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domingo, 11 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23866: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte VIII - De novo, Guiné e, Finalmente, o prémio

1. VIII parte da publicação do excerto que diz respeito à sua vida militar do livro "Um Olhar Retrospectivo", da autoria de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796 - Gadamael e Quinhamel, 1970/72.


VIII - De novo, Guiné…

E os trinta e cinco dias de férias esgotaram-se, num ápice!

Preparei tudo para o regresso à Guiné, mas sem vontade nenhuma, claro, pois bem sabia para onde ia e o que me esperava, mas os homens mereciam toda a minha consideração e apoio…

"Imagino, Adolfo!
Depois de um ano naquela situação, deve ter sido difícil encarar novo período, com privações e riscos constantes…"


O meu irmão fez questão de me acompanhar e despedir-se de mim, assim como um colega e amigo dele da Força Aérea, o Zé Durães, de quem fiquei amigo.
Noite numa discoteca, melhor, boate, e eu enfrascado e bem enfrascado, a não querer ir para o aeroporto.

Lá me levaram e conseguiram meter-me na zona do check-in, onde fiquei, sentado no chão, de saquito da TAP na mão, enquanto eles batiam nas vidraças para que alguém tratasse de mim, ao mesmo tempo que riam e riam…

Passados uns minutos, aparecem um comissário e uma hospedeira, perguntam-me o nome e pedem-me o bilhete, ao mesmo tempo que vasculham o meu saquito da TAP, onde encontram a minha carteira e identificação.

Confirmaram que o passageiro que faltava era eu, um militar.

Não tinha o bilhete comigo, mas fizeram eles próprios o check-in e levaram-me para o avião.
Sentaram-me e fiquei sossegado, embora triste e contrariado.

Descolagem efectuada, avião no ar, quando alguém chama e diz que tem um bilhete daquele voo, que encontrou numa rua de lisboa - era o meu bilhete!

Chegada a Bissau, seguindo para o Depósito de Adidos, obrigatório, para registo de entrada e rotinas da praxe.

Mas pirei-me, logo a seguir, pois não tinha paciência para os serviços a que era obrigado.

Na cidade, em andanças pela avenida principal, conheci um mercenário francês, o capitão Charles André, capturado na operação Mar Verde, de que já lhe falei, pois estava ao serviço do PAIGC, na altura, em Conacry.

O Charles André, naturalmente, como prisioneiro de guerra, tinha a assistência própria de um prisioneiro de guerra, mas sob vigilância da polícia militar e da PIDE, vinte e quatro horas, prática corrente.

Com trinta e sete anos, mercenário de guerra desde os dezassete anos, em missões já dos tempos das guerras da Indochina, a designada Indochina francesa, território que incluía os actuais estados do Vietname, Laos e Camboja, também tendo passado pela guerra da Coreia.

Na Indochina, casou com uma indochinesa, a única mulher que o levou ao casamento, não só pela beleza, mas pela cultura, pela educação - dizia.

Durante uma flagelação ao aquartelamento, a mulher morreu, mas salvou-se a filha, ainda bebé, que ela tinha escondido debaixo de um caixote.

A filha, entretanto, já com doze anos, se bem me lembro, estava num colégio interno, em Lyon.

Fazia questão de me falar da cultura indochinesa, que considerava exemplar e digna de referência, em qualquer parte do mundo.

Por exemplo, quando um casal se passeava pela rua e aparecia um homem a olhar e apreciar a mulher, o marido parava, apresentava-se e agradecia o olhar do outro para a sua mulher, sem qualquer gesto de desagrado, sinal de que o marido tinha bom gosto.

Alguém que passasse na rua e olhasse para uma casa onde havia festa, se o dono da casa visse, saía e vinha convidar essa pessoa para entrar e participar na festa, no fundo, em sinal de solidariedade para com essa pessoa. Uma curiosidade: sempre que eu me referia à mulher e, por exemplo, dizia ‘a tua mulher era…’, logo reagia, com firmeza, e dizia ‘era, não, é…!’
Para ele, a mulher existia, apesar de morta…

Como o Governo da Guiné o hospedou no Hotel Portugal (uma espelunca) e, claro, lhe dava algum dinheiro, tudo controlado, logo me disponibilizou uma parte do quarto e pediu uma cama extra, para que eu não fosse obrigado a gastar os meus poucos pesos, uma vez que eu me recusava a dormir no Depósito de Adidos.

