sábado, 20 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24329: Os nossos seres, saberes e lazeres (573): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (103): Com sangue d’África, com ossos d’Europa (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Abril de 2023:

Queridos amigos,
As construções turísticas ficam mais adiante, é surpreendente o que se está a edificar, lá para os lados do Porto Grande, agora renovado. Vim até à réplica da Torre de Belém, foi Capitania dos Portos, é deslumbrante o que se avista das suas janelas, encerra agora o Museu do Mar, modesto mas museograficamente modelar, encerra um acervo que se prende com vestígios de naufrágios de imponentes embarcações, Mindelo era então indispensável para o abastecimento do carvão, não deixa de surpreender como esta ilha, tão pouco habitada até ao século XIX explodiu demograficamente, deixando no seu rastro e como lembrança singularíssimas construções. E Mindelo cresce exponencialmente, emigrantes na Europa e nas Américas aqui investem, como em quase toda a ilha, surpreendeu-me a visita que fiz a Salamansa, que conheci em 1970 com os seus casinhotos de pescadores e que se transformou de modo impressionante, como adiante se referirá.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (103):
Com sangue d’África, com ossos d’Europa (2)


Mário Beja Santos

Despedi-me no último texto mostrando uma indicação de que havia uma Avenida da República a circundar uma parte da belíssima baía do Mindelo, abarcando sobretudo o chamado Porto Grande. Estou agora no antigo edifício da Capitania do Porto, uma réplica da Torre de Belém, adiante dela se falará. Agora funciona aqui o Museu do Mar, todo o seu acervo é digno da nossa atenção. E as legendas ajudam-nos a perceber a importância do Mindelo, nomeadamente no século XIX, aqui se instalaram companhias carvoeiras, a companhia inglesa Royal Mail estabeleceu depósitos de combustível, e este Porto Grande tornou-se influente, com o seu constante vaivém de navios a reabastecerem-se de carvão, entrando e saindo em todas as direções. Data desse tempo o cais de embarque e desembarque, os armazéns, o forte, a alfândega, o quartel, os Paços do Concelho, e as lojas de fazenda, os bares, os hotéis; cresceu a população, Mindelo ganhou novos hábitos culturais e sociais. Plantaram-se árvores, iluminaram-se ruas, nelas há gente a falar em várias línguas, inclusivamente joga-se críquete e golfe, a própria Inglaterra tem cônsul. Em 1875, Mindelo é estimado como o maior porto carvoeiro do médio-Atlântico. A faina marítima torna-se complexa: fornecedores de navios, negociantes de bordo (troca direta), rocegadores (pesca artesanal e atividades extrativas, rocegava-se o carvão caído com auxílio de um instrumento denominado rocéga), os catraeiros (remadores que manobravam os botes com as mercadorias) andavam numa roda-viva.

Sinto-me deslumbrando nesta baía do Porto Grande que tornou o nome Mindelo universal.

Imagem exterior da réplica da Torre de Belém. Ao fundo, debaixo de toldos metálicos funciona o mercado do peixe salgado.
Aqui virei a várias horas do dia desfrutar desta largueza de vistas, esta bela cercadura vulcânica e o permanente vaivém das embarcações. Mindelo pode já não ter a importância que teve o seu Porto Grande, mas vive legitimado pela magnificência da sua baía, sinuosa, com os seus lugares recônditos, tendo Santo Antão pela frente.
Lá ao fundo, o porto modernizou-se, tem marinha, área de contentores e ali atracam os barcos que percorrem as ilhas, é dali que irei até Santo Antão.
É o espelho de prata que me deixa abismado, até me pergunto como esteve o dia tão quente e na curvatura do seu declínio há este êxtase, melhor prenda do sistema solar não podia haver
Estou no Museu do Mar a observar estas duas fotografias de barcos da CUF, era a navegação Lisboa-Mindelo-Bissau, aliás o Alfredo da Silva teve papel ativo no transporte de tropas.
O Museu do Mar realça a importância do Porto Grande na encruzilhada das rotas de navegação. Aqui se exibem acervos de expedições de arqueologia subaquática em resultado de grandes naufrágios que ocorreram nestas paragens, tanto podiam ser barcos vindos com prata de Potosi, marfim vindo das Índias Orientais.
É dado como certo e seguro que Diogo Afonso, aqui em estátua de bronze, teria descoberto as cinco ilhas mais ocidentais de Cabo Verde: Brava, São Nicolau, São Vicente, Santo Antão e os ilhéus Branco e Raso, foi capitão donatário, aqui se homenageia o descobridor ou o mareante do achamento.
Duas imagens tiradas no mercado do peixe da salga, vinha igualmente à procura de facultar ao leitor uma visão mais nítida da réplica da Torre de Belém.
Esta réplica foi construída entre 1918 e 1921, aqui funcionou a capitania do Porto Grande, já se enfrentava a concorrência dos portos de Dacar e das Canárias. Os anexos do edifício foram construídos em 1937, funcionou como Capitania dos Portos até 1967. Esta réplica foi construída em alvenaria com tijolos e argamassa de pedra e cal. Quadrada na sua base, tem três andares, um observatório na cobertura, torres de vigia aos cantos e a meias. Apresenta detalhes decorativos do estilo manuelino. O edifício foi restaurado no ano de 2001, com o apoio da cooperação portuguesa, e inaugurado em 2010.
Não me quero despedir do leitor sem mostrar duas reminiscências do período colonial, bem abonatórias do que terá sido a vida no Mindelo em termos de comércio, vida associativa desportiva. Há edifícios bem restaurados e outros que, na sua decadência, falam do passado do Mindelo do Porto Grande. Mas ainda há tanta coisa para ver! No entretanto, percorro o Mindelo em transportes públicos e andarei em S. Vicente nos chamados coletivos.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 13 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24312: Os nossos seres, saberes e lazeres (572): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (102): Com sangue d’África, com ossos d’Europa (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P24328: Manuscrito(s) (Luís Graça) (225): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles? - Parte IVA: Não provam bem as senhoras que se metem a doutoras


A representação do nu na arte ocidental > Detalhe > "The Expulsion of Adam and Eve from the Garden of Paradise (Paradise Lost)" (c. 1867), de Alexandre Cabanet (1823- 889). Pintura a óleo. Coleção Musée d'Orsay, Paris. Imagem do domínio público. Cortesia de: Wikimedia Commons.


