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segunda-feira, 20 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24868: Notas de leitura (1635): Um dos patrimónios mais valiosos da cultura africana: Como exemplo, um olhar sobre os contos mandingas (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Maio de 2022:

Queridos amigos,
Parece-me ocioso repetir o que a autora já nos indicou sobre a literatura tradicional, oral e, por vezes, musicada, o desempenho que tem na memória de um povo, a dimensão cultural que é a transmissão oral de conhecimentos e tradições. No entanto, abono uma observação da autora, parece-me pertinente para o texto que seguidamente se vai ler: "A literatura oral nasce em sociedades onde o trabalho humano não é fragmentário, onde não há uma separação radical entre o trabalho quotidiano e a criação artística". Assim como no texto anterior se falou de Moisés e Alá, como se podia falar de outro conto religioso em que aparecem Adão e Eva e se fala da expulsão, do desencontro e da procura, a história do rei cruel e da corda de areia parece-me que tem um desempenho moral educativo de grande valor, e atenda-se à apreciação que a autora faz de que o conto é pedagógico, se bem que sujeito a leituras múltiplas e altamente educativo no sistema de representações de grupo. Recorde-se ainda que a autora foi buscar estes contos a uma obra de Manuel Belchior, que reputo como texto indispensável, trata-se de uma recolha muito séria que este então funcionário colonial fez na região do Gabu.

Um abraço do
Mário



Um dos patrimónios mais valiosos da cultura africana (2):
Como exemplo, um olhar sobre os contos mandingas

Mário Beja Santos

A matéria de análise da tradição oral africana leva-nos a uma fonte histórica suculenta, uma seiva de autenticidade, ocorre-nos prontamente os Griots, os músicos que exaltam heróis e que elevam a sua narrativa dedilhada pelos corredores obscuros do labirinto do tempo. Há uns anos, adquiri um livro sobre a tradição oral com maior incidência no mundo africano, a UNESCO apoiara a criação de um Centro Regional de Documentação para a Tradição Oral, sediado em Niamey, a capital do Níger, aí se reuniram especialistas que entrevistaram Griots, contadores e cantores, letrados muçulmanos e padres, patriarcas e chefes de família, entre outros. 

Sinteticamente, e em torno de uma consideração consensual, as tradições orais são uma parte essencial do património cultural africano.

E fez-se uma apreciação de respetiva tipologia. Quanto à forma, as tradições apresentam-se sob três formas essenciais: prosa, prosa ritmada, prosa cantada ou não, manifestando-se através de uma forma livre ou estereotipada. Estas tradições orais abarcam todos os géneros de expressão literária: história (genealogia, crónica, narrativa histórica), poemas épicos, líricos, pastorais, contos, fábulas, adivinhas, teatro, não faltando as abordagens religiosas e iniciáticas; para além dos conteúdos históricos, as tradições abarcam temas populares ou eruditos. 

Outro aspeto que esta obra sobre a tradição oral releva são as relações interdisciplinares: a linguística, a etnologia, a arqueologia, a musicologia. Falamos de uma obra que data de 1972 e que envolveu um conjunto de países, dois deles têm fronteiras com a Guiné-Bissau (Senegal e Guiné-Conacri). A descoberta de um livro sobre análise de contos, forneceu munição para falarmos um pouco das tradições orais de uma das etnias mais populosas da Guiné, os Mandingas.

Como vimos, os contos Mandingas fora objeto de estudo numa dissertação de mestrado de Hannelore Felizitas Nadolnÿ da Silva, estabelece considerações sobre o papel desta literatura oral, analisa o conto africano com base numa classificação onde pesam os contos religiosos, didáticos, iniciáticos, históricos, humorísticos e as fábulas dos animais.

Vejamos agora como ela vai apreciar o conto A Corda de Areia, que aqui se reproduz integralmente:

“O rei Bacar que há séculos governou em Tamba, um antigo reino do Sudão Ocidental, deixou merecida fama de despótico e crudelíssimo príncipe. Do seu reinado, ficaram principalmente gravadas na memória do povo, o primeiro e o último dia.

Quando subiu ao trono, Bacar mandou que viessem à sua presença os melhores e mais íntimos amigos e companheiros do seu pai, eles foram por ele escrupulosamente interrogados para avaliar o grau de intimidade que cada um havia mantido com o recém-falecido soberano e do valor dos serviços que lhe haviam prestado.

Depois de numerosas perguntas que levaram à rejeição de alguns e à aprovação de outros, verificou Bacar que havia cerca de cinquenta notáveis a quem o último rei muito havia estimado e a quem devera importantes serviços. Pensavam os pobres velhos que, após todas aquelas indagações, seriam talvez distinguidos pelo novo príncipe e quiçá alguns deles fossem escolhidos como conselheiros.
Aquele, porém, disse-lhes: ‘Não há dúvida. Vocês eram bons amigos do meu pai. Tão amigos, que a maior parte das vossas vidas e das vossas preocupações consistiu em servi-lo. Mas dizei-me: para que querem vocês viver depois que ele morreu? A quem vão agora servir? Para mim não têm a menor utilidade, mas pode muito bem ser que ele precise de vós no outro mundo’.

E depois de tão desconcertantes palavras mandou matá-los a todos.

Após este significativo começo de reinado, Bacar não mais cessou de mostrar o seu mau carácter cometendo com frequência revoltantes atos de opressão e impondo ao povo os seus caprichos cada vez mais difíceis de suportar, até que um dia deixou toda a gente estarrecida quando exigiu que lhe apresentassem uma corda feita de areia.