Repartia as refeições e cigarros comigo, o que evidenciava um autêntico espírito de partilha, solidariedade, digno de admiração, embora isso tivesse a ver com o que se aprende em cenário de guerra.

As provas de amizade e espírito de protecção foram evidentes e achava que a nossa guerra era estúpida e eu corria perigo de vida, pelo local em que estava - fronteira do sul, com a República da Guiné-Conakry, sede do PAIGC.

Quando saíamos para os subúrbios de Bissau, designados por ‘tabanca’, ‘poilão’ ou ‘pilão’, o Charles André logo se colocava em posição de segurança, embora desarmado, como que a proteger-me de uma qualquer eventual agressão.
Pudera, andava em guerras há vinte anos!

Falou-me em fugir e que eu deveria pensar nisso, também, pois era novo e tinha direito a viver, saudavelmente e em ambiente civilizado.

A saída seria pelo norte da Guiné, pelo Senegal e, depois, aventuras até chegarmos a França.
Frisou que tencionava passar o Natal com a filha, o que seria no mês seguinte, logo, dificuldade agravada.

Pediu-me que, caso lhe acontecesse alguma coisa, durante a fuga de Bissau, e eu pudesse passar por Lion, tentasse ver se a filha estava bem.

Claro que eu concordava com o que me dizia, mas só podia dizer-lhe que tinha homens à minha espera, em situação delicada, que não podia abandonar, além do enorme risco que correríamos na tentativa de fuga.

Como disse, eu deveria estar no Depósito de Adidos, enquanto em Bissau, em trânsito, sendo obrigado a fazer serviços de dia, mas continuava ‘desenfiado’.

Deveria fazer um trânsito curto, em Bissau, e regressar a Gadamael, o mais depressa possível, alugando avioneta civil ou aproveitando algum héli, mas não o fiz, pois sabia bem o que me esperava, em todos os aspectos.

Uma vez que fui ao Depósito de Adidos, só por precaução, fui informado que me enviavam rádios para Bissau a saberem de mim, mas era difícil encontrarem-me…
Doze dias em Bissau, escandaloso, e era hora de partir para Gadamael, onde era esperado, sabe-se lá como, pois o capitão andava em perseguição obsessiva…

Despedi-me do Charles André, que não correspondeu, pois dizia que não gostava de despedidas e insistiu que não aceitava que eu morresse naquele inferno.

Fui ao porto de Bissau e consegui lugar numa LDG que ia para sul e, depois, arranjei lugar numa LDM e batelão, até Gadamael Porto.

Já na LDG, quando abri o meu pequeno saco de campanha, encontrei um bocado de presunto e o cantil do Charles André, com um bilhete: ‘bonne chance et pensez à ma proposition’.
Mais tarde, soube que tinha sido executado pelos agentes da PIDE, durante a tentativa de fuga de Bissau!

Para estas acções, a PIDE tinha grande expediente, era organizada, inteligente, activa.
O mesmo não se podia dizer, quando eram necessárias informações concretas e indispensáveis à execução de operações militares, durante a guerra do ultramar…

Pode parecer lamechice, mas não mais esqueci aquele francês, apesar de mercenário, um homem direito, corajoso, resistente a adversidades, independente dos critérios que possamos ou queiramos ter em conta, um exemplo de solidariedade e espírito de grupo, além da particular preocupação que mostrava por mim, um menino de vinte e três anos, lançado às feras, embora consciente.
É com estes exemplos humanos que mais aprendemos e nos preparamos para a vida.

"Não vejo, apenas, sinto que o Adolfo vive as palavras, sempre que se refere a alguém, como exemplo que o marcou!"

A chegada a Gadamael Porto não foi seguida de uma boa recepção, por parte do capitão, bem pelo contrário, mas não esperava outra coisa.
Em contrapartida: uma calorosa recepção, por parte da companhia, que me deixou um pouco emocionado, mas sem conseguirem esconder a saturação e cansaço.

O capitão manda chamar-me e começam os ataques e as ameaças: ‘Cruz, tem aqui trinta e seis mil pesos para pagar, porque desapareceu uma data de material para o reordenamento!’
A minha reacção foi imediata: disse-lhe que fizesse o que entendesse.