1. Começámos a publicar, desde de meados de março passado,  uma série de textos, da autoria do nosso editor Luís Graça, sobre as lições que se podem tirar dos provérbios populares portugueses, nomeadamente sobre a saúde, a doença, os hospitais, os prestadores de cuidados de saúde (médicos, cirurgiões, farmacêuticos, enfermeiros, terapeutas, etc.), mas também sobre a proteção e a promoção da saúde, incluindo a vida, o trabalho, o envelhecimento ativo e a "arte de bem morrer" (*)...

Às vezes quando a doença e a morte nos batem à porta, à minha, à da minha família, à dos meus amigos e camaradas mais próximos, é que eu me lembro que dediquei uma boa parta da minha vida (quase quatro décadas) ao ensino e à investigação da arte e da ciência da proteção da doença e da promoção da saúde, o mesmo é dizer às "coisas" da saúde pública... E dão-me saudades quando, sendo maios novo, escrevia sobre esses temas...

Depois de sobrevivermos à dura prova que foi para todos (nós/vós) a pandemia de Covid-19, eis-nos  agora a fazer o luto pela perda recentes de pessoas que nos eram muito queridas. Daí a oportunidade  da publicação  deste textos que fomos (re)buscar ao nosso "baú", mas que não têm a ver, pelo menos diretamente, com a Guiné e a guerra que lá travámos... Ou terão,dependerá das "leituras" e dos "leitores"...

São textos que  com mais de 20 anos, que constavam da nossa antiga página na Escola Nacional de Saúde Pública / Universidade NOVA de Lisboa (ENSP/NOVA). A págima foi recuperada pelo Arquivo.pt: Saúde e Trabalho - Luís Graça (página pessoal e profissional cuja criação remonta a 1999).

Contando com a complacència (sobretudo com a cumplicidade) dos nossos leitores,  esperamos, ao menos, que a sua leitura possa ter algum proveito. Para o nosso editor, é também uma forma de continuar a lidar com o seu sofrimento psíquico e o sofrimento psíquico das pessoas que çhe estão próximas.  

Por outro lado, o nosso blogue já atingiu, na Internet, a "terceira idade": fez 19 anos em 23 de abril p.p.  E tem que ser "alimentado" todos os dias, com pelo menos  três postes... Estes textos também funcionam como uma espécie de "tapa-buracos"... LG


Curiosamente, não há provérbios na língua portuguesa que tenham como objecto explícito a parteira ou a comadre, uma figura que durante séculos foi rival do padre e do médico, e cujo poder assentava na proibição, imposta aos homens, de assistir aos partos.

Os que chegaram até nós, vindos dos tempos medievos, têm mais a ver com o parto e têm a conotação bíblica da maldição divina, lançada sobre a mulher que se deixou seduzir pela serpente, comendo a maçã da árvore do paraíso e dando-a a seguir a comer ao homem: "Multiplicarei os sofrimentos do teu parto, darás à luz com dores" (Géneses, 3:16). Talvez por que este é um campo cheio de interditos ao homem ou por que os construtores de provérbios sejam misóginos e sexistas (Quadro XIII).

Gomes (1974. 10) chama, aliás, a atenção para "as correlações e assimilações tantas vezes existentes entre a mulher e o animal - a mulher, base da pirâmide na sociedade sacra-feudal, o animal enquanto utensílio rural e objecto agrícola".

Por outro lado, e como muito bem sublinha Joaquim (1983. 84), no seu ensaio sobre as práticas e crenças da gravidez, parto e pós-parto em Portugal, "o saber médico, científico, não pode perceber (...) a função que do ponto de vista individual, social, essas mulheres [ as parteiras ou aparadeiras ] tinham - elas rodeavam, permitiam o grito das mulheres como uma das maneiras da mulher poder ‘viajar’ no seu imaginário, nesse corpo-a-corpo, como momento de renascimento que é [ para ela ] deitar ao mundo, dar à luz".

Na sua História do pudor, Bologne (1996. 94) interroga-se sobre a aparentemente estranha razão de ser da ocultação do corpo, a qual irá abrir, na Idade Média, "um parêntesis de mil anos" (sic) na evolução do conhecimento e das técnicas terapêuticas.

Contrariando o provérbio Naturalia non turpa ("O que é natural não envergonha"), há um pudor médico que atravessa todo este período até ao Século XIX, o século burguês por excelência. De facto, entre as classes altas oitocentistas não só não é de bom tom como é socialmente reprovável uma mulher ir sozinha à consulta médica, devendo para tal fazer-se acompanhar do marido, promovido à condição de zeloso guardião das virtudes domésticas e intrépido defensor da moral pública e dos bons costumes.

Ironicamente, o mesmo século que interdita às mulheres o exercício da medicina ("não provam bem as senhoras que se metem a doutoras"), é também aquele que se deleita com o nu artístico romântico de um Delacroix ou a sensualidade requintada de um Ingrès mas não tolera o realismo de um Courbet (As banhistas, 1853) ou o impressionismo de um Manet (O almoço na relva, 1863, Olímpia, 1865).

A história das mentalidades ajuda-nos, por isso, a perceber melhor a divisão sexual (e sobretudo social) que ainda hoje atravessa o campo da prestação de cuidados médicos.

Reportando-nos à Idade Média, sabe-se que muitos dos primeiros físicos e cirurgiões estavam ligados ao clero regular. O ensino e a prática médicas, no Ocidente cristão medieval, é inseparável do desenvolvimento do monaquismo, tal como o hospital.

Mas o advento da universidade irá criar uma clivagem entre médicos e cirurgiões e, no caso destes últimos, entre cirurgiões religiosos e laicos. O próprio vestuário serve para acentuar as diferenças de estatuto, ontem como hoje: enquanto o cirurgião já trajava fato comprido, o barbeiro vestia um simples fato curto; ambos eram, todavia, a par do físico e dos restantes praticantes da arte médica classificados como oficiais mecânicos.

Muitos dos físicos e cirurgiões, na Península Ibérica, são judeus, e o seu número tende a aumentar à medida que a Igreja, através dos Concílios de Clermont (1130) e de Latrão (1179), interdita ao clero o direito de derramar sangue, o mesmo é dizer:

 (i) participar em actividades bélicas:
 (ii) praticar a cirurgia;
(iii) exercer a medicina;
(iv) em última análise, ver e tocar o corpo.

A cirurgia laiciza-se, ao mesmo tempo o cirurgião que se vê confinada a um estatuto social inferior ao do médico. 

"Tocar o corpo humano será até ao Renascimento um domínio reservado ao cirurgião, que lhe deve o nome. Só no Século XVI os professores de anatomia porão a mão no cadáver nos anfiteatros universitários: até aí, comentavam de cátedra as dissecações praticadas por um auxiliar..." (Bologne, 1996.94. Itálicos meus).

