Capa do livro de Jorge Cabral, "Histórias de um professor de Direito: colectânea de testes da cadeira de Direito da Família e Direito de Menores (Lisboa: APSS - Associação de Profissionais de Serviço Social; Alfredo Henriques, 2007, 71 pp. ; ISBN; Alfredo Henriques - 972-98840-05 | APSS - 972 - 95805-1-0)
Dedicatória manuscrita para o edit0or do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné:
“Para o Luís, camarada, companheiro e amigo, um conjunto de testes, frequências e exames que até parecem ‘estórias'.
Lx, , Fev 2007, Jorge Cabral."
Foto: Fórum de Santo António dos Capuchos (2006) (com a devida vénia...)
Fotos: Fórum de Santo António dos Capuchos (2006) (com a devida vénia...).
Em homenagem ao nosso "alfero Cabral" (1944-2021), de quem publicámos na íntegra as "estórias cabralianas", aqui fica uma das provas a que ele submeteu os seus alunos (na sua grande maioria, alunas) da licenciatura em serviço social, na avaliação de conhecimentos da cadeira de Direito da Família e Direito de Menores. Reconhecemos, nestas três dezenas e meia de "Histórias de um Professor de Direito" a mesma verve, o mesmo estilo narrativo, o mesmo poder de observação, a mesma imaginação criativa, a mesma brejeirice, o mesmo humor negro, etc., das "estórias cabralianas"... Mas agora também com um registo mais forte de inquietação, compaixão e empatia, para com aqueles e aquelas que vivem paredes meias com a marginalidade social, a exclusão, a pobreza, a discriminação, a transgressão, a violência...
2. Comecemos com alguns excertos do prefácio dos editores.
(...) A presente obra, "Histórias de um professor de direito". traz-nos o testemunho brilhante de um docente que ao longo de anos, e de forma pioneira, tem vindo a reflectir sobre a problemática humana que o Direito te,m tem vindo a classificar como uma disciplina autónoma: o Direito de Menores e da Família.
"O Doutor Jorge Cabral terá sido um dos primeiros docentes a introduzir, na década dos anos 70, esta disciplina no programas do ensino superior, através das suas aulas no Instituto Superior de Serviço Social. O seu estilo irreverente e profano, já evidenciado noutras obras e nas inúmeras conferências, revela, na sua ousadia, este conhecimento profundo da cotidianeidade dos seres humanos mais vulnerabilizados e excluídos,Das cerca de histórias das cerca de 30 histórias.ades e excluídos com as quais ele tem assumido carinhosamente ao longo dos anos o seu compromisso profissional na defesa dos seus direitos". (...)
Dr. Alfredo Henriques C.
(...) Foi com enorme prazer que (re)li as 'estórias' que agora se publicam, fazendo-me voltar atrás mais de 10 anos e recordar as aulas do Professor Jorge Cabral. Fizeram despertar em mim afectos que foram verdadeiramente marcantes, reconhecendo, sem margem de dúvida, que os seus ensinamentos foram dos mais ricos, invulgares e eficazes na minha formaçöão.
Dr. Maria André Farinha, direção da APSS [Associação dce Profissionais de Serviço Social] .
As histórias aqui reunidas neste livrinho são 35, ao todo. Estão classificadas, de acordo com o índice, em três capítulos ou partes:
I... Do Casamento. Amam-se- Desamam-se. Enganam-se. Desenganam-se. [Ao todo, são 15 . ]
II... Da Filiação. As mães são. Os pais talvez. [Ao todo, são 16. ]
III... Dos Filhos. Nascidos de encontros, desencontros, equívocos e mentiras.... [As restantes quatro ]
Histórias de um Pofessor de Direito: "25. No Regimento de Cavalaria" (pp. 54/56)
por Jorge Cabral
Passa das oito da noite. Estou no escritório ainda. Preciso de escrever uma contestação para amanhã sem falta. Tocam à campainha, cinco toques. Quem será? Penso não abrir a porta. Fngir que não estou. É algum chato a fazer uma pergunta. Abro, não abro. Hesito, mas abro a porta.
Entram. Tresandam a um perfume intenso daqueles que permanece e agoniam. Ele baixo, entroncado, um bigode fininho, para o moreno, traz uma penso na testa. Ela usa uma saia de criança que só lhe tapa três quartos das coxas e na testa uma fita que não segura cabelo nenhum. Irá jogar ténis ?