Depois de explorar a que se referia, concluí que era material que vinha de Bissau, destinado a obras de reordenamento, um programa relacionado com a designada ‘psico’, e tinha desaparecido uma parte, o que era um hábito em qualquer ponto da Guiné, pois os diversos nativos eram conhecidos pela habilidade no desvio…
Ele ficava furioso, quando se reagia com indiferença à sua agressividade, apoiada nos galões, apenas!

"Falou em reordenamento e psico e gostava que me explicasse o que significam, realmente."

REORD, reordenamento, é uma acção estratégica que consiste na construção ou reconstrução de uma tabanca ou um conjunto de tabancas, visando a protecção da população e impedimento o seu contacto com o IN (inimigo).

Claro que esta e outras acções cabem no âmbito da designada ‘psico’, actividade que tem a ver com a captação da confiança e simpatia das populações indígenas, de forma que se sintam protegidas pelas NT (nossas tropas), importante para a nossa missão, como se entende.

Um dos dramas do capitão continuava a ser o facto de que a maioria dos graduados se mantinha afastada dele, mostrando-lhe indiferença, com evidente sinal de que o considerávamos ‘persona non grata’…
Daí, a sua obsessiva perseguição e agressividade, atitude contrária ao perfil de um líder.
Mas, afinal, além de o termos considerado um caso típico de sorte, pois nada lhe aconteceu, muitos de nós acabámos por sentir pena dele…
E continuámos a enfrentar o cenário de guerra, sem alternativa, claro, uns dias melhores do que outros.

Tínhamos ouvido qualquer coisa relacionada com tempos de estadia em determinadas zonas da Guiné, pela maior dificuldade operacional e psicológica, como era o caso de Gadamael Porto, o que significava o período máximo de doze meses para uma companhia completa, um pelotão de cavalaria e um pelotão de artilharia.
Assim, devia estar a aproximar-se a autorização de rendição da nossa companhia, pois já íamos em dezasseis meses.
Mas as coisas nem sempre acabam bem…

Uma das últimas operações, reconhecimento na zona de Sangonhá, pertinho da fronteira, saíram parte de dois grupos de combate, do segundo grupo, e do quarto grupo, o meu.
Tudo a correr bem, até que somos surpreendidos por mais uma emboscada, com alguma confusão, e o Fernandes, um dos furriéis do segundo grupo, é ferido, gravemente.

Foi a última ‘bofetada’ que levámos, naquela zona já tão massacrada e com tanto para contar!...


Finalmente, o prémio…

E
a ordem chegou: seríamos rendidos, brevemente!

Como faz parte das estratégias militares, há um período de sobreposição, para que a companhia a ser rendida possa ‘passar o testemunho’ à nova companhia.
A entrega de armas e sua localização, os pontos mais vulneráveis do próprio aquartelamento, os locais estratégicos de saídas e entradas do aquartelamento, as picadas e trilhos de conveniência dentro e fora das matas, os pontos de instalação das nossas armadilhas e minas, os detalhes sobre a comunidade indígena, enfim, a preparação mínima da nova companhia para o que a espera…
Como a companhia tem quatro grupos de combate, saem dois para o novo destino de operações e ficam os outros dois, que fazem a sobreposição.

Chegados os batelões, toca a embarcar e seguir o rio Cacine, transbordar para as LDM, já no rio Geba, seguindo pelo mar, até Bissau, o trajeto contrário ao de dezasseis meses antes.
Depois, de viatura até aos quatro destacamentos, na zona noroeste da Guiné, um grupo de combate em cada um, como ‘prémio’ da campanha em Gadamael Porto, demasiado longa e cem por cento operacional e dura, assim classificada.

A mim, tocou-me Ome/Bijemita, o segundo destacamento, a partir de Bissau.
Zona de etnias Balanta e Biafada, principalmente, embora por lá andassem outras etnias.
Notava-se um pouco mais de movimento e evolução, pois estávamos perto da capital.

A missão, agora, limitava-se à defesa da área de Bissau, cujas ‘operações’ se reduziam a pequenos reconhecimentos e patrulhamentos na zona, incluindo os patrulhamentos do rio Mansoa, uma chatice…
Como era da praxe e bem importante, a designada ‘psico’ estava presente, quer para captar a simpatia da comunidade indígena, pela sua protecção, além da imagem que as forças portuguesas queriam fazer passar.