Todos os cortesãos a quem ele deu o encargo de a mandar fazer, declararam, apresentando as melhores razões, que a areia não é material de que se façam cordas, mas o único resultado que colheram de tão óbvia argumentação foi o de se verem taxados de incompetentes e cretinos, acabando por serem espancados e postos a ferros.

Reinava, pois, a maior consternação no país de Tamba, quando por ali apareceu um velho djila que de há muito era considerado um homem sagaz e fértil em recursos. Ao ouvir os motivos da apoquentação geral, afirmou: ‘Digam ao rei que se ele soltar todos os presos, eu fabricarei a corda de areia que pretende, na sua presença e na de toda a população’.

Tremeram os amigos do djila pela sua sorte, porque desde logo compreenderam que era a própria cabeça que ele arriscava. Mas o ancião disse: ‘Já vivi tempo demais, meus filhos, para que tenha demasiado apego à existência. Contudo, não temam, porque nada de mal me acontecerá’.

Aceite a proposta do velho, reuniu-se enorme multidão no sítio indicado pelo rei e à hora por ele marcada. No meio do maior silêncio dos circunstantes, o djila disse a Bacar: ‘Para que eu saiba o tamanho da corda que devo fabricar, mostra-me a que o teu pai mandou fazer, porque eu desejo que a tua seja ainda maior’.

O rei ficou surpreendido com o pedido, mas respondeu: ‘O meu pai nunca mandou fazer uma tal corda’. O djila retorquiu: ‘Mostra-me então aquela que foi feita no tempo do teu avô’. Já um pouco irritado, o déspota disse que tampouco o seu avô se lembrara de mandar fazer uma corda de areia. Porém, sereno, mas bem determinado, o velho comerciante pediu que lhe apresentassem qualquer corda de areia que tivesse sido fabricada por ordem do bisavô, do trisavô, etc. de Bacar, até que este, tremendo de raiva, gritou: ‘Para lá com isso. Nenhum dos meus antepassados teve uma corda como aquela que eu desejo possuir’.

Os olhos do djila circunvagaram demoradamente pela multidão, indicando-lhe que chegara o momento supremo de pôr fim a tanta insensatez de um mau rei, e olhando-o bem de frente disse-lhe: ‘Então se nenhum dos teus antepassados mandou fazer uma corda de areia, por que motivo afliges o teu povo com tal disparate?’

Bacar pensou que tinha ouvido mal, recusando acreditar que houvesse alguém disposto a fazer-lhe frente, depois enrubesceu, quis falar, mas a surpresa e a cólera embargaram-lhe a voz e foram sons desconexos, quase urros, que lhe saíram da boca. Ao mesmo tempo ouviu-se um sussurro, leve ao princípio, mas que subiu de tom e de volume até acabar atroador. Era a multidão que gritava: ‘Queremos outro rei, queremos outro rei!’.

E nesse dia Tamba mudou de soberano”.


E a autora comenta:

“Obra de um imaginário coletivo. A experiência assenta no grupo, na sua prática social, no seu vasto conjunto de regras, normas e valores que por sua vez constituem o seu património pelo sentido mais vasto do termo. Conforme os referentes que se considerem prioritariamente, assim se pode dar diferentes leituras aos contos. Pela nossa parte e no âmbito de uma perspetiva didática, os contos deste caráter foram selecionados em função da problemática sociológica e pedagógica. A simplicidade das narrativas revela certas opções que a sociedade Mandinga impõe ou recomenda, para resolver os antagonismos fundamentais que ameacem a coesão comunitária, e apoiam-se sempre no reconhecimento público do lugar reservado a cada elemento no tecido social.”

(continua)

Capa do livro Contos Mandingas, por Manuel Belchior
Mestre Braima Galissá, o Korá e a narrativa mandinga
Imagens de Griots, expoentes da narrativa oral africana
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Nota do editor

Último poste da série de 17 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24856: Notas de leitura (1634): Um dos patrimónios mais valiosos da cultura africana: Como exemplo, um olhar sobre os contos mandingas (1) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24856: Notas de leitura (1634): Um dos patrimónios mais valiosos da cultura africana: Como exemplo, um olhar sobre os contos mandingas (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Maio de 2022:

Queridos amigos,
A tradição oral africana é um dos patrimónios culturais mais valiosos deste Continente, tão escasso de documentos escritos, de património edificado, de registos linguísticos, entre outros. Um pouco por toda a parte há a preocupação de se estudar este tesouro, dos mais diferentes ângulos. Tanto no período colonial como após a Independência esta tradição oral tem vindo a ser analisada, basta folhear o Boletim Cultural da Guiné Portuguesa ou depois da Independência ler os trabalhos de Fernanda Montenegro. Foi uma surpresa encontrar esta dissertação de mestrado na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa, a mestranda teve o cuidado de utilizar uma das mais completas antologias existentes, os "Contos Mandingas", de Manuel Belchior, precedendo os seus comentários de pertinentes considerações sobre o valor da tradição oral e como ela carece de estudos, continuamente.