A medicina continuará a ser, por mais uns séculos, uma profissão sábia (savante, como dirão os franceses): historicamente, até finais do Século XIX. Mas já nos finais do Século XVII e princípios do Século XVIII, as coisas começam a mudar. A pouco e pouco, torna-se também uma profissão consultante.

A partir de Boherhaven (mestre do nosso Ribeiro Sanches) e da sua abordagem clínica do corpo, em Leiden, na Holanda (veja-se o seu fabuloso museu da ciência e da medicina), começamos a ver o médico sentado à cabeceira do (ou debruçado sobre o) doente. Por outro lado, o hospital continuará a ser até tarde (até à II Guerra Mundial, pelo menos) um lugar de passagem para o médico.

Já na antiguidade clássica, o estatuto social do médico não era elevado; entre os cidadãos romanos, a arte de curar estava longe de ser considerada uma profissão digna, sendo muitas vezes exercida por escravos ou por pessoal doméstico;

Só por volta do Século II a. C. é que os médicos, sobretudo os de origem grega (os asclepíades), se tornam populares, famosos e até ricos: foi o caso do já citado Galeno (200-130 a.C.), natural da Ásia Menor, que obteve a cidadania romana e foi médico da corte imperial, constituindo com Hipócrates a grande referência médica da Antiguidade Clássica ("Hipócrates diz que sim, Galeno diz que não");

O estatuto do cirurgião, esse, continuará a ser ainda mais baixo do que o do médico, mesmo entre os árabes. O único árabe que, de resto, deixou um volumoso tratado sobre cirurgia foi Albucassis (936-1013), do califado de Córdova.

A proibição da dissecação de cadáveres, tanto entre os judeus como entre os cristãos e os muçulmanos (os crentes das três principais religiões monoteístas), não permitiu o desenvolvimento dos conhecimentos e técnicas cirúrgicas que, durante muitos séculos, se circunscreveram aos ensinamentos greco-romanos.

Com os romanos, a cirurgia militar tinha feito alguns notáveis progressos, que serão depois retomados no Renascimento. No Séc. XVI, o francês A. Paré (1510-1590) vem melhorar os bárbaros métodos de amputação até então utilizados, ao inventar o penso e idealizar a laqueação vascular, em substituição da cauterização das feridas com óleo a ferver ou ferro em brasa em caso de amputação (Sournia, 1995. 164-167).

Mas a própria cirurgia ressentia-se da proibição, mais acentuada depois do Século XIV, de dissecar cadáveres, "uma outra forma de pudor", segundo Bologne (1996. 95), o qual, no entanto, relativiza essa proibição, dizendo que se trataria mais de um respeito (primordialmente cristão) pela dignidade do ser humano do que uma interdição, propriamente dita, imposta por Roma, apesar da força que tinha então um édito papal (o de Bonifácio I).

Como sucedâneo dos estudos de anatomia humana, passa-se a recorrer à autópsia, ao embalsamamento e à vivissecção de animais ou até mesmo à dissecação de cadáveres, furtivamente exumados e roubados nos cemitérios ou simplesmente descidos do cadafalso.

Será preciso, todavia, esperar pelo Renascimento para que a paixão pelo estudo anatómico do corpo humano se sobreponha ao pudor imposto pela religião. A medicina alia-se então à arte. Cite-se o exemplo, por demais conhecido, da intensa colaboração entre Leornardo Da Vinci e o anatomista Marco Antonio della Torre. Outros grandes artistas, como Miguel Ângelo, Dürer ou até Veronese dedicaram-se ao estudo da anatomia. A arte acaba por influenciar o próprio nu médico.



Página 178 do livro de Andres Vesalius (1514-1564), completado em 1543, "De Humani Corporis Fabrica" (em português, Sobre a Organização do Corpo Humano), um verdadeiro atlas da anatomia do corpo humano, dividido em sete capítulos, baseado no conhecimento da dissecação de cadáveres e fabulosamente ilustrado. (Não parece ter hoje fundamento a sua alegada condenação à morte pela Santa Inquisição.) Imagem do domíniuo público. Cortesia de Wilimeda Commons.


Em jeito de síntese, pode dizer-se no Século XVI assistiu-se a uma verdadeira explosão do nu representado, logo seguida de reacções de pudor na época da Contra-Reforma:

  • Sinal dos tempos, na segunda edição (1555) da magnífica obra de Vesálio De humani corporis fabrica [ Tratado sobre o funcionamento do corpo humano], o seu célebre frontispício foi censurado;
  • No espaço de doze anos (a primeira edição é de 1543), o pudor voltou a ditar as regras: era intolerável que num livro de medicina aparecesse um jovem efebo despido;
  • Em suma, "o anatomista deu ao pintor a sua visão dessexualizada da nudez" mas a sociedade apressou-se a dizer ao médico "que o nu não era inocente", contrariando o provérbio Naturalia non turpa (Bologne, 1966. 97).

O pudor vai então entrar nos livros de medicina, a partir do Século XVII. Para ilustrar a anatomia do homem e da mulher, escolhe-se o Adão, com a sua parra, e a Eva com a sua delicada mão sobre o púbis. Em muitas gravuras de anatomia, o véu volta a cobrir o sexo do cadáver em cima da mesa de dissecação. Noutros casos, ainda mais ridículos, o cadáver está de ceroulas ou crescem-lhe flores à volta do sexo!

É uma situação tanto mais paradoxal - comenta Bologne (1996. 99), "quanto a época clássica, que voltou a vestir as pranchas anatómicas, vulgarizou o estudo da anatomia, multiplicando as aulas públicas". A anatomia torna-se um assunto mundano: "Nos salões, é de bom tom apadrinhar sociedades eruditas em que as damas seguem cursos de anatomia. Mas é altura de lhe vigiar a linguagem e a matéria".

Este paradoxo terá o seu triunfo no Século XIX: 

"O século que admite - com um sorriso cúmplice - que uma mulher pose nua para um pintor tolera mal que ela se dispa perante o seu médico". 

É também o século que, como já o dissemos, interdita às mulheres a prática da medicina.

Ao longo da Idade Média e, depois no Antigo Regime, a prática da medicina não estava teoricamente interdita às mulheres. Mas a partir do momento em que o diploma universitário passou a ser obrigatório para o exercício da profissão, o número de mulheres médicas (que nunca fora grande) tenderá a diminuir.

