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quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26094: Estórias do Zé Teixeira (65): Da Guiné a Lisboa a pé pelo Saará - O sonho que durou vinte anos a concretizar-se (2) (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

1. Em mensagem de 28 de Outubro de 2028, o nosso camarada José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381 (Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70) enviou-nos o relato da aventura do seu amigo Sáculo que ambicionava a qualquer custo vir fazer a sua vida em Portugal. Hoje publicamos a segunda e última parte


Da Guiné a Lisboa a pé pelo Saará
O sonho que durou vinte anos a concretizar-se (2)



– Pois é! Talvez não soubesses que quando se caminha sem orientação, sobretudo no deserto, temos tendência a andar em círculo  
–  disse-lhe eu.

– Andar em círculo porquê? Nós seguimos em frente, sempre em frente 
– esclareceu o Sáculo.

– Só consegues andar em linha reta, quando te orientas pelo sol, ou pela lua. As pessoas, normalmente, têm uma perna mais comprida que a outra e por consequência o tamanho do seu passo, não é igual, ou seja, a perna mais comprida dá um passa mais largo, o que leva a pessoa a fazer um desvio sistemático nessa direção. Este andar em círculo, que pode ser maior ou menor, em função da diferença na altura da perna. Eu, por exemplo, tenho uma diferença de cerca de meio centímetro. Talvez o meu círculo seja grande, e também temos de considerar a possibilidade de termos uma perna mais forte que a outra, o que também pode afetar a direção, quando não temos referências, porquanto a perna mais forte tem tendência a ser mais rápida.

– Desconhecia esses fenómenos. O certo, é que, sem querer, estávamos de regresso ao Senegal. Talvez tenha sido a nossa salvação. A polícia de fronteira prendeu-nos de imediato. Ali ficámos dois dias, mas como não tínhamos nem dinheiro nem comida, éramos um problema para a polícia. Quando passou o primeiro camião, o comandante mandou-nos subir e ordenou ao motorista que nos levasse para Linguère e nós lá fomos.

E prosseguindo:

–  Só que o camião não ia para esta cidade e o motorista deixou-nos num cruzamento, a meio do caminho. Tentámos arranjar trabalho, mas fomos apanhados pela polícia que nos voltou a prender. Eram muitas bocas a pedir pão e a polícia não tinha dinheiro, nem soluções. Eu era o único que sabia falar francês e ia-me desenrascando. Ao fim de dois dias, por ordem da polícia, voltamos a subir para outro camião que passava, que nos levou até Dacar. Procurei o meu primo que era pescador, fomos à Embaixada da Guiné-Bissau regularizar a minha situação e fui para pescador com o meu primo.

– Regressado à tua terra acabou-se a aventura, e que grande aventura!

– Já tinha outro plano em mente. Eu continuava a sonhar com Lisboa. Se não podia ir por terra, tinha de ir por mar. Fiquei em Dacar e fui à pesca na canoa do meu primo, para ganhar algum dinheiro e para me habituar a andar de barco. Nos primeiros dias não pesquei nada. Passei o tempo a vomitar estendido no fundo da canoa. Com o tempo fui-me habituando e até cheguei a apanhar um susto. Valeu-me a forma como os pescadores estavam organizados para sua segurança, ou seja, cada canoa tinha quatro horas para andar no mar, e só podia ir para determinada área. Se ao fim de quatro horas não regressasse, os pescadores que estavam em terra iam à sua procura.

Continuando, diz o Sáculo:

– Eu fui pescar com dois amigos para uma área que já conhecia. Num momento, sem contar, a canoa virou-se e foi ao fundo. Conseguimos ficar agarrados a umas tábuas e ficamos a boiar. Aguentamos, uma hora ou mais, até vermos ao longe duas canoas que vinham em nosso socorro. Safamo-nos.... Eu tinha um tio em Lisboa que tu deves ter conhecido, mas já morreu. Era filho do Samba e estava na milícia no tempo da guerra. Soube que ele estava em Bissau, fui ao encontro dele e pedi para me trazer para Lisboa. Ele era embarcadiço num barco de carga, era o que eu precisava, mas ele esqueceu-se. Escrevi-lhe várias vezes para Lisboa, pedi à minha mãe para o chatear. Eu até já estava zangado com ele, quando recebo uma mensagem para ir falar com um sujeito que estava num cargueiro ao largo de Bissau. Escondi-me no cargueiro e vim parar a Tanger. Já estava perto de Lisboa. Depois foi fácil. E já lá vão trinta anos.

– Entraste em Portugal no ano de… deixa-me fazer as contas…

– Ano de 1994, quando cá cheguei. Ainda me lembro que estava muito frio e eu andei uns dias à procura da casa do meu tio. Depois fui para as obras e nunca mais parei.

– Bateste o recorde. Dez anos para chegar de Bissau a Lisboa. Foste um homem corajoso. Parabéns!

– Era um sonho que nasceu em mim, quando os militares vieram embora, em 1974. Agora é tempo de me reformar, mas não quero voltar para a Guiné. Gosto muito de Lisboa. Tenho cá a minha família, a mulher e os filhos, imãs e sobrinhos. Toda a gente está cá, está na Suíça, está na Alemanha… e sabes quem está nos Estados Unidos a trabalhar numa empresa de segurança privada? O Iero, o meu primo, que casou com a minha sobrinha, a Djuvae, filha da Auá, a minha irmã, tua amiga.

– O quê? O sacaninha do Iero está na América?

… … … ... ... ...

A conversa não ficou por aqui. Quis que eu e minha mulher, mais a Auá e a Djubae entrássemos para o seu carro, creio que um Fiat Punto, e fossemos dar uma volta por Lisboa. Foi tempo para eu e ele voltarmos à Guiné, aos meus tempos de enfermeiro militar e ele uma criança de seis anos que todos os dias me vinha dar os bons dias e ficava à espera de um naco de casqueiro.

A Auá teria uns vinte anos e estava casada com um soldado da milícia.

Nas minhas idas à Guiné reconheceu-me, chamou-me pelo nome, reavivamos bons momentos e reativamos a amizade. O Bemba, seu marido está na Guiné. Foi ferido em combate e conseguiu, muito mais tarde, com ajuda do seu antigo comandante, a cidadania portuguesa. Ela veio a Lisboa visitar a irmã e tratar a saúde.

Sempre que eu vou à Guiné, vou a casa deles comer cabrito. O Bemba já ca esteve e fui visitá-lo a Lisboa. Agora veio a Auá e fui almoçar a casa dela, um petisco à moda da Guiné.

Ela está de regresso à sua terra. O Sáculo fica por cá. Um dia vou trazê-lo a minha casa para fazermos umas contas. Quero saber quem se apossou da minha marmita com um saboroso naco de vitela assada na brasa, naquele dia 14 de novembro de 1968 em que fomos atacados à hora do almoço. Eu pousei a marmita para me proteger e fiquei sem almoço, eu e os meus colegas, que foram a correr defender as suas posições e afastar os intrusos que queriam almoçar connosco, o rancho melhorado ganho através de um tiro de G3 perdido na noite anterior que matou uma vaca do Régulo.

José Teixeira
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Nota do editor

Vd. post de 29 de Outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26091: Estórias do Zé Teixeira (64): Da Guiné a Lisboa a pé pelo Saará - O sonho que durou vinte anos a concretizar-se (1) (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

terça-feira, 29 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26091: Estórias do Zé Teixeira (64): Da Guiné a Lisboa a pé pelo Saará - O sonho que durou vinte anos a concretizar-se (1) (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

1. Em mensagem de 28 de Outubro de 2028, o nosso camarada José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381 (Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70) enviou-nos o relato da aventura do seu amigo Sáculo que ambicionava a qualquer custo vir fazer a sua vida em Portugal.


Da Guiné a Lisboa a pé pelo Saará
O sonho que durou vinte anos a concretizar-se (1)


Eram dois “putos reguilas”, o Sáculo e o Iero, que todas as manhãs, mal sentiam a minha chegada ao barraco da cozinha para “matar o bicho”, corriam alegremente ao meu encontro, e me saudavam de mão estendida e sorriso aberto: “ocurame casqueiro”! Era o mesmo que dizer, numa mistura linguista de dialeto étnico Fula e Português de quartel 

– Dá- me um bocadinho do teu pão!

Já passaram cinquenta e seis anos.

Teriam uns cinco, seis anos, quando nos despedimos, numa manhã de sol bem quente, no mês de fevereiro de 1969. Continua a bailar-me na mente essa manhã em que chorei de alegria e tristeza, enquanto recebia os abraços de despedida daquela gente, humilde, alegre, comunicativa e sobretudo sedenta de paz, e que me ensinou tanta coisa para a vida.

Continua no meu coração a imagem daquela mãe, cujo nome jaz debaixo do pó, que com o tempo sombreou a minha mente. Naquela manhã, da minha partida, depositou a criança nos meus braços, e com os olhos rasos de lágrimas disse num tom suave e firme: 

–  A tua mulher quer ir contigo!

Trouxera-me, uns tempos antes, a bebé, uma menina linda como o sol, ferida pelo paludismo que a minara em tão grande profundidade que a temperatura corporal rondava os 42º C. Já nem força tinha para gemer. Ao fim de dois dias de luta e as dores da incerteza, consegui voltar a ver o seu sorriso. O seu palrar de bebé feliz encheu de novo a casa de sua mãe, e eu tive de a receber como minha mulher. Tão pequenina e tão linda!

Pensava eu que a minha despedida seria para sempre, mas não foi.
Mampatá 2008 > A mãe da Maimuna, a minha bebé
Foto: © José Teixeira

Podia escrever sobre os acontecimentos, que pela vida fora, nos foram aproximando, mas vou apenas escrever sobre a aventura do Sáculo.