Um abraço do
Mário



Um dos patrimónios mais valiosos da cultura africana:
Como exemplo, um olhar sobre os contos mandingas (1)


Mário Beja Santos

A matéria de análise da tradição oral africana leva-nos a uma fonte histórica suculenta, uma seiva de autenticidade, ocorre-nos prontamente os Griots, os músicos que exaltam heróis e que elevam a sua narrativa dedilhada pelos corredores obscuros do labirinto do tempo. Há uns anos atrás, adquiri um livro sobre a tradição oral com maior incidência no mundo africano, a UNESCO apoiara a criação de um Centro Regional de Documentação para a Tradição Oral, sediado em Niamey, a capital do Níger, aí se reuniram especialistas que entrevistaram Griots, contadores e cantores, letrados muçulmanos e padres, patriarcas e chefes de família, entre outros. Sinteticamente, e em torno de uma consideração consensual, as tradições orais são uma parte essencial do património cultural africano. E fez-se uma apreciação de respetiva tipologia. Quanto à forma, as tradições apresentam-se sob três formas essenciais: prosa, prosa ritmada, prosa cantada ou não, manifestando-se através de uma forma livre ou estereotipada. Estas tradições orais abarcam todos os géneros de expressão literária: história (genealogia, crónica, narrativa histórica), poemas épicos, líricos, pastorais, contos, fábulas, adivinhas, teatro, não faltando as abordagens religiosas e iniciáticas; para além dos conteúdos históricos, as tradições abarcam temas populares ou eruditos. Outro aspeto que esta obra sobre a tradição oral releva são as relações interdisciplinares: a linguística, a etnologia, a arqueologia, a musicologia. Falamos de uma obra que data de 1972 e que envolveu um conjunto de países, dois deles têm fronteiras com a Guiné-Bissau (Senegal e Guiné-Conacri). A descoberta de um livro sobre análise de contos, forneceu munição para falarmos um pouco das tradições orais de uma das etnias mais populosas da Guiné, os Mandingas.

Trata-se de uma dissertação de Mestrado em Literaturas Brasileira e Africana de Expressão Portuguesa apresentada à Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa, em 1998, por Hannelore Felizitas Nadolnÿ da Silva, exatamente com o título “Um Olhar Sobre os Contos Mandingas”. A Hannelore diz ter vivido na Guiné-Bissau entre 1959 a 1965 e para o escopo do seu trabalho retirou um conjunto de histórias da 1.ª edição de “Contos Mandingas”, de Manuel Belchior. Antes de se debruçar sobre a análise dos contos tece comentários de índole teórica sobre este património. A oratura abarca a literatura oral, a literatura oral tradicional e a literatura folclórica. Observa que a literatura oral é anónima, a obra escapa ao seu criador para se tornar num bem comum, depende sempre da personalidade do contador, cada intérprete imprime a sua marca, tudo vai da vivacidade e imaginação do Griot (contador ou narrador, e muitas vezes com a capacidade de musicar, é o que se passa com os tocadores de korá). Designa por a palabra a memória viva de África. É nas sociedades orais que a função da memória está mais desenvolvida, a palavra testemunha tudo, é um retrato, a coesão da sociedade assenta sob o valor e o respeito da palavra. O universo visível é concebido e sentido como um signo.

Dado que na sociedade tradicional africana as atividades humanas têm frequentemente um caráter sagrado ou oculto, são particularmente estas que se constituem como vetor da transmissão oral de conhecimento e tradições.

Nas sociedades tradicionais crê-se que os atos mais importantes da vida quotidiana já foram realizados num tempo primordial, operados por deuses ou heróis, de modo que os homens nada mais fazem do que repetir esse comportamento enquanto arquétipo e modelo. A literatura oral nasce em sociedades onde o trabalho humano não é fragmentário, ou seja, onde não há uma separação radical entre o trabalho quotidiano e a criação artística. A função do narrador é de procurar transmitir um melhor conhecimento e adaptação aos fenómenos da vida e espaço, unificando-os, relacionando-os, numa linguagem simples com larga margem de variações, obedecendo a uma coesão de fundo.

Feitos estes comentários, a autora refere a problemática do conto africano, apresenta alguns dados históricos sobre os Mandingas e disseca a estrutura do conto. Diz-nos que geralmente os brancos tendem a talhar os africanos à medida do seu logos grego e da ratio romana, ou seja, à sua imagem e semelhança. Os povos africanos elaboram no tempo e no espaço as suas visões do Homem e do mundo; criaram os seus valores, hierarquizaram-nos de acordo com a sua filosofia, tanto no domínio do sagrado como no profano. O conto está sempre integrado nos diferentes aspetos da vida social; assegura as múltiplas funções de memorização, de código ético, de expressão estética. Os contos tecem-se não para convencer estranhos, mas para construírem o depósito de uma crença.

Dá-nos seguidamente um histórico sobre os Mandingas, a partir do Império de Mandé, recorda o que os primeiros autores da literatura de viagens sobre eles escreveram: Valentim Fernandes, Duarte Pacheco Pereira, André Álvares de Almada (século XVI), André Gonelha e Francisco de Lemos Coelho (século XVIII). Iniciando a sua proposta de análise, fala-nos na classificação feita pelos Mandingas sobre esta importante vertente da tradição oral: histórias verdadeiras (mas que incluem mitos, lendas históricas e contos exemplares ou edificantes) e contos mentirosos (os humorísticos e fábulas de animais). Segundo o inventário da autora, os temas dos contos são: religiosos, didáticos, iniciáticos, históricos, humorísticos e fábulas de animais. E insiste que a palabra tem um poder incomensurável, constituem um suporte cultural iniciático, na medida em que exprime o património tradicional e tece uma linha de continuidade entre gerações passadas e presentes. E temos como ponto de partida um conto religioso intitulado “Por que razão Deus não tem filhos?”. Moisés depois de alguns encontros com Alá no Monte Sinai, disse ao Criador: “Senhor, oiço a Tua voz, mas não Te vejo, e arde em mim a curiosidade de conhecer o Teu rosto, a Tua forma, o Teu aspeto, de conhecer, enfim, qualquer coisa de Ti. Deixa que o Teu servo Te veja, Senhor!” Deus respondeu-lhe que aquele pedido era impossível de satisfazer, Moisés insistia, queria saber se Ele era branco ou preto, homem ou mulher, a resposta veio breve, não era homem nem mulher nem branco nem preto e não tinha filhos.