Os outros três grupos foram colocados em Ponta Vicente da Mata, Quinhamel e Biombo.

Ainda chegámos a ter connosco, uns tempos, o tal célebre Marcelino da Mata, guerrilheiro que ficaria na história desta guerra, por inúmeras e difíceis operações em que participou, nomeadamente, na operação Mar Verde, de que já lhe falei.
Voltarei a falar dele, se tiver oportunidade.

As condições deste destacamento permitiram apreciar alguns dos costumes das etnias locais, principalmente, quando em festa, a que chamavam ‘ronco’, assim como as cerimónias fúnebres que envolviam cenas dignas de filme.

Também era possível dar umas saltadas a Bissau, em viatura militar, sem grandes riscos, nomeadamente, para adquirir bens que não nos eram proporcionados pelo exército.

Recordo-me de um dos patrulhamentos que fiz, no rio Mansoa, com os designados ‘sintex’, barcos de fibra com motor fora de bordo, salvo o erro, com cinquenta cavalos, a que chamávamos banheira, pela configuração.
Saímos da zona posterior do destacamento, entrámos no rio e rumámos para a foz, que chegava mesmo ao Biombo, onde tínhamos um dos grupos.
Mas a operação limitava-se a uma parte do rio, embora tenhamos continuado um pouco mais, e mais, sem repararmos na quantidade de gasosa que tínhamos de reserva.
E as águas revoltas confirmavam o que já tínhamos ouvido sobre a fauna que ali habitava, como tubarão e crocodilo.
Já perto da foz e quase a atingir o Biombo, tivemos de aproveitar a corrente do rio, para conseguir lá chegar, pois a gasosa tinha acabado.

Quando já perto da margem, um dos homens resolve saltar para a água para empurrar o ‘sintex’- má ideia!
Começa a ficar rodeado por umas coisinhas avermelhadas e o corpo cheio de manchas e borbulhagem vermelha, comichão desesperante, difícil de suportar, que só foi atenuada com umas pomadas que o enfermeiro do Biombo lhe pôs no corpo, chamavam flor do congo ou coisa parecida.

E o que nos valeu foi o grupo que estava no Biombo ter gasosa suficiente para nos dispensar, para podermos voltar ao nosso destacamento, graças à solidariedade do Campinho, o alferes comandante do terceiro grupo.
Estas situações não deviam acontecer, pois os riscos estão sempre presentes, com forte probabilidade de consequências graves, mas sabemos que acontecem…

E não posso deixar de recordar as caldeiradas que um dos nossos homens fazia, aproveitando as minúsculas tainhas que as bajudas balantas ou biafadas apanhavam, com redes artesanais, enterradas nas lamas do rio, aguardando a maré.
Claro que as tainhas só serviam para dar o sabor, pois eram difíceis de comer, só espinhas…
Isto passava-se às seis da manhã, já com um calor insuportável, e era o pequeno-almoço.

E, realmente, acreditei no que nos disseram sobre o facto de terminarmos a comissão nestes destacamentos, como ‘prémio’, pelo facto evidente de termos estado aquele tempo todo em Gadamael Porto.
E já íamos em vinte e dois meses, quando sempre tínhamos ouvido falar em dezoito meses de comissão, quando se tratava da Guiné.

Faltava a ordem de saída para o COMBIS (comando de bissau), onde aguardaríamos avião para regresso à Metrópole.

"O Adolfo fala em prémio, como se isso fosse, realmente, um prémio!
Mas acredito que assim considerassem, tendo em conta a diferença de cenário de guerra que passaram a experimentar, com melhores condições e menos riscos, se bem entendi."