Era um dos muitos filhos do Régulo local. Ainda criança foi para a escola corânica. Segundo me disse, há dias, quando nos reencontrámos, passados cinquenta e seis anos. O pai enviava os filhos machos alternadamente para a escola portuguesa e para a escola corânica. A ele tocou-lhe a escola corânica. Com a morte do pai e pouco depois, a independência da Guiné, muita coisa mudou, e o Sáculo partiu à aventura para Bissau, sempre a alimentar o sonho que lhe enchia a alma – vir para Lisboa.

Dias duros e difíceis se seguiram, mas o sonho perseguia-o.

Estávamos em meados dos anos oitenta. Na sequência da mudança política que se operara na Guiné, com o golpe do Nino Vieira para afastar do poder os líderes do PAIGC de origem cabo-verdiana, a vida tornou-se ainda mais difícil. Era tempo de tentar a sua sorte. Era tempo de dar vida ao sonho que o perseguia há dez anos – vir para Lisboa à procura de uma vida melhor. Junta-se a um grupo de jovens quem como ele, alimentavam o mesmo sonho, sabe-se lá porquê.

Paga 2.500 USD a um engajador que lhe garantia a chegada por terra a Portugal, faz uma trouxa e parte à aventura.

Logo se apercebe que o cansaço, mais a fome, a sede e o calor iriam ser os grandes inimigos. O frio à noite também era insuportável, mas nada o fazia desanimar. Lisboa estava a dois passos, para quem tinha tanta vontade de lá chegar. Talvez desconhecesse que havia mais de seis mil quilómetros de terra para palmilhar, um mortífero deserto para atravessar, muitas matreirices dos engajadores para combater.

– Até à fronteira com o Senegal, foi fácil. Estava na minha terra. O grupo estava animado e cheio de coragem. Os pés voavam, tal era a ansiedade e a vontade de chegar ao fim da viagem. Quando entrei em Dakar no Senegal, olhei para trás e senti que não havia retorno.

Seguimos, até à fronteira com o Mali. Ao chegar à fronteira, o guia a quem tinha pagado 2.500 USD,  entregou-nos a outro guia e desapareceu. O novo guia exigiu mais 2.500 USD para nos acompanhar e indicar o melhor caminho. A primeira grande surpresa foi a traição do guia, que nos abandonou. Outras se seguiram, mas, uma coisa era certa, chegar a Lisboa não seria assim tão fácil como sonhara.

Talvez os engajadores, na sua ânsia de “ganhar dinheiro”,  me tivessem induzido em erro.

Até chegarmos à fronteira tudo nos parecera fácil. Conseguimos trabalho pelo caminho para arranjarmos dinheiro ou comida. Agora, sentíamo-nos inseguros pelo abandono do guia e só víamos areia à nossa frente. Era o deserto maliano, arenoso e seco, com um calor insuportável durante o dia, e um frio noturno de bradar aos céus, que tínhamos de atravessar. Os que tinham dinheiro continuaram em frente, os outros desejaram-nos boa viagem e voltaram para trás. Talvez se tenham perdido no caminho. Nunca mais os vi, e já lã vão cerca de quarenta anos.

O tempo passava a correr. Dia após dia, a andar sem descanso. Semanas terríveis, em que o cansaço físico que se apossou de mim. A sede atormentava-me, e a comida escasseava, mas a força anímica tudo superava.

Seguiram-se muitos dias de caminhada até à fronteira com a Argélia em pleno deserto do Saará.
Um aspecto do deserto do Saara
Foto com a devida vénia a BBC News Brasil

– Não entendo porque tiveste de atravessar o Mali e a Argélia se o caminho pela Mauritânia era mais direto 
– disse-lhe eu. –   Já fiz esse caminho duas vezes, por ser o mais curto. É um caminho seguro, em estrada com grandes retas. Já devia existir nesse tempo, com ligação entre a fronteira de Marrocos com a fronteira do Senegal. Nesse tempo o povo saarauí, liderado pela Frente Polisário estava em luta aberta com Marrocos pela sua independência do Saara Ocidental e talvez o percurso não fosse seguro...

– Não te sei responder. Eu estava a pisar terreno desconhecido. Para mim tudo era novo. O deserto, os oásis onde nos recolhíamos, as aldeias no meio do deserto, as cáfilas de camelos a “pastar”, tudo era novidade.

E o Sáculo prosseguiu a sua narrativa;

–  Chegados a um local desértico que o “passador” disse ser a fronteira argelina, apontou-nos a direção em que devíamos seguir, até encontrar uma cidade e desapareceu como por encanto. Ali ficamos cinco jovens com uma vontade danada de chegar a Portugal, perdidos no deserto, com poucos alimentos, alguma água e muita areia para pisar, sem um caminho, uma pista a seguir.
Fomos deixando pelo caminho tudo o que era empecilho, menos o garrafão de água que cada um tinha consigo e a parca comida ressequida. Seguimos na direção que nos fora indicada pelo bandido que nos traiu. Pensamos em voltar para trás, mas não sabíamos como encontrar o caminho de regresso. Era seguir em frente ou morrer. O que mais víamos eram ossos de pessoas, crânios, braços pernas… Eu pensava: 'Não me vai acontecer a mim o que aconteceu a esta gente. Eu vou seguir em frente!'... Mas quanto mais andávamos mais o desânimo se apoderava de nós.

E confessa o meu amigo:

–  Imagina a alegria que sentimos, quando ao longe surge uma bandeira no cimo de mastro, que nos fez apressarmos o passo. Não tínhamos forças para correr.

Quando lá cheguei fiquei abismado, estava na fronteira com o Senegal.

(Continua)

José Teixeira

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Nota do editor

Último post da série de 8 de maio de 2024 > Guiné 61/74 - P25494: Estórias do Zé Teixeira (63): O “Diário” do José Cuidado da Silva (Conclusão) (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

quarta-feira, 8 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25494: Estórias do Zé Teixeira (63): O “Diário” do José Cuidado da Silva (Conclusão) (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)


Segunda e última parte do "Diário" do José Cuidado da Silva, chegado até nós através do nosso camarada José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381[1]

Buba, 22 de julho de 1968

Neste dia saímos do quartel às seis da manhã, e fomos emboscar na estrada de Buba para Aldeia Formosa para passar a coluna vinda de Aldeia. Neste dia estivemos sem comer durante todo o dia, e a coluna chegou já de noite ao quartel. 

Ao entrar dentro do quartel os turras começaram a atacar, mas graças a Deus só houve dois feridos, um alferes e um cabo, e a mim coube-me uma coisa sem importância, pois fiquei dentro de um oleoduto [?] que cheirava mal, ainda pior do que fosse uma retrete, e assim termino este meu [...] , sobre o ataque que eu tive nesta data.


Aldeia Formosa, 19 de agosto de 1968

Neste dia, há
   volta das oito horas da noite, mais um lindo ataque dos turras, mas as morteiradas não chegaram cá, pois apenas caíram duas perto do quartel, mas com certeza eram de canhão porque nós apenas mandamos cerca de dez morteiradas e o ataque durou cerca de vinte minutos, e assim com estas palavras termino.


Aldeia Formosa, 20 de agosto de 1968

Nesta data fomos fazer uma coluna a Gandembel e partimos de cá da terra (Aldeia Formosa) eram 11.30, e sempre a picar a estrada por causa das minas. 

A primeira ponte estava destruída. Tivemos de montar as pranchas para as viaturas passarem, e assim fomos andando. Mais à frente estava o chão cheio de minas, e assim tivemos de parar e o furriel Pedro foi rebentá-las, e rebentou cerca de cinco minas e um dos meus colegas rebentou uma com a vara e caiu para o chão como morto, e foi imediatamente o enfermeiro tratá-lo e foi transferido para Bissau, para o hospital de helicóptero. 

Como a estrada estava cheia de minas, e já era quase de noite tivemos ordem para regressar para o quartel. Este pobre rapaz é de perto da Foz do Arelho e chama-se António.


Aldeia Formosa, 22 de agosto de 1968

Neste dia tivemos de ir novamente fazer a coluna a Gandembel. Partimos de Aldeia eram 6 horas da manhã, e a estrada sempre picada pelo meu pelotão. 

Chegamos ao mesmo sítio anterior onde estavam as minas. Nós rebentamos cerca de 17 minas, e levantamos também algumas, não sei quantas. E aonde estavam também os paraquedistas a montar segurança. Eles levantaram cerca de trinta minas antipessoais, e quando as viaturas iam a passar rebentou uma debaixo de uma viatura, sem haver novidade, e assim chegamos a Gandembel, e tivemos de sair de lá cerca das quinze horas e depois regressar até Aldeia Formosa.

Chegamos até a Chamarra e tudo a correr bem. Daí em diante viemos nas viaturas a cavalo, bem descansados da nossa vida, quando sofremos uma emboscada no caminho e começaram as morteiradas a cair por cima da gente e a costureirinha a trabalhar, etc...

Estava um bombardeiro em Aldeia Formosa, de aonde levantou voo, e foi ter com a gente, ainda nos encontrávamos debaixo de fogo. Ele lá largou as suas mesinhas em cima daqueles cabrões, e eles logo deixaram de dar fogo. Houve cinco feridos. Três soldados da minha companhia e um furriel que era o Samouco e um soldado dos velhos. Destruíram também uma viatura. 

No dia seguinte o primeiro pelotão foi fazer o reconhecimento, e encontraram um morto e manga de sangue, um cantil e um carregador. Assim termino esta minha história vivida pelo meu pelotão e pelo quarto pelotão e alguns homens do Pelotão Fox.


Aldeia Formosa, 25 de agosto de 1968

Na data indicada em cima, tivemos uma tarde de festa que começou cerca das cinco horas, e demorou cerca de 15 minutos. Neste dia andavam africanos a jogar a bola com colegas meus, e o jogo era na pista de aviação.

