1. Chega esta altura do Natal e eu sinto uma doce saudade de alguns amigos e camaradas que foram ficando pela picada da vida. Um deles é o "alfero Cabral", o Jorge Cabral (1944-2021), um dos "históricos" do nosso blogue...
Bem sabes que nunca invejei (e tu também não...) o lugar de comandante de coisa nenhuma, no TO da Guiné, e muito menos deste tipo de destacamentos (como o de Missirá), isolados, na linha de fronteira dos setores, na terra de ninguém, guarnecido por pelotões de caçadores nativos, mais uns tantos milícias com a sua numerosa família às costas, além dos cães e dos cabritos e das galinhas (nunca vi gatos) , e mais meia dúzia de graduados (1 alferes, 2 ou 3 furriéis, outros tantos cabos e especialistas de origem metropolitana), à beira do abismo, esquecidos e abandonados, sem eletricidade, sem bebidas, sem frescos, sem comida decente, sem artilharia... Enfim, entregues à sorte e ao azar... E, ainda por cima, sem direito a um lugar na História. (No Arquivo Histórico-Militar, não há sequer história destas subunidades, porque ninguém as escreveu.)
Amigos e camaradas da Guiné: não vejam nestas "estórias cabralianas" qualquer propósito de ofender a secular e nobre instituição militar, mas tão apenas o relato das manifestações de uma saudável loucura, própria dos seres humanos que são postos à prova em situações-limite...
Contrariamente a qualquer bestiário da guerra, as estórias cabralianas são um hino à idiossincrasia lusitana, à plasticidade comportamental dos nossos soldados, à enorme capacidade de resistência, de sobrevivência, de imaginação, de adaptação e de "desenrascanço" da nossa gente...
Eu sei que as estórias do Jorge têm fãs e detratores... Eu, que estou do lado dos fãs, tiro-lhe o quico, bato-lhe a pala, desfaço-me em adjetivos e louvores... Infelizmente este filão esgotou-se: uma doença crónica de evolução prolongada cortou-lhe o fio da vida, o húmus do humor, a torrente da escrita, já no final de 2021...
O Jorge, que enquanto estudante universitário tinha devorado o Ionesco e o teatro do absurdo, não se colocava na situação, confortável, do marionetista, manipulando as suas criaturas... Ele fazia parte, de alma e coração, da peça e do cenário, e do "makng of" do seu teatro do absurdo...
O "alfero Cabral", em carne e osso |
Amigo Luís, cá continuo relembrando a vida nos Destacamentos, com a ajuda dos Amigos que me acompanhavam, e que me contam extraordinárias peripécias, algumas das quais eu já havia esquecido.
Num Destacamento isolado como era Missirá, a forma de estar e de viver dependia muito da personalidade do respectivo Comandante, suas capacidades, limitações e peculiaridades. Até porque as funções que lhe eram atribuídas, excediam a mera chefia militar. Médico, Psicólogo, Juiz, Conselheiro, superentendia em todos os assuntos, e do seu carácter podia resultar um férreo ambiente prisional, ou uma agradável comunidade de afectos, como creio ter sido o meu caso.
Claro que estávamos todos apanhados, mas numa loucura amena e saudável, que nos divertia e nos ajudava a mascarar a tristíssima rotina.
As decisões mais difíceis aconteciam com as evacuações por doença, principalmente porque o meu enfermeiro, o maqueiro Alpiarça, quando não estava bêbado, para lá caminhava…
A estória que hoje remeto, descreve, precisamente, uma situação em que tive muitas dúvidas. Felizmente, o Sousa recuperou…
Bom Natal, Amigo! Grande Abraço!
Jorge (*)
Não havendo tremoços, triplicávamos a cerveja, não sem o Pechirra, o nosso motorista, explicar a importância do acompanhamento em falta, o qual segundo ele possuía um monumental efeito afrodisíaco, pois… E lá contava uma delirante estória das suas proezas sexuais. Só os soldados africanos e algum adido metropolitano periquito, ainda o escutavam, embora o seu calão portuense fosse dificilmente traduzível.
Uma vez o bazuqueiro Sambaro anunciou que possuía umas bagas suma (**) tremoço, tão boas que um homem podia estar toda a noite… Achei piada. À basófia tripeira respondia a basófia fula… Afinal as diferenças não eram assim tão grandes…
O certo é que o Sambaro foi buscar as tais bagas, e calhou ao Sousa experimentar. Ao fim de uma hora resultou. Passadas quatro horas continuava a resultar. Oito horas depois o Sousa uivava de dor, e suplicava-me a sua evacuação. Que fazer?
Reuni com os furriéis. Podia eu lá evacuar um soldado com aquele motivo ?! Que escreveria na mensagem? Ataque de tes*o…?
− Não há mal que sempre dure, nem bem que nunca acabe.
Tomada a decisão, o pobre do Sousa aguentou três dias, como um herói.
Quando terminei a comissão, deixei-lhe proposto um louvor “porque durante setenta e duas horas suportou com estoicismo a dor resultante de fogo interno, devendo ser apontado como exemplo da virilidade lusitana"...
Parece que o Polidoro (***) não concordou. Enfim, injustiças…
Jorge Cabral
Notas de L.G.:
(*) Vd. poste de 14 de dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1369: Estórias cabralianas (16): As bagas afrodisíacas do Sambaro e o estoicismo do Sousa
(***) Polidoro Monteiro, último comandante do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72). Substituiu o tenente-coronel Magalhães Filipe.
(****) Último poste da série > 12 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26260: Humor de caserna (86): O ”turra” e a boina verde da enfermeira paraquedista (Maria Arminda, ex-ten graduada enfermeira paraquedista, FAP, 1961/70)