Isso mesmo, Daniel, melhores condições e menos riscos, permitindo o descanso merecido a todos nós.
Além disso, a parte psicológica enriquecida, pelo facto de estarmos perto de Bissau, naturalmente, local de partida para o regresso a casa…

Mas esta última etapa, a partida, rumo a Bissau, apesar de ansiada e muito desejada, deixou-me triste e marcado por um episódio simples, mas recheado de emoção.
A lavadeira que eu tinha neste destacamento tinha um filho com cerca de oito anos, a quem eu me tinha dedicado, pela doçura do olhar, simpatia e esperteza, que aceitava pequenas e simples coisinhas que eu lhe ia arranjando, principalmente, comida e alguns pesos.
E aquela minha dedicação nada tinha a ver com carência afectiva da minha parte ou outro qualquer sentimento, mas talvez com uma forma de agradecer o facto de estar no final da comissão, sem grandes mazelas físicas próprias daquela guerra, apesar de reconhecer que as psicológicas acabariam por emergir, mais tarde ou mais cedo.
Além disso, com o facto de ter acumulado uma forte dose de revolta e frustração, pois tinha estado em teatro de guerra que, a certa altura, depois de acordar, reconheci como desnecessária e injusta.

Pois é, este menino não conseguiu aguentar mais e desabafou comigo, mais ou menos, isto: ‘mê furiel, a mi miste bá com bó pr’a Lisboa!’

É um murro grande no estômago, já tão debilitado!...
E tive de pensar bem nas palavras de resposta a este miúdo, com todo o cuidado para não lhe fazerem mal, bem bastava o cenário onde vivia, mesmo que integrado na comunidade onde tinha nascido!...

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Nota do editor

Poste anterior de 8 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23856: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte VII - Que mal fizemos nós?! e As minhas únicas férias

sexta-feira, 16 de junho de 2017

Guiné 61/74 - P17477: (De) Caras (76): Ainda o madeireiro Fausto da Silva Teixeira, com residência familiar em Palmela, amigo do "tarrafalista" Edmundo Pedro... Apesar da "amizade" com Amílcar Cabral e Luís Cabral, teve um barco, carregado de madeiras, atacado e incendiado no Geba, a caminho de Bissau...


Guiné > Bissau > s/d [. c 19690/70] > "Praça Honório Barreto e Hotel Portugal"... Bilhete postal, nº 130, Edição "Foto Serra" (Colecção "Guiné Portuguesa") (Detalhe).

Colecção: Agostinho Gaspar / Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2010).



Anúncio da empresa, em nome individual, "Fausto da Silva Teixeira", dono de serração mecânica de madeiras, com sede em Bafatá, publicado em Turismo - Revista de Arte, Paisagem e Costumes Portugueses, jan/fev 1956, ano XVIII, 2ª série, nº 2.


[Imagem digitalizada partir de cópia pessoal pertencente ao nosso saudoso camarada Mário Vasconcelos (1945-2017), ex-alf mil trms, CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, COT 9 e CCS/BCAÇ 4612/72, Mansoa, e Cumeré, 1973/74] (*)


I. O que sabemos mais, a partir de comentários ao poste P17447 (*), sobre o português Fausto Teixeira ou Fausto da Silva Teixeira, deportado para a Guiné em junho de 1925 por razões políticas, sem qualquer julgamento, e que irá, menos de três anos depois, construir uma moderna serração mecânica em Fá, perto de Bambadinca, e que duas décadas depois é um colono próspero e respeitado, ao ponto de receber a visita do representante do governo de Salazar e do próprio governador-geral Sarmento Rodrigues em 7 de fevereiro de 1947...


(1) Do depoimento do nosso camarada José Manuel Cancela, de Penafiel (ex-sold ap metr pesada, CCAÇ 2383, Buba, Aldeia Formosa e Mampatá, 1968/70) apurámos o seguinte:

(i) conheceu-o pessoalmente, ao sr. Fausto Teixeira,  em 1969 (quando o Spínola era já o governador geral e o comandante-chefe):

(ii) o empresário estava  hospedado no Hotel Portugal (que era o melhor de Bissau);

(iii) tinha como companheira uma senhora de origem cabo-verdiana, chamada Agostinha;

(iv) com o casal vivia o filho mais novo do Fausto, o António, que na altura teria uns 21 anos, e que se tornou amigo do Zé Manel Cancela;

(v) na altura (1969), o sr. Fausto "já deveria estar próximo dos 80 anos" [a ser assim, teria nascido na última década de 1890, e estaria já próximo dos 30 anos quando foi deportado, em 1925, para a Guiné]:

(vi) o relacionamento com do nosso camarada Zé Manel Cancela com o filho António devia-se ao facto de um seu (dele, Zé Manel) conterrâneo, de Penafiel, ser o fiel guarda da madeira que chegava de Bafatá e ficava no Pijiguiti à espera de embarque;

(viii) resumindo, em 1969, o sr. Fausto Teixeira "continuava a ser um senhor de muitas posses, pois além das serrações em Bambadinca e Bafatá, tinha um barco para o transporte da madeira"...