 Pois os turras quando começaram a atacar, mandaram as canhoadas e as morteiradas para a pista, mas não houve novidade nenhuma dessa parte da pista, e depois começaram a cair para os lados das tabancas, e encontravam-se pessoas [militares ?]  no lado das tabancas. Quando iam a fugir para o quartel, um homem da companhia dos velhos levou com um estilhaço na barriga, e seguiu para o hospital em Bissau.

E estas são as últimas palavras deste ataque.


Aldeia Formosa, 27 de agosto de 1968

Fomos fazer uma coluna a Buba, que nela tivemos pouca sorte, e por isso tenho sempre escrito estes grandes sacrifícios que eu tenho passado junto dos meus colegas. 

E por isso vou agora contar o que se passou nesta coluna. Ia o 4º Pelotão a picar a estrada, tudo a correr bem, e aonde estava uma anticarro debaixo de um cibe e o 4º Pelotão não deu com ela. Passou a primeira viatura, sem haver problemas e quando ia a segunda viatura a passar arrebentou, e foi a uns poucos metros de altura, e o condutor também, pois ficou a contar estar muito esmagado por dentro, e a viatura ficou toda destruída. Ia a montar segurança entre a primeira e a segunda viatura, apenas caiu terra por cima da gente, mas não houve qualquer outro ferimento, e assim começamos a andar. 

Mais à frente estava a ponte destruída, pois tivemos de a arranjar, e aonde estavam quatro minas antipessoais, e um condutor da minha companhia pôs o pé em cima que ficou com o pé todo escavacado, e as três minas o furriel alevantou-as. Pois esse pobre rapaz, desde as 9.15 horas, sempre a gritar que até metia horror, pois só quase à noite é que veio o helicóptero buscar este infeliz. Quando chegamos a Nhala eram oito horas da noite. 

Chegamos de noite devido às pontes estarem destruídas pelos turras. Passamos a noite em Nhala e só no outro dia é que partimos para Buba, tudo a correr em bem graças a Deus, mas esse pobre infeliz rapaz que arrebentou a mina debaixo do pé teve de levar a perna cortada, e assim são estas últimas palavras desta minha guerra.


Aldeia Formosa, 9 de setembro de 1968

Mais um ataque neste dia por esses grandes parvos dos turras. Já era de noite quando eles atacaram, mas as morteiradas e as canhoadas não chegaram ao quartel, e nós mandamos só quarto morteiradass e seis obuzadas e os gajos assim nos deixaram a gente em paz. Ao fim de ter passado à volta de uma hora, mandamos dez obusadas para a Guiné francesa, e assim terminou este encontro.


Aldeia Formosa, 12 de setembro de 1968

Mais outra festa neste dia acima indicado, e assim vou contar esta história. Já quase de noite, os homens da Fox saíram fora do quartel com as Daimlers, e os turras estavam emboscado para atacarem o quartel, mas como ouviram o barulho dos carros a avançarem, logo atacaram os homens das Fox e o quartel ao mesmo tempo. O morteiro do quartel mandou quatro morteiradas e os obuses mandaram duas ameixas, e assim terminou a festa e o pessoal das Fox regressou depois para o quartel sem haver problema. 

Depois de ter passado uma hora, os obuses estiverem sempre a trabalhar toda a noite, pois mandaram dezasseis obuzadas para a Guiné francesa e já terminei.


Aldeia Formosa, 1 de outubro de 1968

Em virtude de me encontrar na Província Ultramarina da Guiné tenho de escrever mais estas seguintes palavras que foram passadas na data indicada acima em Aldeia Formosa. Assim vou escrever o que se passou durante cerca de sete horas, pois choveu tanto, e fazia tanto vento que queria levar as casernas, mas levou, apenas, as chapas de zinco, que estavam a fazer de telhas numa pequena caserna onde estava a secretaria e pessoal da minha companhia a dormir. 

Os papeis da secretaria ficaram todos molhados, e a sorte de um rapaz foi de trazer a mala às costas, senão tinha ficado ferido. Uma chapa de zinco caiu em cima da mala, aonde a cortou ao meio e ainda coisas que continha dentro, e assim com estas palavras, não houve feridos, mas sabe Deus como nós nos vimos nesta aflição. Rebentaram cerca de seis armadilhas devido ao temporal, e assim são estas as últimas palavras deste temporal.


Aldeia formosa, 22 de novembro de 1968

Mais uma história que vou contar desta minha guerra. Nesta data fomos fazer uma coluna a Gandembel, aonde iam com a gente os paraquedistas. Levávamos oito viaturas com géneros, e a malta ia a pé, porque íamos a picar a estrada. Chegamos a meio do sector com tudo a correr bem, e depois tivemos de montar a ponte para as viaturas passarem, e daí em diante nós já fomos encima dos carros, mais à frente tivemos de passar por outra ponte que é a Ponte Balana. 

Ao passar a última viatura a ponte caiu, aonde houve dois feridos da minha companhia e dos paraquedistas, aonde foram logo transportados de helicóptero para Bissau. Depois regressamos a Aldeia Formosa, e assim chegamos ao nosso destino com tudo a correr pelo melhor.


Aldeia Formosa, 31 de dezembro de 1968

Nesta data indicada acima, tivemos mais um ataque ao quartel, e nós já estávamos sabedores, porque o nosso capitão mandou formar a companhia para nos dizer. Eu estava de reforço ao portão dois, eram perto das seis da tarde quando nós ouvimos arrebentamentos. Assim que nós ouvimos arrebentamentos fomos imediatamente para a paliçada, e quando eram perto das dez horas, nós começamos a fazer fogo, quando eles atacaram com mais umas morteiradas e canhoadas. Os melros não conseguiram meter nenhuma dentro do quartel, e só acabou era meia-noite e meia. 

Assim entramos no ano de 1969 ao som das morteiradas e canhoadas. Os melros atacaram com seis canhões sem recuo e morteiros 120, e vieram com viatura pois foi a Companhia velha foi fazer o reconhecimento e nada encontraram. Esta guerra por hoje terminou.


Buba, 4 de fevereiro de 1969

Como andamos a fazer uma estrada de Buba até Aldeia Formosa, e já temos perto de dez quilómetros, e neste dia nós íamos com a nossa calma pela estrada fora quando caímos numa emboscada. Iam dois pelotões pelos flancos. Era o meu e o quarto, mas a emboscada rebentou do lado onde ia o quarto. 

Eles tinham dois fornilhos montados, e quando ia a passar o quarto pelotão, eles arrebentaram com um fornilho, aonde mataram um pobre rapaz cujo nome era o "Velhinho",  e houve cinco feridos, e nós tivemos ainda muita sorte foi o outro fornilho não ter rebentado.

Quando fomos fazer o reconhecimento, só encontramos quatro granadas de roquete. Isto será o fim [deste episódio] .


Buba, 9 de fevereiro de 1969

Neste dia tivemos um ataque ao quartel que quando começou eram 10.30h. Eu já me encontrava a dormir, mas o ataque era tão grande que eu até acordei. Alevantei-me da cama, e ia para fugir para a vala, mas já estava tão cheia que fui para debaixo da cama. 

Assim terminou o ataque, metendo só uma que furou uma parede de uma caserna aonde estava a companhia de Gandembel . Apenas houve um ferido dessa companhia, e esse foi para Bissau, e depois essa companhia foi no dia seguinte fazer o reconhecimento, aonde eles atacaram com 10 canhões e 4 morteiros 82, e encontraram manga de granadas de canhão, e pronto já está escrito.


Buba, 13 para 14 de fevereiro de 1969

Na noite de 13 para 14 de fevereiro às cinco da manhã sofremos mais um ataque estava a malta ainda a dormir quando elas começaram a cair. Eu não tive nada. Fui para debaixo da cama, e vários camaradas também. Eles meteram muitas canhoadas e morteiradas dentro do quartel, mas só houve um ferido da Companhia 2382 que foi o “Esgota-pipas”, e foi para o hospital, e o meu pelotão e o segundo foram fazer o reconhecimento donde eles nos atacaram com 14 canhões, 3 morteiros 82 e com armas ligeiras. Apenas apanhamos algumas granadas de canhão, e isto é o fim.


Buba, 19 de abril de 1969

Tudo isto é guerra. Mais um ataque que começou pelas oito da noite. Apenas meterem duas canhoada,s e uma delas furou a parede da minha caserna, mas sem haver qualquer acidente, e durou cerca de 10 minutos. No dia seguinte foram dois pelotões da minha Companhia fazer o reconhecimento, aonde estavam 18 granadas de morteiro, e encontraram postas de sangue. Atacaram com 8 canhões e 3 morteiros, e pronto por hoje já chega.


Buba, 4 de maio de 1969

Fomos fazer uma coluna até Nhala e ia a engenharia também, mas a engenharia ficou no segundo pontão, e aonde estava minada de minas, pois alevantamos 38 minas antipessoais e uma anticarro, e mais à frente nós íamos a picar, e encontramos a estrada toda escavacada e aonde alevantamos três minas, e havia outra que um rapaz da minha companhia lhe pôs o pé encima, e ficou com o pé todo partido. Foi socorrido pelos primeiros socorros e depois foi para o hospital em Bissau. 

Ao fim de cinco minutos da mina ter arrebentado, rebentou uma emboscada e caíram duas morteiradas de 82 a 3 metros da estrada aonde se encontrava o pessoal, e trabalhou a "costureirinha", e armas pesadas, mas não houve mais feridos. 

Depois eu estava à rasca da cabeça, e fui pedir ao alferes para vir para o quartel, e ele deixou-me vir. Vim mais o rapaz que tinha arrebentado a mina com o pé e chama-se Miguel. Vim sempre a segurar a perna, e o resto da malta seguiu até Nhala, e alevantaram mais mina anticarro, e depois tudo correu bem, e assim termino. Tudo isto é guerra


Mampatá, 17 de maio de 1969

Estive em Mampatá cerca de 15 dias, e no dia 16 os turras fizerem um pequeno ataque. Foi apenas com lança.roquetes, e armas ligeiras, mas não houve qualquer novidade, e no dia seguinte fomos fazer o reconhecimento e nada encontramos. 


