sábado, 13 de junho de 2020

Guiné 61/74 - P21073: Os nossos seres, saberes e lazeres (397): Em frente ao Vesúvio, passeando por Herculano e Ravello (8) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Novembro de 2019:

Queridos amigos,
É a despedida de Ravello, uma despedida em beleza, com vistas panorâmicas em Villa Cimbrone na sua composição eclética, muito ao gosto do romantismo fim de século, registaram-se alguns elementos de extraordinária beleza da pequena catedral, apanhou-se um autocarro até Amalfi, daqui uma viagem de autocarro em que o viandante andou bem apertado a olhar um permanente precipício até Nápoles.
E na manhã seguinte, sem perda de tempo, subiu-se a um ponto alto, um castelo maciço, andou-se à volta de vários bastiões, parecem proas de transatlânticos, muito respeitinho, naquela prisão esteve Leonor da Fonseca Pimentel, "A Portuguesa de Nápoles", ler as suas biografias permite conhecer o mais obscuro da mentalidade fanática e perceber como se comportou na agonia o absolutismo e perceber perfeitamente que os famosos domínios pontifícios iam em breve desaparecer com a chegada de Garibaldi. Mas, acima de tudo, o que se tem mais satisfação em oferecer ao leitor, é uma Nápoles frondosa, a toda a volta.
Que disfrutem!

Um abraço do
Mário


Em frente ao Vesúvio, passeando por Herculano e Ravello (8)

Beja Santos

Villa Cimbrone, espero que o leitor se recorde, é distinguida pelo Guia Michelin com três estrelas. A vila foi construída no início do século XIX por Lorde William Bechett em estilo eclético, daí entrar-se por uma alameda enorme, cercada de parques, fica-se logo com a tentação de andar a bisbilhotar de um lado para o outro, impõe-se a disciplina e vai-se em direção a Belvedere, adornado com bustos em mármore, é o tal panorama de cortar a respiração, e depois saltita-se pelas diferentes áreas do parque, são seis hectares primorosamente tratados, temos aqui a botânica e a cultura de Inglaterra incrustadas num ponto do Mediterrâneo, edificação do fim do século XIX até início do século XX. Cimbrone vem do termo latino cimbronium, lugar de vegetação luxuriante onde se produz da melhor madeira para uso naval. Há muito para ver, nestas edificações ecléticas que encontramos no claustro, na cripta, na diferente estatuária, nas réplicas de tempos, nas grutas, nos terraços, em plenas avenidas. Deixa-se aqui uma pequena amostra.





Finda a visita, o viandante vai-se despedir da catedral de Ravello, fundada no século XI e remodelada no século XVIII. Tem uma esplêndida porta de bronze, os painéis datam do século XII. O Guia Michelin confere duas estrelas ao púlpito pela sua espantosa variedade de motivos e animais fantásticos, obra do século XIII. É de encher as medidas! Adeus Ravello, a peregrinação dirige-se de novo para Nápoles.




Não é um transatlântico, é Castel Sant’Elmo, uma estrutura maciça com bastiões. Oiçam o que o viandante encontrou num guia:  
“Nos anos 30 do século XIV, os governantes Angevinos (entenda-se, da Casa de Anjou) fomentaram uma onde de construção no monte Vomero a oeste de Nápoles – a construção da Certosa di San Martino e o aumento e reconstrução da vizinha residência fortificada de Belforte, que tinha sido aditada pela família de Carlos I de Anjou, desde 1275. No século XVI, Pedro Scriba, um importante arquiteto militar da época, transformou o castelo do século XIV para a sua atual configuração de estrela de seis pontas. Por causa da sua posição estratégica, Castel Sant’Elmo tornou-se sob Pedro de Toledo o ponto central do novo sistema de defesa de Nápoles. Foi usado como prisão, um preso célebre foi Tommaso Campanella e os revolucionários de 1799, daqui partiu para o cadafalso Leonor da Fonseca Pimentel. A entrada tem o brasão de Carlos V. O complexo é usado hoje para exposições temporárias e eventos culturais”.
Como é de supor, das muralhas de Castel Sant’Elmo tem-se uma espetacular vista de 360º de Nápoles e da baía.




A Portuguesa de Nápoles, Leonor da Fonseca Pimentel, executada em 1799.




Visitado o Castel Sant’Elmo, parte-se para a Cartuxa e para o Museu Nacional de S. Martinho. Esta imagem não vem a despropósito. Se pouco resta do domínio bizantino ou da dinastia aragonesa, se há bastante património relativo à vice-realeza espanhola e aos Bourbon, a monumentalidade da arquitetura é impressionante. Numa pequena secção de rua podem ser vistas marcas de várias épocas, mas as marcas do classicismo novecentista são eloquentes, casas que são verdadeiros palácios, a atestar conforto e marcas da distinção, o que aqui se mostra multiplica-se por milhares, e a arquitetura ao longo da baía é magnificente, como se Nápoles quisesse dizer a toda a Itália que a sumptuosidade não se circunscreve às ricas cidades de Roma e Milão, ela é a rainha do Sul, sem dúvida.


(continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 6 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21048: Os nossos seres, saberes e lazeres (396): Em frente ao Vesúvio, passeando por Herculano e Ravello (7) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P21072: Boas Memórias da Minha Paz (José Ferreira da Silva) (14): Pequenos caprichos - II: Concurso Provincial de Angola

Pedras Negras de Pungo Andongo


1. Em mensagem do dia 3 de Junho de 2020, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos esta Boa memória da sua paz, mais uma a relembrar os seus bons tempos vividos em Angola


BOAS MEMÓRIAS DA MINHA PAZ - 13

PEQUENOS CAPRICHOS II

Concurso Provincial de Angola

Ainda saboreávamos a aventura do concurso de pesca de Santo António do Zaire, e já se falava na representação Cabindense a participar no Concurso Provincial, a realizar junto à Praia da Caotinha, entre Lobito e Benguela. E, modéstia à parte, apostava-se muito numa participação honrosa. Éramos 3: os irmãos Neves (Campeões de Badmington) e eu.

Fomos apetrechados do melhor que havia. Boas canas (e fortes), fio especial e chumbeiras de modelos estudados/alterados, fundidas nas Oficinas Gerais. E mandei fazer uma mala, tipo caixão, de madeira pau-santo, cheia com um bloco de esferovite, com espaço vazio adaptado para o encaixe da cana e seus apetrechos. Ah! E estreámos umas camisas alusivas ao povo Fiote de Cabinda.

Quando o motorista do Mercedes Presidencial nos levou ao aeroporto, teve o cuidado de me transmitir que o Senhor Presidente mandou dizer que todos os dias enviasse informações, via telex.

No aeroporto fomos elucidados de que o pesadíssimo caixão não era necessário e que nos garantiam os necessários cuidados com o manuseamento de todo o material desportivo.

De Luanda para sul, seguimos em autocarro especial, com grande número de participantes, fiscais e dirigentes. Lembro-me bem de ter visto aquelas enormes fazendas, bem trabalhadas e visíveis ao longo da estrada.

Também me lembro que seguimos um percurso por forma a visitarmos alguns pontos de maior interesse. É pena que a minha memória, hoje, não possa especificar melhor esses importantes locais. Uma coisa fixei bem: as Pedras Negras do Pungo Andongo. Belas, gigantes e misteriosas, elas são património paisagístico invulgar.

Pedras Negras de Pungo Andongo

Por aqui, na região de Pungo Andongo, é bem marcante a imagem da Rainha Ginga, a quem atribuem (erradamente) as suas pegadas nas rochas. Reinou com forte oposição aos portugueses, entre 1620 e 1680 (data da sua morte)

Uma imagem da Gabela

A Restinga do Lobito é deslumbrante

Voltei ao sul de Angola e aqui, em Benguela, cheguei a assistir a um filme neste anfiteatro ao ar livre

Nunca tinha assistido a um frenesim igual. Corria-se de um lado para o outro, numa excitação invulgar. Parecia que algo de transcendental estava para acontecer. Fomos assistir (de longe) ao sorteio, na reunião de delegados. Alguém pôs a questão de que não havia isco nem peixe para fazer engodos. Tanto no Lobito como em Benguela, haviam “esgotado/açambarcado/boicotado” todo o pescado. Alguém, do Lobito, teve pena de nós e deu-nos 2 sardinhas para os três pescadores.

Foi neste local que organizaram o concurso, talvez escolhido pela sua singela beleza e não pelas desejadas condições para a pescaria.

Quando chegámos ao local, nem queríamos acreditar. Tudo nos surpreendeu e tudo nos correu mal.

Íamos a pensar em pescar peixes grandes e ao fundo, mas logo notámos ser impossível. Via os concorrentes a pescar peixinhos pequeninos na margem e não acreditava. Pensei que com os meus lançamentos para longe, iria naturalmente apanhar algum peixe de jeito. Enganei-me redondamente. As águas eram baixas e cheias de rochas, onde sempre se prendiam as chumbeiras.
Quem assistia, até ria do nosso esforço.
Lá foram as chumbeiras e as sardinhas. Desistimos e fomos assistir à luta dos outros.

Precisamente no pesqueiro ao meu lado direito, reinava o vencedor. Comodamente sentado, trabalhava com uma cana comprida, com fio 0,16 e um pequeno anzol. Nem utilizava o carreto. Levantava a cana e um dos seus TRÊS colaboradores metia o berbigão no anzol. O pescador deixava-o cair entre o cardume em luta, devido ao constante bombardeio de engodo, lançado por outro colaborador. O peixe era recolhido pelo mesmo que metia o isco. O outro colaborador fazia a ligação com o pequeno camião, carregado de material. Havia mais 6 colaboradores que trabalhavam com os outros dois pescadores da mesma equipa. Em pequenos intervalos, um deles, preparava pormenorizadamente outra cana, para possível troca imediata.

