiné-Bissau, vem um artigo assinado por Frei João Dias Vicente intitulado “Os três rostos da Igreja Católica na Guiné”, cujo teor merece ser referenciado por alguns aspetos inovadores da leitura historiográfica que ele faz.

Ele diz que em março de 2021 acabou de redigir algumas recordações avulsas sobre a sua experiência de missionário na Guiné-Bissau (1975-2012), a que deu o título de Guiné-Bissau, a minha segunda pátria. Procura agora neste texto tentar uma descrição das dimensões mais salientes da Igreja Católica neste país africano, desde as origens até aos nossos dias. Não deixa de exaltar o documento de referência obrigatória, a História das Missões Católicas na Guiné, escrito pelo Padre Henrique Pinto Rema, aqui se encontra uma visão global dos factos históricos mais salientes destes últimos cinco séculos.

No percurso histórico da missionação, Frei Vicente encontra três momentos maiores: a partir de 1533, data da criação da Diocese de Cabo Verde, que incluía a terra firme da Guiné, ou os Rios da Guiné, até 1932, data do regresso dos franciscanos à Guiné; o segundo momento ocorreu entre 1932 a 1977, data da criação da Diocese de Bissau e escolha do primeiro bispo; a terceira, de 1977 aos nossos dias.

Estamos, portanto, na primeira fase desse percurso, ocorre relevar a existência de uma desproporção enorme entre o campo da atividade missionária e o número de agentes missionários disponíveis para nela trabalhar. Fala-se concretamente da chamada Senegâmbia que durante os primeiros 200 anos ultrapassava em muito a atual Guiné-Bissau, incluía a Gâmbia, parte do Senegal e estendia-se para sul até à Serra Leoa. Não restam vestígios dos tempos primitivos. Há referências documentais à capelinha da Nossa Senhora da Natividade em Cacheu.

Os sacerdotes do clero secular foram os primeiros a ser enviados para os Rios da Guiné. Havia a visita anual de um sacerdote para administrar os sacramentos aos fiéis – eram os Visitadores. Frei Vicente recorda a especificidade da presença portuguesa em pequenos entrepostos, os missionários, por razões de saúde e segurança, tinham que com eles conviver, o que, regra geral, era fonte da maior animosidade, os missionários não se coibiam de criticar as condições degradantes do tráfico negreiro.

Depois dos Visitadores seguiu-se um período de congregações religiosas serem chamadas para a missionação em toda esta região continental. Primeiro, chegaram os padres carmelitas, seguiram-se os jesuítas, introduziram um estilo de missionação itinerante que os levou de Bissau até à Serra Leoa, dois deles, os Padres Baltazar Barreira e Manuel Álvares, deixaram informações escritas de grande importância. A terceira vaga de congregações foi a dos franciscanos capuchinhos franceses, a Santa Sé tinha decidido também enviar missionários para a costa da Guiné, decisão que trouxe muito mal-estar entre Lisboa e a Curia Romana. A quarta congregação foi a dos franciscanos capuchinhos espanhóis que enviou três levas de missionários, entre 1646 e 1687. A quinta congregação foi a dos franciscanos portugueses da província da Piedade, mantiveram-se na região entre 1657 e 1673, altura em que foram substituídos pelos franciscanos portugueses. A sexta congregação teve por nome franciscanos portugueses da província da Soledade, será a mais duradoura nos Rios da Guiné, por mais de 150 anos.

Um grande e positivo impulso na evangelização foi dado pelo Bispo D. Frei Vitoriano Portuense, na última década do século XVII, fez duas viagens à Guiné. Acontecimento nunca esquecido foi a visita que o Bispo fez ao rei Becampolo Có, em fevereiro de 1696, o rei aceitou ser batizado e mudou o nome para D. Pedro, uma homenagem ao rei D. Pedro II. No virar do século XVIII, os franciscanos da Soledade foram aguentando quanto puderam as suas posições na assistência às principais praças da atual Guiné-Bissau e na assistência possível às populações dos Rios da Guiné até à Serra Leoa. Segue-se um período de decadência das Missões, uma das principais razões para o fenómeno deveu-se essencialmente às ideias filosóficas do iluminismo, do positivismo e do liberalismo.