Guiné > Região de Tombali > Mampatá > CART 6250, Os Unidos de Mampatá (1972/74) > Um foto aérea de povoação e aquartelamento... A unidade de quadrícula anterior terá sido a CCCAÇ 3326 (1971/73, Mampatá e Quinhamel) a que pertenceu o nosso camarada António Amaral Brum, há 36 anos emigrado no Canadá. Em 1968, no último trimestre, esteve aqui destacado o José Teixeira, o José Cuidado da Silva, o Eduardo Moutinho Santos, o José Belo, o José Manuel Samouco  e outros "Maiorais" (CCAÇ 2381, 1968/70).

Foto: © José Manuel Lopes (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Mampatá, 31 de maio de 1969

Neste dia saímos de Mampatá na coluna de Aldeia Formosa para Buba, e foram alguns rapazes da minha companhia a picar a estrada até ao meio do sector. Ao fim de alguns quilómetros tivemos uma emboscada, onde houve dois mortos e seis feridos. Os mortos e os feridos eram de uma companhia que já tinha dezanove meses, e assim seguimos para diante. 

Mais à frente encontramos uma mina anticarro, e por cima ainda estava um antipessoal. Passei eu e mais outro rapaz ao lado dela. A nossa sorte foi ele não a ter pisado, pois se a gente a pisasse, nem sequer se viam os nossos ossos, pois alevantamos a mina e começamos a andar. Ao fim de alguns quilómetros houve outra emboscada, aonde caiu uma roquetada aquase ao pé de mim e dos meus camaradas ferindo dois rapazes da minha companhia.

Um chama-se Manuel Luís que é da Azinheira e o outro era o Silva, e nós ao fim destas duas emboscadas já não tínhamos aquase 
[sic]   nenhum material de guerra.

 Tivemos de ser abastecidos de helicóptero, e mais à frente tivemos mais outra emboscada que o fogo durou cerca de vinte minutos. Aquase que não tinha fim, e era aquase de noite. Houve um rapaz das Fox que levou um tiro na testa, e aonde veio a falecer ao fim de alguns momentos. Os bombardeiros andaram todo o dia por cima de nós, e os Fiat andaram também, cerca de quinze minutos, e também tivemos mais à frente outra emboscada, mas os bombardeiros deram com eles, e fizeram fogo, e depois daí em diante tudo nos correu bem até chegarmos a Buba, mas com muitos sacrifícios não chegamos, menos aqueles infelizes que morreram.


Empada, 13 de junho de 1969

Aqui, neste pequeno quartel de Empada, foi o meu primeiro ataque que eu tive na data indicada acima. Nada me meteu medo. Eu nessa altura estava a comer galinha e a beber aqueles copos da ordem junto de alguns camaradas.

 Nós ficamos tão descansados, como não fosse nada connosco pois elas caíram a 500 metros desviadas do quartel e assim por hoje já chega. Envio cumprimentos para os turras desta emboscada. José Cuidado da Silva


Empada, 16 de junho de 1969

Era uma hora da noite e eu estava dormindo num pequeno abrigo, mais alguns camaradas bem descansados, mas foi só ao som das canhoadas e morteiradas que nós acordamos. 

Fomos ver, eram os nossos amigos turras a darem-nos os bons dias, mas além de ser um quartel pequeno, eles ainda conseguiram meter algumas lá dentro ferindo dois rapazes. Um foi para o Hospital, o outro não foi preciso, e também caiu uma canhoada dentro da tabanca matando dois africanos e deixando um em perigo de vida. 

 No dia seguinte fomos fazer o reconhecimento e só encontramos invólucros, e agora termino. Cá fico esperando os turras para um novo ataque.


Empada, 28 de junho de 1969

Mais uma vez uma linda festa feita pelos turras. Eram oito horas quando eles começaram a mandar morteiradas e canhoadas, mas elas caíram bem longe deste pequeno quartel, pois ficaram a meio do caminho. 

Quando a festa começou eu estava no café a beber aqueles copos da ordem, e eu ainda naquele momento disse estas seguintes palavras ao Eusébio: "Dá-me agora mais um tinto, e se quiseres beber aproveita agora, pois agora vai à saúde dos turras, não é verdade? Eles de vez em quando lembram-se de nós."


Buba, 31 de julho de 1969

Mais umas palavras tenho a acrescentar, mas desta vez é em Buba. Neste dia fomos picar a estrada para a coluna de Aldeia Formosa passar. O meu pelotão picou até cerca de quatro quilómetros, e foi tudo a correr bem. Depois rebentou uma mina na viatura da frente, aonde levava cerveja e tabaco. Foi tudo pelos ares, e nós a beber cerveja e roubar tabaco. Foram aquelas bebedeiras da ordem, e os pretos a roubar sabão, pois só houve dois feridos. Um era da minha companhia, e o outro era africano. 

Depois trouxemos a viatura para Buba e a coluna seguiu para Aldeia Formosa e pronto.


Buba, 3 de agosto de 1969

E agora, mais uma vez, aproveito cinco minutos para escrever estas palavras. Mais um lindo ataque neste tão belo dia. Eram seis da tarde quando caiu uma canhoada dentro do quartel e feriu duas vacas. Foi uma pena não as ter matado…e todas. 

E não houve mais novidade. Talvez para a próxima já haja novidades. Tu és Buba o alvo de canhoadas e morteiradas, mas só me faltam sete meses para acabar os meus sofrimentos.


Buba, 19 de setembro de 1969

Eram perto das seis da tarde, quando os turras começaram a atacar, mas elas caíram todas dentro do rio, e eu nessa altura estava dentro do refeitório para arreceber  
 [sic] a comida quando elas começaram a assobiar, e houve apenas um ferido e houve apenas um ferido [repetido] , mas foi devido a fazer fogo com o morteiro 60, e esse partiu dia 20 para o hospital, e não houve mais problema, apenas um preto fugiu no mesmo dia com uma G3. Pronto.


Buba, 21 de setembro de 1969

Eram 4.30 da tarde quando os turras resolveram novamente atacar, mas as morteiradas e canhoadas caíram todas dentro do rio, e apenas só nos assustaram, e nada mais.


Buba, 29 de setembro de 1969

Mais um ataque. Pois eram perto das 4 horas da tarde quando algumas morteiradas e canhoadas caíram dentro do rio. Apenas uma caiu dentro do quartel, e algumas também assobiaram por cima, e assim se passou mais um ataque sem haver problema, e quando eram perto das seis horas voltaram novamente, mas essas ficaram todas dentro do rio. Decerto era para matarem o peixe, e nós nesse segundo ataque não fizemos fogo, e por hoje já chega.


Buba, 10 de outubro de 1969

Neste dia fomos fazer uma coluna a Nhala, e quem foi a picar foi a minha malta. Saímos do quartel eram 6 horas da manhã, e nós ao meio do setor encontramos um fornilho. Quem o encontrou foi o Rio Maior. Era um fornilho com carga elétrica. O furriel Pedro alevantou-a, e assim começamos novamente a andar. Avançamos mais um km. e ficamos emboscados. Aguardamos perto das cinco horas, e depois viemos nas viaturas até Buba. 

Era quase de noite quando nós chegamos, e foi quando começou mais um ataque, mas as morteiradas e canhoadas ficaram a meio do caminho, e nós nem sequer fizemos fogo, e assim termino este historial.


Buba, 12 de outubro de 1969

Eram 5.30 horas da tarde quando os turras mais uma vez nos atacaram. Caiu manga de canhoadas e morteiradas dentro do quartel, mas não houve feridos, e assim que acabou o fogo, a malta saiu fora do quartel, e fomos ao local que eles estiveram a atacar.

 Nada encontramos, e já era quase noite, e amalta regressou ao quartel. Também estavam cerca de trezentos turras do outro lado com armas ligeiras para fazer a tentativa para entrar dentro do quartel, estava um pelotão da 2382, e a milícia emboscados, e quando os turras fizeram o seu esforço para entrar, a malta abriu fogo, e assim eles fugiram, pois no dia seguinte foram os fuzileiros fazer o reconhecimento, aonde encontraram 150 granadas de morteiro 82, 3 de roquete, seis de canhão e também uns binóculos, manga de fio e ainda telefone. Atacaram-nos com 8 canhões e quatro morteiros 82, e pronto e nada mais por hoje.


Empada, 9 de janeiro de 1970

Mais um ataque no qual arderam 6 tabancas, e não caiu nenhuma dentro do quartel. Eram 11.30 horas quando nos atacaram. Noutro dia seguinte fomos fazer o reconhecimento, e nada encontramos, e eles roubaram mandioca aos pretos, pois fomos atacados a quinhentos metros do arame com roquetes e outras armas ligeiras.


Empada, 13 de janeiro de 1970

Eram dez horas da noite quando a festa começou pelos turras, mas desta vez ainda não caiu nada dentro deste tão pequeno alvo. Apenas queimaram seis tabancas. Noutro dia seguinte fomos fazer o reconhecimento, e nada encontramos. Atacaram-nos com um canhão, um morteiro 82, roquetes e outras armas ligeiras.


Empada, 31 de janeiro de 1970

Mais um ataque com canhões e morteiros 82, mas não caiu nada dentro do quartel. Ficaram ao meio do caminho. Noutro dia seguinte fomos fazer o reconhecimento. Os nossos morteiros não chegaram lá, e assim foi o último ataque que nós tivemos. Depois viemos para Bissau, e aonde nos encontramos à espera de um autocarro para nos levar até à Metrópole, para visitar as nossas famílias.