Quanto à cirurgia, há um decreto de Luís XV, de 19 de Abril de 1755, que em nome do pudor masculino vem proibir às mulheres "a qualidade de endireitas ou dentistas e de qualquer outra parte da cirurgia, excepto a relativa aos partos" (cit. por Bologne, 1966. 100. Itálico meu).

É também a partir do Século XVII que o médico se começa a intrometer na esfera da moral e dos costumes, tendência mais generalizada no Séc. XVIII, tanto antes como depois da Revolução Francesa. Em nome das Luzes, ele acaba por dar caução aos discursos moralizadores da sua época ou por impor um discurso normativo, seja a propósito da histeria feminina, do onanismo, das doenças venéreas, das relações sexuais durante a gravidez, dos caprichos da moda como o uso do espartilho de barbas de baleia, da limpeza do corpo e da casa, da alimentação, do crime e da loucura, ou simplesmente da querela entre parteiros e parteiras (Barbaut, 1991).

O poder societal do médico vai-se alargando, e curiosamente a partir duma questão-tabu que era então a indissolubilidade do casamento

Para os teólogos da Igreja, nada podia separar um homem e uma mulher que Deus unira para sempre. Havia apenas uma excepção: a partir do Século XII, a impotência e a frigidez passam a ser reconhecida como "impedimento dirimente do casamento". Mas a obtenção da prova não era fácil...

No Séc. XVI surge a famosa "prova do congresso" (Belogne, 1996. 103): O Parlamento de Paris irá considerá-la "inútil e infamante" em 1677:

  • O termo designava "as juntas públicas, em que um marido suspeito de impotência tem de provar perante médicos e comadres que a acusação é caluniosa";
  • A "prova do congresso" é então abolida em nome dos bons costumes, da religião e da natureza, e sobretudo devido aos abusos a que até então se prestava;
  • Acabou por ser substituída por outras provas, não menos arbitrárias e humilhantes, como a da "erecção", da "tensão elástica", da "ejaculação", etc.

O que importa sublinhar é o papel que as comadres e os médicos desempenham na "prova do congresso":

  • a pedido da justiça, o médico limitava-se a um exame pericial dos órgãos genitais do marido da queixosa;
  • cabia depois à comadre ("sage-femme") preparar as condições e o clima propício para a consumação do acto sexual, em geral na alcova conjugal ou num estabelecimento de banhos;
  • a comadre funcionava sobretudo como testemunha presencial; por respeito ao pudor feminino, o médico ficava à porta da alcova ou por detrás de um biombo; no fim, a comadre relatava ao médico as suas observações;
  • com base no seu exame pericial prévio e sobretudo do testemunho presencial da comadre, o médico fazia o seu relatório e entregava-o depois aos tribunais; 
  • é possível que comece aqui a história da medicina forense ou, pelo menos, do recurso à autoridade do médico como perito legal;
  • e julgamos que é também a patir daqui que se grafa a palavra "congresso" (por exemplo, médico) para designar uma reunião de peritos numa dada matéria (por exmplo, "congresso médeico")...

A partir de 1677, as parteiras deixam de ser admitidas em peritagens exclusivamente masculinas, desta vez em nome do pudor masculino mas sobretudo porque o seu papel passava então a ser completamente inútil. O médico acabava assim de liquidar um dos seus mais poderosos adversários: a comadre, parteira ou sage femme (Barbaut, 1991).

Em que é que se fundava o poder da comadre ?

  • "A meio caminho entre a mulher ‘modesta’ e o homem sem pudor, aquela a quem a Idade Média chama eloquentemente ventrire parece um ser assexuado, dispensado do pudor natural do seu sexo;
  • "Nem o médico nem o cirurgião nem o padre sonham contestar-lhe um poder que muitas vezes invade as suas atribuições; com efeito, se a ventrire testemunha nos congressos, tem também uma palavra a dizer em casos de violação, de ruptura dos votos monásticos, assiste aos partos, baptiza as crianças em risco de morrerem à nascença, etc.". (Bologne, 1996. 107).

Médicos e cirurgiões começam a retirar clientela à sage femme que, por outro lado, se vê ameaçada com o aparecimento dos primeiros parteiros no reinado de Luís XIV. O povo, galhofeiro, chamava-os então "as comadres de ceroulas".

O greco-romano Sorano (98 a.C.-77) é considerado o "pai da obstetrícia e da ginecologia", com o seu tratado sobre as Doenças das Mulheres. É preciso esperar, no entanto, pelo Séc. XVII, para que estes dois domínios especializados da medicina conheçam alguns progressos assinaláveis (Lyons e Petrucelli, 1991):

  • O francês F. Mauriceau (1637-1704) escreve em 1668 o Tratado das doenças das mulheres grávidas; será com o holandês H. van Deveter (1651-1724) o fundador da moderna ginecologia, graças ao seu estudo da anatomia pélvica feminina;
  • Outro holandês R. de Graaf (1641-1673) descobre em 1673 o folículo do ovário; até então supunha-se, de acordo com Aristóteles, que o óvulo se formava no útero;
  • No campo da obstetrícia, há uma importante descoberta na última parte do Séc. XVI: o fórceps, utilizado pela família inglesa Chamberlain que o mantém, no entanto, em segredo durante gerações até ser objecto de vulgarização médica; a descoberta deve-se a P. Chamberlain, o Velho (1560-1631);
  • Entretanto, em 1752 o inglês W. Smellie (1697-1763) funda a obstetrícia moderna com Treatise on midwifery, descrevendo o trabalho de parto e de assistência ao parto.

Até ao Séc. XVII, era relativamente raro (e sobretudo perigoso) um homem assistir a um parto. Cita-se o caso de um cirurgião de Hamburgo, o Dr. Wert, que foi condenado à morte por satanismo (!) e executado em 1522 por ter tido a ousadia de assistir a um parto, disfarçado de parteira (Barbaut, 1991. 142). Mas os tempos vão mudar: eram frequentes os acidentes em partos difíceis, o que inquietava os médicos, já desde os tempos dos greco-romanos e, depois, dos árabes.

Até então a experiência da sage femme era mais relevante do que os conhecimentos na matéria, para além dos preconceitos morais e religiosos que afastavam o homem do leito da parturiente. Mas, no caso dos partos difíceis, era importante a força muscular. A solução deste velho problema irá ser um trunfo para o médico e o cirurgião, independentemente do estado da arte no domínio da ginecologia e da obstetrícia.

A morte, em consequência de parto, da duquesa de Orleães, em 1627, irá pôr em causa a reputação das parteiras da corte e alimentar durante mais de um século uma querela com os cirurgiões. Em 1633, é já um parteiro (o primeiro que se conhece em França) a assistir ao parto de um dos filhos bastardos de Luís XIV. 