A Senegâmbia portuguesa estreitava-se. Em 1778, as praças da Guiné sob o domínio português eram: Bissau, Geba, Farim e Ziguinchor. Já deixara de fazer parte deste núcleo da presença portuguesa a Gâmbia e a Serra Leoa.

Em 1802, só havia três frades na Guiné, os últimos frades na Guiné terão resistido provavelmente até 1823, como certifica o Procurador-geral da província da Soledade. Após a extinção das Ordens Religiosas, com o triunfo do liberalismo, foram os sacerdotes do clero secular que, com os bispos de Cabo Verde, aguentaram sozinhos os esforços por manter na Guiné a assistência religiosa possível nas principais praças sob domínio português. Isto para sublinhar que os quase 100 anos que se estendem desde 1834 até 1932 serão um tempo de crescente decadência.

(continua)

Missa na Guiné-Bissau, imagem do Arquivo Missionárias da Consolata, com a devida vénia
Fiéis católicos guineenses estiveram reunidos, de 8 a 9 de novembro corrente, na peregrinação Mariana 2017, na cidade de Cacheu. A peregrinação deste ano decorreu sob o lema “Maria ka bu medi pabia bu otcha graça diante di Deus (Maria não tenhais medo porque encontrastes a Graça do Pai, tradução livre)”
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Nota do editor

Último poste da série de 19 DE JANEIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25088: Notas de leitura (1659): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (8) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P24981: Historiografia da presença portuguesa em África (400): Pedido de subsídio para uma exploração geográfica e comercial à Guiné, 1877 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Maio de 2023:

Queridos amigos,
Há relatórios curiosos coincidentes com a Sociedade de Geografia de Lisboa. Já aqui em pronunciei, sob a forma de ensaio, sobre o que era o pensamento imperial destes sócios fundadores e acabo de encontrar um texto do sócio Ferreira de Almeida que exemplifica claramente que esta corrente imperial pretendia que vingasse uma crescente atração pela fixação dos territórios africanos, conhecê-los em profundidade, dar-lhes contorno e fronteiras, identificar as suas potencialidades, para isso era indispensável fazer explorações, viagens de estudo, é o que ele aqui vem propor junto de uma importante comissão da Sociedade de Geografia de Lisboa. É mais uma voz a alertar para a tentativa de supremacia dos franceses na região; vai sublinhando que aqueles produtos comerciais que a Senegâmbia oferecia deviam aparecer à vista do público, em Lisboa, quer para comerciantes e investidores quer para consumidores. Era uma novidade como proposta, mais tarde as expedições coloniais concretizarão tal propósito. Confirma-se que este anos 1870 foram de viragem no pensamento imperial.

Um abraço do
Mário



Pedido de subsídio para uma exploração geográfica e comercial à Guiné, 1877 (1)

Mário Beja Santos

Dando voltas à cabeça de papeis votados ao esquecimento e alusivos às preocupações dos sócios da Sociedade de Geografia de Lisboa, no seu período iniciático, quanto ao conhecimento da Guiné, com auxílio da respetiva bibliotecária, dou-vos conta de um documento intitulado Pareceres N.º 3 da Comissão Portuguesa de Exploração e Civilização de África, desta instituição, com data de 19 de novembro de 1877, encontra-se um pedido de autorização assinado pelo sócio Ferreira de Almeida para subsidiar uma exploração geográfica e social à Guiné Portuguesa, estou certo e seguro de que não vou desapontar ninguém quanto ao teor do documento.