Fomos assistindo, conversando e sempre em tons amistosos. Por volta das 11h15, o pescador, oriundo da região de Aveiro, resolveu entrar numa de camaradagem e ofereceu isco igual para eu poder também pescar. Lá me adaptei o melhor que pude, até porque seria difícil pescar sem lançamento e sem chumbo, porque o meu fio era 0,55 e não corria. Bem, o certo é que ajustei de tal forma o meu esquema que passou a dar bons resultados. Quando soou o apito final ao meio dia, eu tinha tirado 62 peixes. O vencedor, meu vizinho, que ganhou com 221, interpelou-me com um sorriso amarelo:

- Foda-se, se lhe tenho dado o isco mais cedo, você ganhava!

************

Nota: - O homem, que demonstrou ser muito competitivo, já era idoso e apoiava-se fortemente nos colaboradores.

Ah! Mas ainda consegui ficar num “honroso” “cagagésimo” 6.º lugar.

José Ferreira
(Silva da Cart 1689)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 6 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21049: Boas Memórias da Minha Paz (José Ferreira da Silva) (13): Pequenos caprichos - I: Concurso de Pesca na foz do rio Zaire

Guiné 61/74 - P21071: (In)citações (163): Sermão antirracista do Padre António Vieira: "Cada um é da cor do seu coração" (seleção: António Graça de Abreu)

Padre António Vieira (séc. XVII). Cortesia de
Biblioteca Municipal Anselmo Braamcamp Freire,
Santarém
1. Mensagem de António Graça de Abreu [ ex-alf mil, CAOP 1 (Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74), membro sénior da Tabanca Grande, com cerca de 260 referências no nosso blogue]

Sugiro este texto para publicação no blogue (*)



SERMÃO ANTIRRACISTA
do Padre António Vieira

Do SERMÃO XX do Rosário

"Cada um é da cor do seu coração."
Padre António Vieira


ELOGIO DA COR PRETA (**)

O segundo, e segunda causa da grande distinção, que fazem entre si, e os Escravos, os que se chamam Senhores, é, como dizíamos, a cor preta. Mas se a cor preta pusera pleito à branca, é certo que não havia de ser tão fácil de averiguar a preferência entre as cores, como a que se vê entre os homens. 

Entre os homens dominarem os Brancos aos Pretos é força, e não razão, ou natureza. Bem se vê, onde não tem lugar esta força, nem a cor é vencida dela. Quando os Portugueses apareceram a primeira vez na Etiópia, admirando os Etíopes neles a polícia Europeia, diziam: "Tudo o melhor deu Deus aos Europeus, e a nós só a cor preta". Tanto estimam mais que a branca a sua cor. 

Por isso, assim como nós pintamos aos Anjos brancos, e aos Demónios, negros; assim eles por veneração aos Anjos pintam negros, e aos Demónios por injúria, e aborrecimento, brancos. 

Deixando porém os que podem parecer apaixonados, ninguém haverá que não reconheça, e venere na cor preta duas prerrogativas muito notáveis. A primeira, que ela encobre melhor os defeitos, os quais a branca manifesta, e faz mais feios; a segunda, que só ela não se deixa tingir de outra cor, admitindo a branca a variedade de todas; e bastavam só estas duas virtudes para a cor preta vencer, e ainda envergonhar a branca. 

Mas das cores só os olhos podem ser juízes. Vejamos o que eles julgam, ou experimentam. Os Filósofos buscando as propriedades radicais, com que se distinguem estas duas cores extremas, dizem que da cor preta é próprio unir a vista, e da branca disgregá-la, e desuni-la. Por isso a brancura da neve ofende, e cega os olhos. 

E não é isto mesmo o que com grande louvor dos Pretos, e não menor afronta dos Brancos, se acha em uns, e outros? Dos pretos é tão própria, e natural a união, que a todos os que têm a mesma cor, chamam Parentes; a todos os que servem na mesma casa, chamam Parceiros; e a todos os que se embarcaram no mesmo navio, chamam Malungos. 

E os Brancos? Não basta andarem meses juntos no mesmo ventre, como Jacó, e Esaú, para se não aborrecerem; nem basta serem filhos do mesmo pai, e da mesma mãe, como Caim e Abel, para se não matarem. 

Que muito logo, que sendo tão disgregativa a cor branca, não caibam na mesma Congregação os Brancos, com os Pretos?

Padre António Vieira
[ Lisboa, 1608 — Salvador, 1697]

_____________

Notas do editor:

sexta-feira, 12 de junho de 2020

Guiné 61/74 - P21070: Recordações da CART 2520 (Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71) (José Nascimento, ex-Fur Mil Art) (18): Um pequeno desentendimento

Xime - 1.º Sargento Vaz à direita, depois Furriéis Nascimento e Soares


1. Em mensagem do dia 9 de Junho de 2020, o nosso camarada José Nascimento (ex-Fur Mil Art, CART 2520, Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71) manda-nos mais uma recordação da sua CART, hoje a estória de um pequeno desentendimento com um 1.º Sargento da sua Companhia.