Parti para esta Província da Guiné em defesa da Pátria - 1 de maio de 1968 e terminei a 9 de abril de 1970

Assim termino esta minha comissão de reforço com suor e lágrimas no meio destas matas em defesa da Pátria. Agora quero ir embora abraçar os meus pais.

Quero ir embora para matar as saudades que há tanto tempo me encontro ausente. A caminho de 24 meses gozando (?) estas terras desta tão pequena Província da Guiné com suor e lágrimas, e assim defendi, e lutarei sempre pela Pátria.

José Cuidado da Silva

(FIM)

(Revisão / fixação de texto: José Teixeira / LG)
_____________

Nota do editor

[1] - Vd. post anterior de 7 DE MAIO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25491: Estórias do Zé Teixeira (62): O “Diário” do José Cuidado da Silva (1) (José Teixeira, ex-1.º Cabo Auxiliar Enfermeiro da CCAÇ 2381)

terça-feira, 7 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25491: Estórias do Zé Teixeira (62): O “Diário” do José Cuidado da Silva (1) (José Teixeira, ex-1.º Cabo Auxiliar Enfermeiro da CCAÇ 2381)

O Diário de José Cuidado da Silva

1. Em mensagem enviada ao Blog no dia 3 de Maio de 2024, o nosso camarada José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381 (Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70) fala-nos de José Cuidado da Silva, um militar, como muitos outros que todos conhecemos, inadaptado à dura vida em campanha que lhe deixou marcas psicológicas para toda a vida. Só muito recentemente, há dois anos, deu a conhecer ao "seu furriel" Samouco, um diário que escreveu durante a comissão, que manteve em segredo até então.


O “Diário” do José Cuidado da Silva

O “Diário” em verso e em prosa, do meu camarada Maioral (CCAÇ 2381), José Cuidado da Silva, foi o que mais me comoveu e mais gozo me deu a ler e a transcrever para que os camaradas que passaram pela guerra do ultramar, possam apreciar.

Comecemos por descobrir o José Cuidado da Silva. Apareceu na Companhia, já esta estava a preparar-se para partir para a Guiné. Foi parar ao terceiro pelotão e acolhido na equipa do Furriel José Manuel Samouco. Este, começou por perguntar-lhe o nome, de onde vinha e qual a profissão. O pobre do José, aparentemente um simplório, na forma de se apresentar e de falar, disse-lhe que era “cortador de calipos”. Que bela profissão pensou o Furriel e disse estás apresentado. Logo pela aragem viu que era mais um, uma figura típica como soe dizer-se, que tinha de acompanhar de perto e… de “proteger”.
O José Cuidado da Silva

Eu, que fui uma das últimas peças a “encaixar” na Companhia, só me apercebi do José Silva em Ingoré. Aparentemente muito ingénuo, mas bem-educado e respeitador. Eu era “o nosso cabo enfermeiro” tratado por você, a quem foi pedir comprimidos para dores de cabeça. Só muito mais tarde, já em Buba, voltamos ao convívio, quando me juntei ao grosso da Companhia e nos aproximamos nas saídas para a estrada e colunas. A sua forma de se expressar em voz alta escondia um jovem sensível, educado, que pensava, mas não expressava o seu pensamento. Muito disponível e cumpridor de ordens, segundo afirma o Furriel J. M. Samouco. Um militar que nunca deu problemas, mas era marcadamente uma “peça” típica pela forma “atabalhoada” de falar e sujeita a ser gozada pelos camaradas, pelo que precisava de especial atenção.
O Alferes Magro e o Furriel Samouco, ao centro da foto, ladeados por praças do 3.º Pelotão. À direita o Zé da Silva
Da esquerda para a direita: O "Calhordas", o Furriel José Manuel Silva,  Furriel José Manuel Samouco e o Zé da Silva, como era conhecido o nosso herói.

Acabada a Comissão, o José Cuidado da Silva, regressou a Rio Maior, organizou a sua vida, casou e da união nasceu um rapaz.

Em 2016, após alguns anos de batalha, por parte de alguns de nós, foi possível que uma Junta Médica o classificasse como doente psíquico, com stresse pós-traumático de guerra, e assim, aumentar a sua reforma mensal em perto de 500€, para além do acesso ao Hospital Militar. Um bónus bem merecido para uma vítima de uma guerra cujos mentores, até atrasados mentais classificavam como aptos e enviavam para a frente de batalha. Tenho provas disso, num outro camarada – O José Salvaterra, já falecido, que ao atraso mental, agregava uma deficiência físico-motor.

Em 1990, O José Silva foi um dos primeiros a apresentar-se ao toque de clarim que lancei, para iniciarmos os convívios anuais. Logo no primeiro convívio, apresentou-se na sua motorizada, ele, a mulher e o filho. Fizeram a viagem de Rio Maior a Coimbra. Infelizmente, o filho tem um grau de deficiência mental elevada, mas durante uns anos seguidos, lá vinham os três na motorizada.

A esposa, que é uma mulher, tão simples quanto ele, mas de garra apurada, e muito trabalhadeira, sempre fez questão de vir, e o Zé lá vinha, e ainda vem. Nunca falhou. Ela até conseguiu tirar a carta e juntar dinheiro para comprar um carrito (diz ela) para vir à festa dos Maiorais. O filho, esse teve de ser internado num Lar.

Infelizmente, a esposa, sofreu um acidente e partiu o perónio há mais de um ano. A recuperação não está a correr bem e ela tem muita dificuldade em se deslocar, mesmo com duas canadianas, mas, dizia-me há dias, que já consegue conduzir e não ia faltar ao Convívio que se realizou no passado dia 13 de abril. Foi um dos primeiros casais a aparecer naquela manhã de sábado, onde juntamos oitenta pessoas entre combatentes e familiares. Mulher sorridente, resistente, é ela que motiva o Zé.
Convívio de 2024, em Fátima. O José Cuidado da Silva à mesa com o Acácio

Há dois anos, o Jose Cuidado da Silva, entregou ao “meu furriel” Samouco, como ainda o chama, um tesouro. É verdade, um tesouro. O seu “Diário de guerra” escrito em verso e prosa, durante a sua estadia na Guiné e guardado, anos e anos.

Escrito num português simples por uma pessoa simples, conforme foi sendo vivido. Reflete um jovem ligado à sua família e bem-querido na sua terra. Um homem atento ao que o rodeava e seguro de si. Um homem que viveu como todos nós o drama da separação da família, a ansiedade de partir para o desconhecido, que não se envergonha de ter chorado, quando entrou no Niassa. Que conta pormenores do seu sofrimento com uma agudeza de espírito. Uma autêntica lição de vida. Não desce a pormenores, nem regista todos os momentos em que se cruzou com o inimigo. Talvez tenha registado apenas os que mais o marcaram.

Termina escrevendo: Quero ir embora para matar saudades, que há tanto tempo me encontro ausente. Agora quero ir embora abraçar os meus pais.

É esse diário que apresento aos estimados camaradas, leitores do Blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné.

José Teixeira


********************

História da minha vida militar em verso

José Cuidado da Silva

Assentei praça em Viseu
No dia 24 de outubro (e não em abril),
Na parada superior
Nós eramos mais de mil.

Recebi a farda inteira
Para vestir naquele dia,
As calças eram grandes,
O blusão não me servia.

Tocou para o almoço,
Para a formatura fui então,
Quando entrei no refeitório
Só havia massa e feijão.

Na maior força de Inverno
Esta semana passou,
Só vos tenho a dizer,
Que muito mesmo me custou.

E assim passou a recruta,
(Numa grande bandalheira),
E quando tudo acabou
A continência fiz, à bandeira.

Estive por ali mais uns dias,
E o que aconteceu depois,
Voltei a fazer as trouxas
E fui parar ao R.I.2

Quando ao R.I.2 cheguei,
Cansado de caminhar,
Para aquelas paradas olhei,
E deu-me vontade de chorar.

Quando lá dentro entrei
Chegou-me uma grande saudade,
Da casinha que deixei,
Tão longe daquela unidade.

Lá do alto do quartel
Ouviu-se cantar o fado,
Mas logo para meu azar
De lá fui mobilizado.

Fui transferido para Abrantes,
Terra ribatejana,
Para tirar o IAO,
Logo na mesma semana.

Fui com a mochila às costas
Cinco horas a caminhar,
Já tão longe da cidade
A um deserto fui parar.

Quinze dias lá acampado
No meio de pinheirais,
E aqui fomos tratados
Como se fossemos animais.

Quando cheguei ao quartel,
Para me recompensar,
Deram-me o fim de semana
Para ir até casa gozar.

Quando ao quartel voltei,
Disse-me o capitão,
Vai gozar vinte e dois dias,
Que são da mobilização.

Logo apanhei o comboio
Para a casa regressar,
E assim que lá cheguei
Minha mãe fui abraçar.

Passei lá os vinte e dois dias
Dos melhores da minha vida,
A seguir veio a tristeza
Da hora da despedida

Deixei meu pai e minha mãe,
Toda a família a chorar,
Deixei todo o meu bem,
E lá fui parar ao Ultramar.

Quando de casa eu saí,
E a despedir-me dos meus,
Muita gentinha eu vi
A chorar, dizer-me adeus.

Quando cheguei a Lisboa
Senti minha alma gritar,
Entrei para dentro do Niassa
E comecei a chorar.

Às doze horas e cinco
O Niassa deu a partida,
Tanta gentinha a chorar
Pela nossa despedida.

Quando a Bissau cheguei
Já não aguentava em pé,
Embarquei numa LDG
E fui parar a Ingoré.

Quando a Ingoré cheguei,
Triste, me pus a pensar,
Minha família deixei
E para a selva, vim parar.

Setenta dias lá estive,
Era um lugar sossegado,
Fui transferido para o sul
Onde fui um desgraçado.