Após uma síntese histórica sobre o período dos Descobrimentos, chegamos ao nó da questão através de considerações preambulares, tomo conta de uma mentalidade e de um quadro ideológico emergente à noção do III Império:
“A emancipação, talvez prematura, mas natural do Brasil, deixou-nos livres de criarmos outro império e de explorarmos a nossa Senegâmbia que pelas suas condições pode assemelhar-se talvez à Guiana na América.
É preciso abandonarmos o péssimo sistema de apelar em tudo para os governos; podem entretanto influir eles de duas formas: primeiro cessando, a troco seja de que sacrifícios, de serem os primeiros concorrentes aos fundos disponíveis do mercado, porque então os capitais não encontrando lucro fácil, seguro e elevado, aventurar-se-ão em empregos comerciais, agrícolas e industriais não só no país como nas colónias; segundo, tornando conhecidas pelas explorações, e publicações de notícias, as condições das diversas colónias, etc. e incitando pelo exclusivo a formação de companhias comerciais e agrícolas. A colónia francesa do Senegal que desde o governo do general Faidherbe, em 1854, começou a alargar a sua área de desenvolvimento comercial, impôs a navegação francesa com exclusão de todas as outras nações.
A região da Guiné é de todos os nossos territórios além-mar talvez o menos conhecido. A primeira condição favorável que oferece ao nosso comércio é a sua proximidade da metrópole em relação às demais nações.”

O autor cita Travassos Valdez: “Na Guiné tudo denota ao viajante um país muito rico de produtos naturais, terras baixas e extensas, literalmente cobertas de uma vegetação pomposa, desde a mais perene e variada, facilitando a um governo previdente, forte e ilustrado os mais importantes recursos.”

E volta às suas considerações pessoais: “Os comerciantes portugueses na Guiné não são mais do que comissários dos comerciantes estrangeiros estabelecidos na Gâmbia e Goreia que por seu turno são as gentes das fortes casas comerciais de França e Inglaterra, América e Bélgica.”

Volta às suas considerações sobre o desenvolvimento agrícola para ele condição determinante, sem ele não haveria meio de fixar a colonização. E volta às suas considerações:
“Além das produções naturais da mancarra, madeira e arroz, parecem ser de fácil exploração o café e o algodão, pelo menos na região dos Mandingas (Geba e Farim) e nos Bijagós. Os artigos de comércio que vais avultam são além dos produtos agrícolas – goma, os couros, o marfim e o ouro; este comércio é feito das casas estrangeiras das colónias próximas francesa e inglesa e muito pouco por via de Cabo Verde com Portugal.
O atraso da hidrografia daquelas paragens, a falta de segurança e a dos mais rudimentares melhoramentos materiais, a exiguidade da população europeia e a ignorância das condições comerciais e agrícolas ditaram os artigos desserviço que julgámos indispensáveis fazer-se naquela região, a não ser ela alienada, a troco de uma centralização de domínio colonial da costa de Angola. Não é novo serem encarregues os exploradores de uma região de fundarem feitorias comerciais nos pontos em que pelo estudo que tinham feito da região se ofereçam condições de uma colónia: ultimamente foi o conde de Senelle encarregado de uma exploração naquelas condições, sobre os auspícios da Sociedade de Geografia de Lisboa. Propõe-se a Sociedade de Geografia de Lisboa a abrir uma subscrição para explorações geográficas: sem descrermos do patriotismo dos cidadãos portugueses, parece-me que a soma da subscrição não poderá atingir uma cifra que tenha um valor importante para a organização da expedição; mas em que esse capital pode condigna e justamente auxiliar a exploração é na criação em Lisboa de um depósito de géneros da Guiné que devem ser adequados pela permuta de artigos nacionais para o que servirá aquele capital; e onde o público, quer comerciante que consumidor, poderá apreciar os géneros e, pelos relatórios que os acompanharem, as condições comerciais e outras a que a permuta está sujeita, suas vantagem económicas, etc.”


Vamos ver na continuação deste texto e noutros seus contemporâneos que estava a alvorecer um novo conceito imperial: deslocar população para África com propósitos de colonização, impunha-se um desenvolvimento agrícola suscetível de dinamizar as trocas comerciais; o sócio Ferreira de Almeida é seguramente o porta-voz de uma conceção nas ligações comerciais entre Portugal e as suas colónias. E, como veremos adiante, faz uma proposta, contemporânea com as viagens que irão acontecer entre Angola e Moçambique, para identificar a geografia de uma colónia cuja dimensão se desconhece, ele fala claramente que é preciso conhecer a hidrografia, seguramente numa lógica do aproveitamento integral dos recursos hídricos para o transporte de mercadorias.