RECORDAÇÕES DA CART 2520

UM PEQUENO DESENTENDIMENTO

Durante as nossas refeições na messe de sargentos no Xime, várias das nossas conversas originavam acesos debates sobre qualquer assunto que viesse à baila. Normalmente o 1.º Sargento Vaz como pessoa mais velha e mais "sabida" queria ter sempre razão em qualquer tema que eventualmente gerasse alguma controvérsia.

E, como era habitual, num certo dia à hora de almoço houve uma acesa das nossas conversas. Concluída a minha refeição saio para ir equipar-me para fazer uma coluna a Bambadinca, dou a volta ao edifício e vou mandar uma bocas pela janela que dava para o interior da nossa messe, mas o 1.º Sargento Vaz num gesto algo maldoso ou irreflectido atira com um copo de vinho através da rede mosquiteira que vem tingir de tinto a minha camisa.

A minha reacção foi imediata, corro para a nossa casa de banho, encho um balde de água que servia de autoclismo no nosso sanitário, dirijo-me à janela, que do exterior não dava para vislumbrar quem estava dentro e zás lá vai disto.

Dirijo-me de imediato para os meus aposentos e já à esquina do edifício ouço o 1.º Sargento enfurecido berrar:
-  Nosso furriel, vá você comer a sopa. - Voltei-me, vejo-o e dá para perceber que está pior que pólvora.

Equipado e pronto, vou cumprir a minha missão da qual voltaria ao fim do dia. Durante este tempo não deixei de pensar no assunto, com receio de que o 1.º Vaz pudesse fazer alguma participação ao Capitão Maltez e eu ficasse em maus lençóis. Chegado ao Xime os meus camaradas tentaram me infernizar com um "tás lixado", para não dizer outra coisa.

Tomo um banho tropical reparador, descanso um bocado e é chegada a hora de jantar. Dirijo-me à minha mesa, os lugares normalmente eram os mesmos, sento-me para tomar a minha refeição, até que chega o representante máximo da classe de Sargentos. Fico na expectativa, mas da sua boca não saiu uma palavra sobre o assunto. Confesso que o homem foi impecável, voltámo-nos a dar bem como se nada tivesse passado.

Depois do serviço militar nunca mais voltei a encontrar-me com o 1.º Sargento Vaz, gostava de lhe ter dado um abraço e também de lhe pedir desculpas pelas garrafas vazias que atirava para cima do telhado dos seus aposentos, quando às tantas da noite voltava duma ronda ou vagueava pelo aquartelamento. Sei que já partiu para outra jornada.

José Nascimento
____________

Nota do editor

Último poste da série de 29 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20920: Recordações da CART 2520 (Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71) (José Nascimento, ex-Fur Mil Art) (17): Um condutor zeloso e cumpridor do seu dever

Guiné 61/74 - P21069: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (6): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Maio de 2020:

Queridos amigos,
Aqui vos deixo mais um episódio em que a realidade emparelha com a ficção, torce-se e retorce-se tempos, lugares, pessoas e situações, um amplo ecrã que abarca a Guiné, Bruxelas e Lisboa, dois cinquentões que se deixam envolver numa barafunda que, imagine-se, começa numa Bruxelas da II Guerra Mundial, uma criança judia recolhida, hoje intérprete de profissão, filhos já crescidos, ela disponível para amar, e aparece-lhe aquele sujeito que veio com o pretexto de uma insinuante história de amor, com a guerra da Guiné ao fundo, os dois já embarcaram, como por magia, nessa aventura da escrita e nessa aventura dos primeiros encontros, sabe-se lá se não está para aparecer a mais inesperada das paixões...

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (6): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Chère Annette, respondo prontamente à sua linda missiva, que li e reli com imenso prazer. Quando olho para estas fotografias que tenho vindo a acumular ao longo dos anos, quando posso calcorrear Bruxelas sozinho ou na companhia de amigos, interrogo esta ironia de frequentar lugares, ao longo de vinte anos, e a Annette a viver ali tão perto. Quando os programas de trabalho me permitem ter para mim um dia de fim de semana, e o tempo está de feição, vagueio por essa Bruxelas que já teve casco histórico e que mudou de pele para tapar o Rio Senne, enquanto se fazia ligação ferroviária entre Bruxelas Central e Bruxelas Midi, eu vejo as fotografias antigas, e posso perceber que se fez implodir uma arquitetura em nome do progresso. As imagens que junto são apontamentos de curiosidade. Na primeira, aparece um antigo armazém de vinhos e as Armas de Portugal, a propósito do Vinho da Madeira, era muitíssimo apreciado neste Norte da Europa; igualmente imagens que bem conhece, têm a ver com os alfarrábios, os CD’s e depois imagens de arquitetura, pormenores que me cativam; e quis o destino que um dia passasse pela Rua do Eclipse, aqui está um edifício que não é muito longe do seu apartamento.