Quando a Buba cheguei,
A três dias de lá estar,
Apareceram por lá os turras
Para o quartel atacar.

Estive lá quase um mês,
Sabe Deus a minha dor,
E logo para meu azar
Fui para o sítio pior.

Mudei para Aldeia Formosa
Onde era sempre atacada,
Dia sim e dia não,
À canhonada e morteirada.

Tantas colunas eu fiz,
Patrulhas e operações,
Muitas vezes rastejei
Quando ouvia os canhões.

Por vezes de madrugada
Estava eu, a dormir,
E ouvia as canhonadas
Perto de mim a cair.

Levantava-me em cuecas
Mesmo sem alguém mandar,
E com a G3 na mão
Numa vala me ia deitar.

Triste vida eu passei.
Fui homem de pouca sorte,
Tive dias que cheguei
A pedir a Deus, a morte.

Depois voltamos para Buba,
A malta andava arrebentada,
E ainda por cima nos disseram,
Que íamos parar à estrada.

Então andávamos na estrada,
Fartos de cansaço e porrada,
Uns tempos depois nos disseram
Que íamos parar a Empada.

José Cuidado da Silva

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 10 DE DEZEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24938: Estórias do Zé Teixeira (61): Crónica de uma tarde, em sábado de Festas Natalícias (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

domingo, 10 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P24938: Estórias do Zé Teixeira (61): Crónica de uma tarde, em sábado de Festas Natalícias (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

1. Mensagem do nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70), com data de 9 de Dezembro de 2023:

Olá Carlos e Luís
Espero que este sábado esteja a correr bem - é Natal.
Junto uma crónica do que me aconteceu hoje ao sair da Tabanca de Matosinhos depois do nosso almoço de Natal.
Se entenderdes que merece ser publicada, estai à vontade.

Aproveito para dar a infausta notícia da morte da Zélia Neno, a ex-esposa do falecido Xico Allen.

Um Grande abraço e continuação de bom fim de semana.

José Teixeira


Crónica de uma tarde, em sábado de Festas Natalícias

Não sei se a culpa foi do “pisca” que se recusou a acender, se foi do automóvel que usualmente por defeito, costuma não trazer “piscas” ou… talvez os seus condutores não se lembrem que os “piscas” são para usar sempre que necessário. Talvez tenha sido o homem que orgulhosamente, pensou que os “piscas” são para os outros usarem… Talvez não tenha acontecido nada disto.

O certo é que, deparei com dois carros parados, com os piscas apagados, atravessados na autoestrada, ao sair da cidade e dois homens engalfinhados na relva húmida da berma. Uma outra viatura, tinha parado. Vi dois/três homens a aproximarem-se e parei. Saltei da viatura e juntei-me ao grupo, com os meus respeitáveis setenta e tantos anos, e conseguimos afastá-los.

As línguas soltaram-se e espalhavam brasas por todo o lado:
- Seu filho deste… olha o pisca… (e mais uma tentativa de aproximação).
- O pisca, o carvalho, seu fils de…

Ora agora, insultas tu, ora agora, insulto eu, num vai e vem de palavras, que não constam no dicionário por serem ocas e vazias de sentido, mas que ferem e incendeiam o ego… e matam… se matam!

- Olha que eu, …seu (ver no dicionário) – e mais uma tentativa de chegar a roupa ao pelo do outro… mais uma corridinha… mais uma barreira. – O pisca está lá é para se usar! Seu…

Logo de seguida trava-se uma investida do outro, que está muito nervoso. Leva tudo à frente, mas… é melhor parar e dar mais duas de língua.
Qual deles está com mais medo? Não sei. Estranhamente, eu sinto-me sereno, como quando estava na Guiné, depois de apanhar com as primeiras, que me atiravam para o chão.

- Calma! Calma! Vamos ficar por aqui! Não estrague a sua vida… entre para o carro… vá, vá-se embora... despreze quem não respeita a Lei.

…E havia no meio de tudo isto havia um “pisca” de um dos carros que não tinha acendido na devida altura. Pelo andar da contenda, creio que o proprietário continuava sem saber que o “pisca” estava lá nos comandos da viatura para ele utilizar.

No meio de tudo isto, havia dois carros parados no meio da estrada, sem se tocarem, a olhar espantados para tudo isto, a apreciarem este espetáculo.
E o raio dos “piscas” continuavam apagados.

O mais gratificante para mim, foi sentir a gratidão de um dos contendores, que ajudei a acalmar. Ao partir, já mais sereno, olhou-me nos olhos e disse: OBRIGADO.

Entrei no meu carro. Dei dois murros no volante e deixei-me invadir pela comoção.

9 de dezembro, depois de um almoço de Feliz Natal na Tabanca de Matosinhos.
José Teixeira

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Nota do editor

Último poste da série de 9 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23602: Estórias do Zé Teixeira (60): O Senhor Augusto - Parte III (Conclusão) (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

sexta-feira, 9 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23602: Estórias do Zé Teixeira (60): O Senhor Augusto - Parte III (Conclusão) (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

1. Conclusão da estória do Senhor Augusto, enviada ao blogue pelo nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70) em 1 de Setembro de 2022.


O Senhor Augusto

José Teixeira

Parte III (Conclusão)


Um dia, em pleno verão, passou pela aldeia um médico novo, sobrinho da patroa. Levava um casaco branco vestido e montava um lindo cavalo branco. Atrás dele, juntou-se logo um magote de rapazes que o seguiram até entrar na porta da quinta. Eu tive mais sorte. Estava no quinteiro quando ele chegou. Escondi-me com medo do cavalo, e vergonha, mas ele sorriu-me. Deu um beijo à tia e perguntou-lhe se podia ir dar uma volta pela quinta. Ela sabia que ele gostava muito de uvas e disse-lhe:
– Vai e leva o rapaz. Ele que te diga onde estão as melhores uvas.

Colocou-me em cima do cavalo, à sua frente, e lá fomos nós, todos lampeiros, para a vinha, onde estava o meu amigo. O senhor Augusto viu-nos ao longe e desceu ao carreiro de cabeça descoberta a saudar os visitantes. 
Claro que foi ele quem me indicou onde podia ir buscar as uvas para o senhor doutor, enquanto eles ficavam a conversar.

Foram uns dias maravilhosos para mim, os poucos em que o médico por lá ficou. Não havia tarde que não saltasse para a garupa do cavalo, com o senhor doutor atrás, para irmos visitar o guardador da vinha. Também ele se apaixonou pelas histórias. O senhor Augusto contou-lhe os seus padecimentos. O nosso amigo médico quando partiu, prometeu que ia ajudá-lo, e voltaria em breve.

E assim foi. Um domingo de manhã, o doutor chegou à aldeia. Vinha num automóvel, uma arrastadeira da Citröen, preta, como nunca se vira por aquelas bandas, e onde havia apenas um automóvel, o do embaixador da quinta de Padões, que aparecia na aldeia no tempo das colheitas.

Ao fim da tarde partiu de novo. Sentado ao seu lado, seguia o amigo Augusto que tivera o cuidado de tomar banho e vestir roupa lavada, antes de se apresentar, e partiram os dois para a cidade.
Voltou três meses depois, no comboio das cinco. Reconheci-o pelo andar quando ainda vinha longe. Era ele, o meu amigo, mas parecia outro. Abraçou-me ternamente e caminhámos monte acima. Agora, as histórias eram diferentes, eram histórias reais, e deixavam-me espantado. Recordo a da casa amarela com muitas janelas e um pau no telhado que corria pela rua fora cheia de gente…

Estava gordo, e vendia saúde. Afinal, não era assim tão velho com os seus sessenta e cinco anos. O nosso amigo médico internou-o às suas custas no hospital, onde foi tratado como um general. Foi operado à perna e recuperou bem, sobretudo deixou de ter dores ao movimentar-se. Fez outros tratamentos em que teve de tomar muitas mixórdias, e “picas” no rabo. A coluna já não doía. Era um homem novo. Sentia-se cheio de vigor, e com vontade de trabalhar.

No dia seguinte, apresentou-se na quinta e disse à patroa que se sentia como novo e queria voltar de novo para a labuta, no campo. E assim aconteceu, para alegria dos colegas que viam no Augusto um verdadeiro companheiro de trabalho.

Eu completei a escola primária, perdi-me na cidade à procura de um futuro melhor, e o meu amigo Augusto ficou pela aldeia. A luta pela vida afastou-nos. Sei que ainda viveu vários anos. Do que tenho a certeza é que, quando partiu para a sua última morada, teve muitos amigos a acompanhá-lo.

O senhor Augusto era um homem bom, e foi o meu melhor amigo quando eu ainda era uma criança.

Zé Teixeira

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Notas do editor:

Vd. postes de:

7 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23598: Estórias do Zé Teixeira (58): O Senhor Augusto - Parte I (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)
e
8 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23600: Estórias do Zé Teixeira (59): O Senhor Augusto - Parte II (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

quinta-feira, 8 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23600: Estórias do Zé Teixeira (59): O Senhor Augusto - Parte II (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

1. Em mensagem do dia 1 de Setembro de 2022, o nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70) enviou-nos a estória do Senhor Augusto, de que publicamos hoje a segunda de três partes.


O Senhor Augusto

José Teixeira

Parte II


Veio o tempo das uvas maduras. O senhor Augusto passava o dia sentado à sombra de um castanheiro, na borda da vinha, bem lá no alto, e a noite numa palhota construída com canas de milho seco, junto ao muro. Vigiava para impedir que as uvas da patroa fossem parar ao lagar de outrem, pois havia, na aldeia, quem gostasse de provar vinho doce em primeira mão, com as uvas alheias.