Será, pois, pela "via uterina", a das amantes reais, que os cirurgiões passam a ter acesso à corte.

  • Mas nesta querela os médico irão, curiosamente, tomar o partido das parteiras contra os cirurgiões, por razões que estão longe de ser inocentes:

  • Em 1708, Philipe Hecquet publica um tratado que irá provocar celeuma: De l’indécence aux hommes d’accoucher les femmes;

O seu argumento linear contra os cirurgiões pode ser resumido nesta frase lapidar do preâmbulo do seu livro: "Esta profissão repugna à própria natureza, pois é contrária ao pudor que é natural nas mulheres " (cit. por Bologne, 1996. 111).

Parece então haver um recuo táctico. Ao parteiro ensina-se-lhe a tocar sem olhar. surgem os tratados obstétricos a recomendar o lençol estendido entre o pescoço do parteiro e a cintura da parturiente (1681) ou os tratados de ginecologia a ensinar como se deve proceder a uma exame completo debaixo do vestido da mulher (1822).

Dos maléficos ou estranhos poderes das mulher prenhada ainda chegarão ecos até ao nosso Séc. XX, obrigando o médico a relembrar o velho ditado latino Naturalia non turpia e a refrasear o velho juramento de Hipócrates que interditava ao praticante da arte de curar a sedução ou outras formas de envolvimento pessoal com os doentes, de ambos os sexos. 

Neste caso, efebos aparte (aa pederastia era aceite ou tolerada na antiguidade clássica, e nomeadamemte entre os gregos), "as mulheres que não julguem decente mostrar um pudor temeroso... Para um médico, por mais bem parecido que ele seja, a cliente é apenas uma ficha e uma ocasião de fazer bem. Ela que não espere outra coisa", escrevia em 1930 um ilustre médico francês (cit. por Bologne, 1996. 111).

Em conclusão: se, até ao Século XIX, repugnava à mulher confiar-se à mão do macho (o que para o sociobiólogo será devido a um qualquer determinismo genético), "o desaparecimento das comadres e a raridade das médicas acabou por impor a regra inversa: o obstétrico continua a ser o domínio onde [ ainda hoje ] a mulher é mais dificilmente aceite" (Bologne, 1996. 111).

Mas não terá sido tanto o pudor feminino como sobretudo a religião que impôs à medicina a ocultação do corpo. Só na época de Luís XIV é que o médico marca pontos em matéria de liberdade face ao corpo. É a época em que aparecem os parteiros mas também aquela que viu nascer o "pudor masculino" e em que as doenças venéreas se tornam "vergonhosas".

Por outro lado, a unificação da profissão médica ainda está muito longe de se realizar. Oficiais do mesmo ofício, médicos e cirurgiões vão continuar a digladiar-se até praticamente ao Séc. XX.

Quando comparados com os médicos, os cirurgiões no Antigo Regime continuam, todavia, a ser em menor número, com menos instrução, com menos rendimentos e sobretduo "menos apreciados pela sociedade", mas mesmo assim indispensáveis, tanto mais quanto os homens da arte (os médicos) detêm o savoir mas não o savoir-faire;

De facto, o médico do Século das Luzes continua a "não saber colocar uma ligadura, reduzir uma luxação, fazer a incisão de um abcesso, imobilizar uma fractura ou extirpar um tumor" (Sournia, 1995. 217), tarefas menos nobres da arte de curar que são relegadas para o barbeiro e o cirurgião.


Quadro XIII - Provérbios e outros lugares comuns 
da língua portuguesa sobre a gravidez e o parto

    Objecto

    Provérbio

    Gravidez Maternidade Parto Puerpério

     

    • "A dor ensina a parir"
    • "À mulher parida e à teia urdida não lhe falta guarida"
    • "À mulher prenha só lhe vem doença e manha"
    • "As cadelas apressadas parem cães tortos"
    • "Casei, matei, pari, pulei"
    • "Em casa de paridas ou doentes, o assento não esquentes"
    • "Filho do meirinho com parteira"
    • "Filho sem dor, mãe sem amor"
    • "Mal casada é a mulher que não pare"
    • "Mau parto, filho ao cabo"
    • "Mulher parida, nem farta nem limpa"
    • "Mulher que se casa em dia de Sant'Ana morre de parto"
    • "Não há madre como a que pare"
    • "Não há parto sem dor"
    • "Não me pesa de meu filho enfermar senão pelo costume que lhe há-de ficar"
    • "Não provam bem as senhoras que se metem a doutoras"
    • "Parir é dor e criar é amor"
    • "Parir sem dor, criar sem amor"
    • "Pariu aqui a galega ?"
    • "Parto inchado, parto abençoado"
    • "Parto ruim, filha no fim"
    • "Pesar de quem me pariu" (Séc. XVI)
    • "Quinze dias na cama e quinze no lar - depois, mulher, vai trabalhar"

Em termos de estatuto, os médicos continuam a estar, apesar de tudo, abaixo dos juristas e do alto funcionalismo do Estado absolutista ou da sociedade senhorial do Ancien Régime, embora já pertençam ao mesmo grupo social em ascensão (que são os letrados, os clercs, em francês):

  • Contudo, em França, os cirurgiões irão dar um passo importante no sentido do seu reconhecimento, ao ser criada a Academia Real de Cirurgia (em 1737);
  • E, não obstante a feroz oposição da conservadora Faculdade de Medicina de Paris, passam inclusivamente a ter assento na Société Royale de Médecine, criada em 1778;
  • Aliás, já em 1723, por decreto real de 23 de Abril, era reconhecida em França a profissão de cirurgia.

Na Grã-Bretanha, o escocês J. Hunter (1728-1793) funda a anatomia comparada; em Observations on certain parts of the animal oeconomy (1786) estudou a anatomia do corpo humano, comparando-a com a de outras espécies animais;
  • Além disso, coleccionou ao longo da vida mais de 10 mil espécies anatómicas, muitas delas tecidos macios conservados em álcool;
  • Deu igualmente um importante contributo para a cirurgia militar com Treatise on the blood: Inflammation and gunshot wounds (1794);
  • No último quartel do Séc. XVII tinham, entretanto, surgido os primeiros jornais médicos, em França (1679) e na Inglaterra (1684).

No nosso caso, sabe-se que às parteiras já lhes também exigido carta ou registo de actividade (pelo menos no caso da cidade de Lisboa). Todavia, o exame obrigatório perante o cirurgião-mor só será exigido às parteiras no Século XVII, de acordo com o estipulado no respectivo Regimento de 12 de Dezembro de 1631 (Lemos, 1881, cit. por Joaquim, 1983. 84-85).