Procurava-se instituir uma moldura para a ocupação humana deste III Império, e um dos pontos mais curiosos desta proposta é a conjugação entre o conhecimento geográfico e a identificação das potencialidades económicas. Seguramente que a proposta não foi viabilizada, mas este documento denota uma mentalidade nascente quanto ao novo modo de olhar a ocupação de África. Sabemos que este desenvolvimento agrícola nunca passou das boas intenções, basta ler os relatórios dos chefes das delegações bancárias do BNU na Guiné, apareceram empresas com grandes planos e que rapidamente desapareceram. O colono branco não se fixou na terra, mas no comércio e serviços e com uma autoridade nos lugares mais inóspitos fez-se, sobretudo, representar pelo cabo-verdiano.


Largo Honório Pereira Barreto, freguesia do Beato
Gravura da época sobre povos da Senegâmbia
Indumentárias do povo da Gâmbia, 1823
Zulos, Kaffirs, Bechuana, Senegâmbia, gravura antiga

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 20 DE DEZEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24979: Historiografia da presença portuguesa em África (399): Magul, Moçambique, 8 de setembro de 1895: um marco na história da nossa artilharia

quarta-feira, 29 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24897: Historiografia da presença portuguesa em África (396): "Viagem ao arquipélago dos Bijagós", 1879, por Maximin Astrié (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Abril de 2023:

Queridos amigos,
Há para aqui um sexto sentido que me alerta para o facto de, pelo menos, ter folheado este opúsculo, não acredito tê-lo traduzido como hoje pretendo. Não é só rico em termos antropológicos. Temos forçosamente de nos interrogar o que era a nossa presença nos Bijagós, é inequívoco que a presença francesa tinha gradualmente ganho peso, eram as tais pretensões de ficar na posse das ilhas e estender o seu domínio até ao rio Nuno, sabemos como a diplomacia francesa saiu vitoriosa ao levar-nos a assinar a convenção luso-francesa de 12 de maio de 1886, tomaram posse de toda a região do Casamansa, cortaram-nos o caminho para os entrepostos da Serra Leoa. Devemos a este negociante francês um relato bem urdido, há que questionar porque nunca tenha sido publicado em português.

Um abraço do
Mário



Viagem ao arquipélago dos Bijagós, 1879 (1)

Mário Beja Santos

A Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa possui um exemplar de Viagem ao Arquipélago dos Bijagós, por Maximin Astrié, negociante francês em Bolama, Luchon, 1880, o exemplar foi uma oferta de Godefroy Gairaud, vice-cônsul de Portugal em Carcassonne. Lembro-me perfeitamente de ter deitado uma vista de olhos a este texto, mas não me recordo de o ter traduzido no essencial, tem elementos até de caráter antropológico do maior interesse. E ficamos claramente a perceber que em 1878 a nossa presença nos Bijagós era por demais ténue. Vamos então ao essencial do texto. Astrié começa por informar o leitor que o arquipélago dos Bijagós está situado na costa ocidental africana entre a Senegâmbia e a Serra Leoa. Com exceção de Bolama, que tem sido civilizada há cerca de 2 séculos pelos portugueses, servindo de entreposto no tráfico de escravos durante muito tempo, estas ilhas são praticamente desconhecidas.

Estamos em Bolama em 1878, recebi de Marselha um telegrama convidando-me a explorar os Bijagós, em caso afirmativo deveria viajar rapidamente até Marselha. O telegrama fora-me enviado pelo sr. Aimé Olivier, homem extraordinário que fundara estabelecimentos na Ásia e África. Acedi viajar até Marselha, fui recebido com um calor tão comunicativo, tinha tal entusiasmo a expor as esperanças que depositava no futuro comercial do país nestas regiões. Não hesitei um instante em aceitar a missão. Cheguei a Bolama em 1 de fevereiro de 1879. Comecei as minhas explorações por Orango, havia dois motivos para me ter decidido primeiramente por esta ilha: é a mais importante do arquipélago e possuiu o mistério de ruídos misteriosos.