Moisés estava confuso, mesmo dececionado. Então Alá deu ao Moisés três ovos e mandou a Moisés que regressasse para junto do seu povo e que mais tarde lhe daria a explicação daquilo que tanto o surpreendera. Moisés regressou à sua gente, um dos filhos quis brincar com um dos ovos, este partiu-se, tanto chorou que acabou por receber o segundo, e depois o terceiro, ambos se partiram. Quando Moisés voltou ao Monte Sinai e perguntado sobre o destino que dera aos ovos, lamentou-se, todos tinham sido partidos pelo mais novos dos seus filhos. “Ora aí tens, Moisés, admiraste-te por Eu não ter filhos e agora já te posso explicar a razão de não os ter. Se tu consentiste aos teus filhos que partissem os ovos que te dei, bem poderia aconteceu que Eu deixasse aos meus, se os tivesse, que partissem a abóboda do Céu. Não, Moisés, não tenho filhos à maneira dos homens, mas são meus filhos todos os seres que Eu criei”.

(continua)

Capa do livro Contos Mandingas, por Manuel Belchior
Mestre Braima Galissá, o Korá e a narrativa mandinga
Imagens de Griots, expoentes da narrativa oral africana
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Nota do editor

Último poste da série de 13 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24847: Notas de leitura (1633): “A Guerra Que a História Quer Esquecer”, por Elidérico Viegas; Arandis Editora, Outubro de 2023 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 29 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24350: Notas de leitura (1586): Entre o melhor da literatura de viagens do século XV (1): As viagens na África Negra de Luís de Cadamosto (1455-1456) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Outubro de 2020:

Queridos amigos,
São duas belas traduções, acrescendo que a edição francesa, da categorizada Chandeigne, que tanto prestigia a cultura portuguesa vem acompanhada de comentários e notas de grande mérito, tornam ainda mais esclarecedoras as narrativas deste jovem veneziano que foi seduzido pela proposta do infante D. Henrique de ir até ao Senegal e à Gâmbia, acabará por fazer duas expedições, e sendo ainda assunto de grande polémica acabou por descobrir algumas das ilhas de Cabo Verde. Importa insistir que ele não era cronista, daí o colorido do seu estilo e a completa liberdade de expressão, que iremos depois ver nos seus diálogos com o rei Budomel e o seu neto. Poucas obras do século XV podem ombrear com Cadamosto, ele viajará até ao Casamansa e ao Rio Grande, irá mesmo descrever o fenómeno do macaréu. É um autor inesquecível, tenho grande satisfação em trazê-lo aqui numa revisitação.

Um abraço do
Mário



Entre o melhor da literatura de viagens do século XV (1):
As viagens na África Negra de Luís de Cadamosto (1455-1456)


Mário Beja Santos

Não é a primeira vez que o nome de Luís de Cadamosto é aqui referenciado, mas o facto de se ter encontrado uma tradução de 1944, do Instituto para a Alta Cultura e edição francesa de 1994, Edições UNESCO e Edições Chandeigne, obviamente com a riqueza de um tradutor italiano, por um lado e edição francesa cheia de pormenores, por outro, tudo concorre para voltarmos à fala com este jovem patrício veneziano que em 1455, no decurso de uma escala involuntária no Sul de Portugal, se deixou convencer pelo Infante D. Henrique para uma viagem a África. O que mais nos toca nestas narrativas é que o olhar de Cadamosto não é de um cronista oficial, ele era um mercador sem preconceitos, um jovem homem cheio de curiosidades a quem repugnava a efabulação, revela-se dotado de uma surpreendente abertura de espírito. A prova disso são os seus testemunhos: a descrição de paisagens e peripécias da navegação alterna com as da vida quotidiana dos berberes azenegues e os negros da Guiné, o que vai conferir à narrativa um grande interesse etnológico. Os seus diálogos com o rei Budomel e o seu neto Bisboror ficaram célebres do seu bom humor e da sua vivacidade. E importa não esquecer que as viagens de Cadamosto estão na primeira linha dos testemunhos ocidentais da África Negra.

Abre a descrição da primeira viagem com uma certa eloquência: “Fui eu, Luís de Cadamosto, o primeiro que saí da mui nobre cidade de Veneza para navegar o mar Oceano, fora do estreito de Gibraltar para as partes do meio-dia, nas terras dos negros da baixa da Etiópia”. Assume que vai falar de um outro mundo. Apresenta-nos o Infante D. Henrique e as explorações náuticas a que se dedicava, elogia as caravelas, não esconde que queria trabalhar para adquirir meios e situa o encontro com o Infante: “Embarquei nas nossas galés de Flandres, saímos de Veneza em 1454, navegámos por nossas jornadas até que nos encontrámos na Península Hispânica. E encontrando-me, pelo tempo contrário, no Cabo de S. Vicente, deu-se o caso de não muito longe dele estar o referido senhor Infante D. Henrique numa povoação vizinha chamada Raposeira”.