Esse exame passaria a ser extensiva também aos sangradores, algebristas e dentistas, em como a outros indivíduos com conhecimentos particulares (endireitas, etc.). "É evidente que estas parteiras tinham um papel diminuto e actuavam somente nas cidades; nos campos continuavam a assistir aos partos as aparadeiras" (Joaquim, 1983. 85).

É também nesta época que aparecem os primeiros esboços de tratados ginecológicos, obstétricos e pediátricos, entre nós, geralmente sob a forma de capítulos de livros dedicados à vulgarização da medicina:

  • "Tratado único das doenças particulares das mulheres"; "Do regimento que devem guardar as prenhadas para bem parir", in Luz da Medicina Pratica, Racional e Methodica, Guia de Enfermeiros Dividia em Tres Partes (...) de F. Morato Roma (Lisboa, 1664);
  • "Tratado da feliz parida", in Arte com Vida, ou Vida com Arte, Muy Curiosa e Proveitosa não só a Medicos, e Cirugioens, mas ainda a Toda a Pessoa de Qualquer Estado, ou Condição, Que Seja, principalmente dos Casados (...), de Manuel da Silva Leitão (Lisboa, 1738);
  • Atalaya da Vida contra as Hostilidades da Morte, de João Curvo Semedo (Lisboa, 1720).

Segundo Joaquim (1983. 85), o aparecimento destas obras seria um sintoma de "uma preocupação que começa a existir [ no Antigo Regime ] pelo modo como o parto se desenrola e pelas práticas que são utilizadas". Mas, ao mesmo tempo, este interesse seria também revelador da preocupação e intenção de as "submeter a um certo controlo médico":

O autor do Tratado da Feliz Parida é explícito na sua intenção de levar as luzes do conhecimento médico à população rural: 
  • "Não he mais que acodir [...] aos desamparados dos Médicos, aos quais vivem fora das povoações para que possam acodir à sua necessiade, & não morrerem à míngoa, não sabendo o que devem fazer, nem terem ordem para o consultar" (Roma, 1664. 317, cit. por Joaquim, 1983. 85);
  • De F. Mourato Roma (1588-1668), sabe-se que foi médico da câmara de D.João IV e de D.Afonso VI;
  • Da sua Luz da Medicina diz Lemos (1991, Vol. II. 35-36) que "se destinava a indivíduos de poucos conhecimentos médicos", que se limitava a "um resumo das doutrinas de Hipócrates, Galeno, etc., sobre os diversos capítulos da patologia", e que continha "raríssimas notas pessoais", de interesse clínico;
  • Por sua vez, M. Silva Leitão (1682-1757), médico do Hospital Real de Todos os Santos, também não se afastaria muito da vulgata galénica; o seu livro não passa de "um tratado de Higiene, aplicável sobretudo às mulheres paridas", que não contem "novidades dignas de apreço", para além de "alguns preceitos aproveitáveis" (Lemos (1991, Vol. II. 145).

Por fim, o terceiro autor referido por Joaquim (1983), J. Curvo Semedo (1635-1719), não passaria hoje de um simples caso de charlatanismo; na conceituada opinião de Lemos (1991, Vol. II. 129): o seu Atalaya da Vida seria "um livro deplorável", onde se apregoam a cada passo "medicamentos asquerosos", verdadeiras panaceias que eram vendidos pelo autor "por bom dinheiro"; curiosamente, Semedo era um dos médicos mais reputados do seu tempo, tendo sido médico da Casa Real.

(Bibliografia a apresentar no final da série)

(Continua)
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Nota do editor:

(*) Vd. postes de:

20 de maio de 2023 > Guiné 61/74 - P24328: Manuscrito(s) (Luís Graça) (225): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles? - Parte IVA: Não provam bem as senhoras que se metem a doutoras

4 de maio de  2023 > Guiné 61/74 - P24281: Manuscrito(s) (Luís Graça) (223): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles? - Parte III C: Contestação da Iatrogénese, da Medicina Defensiva e do Encarniçamento Terapêutico

 3 de abril de 2023 > Guiné 61/74 - P24189: Manuscrito(s) (Luís Graça) (220): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles? - Parte IIIB: Quando o pobre come frango, um dos dois está doente

28 de março de 2023 > Guiné 61/74 - P24173: Manuscrito(s) (Luís Graça) (220): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles ? - Parte IIIA: Hospital, o triunfo da hospitalidade e da caridade... mas "o peixe e o hóspede ao fim de três dias fedem"

23 de março de 2023 > 
Guiné 61/74 - P24164: Manuscrito(s) (Luís Graça) (218): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles ? - Parte IIB: "Com malvas e água fria faz-se um boticário num dia"



sexta-feira, 19 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24327: Notas de leitura (1583): "Onésimo Silveira, Uma Vida, Um mar de Histórias", por José Vicente Lopes; Spleen Edições, 2016 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Novembro de 2020:

Queridos amigos,
É livro de leitura obrigatória, Onésimo Silveira não só exerceu funções relevantes no PAIGC, como representante na Escandinávia, é um exímio conhecedor da realidade cabo-verdiana e mostra que sempre afrontou com coragem tal dogma da unidade Guiné-Cabo Verde. O entrevistador é José Vicente Lopes, um jornalista com pergaminhos, não há ali uma pergunta que não venha a propósito, sempre cheia de acicate para dar espaço ao entrevistado para prender a assembleia de leitores. Obviamente que aqui se fará uma leitura restrita destas mais de 400 páginas de alguém que, além de combatente nacionalista, tem no seu currículo a poesia, o romance e o ensaio, a diplomacia e a experiência autárquica na Câmara Municipal de São Vicente, alguém privou ao longo da vida com Amílcar Cabral, Mário Pinto de Andrade, Olof Palma, Karl Popper, Leopold Senghor e outros destacados líderes africanos. Ninguém que se pretenda informado sobre a vida do PAIGC e a luta de libertação pode dispensar esta leitura, conhecer o olhar de um cabo-verdiano que aspirava pela independência mas que nunca duvidou que havia um fosso profundo entre aqueles dois países que Amílcar Cabral tratava como uma união sagrada.