Fachada da Igreja de Nossa Senhora do Bom Socorro, Bruxelas




Falávamos da minha primeira viagem para o Cuor, eu sentia-me fascinado por aquele caminho frondoso que vai de Finete para Canturé, cheia de poilões e cajueiros, mas ia muito inquieto pelo estado degradado em que encontrei Finete, além disso não apreciara as explicações dadas pelo comandante da milícia, um sujeito vaidosão que rapidamente me apercebi que saía pouco para patrulhar, faltava-lhe genica e sentido de liderança para manter o destacamento altamente seguro, como se veio a comprovar.

Eu não quero perder o sentido cronológico, ele é indispensável para que a Annette me possa ajudar no desenvolvimento da trama do romance, se a história tem pés para andar. Mas conto-lhe um episódio que ocorreu mais de um ano depois de eu viver no Cuor, e é por isso que envio um extrato da carta para se aperceber do teatro em que ocorreu um drama. Eu estava há uma semana em Finete, a acompanhar as obras dos dois novos abrigos, punha-se uma nova segunda fieira de arame farpado, substituía-se a que estava completamente apodrecida, as estacas onde se prendia o arame farpado tinham caído. Levara comigo um conjunto de militares vindos de Missirá. E quando se anunciava o fim da tarde, inopinadamente, como deve ser na circunstância de uma guerra de guerrilhas, informei que íamos montar uma emboscada na região de Malandim, era suposto que os grupos de abastecimento do PAIGC por aqui passassem, vindos da outra margem do Geba, ainda não conversámos acerca das populações sobre duplo controlo, era este o caso, do outro lado havia um local chamado Mero, onde a população de Madina e Belel trocava produtos, obviamente que informações.

Quase no lusco-fusco dispôs-se uma linha de cerca de vinte homens na horizontal, com atiradores nos extremos, a ver nos dois sentidos, fiquei em cima do trilho, anoiteceu, começaram a ouvir-se os ruídos próprios da floresta, movimentos de javalis, o piar das aves, o murmurar das águas do rio Geba. À minha direita estava um bravo soldado, Mamadu Camará, a quem julgo dever a vida, mais tarde contarei a história. Estávamos naquela letargia, aquela infindável espera, tinha anunciado que regressaríamos pela meia-noite, quando, pouco passava das sete horas, Mamadu ergue-se e grita, manda parar, levanto-me e é nesse instante que alguém que vinha seguramente em marcha apressada me abalroa, tinha a espingarda em riste, alvejei, o vulto cai a meus pés, isto enquanto se ouve uma restolhada de gente a fugir, veio-se a apurar que era uma coluna de abastecimento vinda da outra margem, largaram os mantimentos para se escapulirem pela mata. A meus pés, envolta num pano amarelado, jazia uma mulher, estava morta. É nisto que um dos meus auxiliares africanos, homem que fizera estudos em Bissau, sabe-se lá porquê, perdeu as estribeiras e começou aos gritos “Branco assassino!”, “Branco assassino!”, os outros camaradas procuravam acalmá-lo, toda aquela conversação ocorria em crioulo, e aquela acusação feria-me e trespassava-me como ferro em brasa, como era possível alguém que me via todos os dias, inserido num quartel com centenas de civis, procurando cuidar de todos com os modestíssimos recursos ao meu alcance, com as melhores relações com o régulo e com a população em geral, perder a tramontana e vociferar tão descabelada acusação?

Regressamos a Finete, pedi ao meu amigo Bacari Soncó que fosse tratar da recolha do corpo enquanto eu seguia para Bambadinca com o conjunto de homens que trouxera de Missirá, incluindo quem me acusava de ser branco assassino. Na sede do batalhão, os oficiais já tinham jantado, dirigi-me ao comandante, dizendo que se tratava de um assunto grave, precisava que ele tomasse uma decisão urgente, fomos então para o seu gabinete onde expus a situação. Ele tentava fazer uma leitura benévola, era tudo uma questão de nervos, o caso ajeitar-se-ia com o regresso à razão. A minha leitura era completamente diferente, fora desautorizado, não excluía a questão dos nervos, mas aquele homem tinha que ser detido, e prontamente, há normas no comportamento militar inabaláveis, se assim não fosse considerar-me-ia enxovalhado e desautorizado, e se o comandante insistisse na dita serenidade e palmadinhas nas costas no dia seguinte eu regressaria definitivamente a Missirá, tinha perdido as condições de comando. A discussão prolongou-se, ninguém perdeu as estribeiras, e então o comandante tomou a decisão de deter o militar. A Annette não pode imaginar o meu estado de espírito enquanto regressava a Finete e aqui estive. Dias depois, em plena parada de Missirá, tinha ordem de serviço com os dias de prisão daquele militar, sabia ser do domínio público toda aquela ocorrência e queria transmitir quer aos meus militares quer à população que fora insultado, que estava no Cuor para defender aqueles guineenses de todas as idades, e que esperava que nada de semelhante se voltasse a repetir. Anunciei que aquele militar ia regressar ainda naquele dia a Missirá, que o receberia de braços abertos, como manda a camaradagem e que queria que ele fosse muito bem acolhido por todos, ponto final numa história lamentável, todos tínhamos colhido o ensinamento. Como aconteceu, o meu relacionamento não foi afetado, ele foi um dos meus convidados para o meu casamento, em abril de 1970, está bem sorridente no filme que se fez, ao lado do Cabo Barbosa e do médico Joaquim Vidal Saraiva.