(2) Do neto, Fausto Luís Teixeira, formador, e de pesquisas adicionais que fizemos na Net,  ficámos a saber algo mais;

(i) o avô seria de (ou residiria em) Setúbal ou por aí perto;

(ii) não deveria ter 80 anos em 1969;

(iii) no pós-25 de Abril, era visita do Edmundo Pedro, nascido no Samouco, Alcochete, também margem sul do Tejo;

(iv)  o Edmundo deveria ser (e é, uma vez que ainda é vivo...) mais novo que o avô: nasceu em 8/11/1918, portanto, fará 100 para o ano se lá chegar;

(v) o Edmundo esteve dez anos no Tarrafal, o campo de concentração na ilha de Santiago, Cabo Verde;

(vi) é nessa altura que rompe com o PCP, alegadamente por ter violado a disciplina do Partido, ao tentar, por sua conta e risco, uma fuga;

(vii) é hoje, como se sabe, um velho militante socialista,

(viii) não sabemos de onde nem quando vem se essa amizade (e convívio) com o Edmundo Pedro 

(ix) apontamos o ano de nascimento do avô Fausto Teixeira para os primeiros anos do séc. XX, talvez 1905;

(x) a bater certo, ele é deportado para a Guiné com 20 anos;

(xi) seria,portanto, 13 anos mais velho do que o Edmundo Pedro;

(xii) em 1969,  quando o Zé Manel Cancela o conheceu no Hotel Portugal ele não poderia, de facto, ter 80 anos, mas sim 64;

(xiii) provavelmente devia "parecer ser mais velho", com  quase meio século de Guiné...

 (xiv) o Fausto Teixeira é deportado para a Guiné em 1925, no final da I República, em tempos conturbados; em 1947 quando recebe a visita, na sua serração mecânica de Fá (Fá Mandinga, no nosso tempo, 1969/71),  a escassos quilómetros de Bambadinca, do secretário de Estado das Colónias, do governador-geral Sarmento Rodrigues e comitiva,  era um homem importante na Guiné;

(xv) a imprensa dizia seu respeito, não que tinha sido deportado, mas sim que "se fixara" na colónia há cerca de 20 anos... (Em 1947, ainda a PIDE não estava instalada na Guiné, o que só acontecerá em 1954 ou 1957, não sabemos ao certo...).


(3) De qualquer modo, há "zonas de sombra" na vida de Fausto Teixeira que estão por esclarecer e que compete à família partilhar (ou não) connosco...

Por exemplo, essa história dos electrodomésticos... Será que o avô do nosso leitor chegou ter, depois do 25 de abril, depois do regresso da Guiné, um negócio de electrodomésticos, tal como o seu amigo Edmundo Pedro ? Ou as coisas que ele trazia para casa (rádios, gravadores. etc.) não seriam antes compradas na loja do Edmundo Pedro ? Ou até uma oferta do amigo ?...

Sobre o Edmundo Pedro, ver aqui esta entrada na Wikipédia.

https://pt.wikipedia.org/wiki/Edmundo_Pedro

Por outro lado, não se percebe bem o que o neto escreveu: 

"Estou em crer que em determinada altura se terá dedicado ao comércio, tanto pelas prendas que trazia (gravadores, rádios,...), como por uma vez ter perguntado a alguém(?) que conhecia bem a Guiné, se ele conhecia algum madeireiro chamado Fausto e ele só se lembrar de um comerciante em Bafatá com esse nome"...

A minha leitura é a seguinte:

(i) o seu avô encontrou alguém que conhecia a Guiné (talvez um ex-militar);

(ii) perguntou-lhe se conhecia algum madeiro, de nome Fausto (que era ele);

(iii) esse alguém lembrava-se de um comerciante em Bafatá com esse nome... (Só podia ser o Fausto da Silva Teixeira);

(iv) o negócio principal do Fausto era exploração e exportação de madeira, mas é possível que também tivesse uma loja de comércio a retalho em Bafatá, onde tinha a sede da sua empresa de serração...

(v) enfim, ele quis testar os conhecimentos dessa pessoa que encontrou...provavelmente um ex-militar que, como muitos de nós, conheceu Bafatá...