Eu deixava a minha mãe no campo e ia para a beira dele fazer-lhe companhia e ouvir as suas histórias. Eram as cobras que falavam; os ratos que caçavam gatos; o Gato das Botas de cano alto, ou a do “Pedro Pedrinho, Pedro Pedrão que, depois de burro, foi Sabichão”, contos a que ele aumentava sempre um ponto, para delícia minha, mas a de que gostei mais foi a das rãs que caíram dentro de um tacho cheio de claras de ovos. Uma sentiu-se perdida, desistiu de lutar e morreu afogada. A outra bateu tantas vezes com as patas, que as claras se transformaram em castelo e ela se salvou. História intricada, essa, que me punha a pensar como é que as claras de ovos, com que a minha mãe fazia o bolo quando havia festa na quinta, ou os filhos da patroa vinham almoçar, serviam para fazer castelos dentro de um tacho. Uma coisa me ensinava ele! Nunca se deve desistir dos nossos sonhos e de lutar pela vida.

E tantas outras histórias que ele tirava da sua memória, em que estavam guardadas e cheias de pó. Segundo ele, só eu tivera a ousadia de lhas ir buscar ao velho sótão, cujo telhado, os seus cabelos que nunca conheci, se perdera com os ventos do tempo.

Sabia onde havia as mais doces uvas naquela imensa vinha que enchia meia dúzia de pipas de saboroso mosto, um verde de categoria. Então, mal eu chegava, dizia-me:
– Ó meu rapaz, vai ao bardo da leira debaixo, lá bem no fundo há umas uvas brancas de estalo. Come até te fartares. Se a patroa vier, eu tenho um ataque de tosse, e tu foges, ouviste!

Situação que se foi repetindo durante o verão, ora na leira debaixo, ora na latada, ora… (O mestre é que sabia!). Voltava, então, para junto do simpático velhinho para ouvir mais uma história.

Até que cheguei à idade de ir para a escola.

Começou o princípio do fim da minha meninice, em que misturava o trabalho de guardar os ovelhas da patroa com as brincadeiras com os rapazes da vizinhança, com brinquedos e casinhas, construídos na nossa imaginação, ou pela nossa imaginação, como naquela tarde em que descobrimos uma forma de andar de carro por uma ribanceira, transformando um ramo de carvalho em moderno meio de transporte, com um garoto sentado e outro a fazer de burro, puxando, numa correria desenfreada, até chegar ao carreiro novo. Como consequência, foram-se os fundilhos das calças e choveram umas vergastadas no traseiro, com uma fina vara de mimosa.

E quantas vezes, abandonava os meus colegas de brincadeira e ia à procura do meu amigo velhote. Havia sempre fruta fresca e madura, e mais uma história por detrás de um sorriso maroto e profundamente cativante, ou, então, a repetição de uma já conhecida, mas com novos intervenientes, pois o senhor Augusto acrescentava sempre um novo pormenor para lhe dar outro sabor.

O meu velho amigo tinha uma arma de carregar pela boca. Era a sua companheira na barraca onde se acolhia durante a noite, num dos cantos da vinha à sua guarda. A patroa mandava-o carregar a arma com zagalotes. Ele garantia-lhe que sim, mas carregava a velha espingarda com muita pólvora seca, para que fizesse muito barulho e poucos estragos.

Uma noite de pouco luar, apareceram por lá os amigos do alheio. O vigia estava atento. Seguiu-os à distância. Apontou a arma para o alto e disparou. O estrondo foi tão grande que se ouviu em todo o lugar.

No dia seguinte, o meu amigo, logo que me viu, disse-me:
– Ó meu rapaz, tu nem sabes o que me aconteceu esta noite… Levei cá um coice!
Fiquei atarantado, e na minha inocência, comentei:
– Mas… o senhor Augusto não tem burro!
– Ó rapaz, foi o canhangulo que me deu um coice – e apontava para a arma encostada ao castanheiro, sorrindo.

De seguida, contou-me os acontecimentos da noite.
– Apareceram dali, daquele lado, estás a ver aquele tronco de carvalho? Eram dois homens com uma cesta. Foram por ali, rodearam aquela borda e saltaram para vinha, e eu a segui-los. Passaram para parte de dentro do bardo e começaram a colher uvas. Os malandros sabiam onde é que as uvas estavam maduras, mas eu também sabia. Aproximei-me de mansinho. Apontei a arma para o alto, e pum! O fumo foi tanto que quando passou, já não se via ninguém. Mas, assustados, foram-se, e não voltam, podes crer.

O que mais me intrigara foi saber que as armas davam coices.

(Continua)

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Nota do editor:

Último poste da série de 7 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23598: Estórias do Zé Teixeira (58): O Senhor Augusto - Parte I (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

quarta-feira, 7 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23598: Estórias do Zé Teixeira (58): O Senhor Augusto - Parte I (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

1. Em mensagem do dia 1 de Setembro de 2022, o nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70) enviou-nos a estória do Senhor Augusto, de que publicamos hoje a primeira de três partes.


O Senhor Augusto

José Teixeira

Parte I

Toda a gente tinha uma grande estima por aquele velhinho alegre. Depois de uns anos em França, onde participara na tristemente célebre batalha de La Lys, durante a Primeira Guerra Mundial, regressou à sua terra natal e por lá ficou, como moço de lavoura.

Os caminhos da vida e a doença óssea que o sacrificava, uma sequela da sua alimentação deficiente durante os anos em que estivera envolvido na guerra, foram-lhe roubando as forças para trabalhar, mas não a vontade. Vivia da compreensiva caridade das gentes do povoado. No verão, era contratado pelos proprietários das terras para guardar os pomares e as vinhas. Mas o seu maior prazer era a conversa, e toda a gente o ouvia respeitosamente, até as crianças gostavam das suas belas histórias, sempre acompanhadas de ruidosas gargalhadas.

Habitava um casebre no cimo do lugar Novo, construído com pedras mal talhadas, coberto a colmo. No inverno, o vento invadia o compartimento, assobiando pelos buracos. A chuva acossada pelo vento escorria pelas paredes, transformando o chão térreo num lamaçal. No verão, aquela porta era a janela do seu mundo que nem de noite se fechava. De lá, o seu olhar viajava pela encosta que se estendia até ao rio, atravessada por caminhos e carreiros, ora protegidos pelas sombras de frondosos castanheiros, bem lá no fundo, ora por eucaliptos que trepam rapidamente às alturas, sugando o húmus da terra, tão necessário para a manter produtiva. Casas aos magotes davam forma aos lugares em redor das quintas dos senhores da terra, com as suas vinhas e prados que matizavam o ambiente ao sabor das estações do ano. Estradões de terra batida partiam das casas senhoriais e, serpenteando pela encosta, perdiam-se lá longe, na estrada que nos transportava à vila. Os matos agrestes e as giestas abriam-se na primavera, dando um toque colorido de amarelo àquele ambiente carregado, com a esperança dos prados.

A minha relação com ele não começara da melhor maneira.

Estava eu, no campo, a guardar as ovelhas da Dona Aninhas, a patroa, quando vi a aproximar-se aquele velhinho curvado pelos anos, de pernas arqueadas, cobertas por umas calças rotas que de tão sujas não tinham cor, a arrastar-se nuns grossos tamancos, apoiado num arrocho. De nariz adunco e boca sem dentes, com uns restos de cabelo branco a roçar-lhe o pescoço, e duas lanternas verdes focadas em mim. Parecia-me um sorridente fantasma naquele cair da tarde fria de maio.

Parou no meio do íngreme caminho que o levava a casa para descansar um pouco, e esboçou um cândido sorriso, mas eu estava de tal modo assustado com a sua figura, que tremia como varas de junco verde, tocadas pelo vento de inverno.

Alargou o seu sorriso e perguntou-me:
– Ó rapaz, tu sabes porque é que as galinhas não têm dentes?
– Não senhor… – Respondi com voz trémula e abafada, com os olhos fixos no chão, encolhido dentro de mim.
– Eu também não sei, mas um dia vou saber. Quando elas falarem, vou perguntar-lhes e elas vão dizer-me, podes crer – e deu uma sonora gargalhada.

Continuou o seu rape-rape pela encosta acima e eu fiquei a matutar. Como é que as galinhas falam, se eu só ouço o có-có-ró-có-có do galo pela manhã, tão cedinho, que, às vezes, até me acorda? Bem, as galinhas cantam. A minha mãe a cada passo me diz: A galinha está a cantar é porque tem ovo no cu, ou então, a galinha já cantou, vai buscar o ovo, rapaz! Se cantam…

Certo é que, nesse dia, quando a minha mãe me foi chamar para a ceia, encontrou-me no poleiro a falar com as galinhas, sem, contudo, obter resposta, a não ser o seu cacarejar por sentirem um intruso por perto.

Com o tempo, fui-me habituando àqueles olhitos marotos, de um verde que, noutros tempos, ofuscaria qualquer cachopa casadeira, e a que o cansaço das agruras da vida tirara todo o brilho, mas não a alegria de viver sorrindo.

Veio mês de junho, com as frutas no pomar. Um convite aos amigos do alheio para encherem os bolsos e a abada. A patroa chamou o senhor Augusto e deu-lhe a tarefa de se sentar por lá, para afugentar os mais audaciosos, em troca de uma tijela de caldo e a ceia regada com um copito de verde tinto.

Ao fim de algum tempo, eu, que também tinha direito ao caldo da patroa por lhe guardar as ovelhas, já me sentava no colo dele para comer o “modinho” da sua tigela, e ouvir-lhe as histórias que só ele sabia contar com uma ênfase gestual que me fazia rir às gargalhadas.

Calvo e sem dentes, é verdade, com os anos a pesar-lhe duramente nas suas peles encarquilhadas, mas sempre alegre. Era um prazer ouvi-lo. Até os criados mastigavam mais lentamente o parco conduto para ouvirem o velhote, como era conhecido.