É governada pelo rei Oumpané Bijougoth, é um déspota, possuidor de uma tal crueldade que afasta do seu território todos os estrangeiros. Embarquei na chalupa Marie com mais cinco homens na equipagem, incluindo um intérprete de nome Samba Sala, um piloto e um cozinheiro. Recebera na véspera do agente consular francês em Bolama uma carta do seguinte teor: “Meu caro senhor Astrié, tomei conhecimento que se quer aventurar na ilha de Orango. Na minha qualidade de compatriota e amigo, creio dever-lhe pedir energicamente que desista deste projeto. O rei dessa ilha pratica tais atrocidades, como é o caso agora dos marinheiros austríacos que naufragaram nessas terras. Não gostava de o ver exposto a tais perigos, a prejuízos pessoais que porventura exigiriam a intervenção do governo francês; e assinava." Não me demovi, a resolução estava tomada.

Ultrapassadas as dificuldades, viajou-se até Orango. Confesso que não foi sem uma certa emoção que munido de um óculo fui verificando as sinuosidades desta terra, donde talvez eu não voltasse. Fomos recebidos com demonstração de grande regozijo, o intérprete parlamentou com os indígenas, fiquei a saber que o rei me receberia na sua morada.

A tabanca ou residência do rei ficava a cerca de 1,5 km da praia. Chegámos a uma autêntica floresta de laranjeiras no meio da qual ficava a residência do rei, uma casa redonda composta de uma paliçada de bambus e com teto de palha. O rei esperava-me sobre um pódio, uma espécie de peristilo informe onde ele habitualmente praticava a justiça. Estava sentado sobre um escabelo em madeira. Era um homem de cerca de 35 anos, olhos penetrantes, nariz de abutre, coberto por uma tanga. Trazia uma espécie de chapéu alto, tal como usam todos os reis do arquipélago. Vi que tinha na sua coxa direita uma ferida horrível, asquerosa, com pus esbranquiçado, indicador de uma doença muito espalhada pelas populações da costa ocidental africana. De tempos a tempos sua majestade pressionava esta ferida horrenda com os seus dedos e depois limpava-se com um gesto desprovido de nobreza no seu ministro da Justiça. Ofereceu-nos escabelos e começámos a conversar, com recurso a intérpretes.

Muitos viajantes têm o hábito deplorável de se apresentar como se estivessem a conversas diretamente com os indígenas para lhes conhecer a língua. Com o recurso de Samba Sala, o rei dirigiu-me as seguintes palavras: “Quer o Irã, o mais poderoso dos deuses, que tudo o que vou dizer seja a expressão da verdade. Quer o Irã que da tua parte não me mintas. Vou imediatamente oferecer um sacrifício a todos os deuses. Fala, o que vieste fazer a estas ilhas?”

A população envolvia-nos, o círculo fechava-se cada vez mais, senti um odor nauseabundo que exalavam todos estes corpos untados de óleo de palma rançoso. O rei fez um gesto significativo com o bastão que empunhava, a multidão obedeceu-lhe alargando o círculo, ficando mais distantes de nós. Ofereci a sua majestade os presentes da praxe (um lenço para o pescoço, uma faca de talho, tabaco em folhas, um garrafão de aguardente). Recorrendo a Samba Sala, respondi nos seguintes termos: “Diz ao rei que estou pronto a satisfazer todas as suas questões com sinceridade. Vim a Orango para fazer com ele o comércio das nozes de palma, amendoim e borracha. Trago-lhe todos os produtos dos brancos (dinheiro em guinéus, tabaco e aguardente)”. Ao ouvir a palavra aguardente cresceu um murmúrio na multidão. E o rei respondeu: “Diz a este branco que compreendi todas as suas palavras. Vamos agora oferecer um sacrifício aos deuses e agiremos segundo a sua resposta.” E retirou-se, encarregando dois ministros de preparar a cerimónia. Durante os preparativos, trouxeram-nos laranjas, ananases e vinho de palma.