O Infante convoca-o, quem o procura leva amostras de açúcares da ilha da Madeira e de sangue de drago. Ocorre o encontro, o infante faz-lhe a proposta de partir à procura de novos mundos, apraza-se um contrato, arma-se uma caravela nova, era patrão um Vicente Dias, natural de Lagos, em 22 de março de 1455 rumam para a Madeira, passam por Porto Santo pois a ilha da Madeira onde ele descreve as coisas que aqui se produzem. Partem da Madeira para as ilhas Canárias, outra descrição preciosa e depois navegam para o Sul, como ele escreve na direção da Etiópia, chegam a Arguim, fala no deserto do Sara e diz: “É muito grande, a travessia demora 50 a 60 dias a cavalo. Este deserto vem beber no mar Oceano, na costa, que é toda arenosa, branca e seca; é terra baixa, toda igual e não mostra ser mais alta num lugar que no outro, até ao Cabo Branco”. Aproveita para falar dos peixes e de povoações por onde passam as caravanas que vêm de Tombuctu, quanto a quem ali vive eram maometanos que vagueiam pelos desertos e são homens que vão às terras dos negros. “São em grande número e têm grande abundância de camelos, nos quais levam o cobre e a prata da Berberia e outras coisas para Tombuctu e para as terras dos negros, e daí trazem oiro e malagueta que trazem para cá. São homens pardos, e vestem umas túnicas brancas sobre o corpo. Os homens trazem um lenço à mourisca na cabeça e andam sempre descalços”.

Cadamosto refere as operações da feitoria de Arguim, fala nos Azenegues que trata como homens mulatos e que habitam em alguns lugares da costa que fica para além do Cabo Branco. Ele refere o império Melli, seguramente o império Mali, dizendo que há muito calor, que não há no dito país animais quadrúpedes e que os Árabes e Azenegues adoecem e morrem devido ao grande calor. O sal era a mercadoria mais apreciada e descreve com enorme vivacidade os termos de um comércio mudo, os mercadores não se viam uns aos outros. “Visto o sal, põem uma quantidade de oiro na frente de cada monte e voltam para trás, deixando o oiro e o sal, e retiram-se. Voltam os negros do sal, e se a quantidade de oiro lhes não agrada, deixam o dito oiro com o sal, e voltam para trás, após o que vêm os outros negros do oiro, e levam o monte que encontram sem oiro; e aos outros montes de sal tornam a pôr mais oiro, se lhes parece, ou deixam o sal. E deste modo fazem o seu comércio sem se verem uns aos outros, nem falar-se, por um longo e antigo costume”.

Cadamosto quer saber mais sobre as gentes do império do Mali, outra descrição curiosa. Voltando aos Azenegues (pardos ou mauritanos), dá pormenores: “Nesta terra dos pardos não se bate moeda alguma, todo o comércio deles é trocar coisa por coisa, e duas por uma, e desta maneira vivem”. E assim chegamos à descrição do rio de Senegal, pensa-se que era o Níger, já tinham passado o Cabo Branco e assim chegaram à terra dos negros: “Cinco anos antes que eu fizesse esta viagem, este rio foi descoberto por três caravelas do dito Infante que entraram dentro dele, e fizeram paz com estes negros, de maneira que começaram a fazer comércio”. E prova da muita ignorância que ainda havia quanto à cartografia, veja-se o que ele escreve sobre o rio de Senegal: “Este rio, segundo dizem os sábios, é um ramo do rio Gion que vem do Paraíso Terreal, ramo que foi pelos antigos chamado Níger, e vai banhando toda a Etiópia e a aproximando-se ao mar Oceano, onde desagua e faz muitos outros braços e rios, além deste de Senegal. Outro ramo do dito Gion é o Nilo, que passa pelo Egito e desemboca no nosso mar Mediterrâneo. Esta é a opinião daqueles que têm dado a volta ao mundo”.

Chegou à terra dos Jalofos, conta como se elegem os reis do Senegal e como se vive:
“Este rei é semelhante ao dos Cristãos, porque o seu reino é de gente selvagem e pobríssima, e não há cidade alguma murada, senão aldeias com casas de palha, pois não as sabem fazer de paredes, por não terem cal nem pedras para as construir. O rei não tem rendimento certo de tributos, mas todos os anos os senhores da terra, para que se dê bem com eles, lhe fazem presentes de alguns cavalos, que são muito apreciados por haver falta deles, e fornecimentos de cavalos, e outros animais, como vacas e cabras, legumes, milho e coisas semelhantes. Mantém-se este rei também de roubos, que manda fazer a muitos escravos, quer no país, quer no dos vizinhos. Desses escravos se vale por muitos modos, sobretudo em cultivar certas possessões que lhe são reservadas e também vende muitos deles aos azenegues e mercadores árabes que aí chegam com cavalos e mais coisas; e vende outros também aos cristãos, depois que eles começaram a negociar mercadorias naqueles países”.

Diz que a religião destes negros é a maumetana, mas não estão muito firmes na fé. E dá-nos um texto vivacíssimo quanto a trajes e costumes dos negros: “Esta gente quase toda anda sempre nua, exceto um coiro de cabra posto em forma de braga, com que cobrem as suas vergonhas. Mas os senhores e os que podem um pouco vestem camisas de algodão, porque naqueles países nascem algodoeiros. As mulheres fiam e fazem panos de um palmo de largura, e não sabem fazê-los mais largos porque não sabem fazer os pentes para os tecer, de forma que cozem juntos quatro ou cinco daqueles panos de algodão, quando querem fazer algum trabalho largo”. Observa a natureza das guerras e do armamento usado, guerra entre vizinhos, não trazem couraças, só têm escudos redondos e largos, usam azagaias que são dardos ligeiros, dardos que têm um palmo de ferro lavrado com barbas miúdas e usam também alfanges mouriscos que fazem com o ferro da Gâmbia. “As guerras deles são muitíssimo mortíferas, por estarem desarmados; os seus golpes não falham, e matam-se tanto como feras, e são muito atrevidos e bestiais, pois que em qualquer perigo antes se deixam matar do que fugir, ainda que possam fazê-lo”.