Um abraço do
Mário



Onésimo Silveira, o PAIGC e a unidade Guiné-Cabo Verde (1)

Mário Beja Santos

Onésimo Silveira, Uma vida, Um mar de Histórias, por José Vicente Lopes, Spleen Edições, 2016, é de leitura obrigatória por vários motivos, que destaco: temos aqui uma grande angular com olhares sobre a sociedade cabo-verdiana, o papel do PAIGC neste Estado independente, e o contributo de alguém que foi combatente nacionalista, embaixador do seu país e diplomata das Nações Unidas, autarca, poeta, romancista e ensaísta. Quem o entrevista é um jornalista conceituado, José Vicente Lopes, a quem devemos obras de referência tais como Os bastidores da independência, As causas da independência e Aristides Pereira, minha vida, nossa história.

Obra aliciante, questões bempostas e a propósito, espicaçando o entrevistado, dando o máximo de fluência à narrativa: logo sobre a infância, a exaltação que faz da mãe, o que reteve do ambiente familiar e social, o Liceu Gil Eanes, os professores e colegas. E depois vem para Lisboa, uma vida de boémia, um estudante que não o foi, o regresso a Cabo Verde, de onde segue para S. Tomé, Angola e depois o retorno a Portugal. Recorda a influência que nele teve Mário António de Oliveira em Luanda, acaba desterrado no Luso, vão vindo à flor da conversa os nomes dos intelectuais cabo-verdianos da sua geração e igualmente dos mestres, como Manuel Lopes.

Passa por Portugal, mas já escolheu outro destino, o exílio. Na Argélia trabalha com Abílio Duarte e Dulce Almada na representação do PAIGC. Fascinado pelo sistema político chinês, viaja para a China, fica horrorizado com o que viu, ali permaneceu dois anos, fala detalhadamente do nacionalista angolano Viriato da Cruz que ali teve um fim trágico e a conversa deriva para o problema do dogmatismo em Angola, como observa Onésimo:

“Muitas das desgraças que aconteceram a Angola, decorrem da forma radical e intransigente como os seus líderes encaravam a realidade, o seu processo histórico. Veja o Viriato da Cruz. Apesar da sua importância para a independência de Angola, só muito recentemente é que o seu nome foi resgatado. A mesma coisa acontece ao Mário de Andrade, que também morre no exílio porque não tinha lugar em Angola independente. No entanto, ele foi o primeiro presidente do MPLA, juntamente com o Viriato da Cruz. Isto põe um problema de transcendência histórica, normalmente o de saber se os melhores pensadores são sempre os melhores dirigentes”.

E da China parte para a Suécia, onde vai viver dez anos, trabalhando e estudando, fazendo um doutoramento sobre o socialismo africano, e encarregando-se de representar o PAIGC. Faz amizades com líderes africanos e conta histórias: 

“O Nyerere, estando em Estocolmo, mandava o embaixador telefonar-me para a gente se encontrar. Eu era correio das mensagens que Cabral lhe mandava. O Nyerere tinha uma admiração profunda por Cabral. Uma vez, o PAIGC estava com problemas financeiros, Cabral mandou-me e ao Vítor Saúde Maria a Dar-Es-Salam, o Nyerere não hesitou, sacou logo um cheque de 3 milhões de dólares”

E faz realmente referências a Senghor, Sékou Touré e Kenyatta.

Quando morre Domingos Ramos, em 1966, Onésimo escreve a Cabral, será o princípio de uma estreita cooperação, é chamado a Conacri e passa formalmente a representar o PAIGC na Suécia, o que lhe vai dar acesso a contatos com os governantes escandinavos, logo Olof Palme, que admirava profundamente Cabral. 

A entrevista centra-se, depois, no PAIGC e em Cabral, com quem ele diz nunca ter tido problemas, foi sempre um relacionamento com total abertura, podia-se discutir com o líder do PAIGC qualquer assunto. Refletindo sobre o passado, ajuíza alguns aspetos em que Cabral não fora feliz na medição dos cenários, por exemplo:

“Hoje, eu vejo que ele esteve o tempo todo numa situação difícil. Conhecia Cabo Verde, mas não tão profundamente como se poderia pensar. Tinha que dialogar com toda a gente, recorrendo, por vezes, a uma linguagem padrão, que nem sempre deu resultado. O seu desaparecimento foi uma tragédia. Mas também me interrogo se ele teria sido capaz de evitar todos os dramas que a gente vê na Guiné”

E o entrevistador questiona se seria só na Guiné ou também em Cabo Verde, para Onésimo seria sobretudo na Guiné.

O relacionamento de Onésimo com o PAIGC estende-se até ao assassinato de Cabral, segue-se a rutura, a causa do rompimento foi a unidade Guiné-Cabo Verde:

“Já nessa altura punha-se a recusa de discutir o problema da unidade. Mas mais do que possa parecer à primeira vista, nós eramos uns tantos, dentro do PAIGC, que não estávamos de acordo com a unidade orgânica entre a Guiné e Cabo Verde. Vendia-se, diplomaticamente, uma imagem dessa unidade como se ela existisse já, quando eu entendia que ela tanto podia dar resultados como não podia”.

 E dá exemplos de discussões tensas em Conacri, estiveram envolvidos vários interlocutores, é citado o caso de Osvaldo Lopes da Silva. Onésimo chegou a dizer a Luís Cabral: 

“Eu estou lá fora a vender um quadro que eu não sei bem muito o que é, e por causa disso não me sinto bem, a vender uma unidade que vocês têm como adquirida, mas que, do meu ponto de vista, não está adquirida. A unidade da luta é uma coisa, mas a unidade da governação é outra. Após a independência dos países o quadro de pertença terá de ser uma coisa diferente. Com o agudizar da situação, acabei por me ir embora”.

Lembra que os cabo-verdianos em Conacri se agrupavam, que estava envenenado o ambiente da luta. Numa reunião de quadros em que participaram Nino Vieira, Osvaldo Vieira, Chico Té, Vítor Saúde Maria, José Araújo, Pedro Pires, Abílio Duarte, Osvaldo Lopes da Silva, Amílcar Cabral denunciou gente que estava a criar divisão no partido por causa da unidade Guiné-Cabo Verde, uma coisa que, para ele, era sagrada. O mais acusado dos agitadores era Momo Turé, e Cabral tinha procurado mostrar-lhe reconhecimento e agradecimento por ele ter sofrido muito no Tarrafal. É aqui que Onésimo profere uma declaração que está hoje comprovadamente sem fundamento: 

“É através desse mesmo Momo Turé que a PIDE dá o grande golpe de morte ao PAIGC”

Decorrente desta denúncia, Momo Turé e João Tomás Cabral foram levados para a prisão, terá sido nesta prisão, conjuntamente com Aristides Barbosa, que se planificou o assassinato de Cabral, diz Onésimo. Observo eu que é uma maneira simplificada de procurar encontrar o móbil e o quadro dos figurantes do assassinato, importa não esquecer que estiveram envolvidas centenas de pessoas e dentro dessas centenas dezenas interferiram diretamente no quadro conspirativo. Aqueles três divisionistas não tinham estatuto para levar tão vasto plano por diante, mas compreende-se que Onésimo ao fazer esta declaração procure encontrar alívio e explicação para uma charada que continua sem resposta plausível, desapareceram pessoas e documentos, agora qualquer um de nós pode dizer o que lhe apetece, sabe-se que a PIDE não interferiu e não há comprovantes de que Sékou Touré também tenha ajudado à festa.