A que propósito vem esta história, Annette? Todos os anos, praticamente todos os anos, ele vem a Portugal fazer um tratamento. Esteve cá há dias, telefonou-me, recebi-o em casa, os camaradas merecem o melhor dos acolhimentos, falámos de tudo e está previsto que dias depois de eu regressar de Bruxelas aqui vai acontecer um almocinho de bacalhau para seis velhos combatentes, a velha guarda está firme. Foi a coincidência de datas, o facto de eu ter aqui a imagem dele à mão que me levou a desrespeitar a cronologia, saltei de agosto de 1968 para o presente.

Estou ansioso para me encontrar consigo. Concordo com as suas sugestões, tudo depende do tempo. Estive a pensar na sua proposta de envolvimento da história, já que começou a contar as suas origens, como foi acolhida, com poucos meses, por uma família católica residente em Marolles, ainda havia o espetro dos judeus belgas serem deportados, quando descobertos. Acho curioso para a trama narrativa e para se ir progressivamente adensando o clima passional, nessa altura, penso eu, já se passou por toda a experiência da minha guerra na Guiné, e manda a ficção que estamos disponíveis para um amor verdadeiro.

Penso que vai receber esta carta depois de eu aí chegar, ela tinha que seguir, impetuosa, pelas recordações que me trouxeram, confidências a que a Annette tem direito, já que é cúmplice neste enredo forjado pelas rodas do destino. Afetuosamente, Paulo Guilherme


Mamadu Camará


Há uns anos atrás, quando estava a preparar a edição de História(s) da Guiné-Bissau, tive a dita da fotógrafa Andrea Wurzenberger me ter oferecido um conjunto de imagens soberbas tiradas na Guiné-Bissau. Usei uma delas na contracapa, simbolizava o caminhar para a luz da esperança, aqui se publica uma outra imagem dessa coleção, com o meu profundo agradecimento.

(Continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 5 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21043: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (5): A funda que arremessa para o fundo da memória

Guiné 61/74 - P21068: Fauna e flora (12): José Carvalho, Barão do K3: "leopardo" (Panthera pardus) e não "onça" (Panthera onca) ou "jaguar", que só existe no "Novo Mundo"? ...Mas na Guiné-Bissau sempre ouvimos falar em "onças", até há emissões de selos...


Guiné > Região do Oio > CCAÇ 2753 (BráBironque, Madina Fula, Saliquinhedim e Mansabá, 1970/72) > "Um felídeo, que tropeçou numa das armadilhas NT, nas imediações do destacamento" [de Bironque ou Madina Fula]. Foto do álbum do alf mil  José Carvalho. 

Foto (e legenda): © José Carvalho (2020) Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Comentário do editor Luís Graça ao poste P21057 (*):

Belíssimas fotos, ótimas legendas... Prometo ler com toda a atenção... Mas, para já, destaco o enorme interesse documental deste álbum... Obrigado, grande Barão do K3!...

Em Bironque e Madina Fula parece que apanhaste o tempo seco... Sei o que é o terrível pó vermelho, das colunas logísticas, que fiz de Bambadinca ao Saltinho, via Mansambo e Xitole... Mas também para o Xime, antes da nova estrada alcatroada (que já não conheci)...

E também posso avaliar o que é viver em "Bu...rakos" como estes... E muito pior era o tempo das chuvas...

Quanto à foto nº 7, que me chamou particular atenção: tu que és médico veterinário, diz-que que felídeo é esse... É um belíssimo e portentoso animal que teve o azar de cair nas vossas armadilhas...

Para mim é um leopardo (Panthera pardus), e não uma "onça" (Panthera onca) ou "jaguar", que só existe no "Novo Mundo"... Mas na Guiné-Bissau sempre ouvi falar em "onças", até há emissões de selos... Está na lista vermelha  das espécies ameaçadas. A atual situação é "vulnerável", mas na Guiné-Bissau devem restar muitos poucos casais, devido à guerra, à desflorestação, à caça furtiva e à pressão humana (**)

Um abraço afetuoso do
Luís
___________


(**) Último poste da série > 17 de janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3751: Fauna & flora (11): O babuíno da Guiné ou... cabrito pé de rocha (Vitor Junqueira)

quinta-feira, 11 de junho de 2020

Guiné 61/74 - P21067: Álbum fotográfico de José Carvalho (1): A CCAÇ 2753 (1970/72) e os Destacamentos Provisórios