E passa o rio Senegal e chega ao país do Budomel.

(continua)
Guerreiro guineense, gravura de Balthazar Springer, 1509
Mulher guineense e filhos, também gravura de Balthazar Springer, 1509
Guinéus, também gravura de Balthazar Springer, 1509
Carta da África Ocidental (pormenor), Paris, 1667
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Nota do editor

Último poste da série de 26 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24343: Notas de leitura (1585): "Os Manuscritos de R.", por Jaime Froufe Andrade, segunda edição de Novembro de 2019, um monumento literário aos antigos combatentes que Portugal esqueceu (Mário Beja Santos)

sábado, 6 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24290: Efemérides (393): 5 de Maio, Dia Mundial da Língua Portuguesa, a sexta mais falada do mundo, depois do mandarim, espanhol, inglês, árabe, hindi e bengalês, à frente do russo, japonês e punjábi... É a língua mais falada no hemisfério sul...


Infografia: UNESCO (2023), com devida vénia

1. Comemorou-se ontem o Dia Mundial da Língua Portugesa, língua oficial de 9 países que formam a CPLP.

"A data de 5 de Maio foi oficialmente estabelecida em 2009 pela Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) - uma organização intergovernamental, parceira oficial da UNESCO desde 2000, que reúne os povos que têm a língua portuguesa como um dos fundamentos da sua identidade específica - para celebrar a língua portuguesa e as culturas lusófonas. Em 2019, a 40ª sessão da Conferência Geral da UNESCO decidiu proclamar o dia 5 de Maio de cada ano como "Dia Mundial da Língua Portuguesa".

A língua portuguesa é não só uma das línguas mais difundidas no mundo, com mais de 265 milhões de falantes espalhados por todos os continentes, como é também a língua mais falada no hemisfério sul.

O português continua a ser, hoje, uma das principais línguas de comunicação internacional, e uma língua com uma forte extensão geográfica, destinada a aumentar.

Os Dias consagrados às línguas faladas em todo o mundo celebram anualmente o multilinguismo e a diversidade cultural, e constituem uma oportunidade para sensibilizar a comunidade internacional para a história, a cultura e a utilização de cada uma destas línguas. O multilinguismo, um valor central das Nações Unidas e uma área de importância estratégica para a UNESCO, é um fator essencial para uma comunicação harmoniosa entre os povos, promovendo a unidade na diversidade, a compreensão internacional, a tolerância e o diálogo."


Fonte: UNESCO (2023)

2. Vd. aqui a mensagem do secretário-geral das Nacóes Unidas, António Guterres, em que assinala o Dia Mundial da Língua Portuguesa:

Para o primeiro secretário-geral de língua portuguesa na ONU, "a língua é, muitas vezes, o refúgio e a esperança dos mais vulneráveis - a esperança de serem ouvidos, de que as suas vozes contem, de não serem `deixados para trás`. A língua portuguesa é, também nisso, um bom exemplo, sendo partilhada e construída por populações em todos os continentes" (...)

(...) "Para os mais de 260 milhões de falantes nos países da CPLP e nas suas diásporas, a língua portuguesa continua a ser uma língua de mobilização em favor de uma renovada urgência na implementação dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. Precisamos de reafirmar esse empenho e essa esperança, em todas as línguas - e precisamos de passar das palavras aos atos".

Cerca de 260 milhões de pessoas falam hoje português nos cinco continentes e em 2100, esta língua vai unir mais de 500 milhões, segundo uma estimativa das Nações Unidas.

sexta-feira, 26 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23558: Agenda cultural (821): Filme a não perder: "Montado, o Bosque do Lince Ibérico", realizado pelo naturalista Joaquín Gutiérrez Acha, uma produção luso-espanhola (2020, 94 minutos). Em exibição nos cinemas.


M
ontado, o Bosque do Lince Ibérico: Um filme a não perder. Um coprodução luso-espanhola (2020, 94 minutos). Um orçamento de 4 milhões de euros.  Surge na sequência da candidatura do montado a património da humanidade da UNESCO  Estreia em Portugal no dia 11/8/2022.

Rodagem: período de 18-20 meses: locais: Alentejo (Pt), Andaluzía (Es), Estremadura (Es), Castilla-León (Es). Conclusão do filme 2020.

Ver aqui o trailer oficial:


Segundo informação da distribuidora, a Zero em Comportmento, "este filme, surge na sequência da candidatura do montado a património da humanidade da UNESCO e leva-nos, através do olhar particular de Joaquín Gutíerrez Acha, numa viagem imersiva.

" Com a narração da atriz Joana Seixas, o realizador mostra-nos um raro exemplo de boas práticas da interferência do homem no curso da natureza em voos contemplativos sobre este bosque ancestral na Peninsula Ibérica."

Em exibição em Lisboa, com sessões programadas (em setembro e outubro) também para Seia, Castelo Branco e Coimbra. Sessões do filme podem ser feitas a pedido (nomeadamente municípios), para a distribuidora, através de formulário disponível aqui.

Sobre o realizador e a ficha técnica. ver aqui.