A entrevista ciranda os acontecimentos do assassinato e fala-se de Sékou Touré, Onésimo assiste ao funeral de Cabral, tem lugar uma receção do presidente da Guiné Conacri, ele diz que o PAIGC cometeu erros graves. 

“Na lógica dele, devia haver dois partidos, um da independência da Guiné e outro da independência de Cabo Verde. Por causa disso, fiquei com a impressão de que Sékou Touré tinha sido influenciado pelos indivíduos que tinham assassinado Cabral. Segundo ele, a divisão entre guineenses e cabo-verdianos tenha minado o PAIGC por dentro. Fiquei também com a sensação de que o Sékou Touré não tinha vertido uma lágrima pela morte do Amílcar. Encontro estranho, quase como falar em corda em casa do enforcado. Por maiores que fossem os problemas do PAIGC e da luta, aquele não era o momento para aquele suplício, sabendo ele que o Luís era amigo do Amílcar. O certo é que no meio da confusão que se seguiu à morte de Cabral, a polícia guineense, com o auxílio dos soviéticos, atuou imediatamente. E a conclusão: nenhum cabo-verdiano sabia que se ‘complotava’ contra Cabral, ao contrário de todos os guineenses em Conacri, que estavam a par. Quando o Cabral foi assassinado, havia uma casa em Conacri onde estavam os mutilados de guerra e quando souberam que Cabral tinha sido morto, indivíduos sem pernas, nem braços, aos gritos, davam saltos de contentamento, viram na morte de Cabral a sua libertação. A cena destes indivíduos a pularem de contentamento dá ideia dos recalcamentos criados pela luta, atesta o nível de contradições que o PAIGC, enquanto movimento de libertação, já tinha gerado no seu próprio interior”.

(continua)

Onésimo Silveira e Amílcar Cabral em Helsínquia
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Nota do editor

Último poste da série de 15 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24316: Notas de leitura (1582): Revisitar o livro "Memória", de Álvaro Guerra (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P24326: Imagens das nossas vidas: CART 3494 (1971/74) (Jorge Araújo / Luciano Jesus) - Parte II: De Bolama ao cais do Xime em LDG


Vista aérea da geografia do Xime e do perímetro do aquartelamento a vermelho


“O Xime, em cinemascope, do meu tempo” – António Vaz (1936-2015), Cmdt da CART 1746 (1968/69) – In: P9741, de 13.Abr.2012, com a devida vénia.



BART 2917 (Bambnadina, 25.05.1970-27.03.1972)          


BART 3873 (Bambadinca, 29.12.1971-04.04.1974)



IMAGENS DAS NOSSAS VIDAS: CART 3494 (1971-1974) - Parte II:  DE BOLAMA AO CAIS DO XIME EM LDG

Continuação do Poste 24191(03.04.2023) (*)


1. – INTRODUÇÃO

Do álbum do nosso camarada Luciano de Jesus, que foi organizando ao longo dos mais de vinte e sete meses de permanência no CTIG, e que, generosamente, fez questão de me oferecer uma cópia para partilha no Blogue, seleccionámos mais uma dezena de imagens para enquadrar a narrativa desta parte dois.

Enquanto a Parte I (*)  percorre o itinerário náutico desde Lisboa a Bissau e, depois, a estadia na Ilha de Bolama, para, no CIM se concluir o processo de instrução global para a “guerra de guerrilha”, denominado de IAO,  esta Parte II corresponde ao itinerário efectuado a bordo de uma LDG, em 27 de Janeiro de 1972, 5.ª feira, desde Bolama até ao Xime, local reservado à CART 3494 para cumprir a sua missão operacional.

Para além do contingente da CART 3494 participaram também, nesta viagem de “cruzeiro no Geba”, as restantes unidades do BART 3873, comandado pelo Cor Art António Tiago Martins (1919-1992), cuja CCS e Comando tinham como destino Bambadinca (a sede), a CART 3492, o Xitole, e a CART 3493, Mansambo.

Recordamos que a Unidade Mobilizadora do contingente do BART 3873 foi o Regimento de Artilharia Pesada n.º 2 (RAP 2) da Serra do Pilar, em Vila Nova de Gaia, com o objectivo de render na, então, Província da Guiné, o BART 2917 e as subunidades: CART 2714, CART 2715 e CART 2716, aquarteladas em Mansambo, no Xime e no Xitole, respectivamente, também elas formadas na mesma U. M., por estar a atingir o termo da sua comissão de serviço.

A publicação da mobilização do BART 3873 foi publicada em 04 de Novembro de 1971, através da Nota Circular n.º 4496/PM – Processo 18/3873 da 1.ª Repartição do Estado Maior do Exército.


2. – FOTOGALERIA

Foto 1 > 27Jan72 > O contingente do BART 3873 no interior da LDG a caminho do cais do Xime

Foto 2 > 27Jan72 > Vista da margem direita do Geba (território do Enxalé)

Foto 3 > Aproximação de LDG ao cais do Xime (margem esquerda do Geba)

Foto 4 > LDG 104 no cais do Xime (margem esquerda do Geba)

Foto 5 > Desembarque de “piras” no cais do Xime

Foto 6 > Panorâmica do cais do Xime (vista do quartel)

Foto 7 > Recepção a um contingente de “piras” no cais do Xime

Foto 8 > Recepção a um contingente de “piras” no cais do Xime

Foto 9 > Recepção a um contingente de “piras” no cais do Xime 

Fotos (e legendas): © Luciano Jesus (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Continua… 

Terminamos,  agradecendo a atenção dispensada.

Com um forte abraço de amizade e votos de muita Saúde.

Jorge Araújo e Luciano de Jesus

19ABR2023
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Nota do editor:

(*) Vd. poste de 3 de abril de 2023 > Guiné 61/74 - P24191 Imgens das nossas vidas: CART 3494 (1971/74) (Jorge Araújo / Luciano Jesus) - Parte I: De Lisboa a Bolama