Nessa altura (anos 60) Bafatá, onde de resto o resto nasceu, tinha a um ar próspero, e havia bastante casas de comércio... Era conhecida como a "princesa do Geba"... Há uitas fotos de Bafatá: pesquisar no Google Imagens= Bafatá.

Por outro lado, e esta é outra questão eventualmente delicada para a família... O avô Fausto Teixeira devia ter boas relações com o PAIGC, com o Luís Cabral, futuro presidente da República (que ele ajudou a sair da Guiné, para o Senegal, em 1959, a seguir aos acontecimentos do Pijiguiti, quando o Luís Cabral estava na iminência de ser detido pelo PIDE)...

Pergunta-se: por que é que não ficou na Guiné, depois da independência ? Por causa dos filhos e netos ? 

 O Zé Manel Cancela esclareceu este ponto, acrescentando:

(i) não  creio que ele se desse muito bem com PAIGC porque o barco que transportava as madeiras foi atacado e encendiado no Geba numa viagem para Bissau;

(ii)  o barco foi depois reparado num estaleiro que havia na altura no ilhéu do Rei:

(iii) cheguei a ir lá com o António Teixeira numa altura que o pai dele veio a Portugal;

(iv) até cheguei a saber quanto custava a reparação, noventa contos, que era uma pequena fortuna para a época; [em 1970, 90 mil escudos na metrópole equivaleriam hoje a 25.798,94 €, segundo o conversor da Pordata; se se tratar de escudos da Guiné, há que ter em conta uma desvalorização de 10% em relação ao escudo da metrópole]

(v) também soube,  através do meu conterrâneo [o guarda da madeira que chegava de Bafatá e ficava no Pijiguiti à espera de embarque], que o António foi parar a Angola como furriel, isto em 71;

(vi) outra coisa: a família tinha casa em Palmela... (**)

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quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Guiné 63/74 - P14201: Os nossos regressos (33): Ficámos na Amura, a aguardar embarque no Uíge... Partimos para Lisboa em 30 de outubro de 1968 (Mário Gaspar, ex-Fur Mil At Art MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68)

1. Texto enviado pelo Mário Gaspar [ex-Fur Mil At Art e Minas e Armadilhas da CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68), autor do livro de memórias "O Corredor da Morte" (Lisboa, 2014)], enviado a 13 do corrente:


Caros Camaradas da Tabanca Grande

A Companhia de Artilharia 1659 (CART 1659), com o lema “Os Homens não Morrem”, foi rendida pela CART 2410, penso que em 20 de Outubro de 1968. Rumámos a Bissau, do mesmo modo como chegáramos a 19 de Janeiro de 1967, quando rendemos a Companhia de Caçadores 798, na LDM e no Batelão. Para eles era a alegria do fim da comissão. Saíam já outras viaturas com os militares da Companhia rendida, que gritavam sorridentes em altíssimos berros:
- Salta periquito, salta periquito…

Pouco ou nada lembro da viagem para Bissau. Parece mais que o regresso não existiu, e que eu fiquei lá nas matas e nas bolanhas da Guiné.Não me recordo de ter tirado fotografias, na lancha em que segui para Bissau, mas elas existem e estavam num rolo da minha máquina fotográfica Canon, e estão aqui.






Guiné > Outubro de 1968> LDM  > Viagem Gadamael-Bissau  > Na LDM, de regresso a Bissau: o  meu Pelotão, estou de tronco nu e lenço no pescoço, na segunda fila a contar de baixo.




Guiné > Outubro de 1969 > LDM  > Viagem Gadamael-Bissau > A minha secção, sou o terceiro de cima





Guiné > Bissau > Outubro de 1968 > Eu, no Forte da Amura, a muitos poucos dias de embarcar no Uíge




Guiné > Bissau > Praça do  Império > Monumento Ao Esforço da Raça > Outubrod e 1968 > Eu, Mário Gaspat, aguardando o regresso


Lembro-me sim de chegar a Bissau, de entrarmos em viaturas. Fizemos muito barulho, cantámos, também a Marcha da Companhia, querendo acordar Bissau. Ficámos aquartelados no Forte da Amura. Ficámos a fazer todos serviços inerentes ao posto de cada um. Tínhamos os dias livres, e procurávamos comprar algumas prendas para oferecer aos nossos familiares quando do regresso, tão desejado, a casa. Dali, seria Lisboa o destino. As esplanadas estavam cheias, e enquanto conversávamos uns com os outros, íamos bebendo umas cervejas, normalmente algumas mesas na esplanada enorme do Hotel Portugal.