Da guerra, nem falar, pois o nosso velhinho, irritado, dizia: – Isso não são histórias para cachopos. – E não se ouvia nem mais uma palavra da sua boca.

Um dia, com um copito a mais, abriu-se um pouco. Começou por perguntar-me se eu sabia porque é que os dentes lhe fugiram da boca. Como já me tinha caído um dente de leite, foi fácil responder-lhe.
– Bem, comigo não foi bem assim, mas diz-me o que aconteceu ao teu dente – quis saber.
– Caiu-me ao chão, e o galo comeu-o.
– Antes o galo que o rato. Estás com sorte, rapaz, vais dar um bom cantador.

Não me deu tempo para lhe perguntar porquê, e continuou.
– Pois eu, quando fui para a tropa, tinha a boquinha cheia de dentes, não me faltava nem um. A maldita guerra rebentou e levou-mos. Não ficaram lá todos, mas quando regressei a casa, depois de passar uns meses no hospital a curar esta perna maldita que me mata de dores, começou a cair um atrás do outro e fiquei assim, nesta figura. Careca, perneta e desdentado.

– Conte, conte histórias da guerra, devem ser as mais lindas que tem para me contar.
– Enganas-te, meu rapaz. (Gostava muito de me chamar “meu rapaz”). As histórias que vivi na guerra são muitas, e bem dolorosas, podes crer, mas irão comigo para a cova. Vou falar-te dos meus dentes, e é se queres. – Conte, conte.
– Estava na tropa quando rebentou a guerra…
– O que é uma guerra?…
– Chiu! Não faças mais perguntas, senão… Como te dizia, a guerra rebentou lá longe. Fomos logo metidos aos milhares num comboio, e só parámos quando já se ouviam os canhões.

Fez um longo silêncio. Parecia que as palavras se recusavam a sair-lhe da boca, enquanto as lágrimas lhe caíam suavemente pelas faces. Respirou fundo e continuou, limpando os olhos com as costas da mão.
– Passámos muita fome. Os franceses e os ingleses, ali ao lado, tinham comida todos os dias, e da boa. Nós manjávamos rações de combate, quando as havia. Até os freds! A gente via-os ao longe a cozinhar.
– Quem eram os freds?
– Eram os alemões, rapaz. Vá, deixa-me continuar. Enquanto eles comiam fruta em conserva todos os dias, nós, os portuguesitos, nem vê-la pelo cano da espingarda. Ficávamos ali entrincheirados meses e meses ao frio, ao calor, com fome… a morrer…
– O que faziam na guerra?
– Eu não te disse já que as histórias da guerra iam comigo para a cova? Tem juizinho!
– Agora só tenho as gengivas para mastigar a côdea seca do pão que a patroa me manda a meio da manhã para o mata-bicho.

(Continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 30 DE JULHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23474: Estórias do Zé Teixeira (57): Amores em tempo de guerra: III - Amores proibidos (3): Binta!... Binta!... (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

sábado, 30 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23474: Estórias do Zé Teixeira (57): Amores em tempo de guerra: III - Amores proibidos (3): Binta!... Binta!... (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

1. Terceira e última parte parte da história de amor entre Binta e o seu prometido Braima, combatente do PAIGC, enviada em mensagem de 27 de Julho de 2022, pelo nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70).


Amores em tempo de guerra III

AMORES PROIBIDOS

(3) - Binta!... Binta!...



Enlaçados nesse amor que os inebriava, deixaram-se adormecer, plenos da felicidade efémera, fora do tempo em que a guerra domina a mente, e abafa o sentimento que inunda o coração.

Já a noite ia alta quando o Braima deitado de braços cruzados olhava o céu da sua mente e tentava ouvir um coração endurecido pelo caminho que escolhera, mas que agora se desafazia em lágrimas de sangue, mas a decisão estava tomada. Tinha que se ir embora sem se despedir da sua amada.

Ele tinha consciência dos riscos da guerrilha. Não queria ver a sua Binta a carregar os armamentos que usavam para atacar os aquartelamentos tugas. Além da fome e da sede, o cansaço do peso que acartavam à cabeça e o tempo de marcha, havia o perigo das emboscadas, dos aviões, das granadas que explodiam, lançadas para retaliar os ataques dos nacionalistas guineenses. Quantas vezes tiveram de abandonar a barraca onde aquartelavam e esconderem-se no mato, deslocar-se de um lado para outro para evitar o confronto se estavam em minoria, ou apanhados de surpresa, o que acontecera algumas das vezes em mortíferas emboscada. Havia ainda outros perigos, pensou. Os camaradas que iam ver na Binta a mulher dos seus sonhos, que a cercariam na sua ausência, para obter os seus favores. Por muito amigos que fossem, e eram, porque a camaradagem construída na luta é a amizade mais profunda que se pode ter. A fome e o desejo de sexo, tornar-se-ia superior, porque muitos não tinham mulher. Ele sabia que era assim. Ele mesmo não conseguira resistir à mulher do Sissomo. Mulher para dois, como toda a gente sabia, até ele ser enviado para o sul.

Não! Não podia levá-la consigo. Tinha de se ausentar silenciosamente, para junto dos seus camaradas acantonados mais a sul, na mata de Cantanhez. Ele sabia que não lhe era difícil transpor as dezenas de quilómetros que o separava da tabanca da Binta. Desde tenra idade se habituara a caminhar pela densa floresta virgem, atravessando as bolanhas. Sabia como defender-se dos animais selvagens, os quais começavam a escassear, devido à guerra, à caça desenfreada de que eram vítimas para alimentar as gentes que viviam no mato e muitos vezes para desporto dos militares europeus. Todavia os riscos de encontro indesejados com os soldados portugueses, as cambanças dos rios e das grandes bolanhas, eram temíveis empecilhos. E havia as razões de ordem pessoal e política. A sua vida pessoal, as suas visitas, mesmo clandestinas seriam controladas pelo comissário político e viveria sob pressão contínua para a trazer para a frente de combate, para um ambiente que ele detestava acrescido dos riscos que a luta contra o opressor acarretava. Preferia manter a situação e tentar uma fuga de vez em quando, para se encontrar com ela. A situação de luta iria mudar em breve, pensou. Os portugueses se hão de cansar. Esta terra será livre. Então voltarei para casa.

E. decidiu escapulir-se silenciosamente, depois de a beijar com toda ternura e cuidados para não a libertar do Morfeu.

Teimosas lágrimas inundaram a face da Binta quando acordou e não viu mais nada, a não ser o lago do céu noturno cravejado de estrelas. O seu Braima tinha ido embora sem a levar. O coração parou por momentos, sentiu-se desmaiar... A raiva, misturada com as lágrimas e o desespero de sentir que voltou a perder o seu amado, deixaram-na esvaída, sem forças, perdida…
A vontade de viver que sempre a animara, pelo amor que secretamente guardava bem dentro do seu ser, como que se apagou. Um coração cheio de saudade teimava em dizer-lhe que esta fora a primeira e talvez a única vez que as suas vidas se encontraram.

Deixou-se perder no tempo. Já o sol ia alto quando “acordou” para a realidade. Tinha saído da Tabanca no dia anterior. Era urgente voltar discretamente para junto de sua mãe e contar-lhe o seu segredo. Ao levantar-se, viu no chão um pequeno papel com algo escrito.
Ah, com ela gostava de ter aprendido a ler para saber ali mesmo a mensagem que Braima lhe deixara. Certamente era um eterno adeus. A luta, ultimamente, tornara-se muito dura. Os soldados andavam por todo o lado. Os paraquedistas que passaram na sua tabanca vinham carregados de armas apanhadas aos “bandidos” como chamavam aos guinéus que se tinha refugiado na mata. Ia perder o seu Braima, dizia-lhe o coração. De nada valeriam as novas armas contra os aviões. Agora tinha a certeza, do fundo do coração, os portugueses que ela já odiava, iam continuar na sua terra, e o seu Braima, esse… morreria como tantos outros!? Talvez não. Tinha de continuar a acreditar no que lhe dizia o coração e levantou-se cheia de energia e confiança.

Com o papel amarfanhado na palma da mão internou-se na mata e voltou para a tabanca. Ouviu o roncar da viatura militar que todas as manhãs ia buscar água à fonte e pensou nas suas amigas que, aproveitando-se da segurança que os soldados impunham com as suas armas, como ela fizera muitas vezes, vinham com as suas vasilhas em busca da água fresca e de melhor qualidade para dar de beber às crianças. Quando transpôs o cavalo de frisa, a sentinela nem se dignou olhar para ela. Respirou fundo e foi ter com uma mãe aflita. Explicou-lhe os acontecimentos da noite e correu a casa da Cadi. Só ela lhe podia dizer o que o Braima lhe tinha escrito.

Cadi tinha ido buscar água à fonte. Aguardou com ansiedade desmedida a sua chegada e, sem explicações, pediu-lhe para ler o papel.
- Ó mulher parece que visto o demónio. - Disse-lhe a Cadi. - Que te aconteceu?
- Diz-me o que está escrito no papel. - Ordenou-lhe a Binta.
- Tá bem, não te zangues. O papel não diz nada.
- Não diz nada!? Mas tem letras? - Retorquiu a Binta com o coração acelerado.
- No papel está escrito. “Aqui”. Que é que isto quer dizer? Nada!
- Deixa comigo – disse Binta – E pegando no papel seguiu para casa, a saltitar, como um passarinho: ela entendera a mensagem. Era naquele lugar onde o deveria esperar sempre que tivesse notícias.

E a vida continuou, só que a Binta deixou de ser a mesma que partira ao encontro do seu amado.

José Teixeira
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Nota do editor

Último poste da série de 29 DE JULHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23471: Estórias do Zé Teixeira (56): Amores em tempo de guerra: III - Amores proibidos (2): Binta!... Binta!... (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)