1. Montado, o Bosque do Lince Ibérico

Documentário 94 min | 2020 | M/6 

Realizado por Joaquín Gutiérrez Acha

Elenco:  Joana Seixas


Sinopse

O montado é um ecossistema peculiar que contém em si uma enorme biodiversidade e riqueza natural, desempenha funções importantes na conservação do solo, na qualidade da água e na produção de oxigénio, é um pilar importante da economia local e dá origem a uma paisagem particularmente bela. 

Feita de bosques abertos, de azinheiras e sobreiros que só se encontram na Península Ibérica, lembra-nos a Savana africana. 

Um lugar onde a Natureza se cruza com a actividade humana, em que nem a floresta sai prejudicada, nem a larga comunidade de predadores que nele luta pela sobrevivência.” é deste modo que a actriz Joana Seixas, a narradora, vai descrevendo as imagens captadas pelo documentarista e naturalista espanhol Joaquín Gutíerrez Acha que, para este filme, contou com um orçamento de quatro milhões de euros. 

O filme estreou em 11/8/2022, está em exibição em Lisboa, no Cinema City Alvalade, todos os dias, às 13h25, 15h25, 19h50.

Fonte: Público > CineCartaz (com a devida vémia...)

Informação mais detalhada sobre o filme: 

Wilder >  “Montado, o bosque do lince-ibérico” vai ter novas sessões, 
por  Helena Geraldes | 18.08.2022 


2. A versão original,  em castelhano, está disponível (incluindo legendas em castelhano) na rtve play (desde 11/6/2022 até 8/5/2032)

Dehesa, el bosque del lince ibérico


Duração: 01:33:25 

Sinopsis

En la Península Ibérica existe un bosque muy particular, la Dehesa; un bosque único en el mundo donde descubrimos sensaciones muy diversas. Aquí, las selvas espesas del pasado se adaptaron a la actividad del hombre creando un ecosistema de especies autóctonas en perfecto equilibrio, hasta ahora.
 
Fonte: rtve play (com a devida vénia...)

quarta-feira, 5 de maio de 2021

Guiné 61/74 - P22174: Efemérides (347): Dia Mundial da Língua Portuguesa 2021: celebrou-se hoje, em 44 países, em centenas de comunidades... Língua oficial de 9 países, com 260 milhões de falantes, (que serão o dobro no final do século), é a quarta língua materna mais falada do mundo (depois do mandarin, do inglês e do espanhol)... A nossa Tabanca Grande regojiza-se com a celebração deste dia.



Cartaz do Instituto Camões, alusivo ao Dia Mundial da Língua Portuguesa



Vídeo 1' 26'', disponível no You Tube  / Delegação Permanente de Portugal junto da UNESCO


"Sem encontros, o que aproxima tantos povos? Sem proximidade, o que partilham 9 países e centenas de comunidades pelo mundo?"



1. Proclamado em 2019 pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), este é o segundo ano em que se celebra o Dia Mundial da Língua Portuguesa. 

A Tabanca Grande também se quer associar à celebração deste dia, desejando a todos os falantes da língua portuguesa que editam, escrevem, comentam e leem o nosso blogue o reforço dos nossos laços linguísticos e afetivos nos cinco continentes.

Apesar das restrições impostas pela pandemia de Covid-19, um vasto conjunto de atividades foi programado e coordenado pelo Instituto Camões para celebrar a efeméride.

(...) "No presente ano, a comemoração do Dia Mundial da Língua Portuguesa procura constituir um meio de celebração da Língua e da sua dimensão crescentemente global, refletindo e dando voz à multiplicidade de vozes que a compõe e que constitui um dos seus traços fundamentais.

Afirmar a Língua Portuguesa enquanto língua global de ciência, cultura, economia, diplomacia e paz é também objetivo da comemoração deste Dia que, como tal, procura envolver diferentes intervenientes e protagonistas destas múltiplas dimensões da Língua Portuguesa."(...)


2. Dados sobre a Língua Portuguesa, divulhados neste dia pelo Instituto Camões:

(i) é uma língua falada por mais de 260 milhões de pessoas nos cinco continentes;

(ii) em 2050 serão quase 400 milhões e em 2100 serão mais de 500 milhões, segundo estimativas das Nações Unidas;

(iii) as projeções para o final do século apontam que será no continente africano que se registará o maior aumento do número de falantes; estima-se que Angola tenha uma população superior a 170 milhões de pessoas e Moçambique uma população superior a 130 milhões de pessoas;

(iv) é a língua mais falada no hemisfério sul;

(v) 3,7% da população mundial fala português;

(vi) . é a quarta língua mais falada no mundo como língua materna, a seguir ao mandarim, inglês e espanhol;

(vii) é a língua oficial dos 9 países membros da CPLP – Comunidade dos Países de Língua Portuguesa - e em Macau; as 9 economias da CPLP, em conjunto, valem cerca de 2,7 biliões de euros, o que faria deste grupo a sexta maior economia do mundo, se se tratasse de um país;

(viii) os países de língua portuguesa representam 3,6% da riqueza total do mundo, 5,48% do global das plataformas marítimas, 16,3% de disponibilidade global de reservas de água doce, 10,8 milhões de km2.