Guiné > Bissau >Outubro de 1968 > A dias do embarque de regresso, na esplanada do Hotel Portugal


Era o nosso local de encontro. Falava-se só de guerra. Nós acompanhávamos toda a situação de guerra em toda a Guiné. Até viemos a saber que a Companhia [, CART 2410,] que nos rendera já tinha tido problemas graves. À noite, numa esplanada, ainda comprei umas catanas, e outras prendas. No Mercado de Bissau, adquiri, máscaras de pau-preto, piripiri ou jindungo e muitos petiscos – principalmente pombos verdes no “Zé da Amura”, os pregos no “Benfica”, e cerveja, ostras e camarões em todo o lado. E mulheres todas, até as do MNF [, Movimento Nacional Feminino], que até tinha bons pedaços.




Guiné > Bissau > s/d m[. c 19690/70]   > "Praça Honório Barreto e Hotel Portugal"... Bilhete postal, nº 130, Edição "Foto Serra" (Colecção "Guiné Portuguesa") (Detalhe). 

Colecção: Agostinho Gaspar / Edição: Blogue  Luís Graça & Camaradas da Guiné (2010).



Como o General Spínola, na última visita que nos fizera em Gadamael Porto, pedira para que fossem distribuídos camuflados novos a toda a Companhia, visto aqueles que possuíamos estarem todos rôtos, a nossa Companhia começou a ser conhecida em Bissau por ZORBA, outros militares julgando sermos uma Companhia de periquitos, visto vestirmos fardas acabados de chegar do Casão Militar, diziam sempre:
– Salta periquito!...
– Salta? Vai já saltar! – Respondíamos quase em uníssono – afinal éramos a Família ZORBA. E toca de mandar umas bofetadas a quem tinha dito tal frase. Foram-se habituando à nossa presença, e já diziam:
– Esses tipos são velhos, são da ZORBA!

Os dias foram passando. Ainda fiz um serviço de Sargento da Guarda. Foi quando conheci pessoalmente, o agora cantor consagrado, Marco Paulo.

Na Casa da Guarda, vendo a documentação existente, verifiquei que tinha um preso detido. Depois de pensar que esta situação me poderia trazer alguns problemas, decidi mandar chamar o 1.º Cabo Cozinheiro. Disse-lhe o que se passava, tendo ele respondido:
– Eles possuem as chaves da prisão, costumam sair por vezes, e regressam depois! – Respondi-lhe:
– Pelo sim pelo não, faz-me o favor de mandar chamá-lo?!

Depois de falar com o rapaz que estava preso, dizendo-lhe que estava no fim da comissão, e que não fosse acontecer-lhe algo, eu poderia ser prejudicado,  ele respondeu:
– Volto já para a prisão, meu Furriel, tem razão!

Comecei a ler um livro de Rainer Maria Rilke, oferecido por uma das minhas madrinhas de guerra.





Guiné > Bissau > Outubro de 1968 > Almoço de despedida da CART 1659


Os dias todos iguais demoravam a passar e o paquete Uíge, da CCN [, Companhia Colonial de Navegação] nunca mais chegava. A CART 1659 organizou um almoço num grande restaurante em Bissau. Foi uma grande festa e cantámos, mais de uma vez, a Marcha do Regresso, a música foi executada por meio dos sons dos pratos, dos talheres, de palmadas das mãos nas mesas e com o bater dos pés no chão.

Finalmente no dia 30 de Outubro de 1968 embarcámos para Lisboa. Tal como sucedeu, no embarque numa lancha para Bissau, não me recordo da saída de Gadamael, nem mesmo como entrei no Uíge e foi parar ao porão uma mala de cânfora, com alguma bagagem dentro. (*)

Não regressaram três camaradas.

Mário Vitorino Gaspar
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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 1 de agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13455: Os nossos regressos (32): Fotos do álbum do ex-1º cabo bate-chapas, pelotão de manutenção comandado pelo alf mil Ismael Augusto, CCS/BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70)