Reparei que uma jovem negra que se colocou atrás de mim com as pontas dos dedos procurava tocar-me o pescoço e manifestava o desejo de me ver o peito. Entendi não lhe recusar este favor e abri ligeiramente a minha camisa e a minha camisola de flanela. A multidão deixou escapar um clamor de espanto, tal a surpresa que lhe causava a brancura da minha pele. Não quis ficar sem resposta. É usual naquelas tribos da costa africana manifestar a sua galantaria às mulheres pressionando com delicadeza os seios e a extremidade superior do fémur, e o maior elogio que se possa fazer da sua beleza é a de mostrar admiração causada pela firmeza destas partes do corpo. Aproximei-me dela e cumpri o dever de responder à sua delicadeza. Mas nesse tempo o rei apareceu no limiar da porta e lançou-me um olhar que não tinha nada de amistoso, aquela jovem era uma das suas favoritas. Será a este fútil incidente que devo atribuir os acontecimentos seguintes?

A uma centena de metros do alpendre onde tínhamos conversado havia uma espécie de praça publicada cercada de laranjeiras e bananeiras. Tinham trazido todos os ídolos da ilha. Os mais belos eram grotescas estátuas em madeira, grosseiramente esculpidas e encimadas com uma espécie de chapéu alto. Havia também divindades secundárias, com cornos de cabra. A multidão esperava a chegada do rei para presidir ao sacrifício. Apareceu finalmente, pôs-se ao meu lado, sempre acompanhado dos seus ministros. A um sinal do rei, o sacerdote, após alguns salamaleques apresentou ao ministro da Guerra um soberbo galo que abanava vigorosamente a cabeça enquanto o ministro da Justiça o segurava pelas patas. Finalmente, o facalhão do sacerdote abateu-se sobre o pescoço do galo que caiu, decapitado, e se revolteou por terra em convulsões de agonia. O galo afastava-se claramente de mim e acabou estendido uns metros à frente. A assistência parecia ter ficado atónita e o rei levantou-se, sem proferir uma palavra. Os deuses tinham-se revelado desfavoráveis para mim. Anunciaram-me que eu estava preso.

Costumes bijagós, imagem publicada em Panorama, revista portuguesa de arte e turismo, Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo, nº10/11, 1954
Régulos bijagós, fotografia de Luís Paulo Ferraz, com a devida vénia
Figura feminina ancestral bijagó, Irã, 1890, coleção particular
Pescador bijagó lançando redes, retirado do Correio da Manhã, com a devida vénia

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 22 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24872: Historiografia da presença portuguesa em África (395): O problema das florestas da Guiné portuguesa, anos 1950 (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 15 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24852: Historiografia da presença portuguesa em África (394): "Cabo Verde, Formação e Extinção de Uma Sociedade Escravocrata (1460-1878)"; Obra de referência para a História de Cabo Verde e da Guiné, Porventura a investigação de maior envergadura de António Carreira (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Abril de 2023:

Queridos amigos,
O seu a seu dono, António Carreira continua a ser de leitura obrigatória para quem estuda Cabo Verde e Guiné. Obviamente que as fontes se têm vindo a diversificar e surpresas não faltam. O nosso mais notável geógrafo do século XX, Orlando Ribeiro, encontrou no Arquivo Histórico Ultramarino memórias de António Pusich, alguém natura de Ragusa (Dubrovnik), que conheceu em Turim o nosso ministro, o conde de Linhares, veio para Lisboa, e fez vida em Cabo Verde, onde foi governador, acabou por sofrer as consequências das lutas políticas do seu tempo. Temos nas suas memórias dados importantes sobre o povoamento, caso das ilhas de S. Vicente e do Sal, uma exposição sobre a qualidade do terreno e do clima, a proveniência dos seus habitantes, a divisão dos terrenos e o modo de os cultivar, tem mesmo pormenores bastante curiosos, cinjo-me a uma citação: "A cultura do milho, feijão e abóbora merece o primeiro cuidado destes insulares. A qualidade este fruto não é igual em todas as ilhas, pois o milho das ilhas do Fogo e da Brava é superior ao das outras ilhas, por ser miúdo, mais pesado e mais farinhoso. O feijão de Santiago e de Santo Antão é também melhor que o das outras ilhas e não se corrompe com tanta facilidade. A abóbora é quase igual em todas elas, e é abundante e mui boa." Temos aqui um retrato altamente impressivo para melhor entender os grandes acontecimentos da História de Cabo Verde do século XIX. O país tem uma história de literatura riquíssima, merecia que a conhecêssemos melhor, é nela que se vê despontar a riqueza do sentimento euroafricano.