1. Mensagem do nosso camarada José Carvalho, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2753 (Brá, Bironque, Madina Fula, Saliquinhedim e Mansabá, 1970/72), com data de 1 de Junho de 2020:

Caros Editores,
Cumprindo a intenção manifestada, quando da minha inscrição na TG,[1] de enviar umas fotografias, aqui vai uma resumida descrição da vida da CCAÇ 2753, nos Destacamentos Provisórios, de apoio à construção da estrada Mansabá – Farim, acompanhada de fotografias.
É quase um atrevimento descrever o que no seu notável estilo de escrita, já foi abordado pelo nosso amigo Vítor Junqueira, mas deixo a quem de direito, decidir da sua divulgação.
Ao Carlos Vinhal, que conheceu estes cenários, as minhas saudações e agradecimento também pelo trabalho desenvolvido, na sua envolvência da Tabanca Grande.

Ao vosso dispor, para todos um abraço do,
José Carvalho


A CCAÇ 2753 (1970-1972) e os Destacamentos Provisórios

A CCAÇ 2753 formada no BI 17, Angra do Heroísmo, constituída maioritariamente por açorianos, com representantes da totalidade das Ilhas, partiu em Maio de 1970, para Lisboa.

Sediada no Regimento de Infantaria 1 - Amadora, em 25 de Maio, onde acontece a concentração de todo efectivo inicial da Companhia. Fazendo parte daquela unidade, foi incorporada nos seus efectivos, nas cerimónias do 10 de Junho, no Terreiro do Paço.

A 15 de Junho inicia-se o IAO, na zona de Caneças, alcançando um grupo da companhia, folgadamente o primeiro lugar no campeonato de tiro de combate, da escola de recrutas de 1970, da Região Militar de Lisboa.

No final de Junho a companhia fica a aguardar embarque, na 9.ª Bateria do 3.º Grupo Misto da RAAF no Pragal, o que aconteceu no dia 8 de Agosto, a bordo do N/T Carvalho Araújo.

A companhia chega a Bissau a 17 de Agosto, depois de uma agradável escala em Cabo Verde.

Os primeiros dois dias a ração de combate e dormidas em camas metálicas sem colchões. A recepção foi fraca, mas longe se adivinhava, o que viria mais tarde…

Colocada depois no COMBIS, com excelentes instalações, foi dada à companhia a missão de patrulhamento terrestre, fluvial e ainda rusgas de modo a evitar infiltrações do IN na Ilha de Bissau.

Depois de cerca de três meses de bonança, adivinhava-se a tormenta…

No dia 30 de Novembro um primeiro pelotão da Companhia, deixa a região de Bissau e conhece uma nova realidade, chegando ao Bironque, o primeiro dos dois Destacamentos que iríamos conhecer.[2]

A 7 de Dezembro, o Comandante da Companhia, Cap Mil Art João da Rocha Cupido, assume o comando daquele Destacamento Temporário, que em meados de Dezembro, aloja os operacionais da CCAÇ 2753 e ainda alguns elementos sapadores - BCAÇ 2885 e dum ESQ MORT 81, após a retirada da CCAÇ 17.

Estrada Mansabá-Farim - O troço entre o Bironque e o K3 foi asfaltado no tempo da CART 2732 e da CCAÇ 2753. Localização dos destacamentos de Bironque e Madina Fula e, na margem esquerda do rio de Farim (Cacheu), em frente a Farim, o aquartelamento do K3 (Saliquinhedim)
© Infografia Luís Graça & Camaradas da Guiné - Carta da Província da Guiné, 1:500.000

Os efectivos militares presentes, tinham como missão, montar a segurança dos trabalhadores (centenas) e as máquinas envolvidos na construção da nova estrada Mansabá – Farim.

A reabertura desta rodovia, constituía um importante óbice à movimentação estratégica do IN na área do Morés, aonde concentrou um importante contingente de combatentes, calculado na época, em 4 a 6 bigrupos e ainda outros efectivos representativos nas áreas de Canjaja, Biribão, Queré e Maqué.

Foto 1 - Bironque - A “enfermaria”, algumas tendas, uma máquina no abrigo e uma das barracas cobertas por vegetação

Foto 2 - Bironque – Espaldão do morteiro 81 e tenda

Foto 3 - Bironque – Telheiro cozinha e os bidões das lavagens

Foto 4 - Bironque – Messe de oficiais depois de uma flagelação, em que o fogareiro a petróleo, do Alf Mil Junqueira, que no momento cozinhava uma galinha “turra”, explodiu.

Decorrido cerca de mês e meio, o Destacamento do Bironque, foi abandonado e os efectivos militares, ocuparam o novo destacamento de Madina Fula, situado a cerca de 5 Km a norte.