Pergunto-lhe os nomes e finjo tomar nota. Marieta e José. Casados um com o outro. Dois filhos pequeninos.
−Então o que o traz por cá? − interrogo com simpatia, enquanto os observo. Não respondem. Insisto.
− Alguma herança ? Acidente ? Uma ação de despejo ? Problemas de droga ?
Começam a falar ao mesmo tempo. Brigaram. Odeiam-se. Ela anda na vida e ele vive à custa dela.
− Falo eu que sou homem − diz José.
−Isso é que era bom − grita Maria.
− Falam os dois mas um de cada vez − interrompo. − O senhor vai ali para o lado. Já o chamo.
Ele foi de má vontade. Ea fica e começa:
− Vou começar pelo princípio e contar tudo, que isto de advogados é como os padres. Há dez anos, inha eu dezassete,. vim servir para Lisboa em casa de um coronel. Chamava-se Alvarenga e tinha uma mulher chata. A Dona Lúcia. A casa deles era dentro do quartel, o Regimento de Cavalaria 4, na Rua das Almas. O Doutor está a ver, uma rapariga nova no meio de tantos homens. O primeiro foi o sargento, depois o furriel. Mas nunca foram tantos como por lá constava. A fama tive. Sabe como é que é. José era ordenança do coronel. E que diferente ele era. Tímido, envergonhado, sempre com medo de tudo e de todos. Fui eu que o cobicei, quasi que o obriguei. Ele saiu da tropa em fevereiro de 83 e nós casámos no 25 de Abril do mesmo ano, seis meses antes do nascimento do Joca o meu filho mais velho. José ganhava pouco, bebia, começou a acompanhar com vadios e galdérios. Tinha o Joca dois meses, pôs-me na rua. Eu que ganhasse algum. A princípio custou-me. Depois fiz de conta. José deixou de trabalhar. Saca-me a massa toda. Trata mal os putos e o Zeca tem só dezasseis meses. Estou farta, farta. Quero ir para o Algarve. Ganha-se lá muito mais. Conheço uma senhora que fica com os miúdos. Diz que os vai adotar. É mulher de um engenheiro, já pssou os qquarenta e não pode ter filhos. Quero o divórcio e rápido. Tudo legal. Eu não quero problemas.
− Pode sair agora. Entre , senhor José.
Ele entrou irritado.
− Não sei o que ela disse, mas é tudo mentira. Para já não assim nenhum divórcio. Ela dava-me tudo. Fiz dela uma senhora. Quando a conheci, era uma sopeira. Se me chateia muito, tiro o nome aos miúdos. Eu sei lá se são meus filhos Antes de casar, andou com meio regimento. E depois é o que se vê. Diga lá o Doutor se não tenho razão. Posso deixar de ser pai, não posso ? Diz que vai dar os putos. E se Eu não deixar ? Eu até lhes possa tirar. É verdade ou não é? Provo que ela anda na vida, e pronto. Se ela for para o Algarve, vou lá e arrebento-lhe as ventas. Tenho esse direito. Pois, não sou o marido ?.
Chame os dois. Informo-os que vou estudar o assunto. Marco uma entrevista para daqui a oito dias. Despedem-se. Esquecem-se de pagar.
Está visto que não poderei ser advogado dos dois. Mas vocês podem. E é o que vão fazer. Vão apreciar as razões de cada um e tentar encontrar as soluções jurídicas.
PS − Eles estiveram no meu escritório ontem, dia 5 de fevereiro de 1987 (**).
(Revisáo / fixação de texto: LG)
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Notas dos editor:
(*) Vd. poste de 10 de4 março de 2007 > Guiné 63/74 - P1580: Fanado ou Mutilação Genital Feminina: Mulher e direitos humanos: ontem e hoje (Luís Graça / Jorge Cabral)
(**) A data é importante. A profunda revisão do nosso Código Civil (que a partir de 1978 passou a ajustar-ser à nova Constituição da República Portuesa, de 1976) trouxe grandes alterações nas áreas do direioto da família e dos menores (Vd. Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de novembro. Entrou em vigor a partir de 1 de abril de 1978.)