Um abraço do
Mário



Obra de referência para a História de Cabo Verde e da Guiné,
Porventura a investigação de maior envergadura de António Carreira (2)


Mário Beja Santos

A primeira edição de Cabo Verde, Formação e Extinção de Uma Sociedade Escravocrata (1460-1878), por António Carreira, data de 1972, é uma investigação de arromba que começa nos contratos de arrendamento, os regastes nos Rios da Guiné, referencia lançados, cristãos-novos, como se obtinham os escravos e quais os seus preços, as mercadorias envolvidas, as companhias monopolistas, o povoamento de Cabo Verde e a formação do crioulo, a abolição da escravatura. Trabalho solitário (obviamente com sugestões preciosas de peritos à altura), que o investigador, sempre tão modesto, apresenta como a pequena história de Cabo Verde. E não se esquece de explicar a capa, utilizou um desenho de “Casa Grande, situada em S. Martinho Grande, nos arredores da Praia, a única sobrevivente da época escravocrata”.

Já se falou um tanto dos primeiros séculos depois do descobrimento (há ainda incertezas de quem chegou primeiro), dos contratos de arrendamento, o tráfico de escravos, as companhias monopolistas, as fomes e secas. É tempo de introduzir o crioulo, tema que merece a António Carreira uma posição um tanto controversa, outros contestam a sua tese.

O povoamento era feito com brancos, nobres e plebeus, degredados e escravos. Ainda no século XV vieram casais do Algarve em companhia de António de Nola. As áreas foram divididas em donatarias e começou o povoamento de Santiago e Fogo, a mestiçagem ia-se processando e dando frutos. O número de brancos nunca foi grande. Carreira observa que a imigração branca (forçada) tomou maior vulto no século XIX. “De 1802 a 1882 (nem em todos os anos) foram mandados para as ilhas 2433 degredados, uma média de 38 indivíduos por ano. O comportamento destes delinquentes, alguns autênticos facínoras, mostrou-se pernicioso e influiu bastante no dos escravos e no dos homens livres – pretos e mestiços. De modo geral, os degredados foram distribuídos pelas várias ilhas, embora em Santiago tivesse ficado o maior número. Adaptaram-se com facilidade e as relações com pretos e pardos seguiram o seu curso.”

É evidente que havia discriminação baseada na chamada “diferença de sangue” (cristãos e judeus). No decurso do tempo, Carreira anota três fases distintas da composição da sociedade cabo-verdiana: diminuto número de europeus e apreciável quantidade de escravos da costa da Guiné; poucos europeus e um pequeno número de estrangeiros, brancos naturais das ilhas, mulatos, escravos nascidos nas ilhas ou trazidos dos Rios de Guiné; reduzido número de europeus, brancos nascidos nas ilhas, um número crescente de mulatos e pretos nascidos e de libertos, uns e outros já nados aqui. De onde vieram esses escravos? Fundamentalmente, da Senegâmbia, os estudiosos, a própria literatura de viagens põe ênfase na Gâmbia, nos Jalofos, nos Rios da Guiné, mas também no rio Senegal e por extensão até à Serra Leoa. A questão é mais importante do que se pensa, chega em entroncar no dado ideológico da unidade Guiné-Cabo Verde, seriam povos irmãos, os contestatários da argumentação de Amílcar Cabral negam que a História seja comum, quer pela formação da sociedade escravocrata e proveniência dos escravos, quer pela língua e o substrato cultural. Nem tudo ficou resolvido com a separação efetiva dos dois países, a discussão ideológica subsiste, mas perdeu o calor que teve nos anos 1980. Agora o crioulo.