O segundo local nada de novo ou de mais confortável proporcionou, pois o modelo era o mesmo, com a agravante de ser mais afastado de Mansabá e por consequência pior nas situações de necessidade de auxílio.

Estes destacamentos tinham uma área de cerca de um hectare, de forma quadrilátera, localizados em zona pré-desmatada, contíguos à nova via e delimitados por barreiras de terra deslocada e acumulada na periferia. Esta terra era retirada de vários pontos do interior, resultante da abertura de valas de grandes dimensões, destinados a proporcionar estacionamentos/abrigo às máquinas pesadas, envolvidas na construção da estrada.

As barreiras tinham uma altura de dois a três metros e a sua crista teria cerca de dois metros de largura, onde eram escavados covas para protecção das tropas, postos de sentinela e colocação de armas pesadas. Nesta crista, estavam também colocados vários holofotes, que permitiam iluminar as imediações do destacamento, numa distância de cerca de 50 metros.

No interior deste espaço, além dos referidos buracos destinados às máquinas, situados na zona central, a periferia era segmentada por barreiras de terra com cerca de 1,5 m de altura, com área reduzida, onde eram colocadas, as tendas cónicas de lona com capacidade de alojamento para vários homens e um número apreciável de pequenas barracas feitas de ramos e folhagem de árvores.

Existia um gerador, que fornecia energia para a iluminação periférica, para um telheiro apelidado de cozinha, para uma roulotte “enfermaria” e mais uma dezena de lâmpadas espalhadas, entre as quais para as “messes” dos sargentos e oficiais.

Havia um espaldão para o morteiro 81, sendo as munições colocadas em bidões colocados na horizontal e cobertos de terra.

Na entrada do destacamento havia uns cavalos de frisa, não havendo qualquer vedação de arame farpado. Recordo-me que em alguns locais, foram colocadas armadilhas, em que caíram alguns animais selvagens. O abastecimento de água era feito diariamente a partir de Mansabá em pequenos atrelados-cisternas destinado à precária higiene das tropas, reduzida confecção de alimentos, lavagem de roupa, panelas, pratos, etc. Havia uns bidões colocados em cima de uma armação de paus e que debitavam uns borrifos, para o duche!

A lavagem dos utensílios de cozinha era feita segundo as mais exigentes normas de higiene. Existiam cinco meios bidões, com água, numerados de 1 a 5, começando a imersão das louças sujas no bidão 1 e depois sucessivamente nos restantes até sair do bidão 5, em perfeitas condições de adequada utilização…

Cada militar dispunha de um colchão pneumático, com esvaziamento automático ao fim de poucas horas. Muitos dormiam nos buracos, na crista das barreiras, envoltos em panos de tenda e com a G3, colada ao corpo.

A alimentação disponibilizada era ração de combate, intervalada, com cavala de conserva com batata cozida ou esparguete, dia sim, dia sim! Havia quem descobrisse umas iguarias selvagens e variasse um pouco a dieta. No tocante a líquidos menos mau… coca-cola, cerveja, vinho, whisky!

Vivíamos sempre em coabitação com um pó vermelho, principalmente durante o período de trabalho na estrada, que até o esparguete no prato, ficava enriquecido com este “ketchup”, se não deglutido rapidamente.

Em relação às condições de vida da CCAÇ 2753 durante estes três meses, talvez houvesse igual, até talvez pior, mas para muito mau bastava!

O relacionamento com o IN era verdadeiramente íntimo, pois raro terá sido o dia ou noite que por flagelações, emboscadas, minas, não houvesse “festa”.

Foto 5 - Madina Fula

Foto 6 - Madina Fula ao fim de um dia de trabalhos, coluna dos trabalhadores regressando a Mansabá, com segurança de helicóptero (ponto minúsculo no horizonte)

Foto 7 - Um felídeo, que tropeçou numa das armadilhas NT, nas imediações do destacamento

Foto 8 - Trabalhos na abertura da estrada

Foto 9 - Damas… só as do tabuleiro de jogos improvisado numa barrica pintada. Eu e o Vítor Junqueira no Bironque, dias antes do Natal de 1970

No início de Março deixámos Madina Fula, que foi aterrado e substituímos a 27.ª Companhia de Comandos, nas instalações “muitas estrelas” do K3, que até eram visíveis do interior das casernas… mas mesmo assim foi um dia inesquecível, julgo que para toda a companhia.
____________

Notas do editor

[1] - Vd. poste de 25 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20900: Tabanca Grande (493): José Carvalho, natural do Bombarral, com amigos na Lourinhã, ex-alf mil inf, CCAÇ 2753, "Os Barões do K3" (Bissau, Bironque, Madina Fula, Saliquinhedim / K3 e Mansába, 1970/72): senta-se à sombra do nosso poilão, no lugar n.º 807

[2] - Vd. poste de 10 DE ABRIL DE 2009 > Guiné 63/74 - P4168: Os Bu...rakos em que vivemos (4): Acampamentos de apoio à construção da estrada Mansabá/Farim (César Dias)