“Só as relações mantidas nas ilhas de forma contínua, assídua, pacífica e prolongada dos brancos com os escravos, nas casas-grandes e nas plantações, podia levar à formação de um meio eficiente de comunicação pela palavra falada. Contrariamente, a permanência do branco nos portos fluviais da costa africana foi durante largo tempo precária, sem estabilidade nem continuidade que pudesse permitir relações suscetíveis de dar lugar à formação de uma língua. Em nosso entender, o crioulo foi criado nas ilhas de Cabo Verde e, posteriormente, levado para os portos fluviais do continente, da chamada costa da Guiné, pelos mulatos e pretos-forros, quando os brancos os utilizaram como elo de ligação com os negros não aculturados, e com a finalidade de assegurar as relações comerciais. Mulatos e pretos-forros, todos eles crioulos na língua, com robustez física para suportar os rigores do clima, viraram lançados e, desse modo, tornaram-se os grandes agentes da propagação do crioulo naquele setor da costa.”

E Carreira socorre-se da opinião de Baltasar Lopes: “Suponho que o crioulo falado na Guiné é, não uma criação resultante diretamente do contacto do indígena com o português, mas sim o crioulo cabo-verdiano de Sotavento levado pelos colonos idos do arquipélago.” E Carreira também observa: “O crioulo falado na área Senegal-Gâmbia-Rio Nuno é um tanto diferente de o das ilhas. Não se deve estranhar que assim seja. Mesmo em Cabo Verde o crioulo de Santiago, mais aproximado do do Maio, é foneticamente diferente do do Fogo.” Fiquemos por aqui, a tese é polémica e contestada, basta pensar nos trabalhos de Benjamim Pinto Bull sobre o crioulo da Guiné-Bissau.

A obra de Carreira muda de rumo, fala-nos dos assaltos dos corsários, na situação social na época que antecedeu a abolição da escravatura, como esta ocorreu, e a importância que tiveram os tratados assinados entre Portugal e Inglaterra. Procurando sintetizar o que de mais essencial há neste trabalho de indiscutível envergadura, destaca-se: o período de formação da sociedade cabo-verdiana nas ilhas de Santiago e Fogo (séculos XV e XVI); período de transição para o aparecimento de uma pequena burguesia local (século XVII); o tempo de uma sociedade semilivre e decorrente da abolição da escravatura (inicia-se com a emergência de grupos multirraciais, marcados por estatuto social até ao virar do século XIX, em que se consolidou um classe dominante composta por reinóis, brancos da terra e alguns pretos – é este grupo que possui as melhores terras e controla o sistema económico, tem perto de si a classe intermédia que possuiu uma grande amplitude em Barlavento e reduzido número em Sotavento, na base da pirâmide o campesinato, trabalhadores indiferenciados e escravos ainda não completamente libertos.

O trabalho de Carreira não esquece a emigração, mas também o regresso à terra de origem, pautado pela vontade de quem triunfou lá fora se colocar ao lado dos brancos da terra. Deram-se profundos arranjos e disposições no edifício social, ao longo do século XIX, foi o tempo de um povoamento como jamais acontecera. Carreira também enfatiza a importância do papel do clero. Importa não esquecer que a difusão do ensino nas ilhas ocorreu logo nos primórdios do povoamento, o bispado de Cabo Verde surgiu em 1532 e é tido como primeiro do género em toda a África. Em meados do século, os dignatários desse cabido eram já cerca de três dezenas, abrangiam mestres-escola e mestres de gramática. Moldou-se, assim, um substrato cultural, a par do enraizamento de valores e crenças tradicionais, e o cristianismo conseguiu cobrir o vazio espiritual de populações arrancadas do continente. Este clero contribuiu para uma postura multirracial, que gerou uma dimensão ímpar na identidade cabo-verdiana (e diga-se sem hesitação até hoje).

Igreja da Nossa Senhora do Rosário, Cidade Velha, Cabo Verde, Património Mundial
Ruínas da antiga Sé Catedral da Cidade Velha, retirado do blogue Alma do Viajante, com a devida vénia
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Nota do editor

Último poste da série de 8 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24831: Historiografia da presença portuguesa em África (393): "Cabo Verde, Formação e Extinção de Uma Sociedade Escravocrata (1460-1878)"; Obra de referência para a História de Cabo Verde e da Guiné, Porventura a investigação de maior envergadura de António Carreira (1) (Mário Beja Santos)