(ix) são já cerca de duas dezenas as organizações internacionais em que a Língua Portuguesa é língua oficial e/ou de trabalho, a começar pela União Europeia;

(x) há 47 universidades na República Popular da China que ensinam o português como língua estrangeira e cerca de 5.000 alunos que frequentam esses cursos;

(xi) o português é a quinta língua mais utilizada na internet, teve uma taxa de crescimento de quase 2000 %  entre 2000 e 2017, é a terceira ou a quarta mais utilizada no Facebook;

(xii) na área da ciência, embora o inglês seja a língua dominante, a língua portuguesa tem conseguido criar os seus espaços próprios de comunicação e publicação científica: o Brasil criou a Scientific Eletronic Library Online, amplamente participada por países de língua portuguesa e espanhola; as revistas e cientistas de língua portuguesa também vão tendo presença crescente em outras bases de revistas científicas de alcance global, como a SCOPUS e a Web of Science: há também vários repositórios académicos e portais de conhecimento de acesso aberto online, designadamente no Brasil, Cabo Verde e Portugal.

Fonet: Adapt de Instituto Camões (2021)

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Nota do editor:

Último poste da série > 25 de março de 2021 > Guiné 61/74 - P22035: Efemérides (346): No Dia Mundial da Árvore, lembrando o castanheiro do Barriguinho a que cheguei fogo involuntariamente (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)

segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Guiné 61/74 - P21307: Notas de leitura (1301): “Castelos a Bombordo, Etnografias de Patrimónios Africanos e Memórias Portuguesas”, coordenação de Maria Cardeira da Silva; edição do Centro em Rede de Investigação em Antropologia, 2013 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Junho de 2017:

Queridos amigos,
Só vejo utilidade em apreciar os eventos e propostas do quadro ideológico da mística imperial colonial que se começou a urdir desde as primícias da organização do Estado Novo: a legislação, a divulgação pela Agência Geral das Colónias, a restruturação da Escola Superior Colonial, as exposições que atraíam grande público, em Lisboa e no Porto, a adesão formal às teses do luso-tropicalismo enquanto seguia o seu rumo imparável o Estatuto do Indigenato. Década de propaganda e de ofensiva diplomática, os regimes totalitários da Alemanha e de Itália reivindicam colónias, os governantes não tinham esquecido que britânicos e alemães, antes da I Guerra Mundial, tinham acordado em retalhar o império português, para seu proveito.
É nesta atmosfera que se deve estudar o primeiro cruzeiro de férias às colónias.

Um abraço do
Mário


Aquele cruzeiro de férias sob o signo da mística imperial colonial

Beja Santos

Dentre os estudos publicados em “Castelos a Bombordo, Etnografias de Patrimónios Africanos e Memórias Portuguesas”, com coordenação de Maria Cardeira da Silva, Centro em Rede de Investigação em Antropologia, 2013 ressalta uma leitura sobre o “Primeiro Cruzeiro de Férias às Colónias”. De que se trata, que importância se pode atribuir à iniciativa, nessa alvorada da mística imperial colonial? A 10 de Agosto de 1935 saiu do Cais da Fundição o paquete "Moçambique" com destino às colónias ocidentais. Levava no seu bojo 250 excursionistas, entre eles professores, estudantes, aristocratas e comerciantes, e como escreveu o então Ministro das Colónias, José Silvestre Ferreira Bossa “cheios de fé patriótica, vão por seus olhos conhecer a grandeza do nosso Ultramar”. Dois anos mais tarde, realizar-se-á o Primeiro Cruzeiro de Férias dos Estudantes da Colónias à Metrópole, transportando estudantes dos liceus de Angola e Moçambique ao Portugal Europeu, seguido de outro, que levou estudantes de Moçambique a Angola, e mais tarde chegariam ao cais da Nação os cruzeiros dos velhos colonos.


Pondere-se a contextualização ideológica, nacional e internacional. Erguiam-se vozes, mormente na Escola Superior Colonial para a promoção de viagens às colónias nacionais e estrangeiras, pedia-se sem tibieza que se fizessem essas viagens envolvendo professores e alunos, realizando-se conferências, elaborando-se relatórios. Augusto Cunha, escritor e humorista, diretor da revista "O Mundo Português", preparou cuidadosamente esta viagem de barco. Como observam as autoras do artigo, o tempo é de crise económica mundial, particularmente sentida nos territórios coloniais portugueses, produtores de matérias-primas. A Alemanha e a Itália mostram o seu apetite por mais territórios. Os ideólogos do Estado Novo apostam na preparação de gerações mais novas para a consolidação do ideal imperial. No campo ideológico do Estado Novo, com o "Acto Colonial" de 1930 e a "Carta Orgânica do Império Colonial Português" definira-se a missão civilizadora, e reconhecia-se a urgência de ultrapassar o “défice de colonização”, a metrópole e as colónias deviam formar uma “comunidade e solidariedade natural”. Salazar tinha um paladino na mística imperial, Armindo Monteiro, que sobraçara a pasta das Colónias entre 1931 e 1935. Concretizaram-se iniciativas já na perspetiva de dar ressonância a essa mística: em 1933, realizou-se a Conferência Imperial Colonial; em 1934, a I Exposição Colonial Portuguesa no Porto e o I Congresso de Intercâmbio Comercial com as Colónias. A Sociedade de Geografia de Lisboa passou a comemorar a semana das Colónias. O clímax da mística imperial será em 1940 a Exposição Mundial do Mundo Português. Escreve-se no Diário de Notícias de 1 de Agosto de 1935, a propósito do cruzeiro de férias: “É preciso, se queremos voltar a ser um grande povo, que cada português tenha dentro de si o panorama exato das suas possessões”. Marcello Caetano, o mestre orientador do cruzeiro referiu-se à campanha contra o Quinzinho, este era a imagem de um jovem sem caráter, o exatamente oposto ao que o Estado Novo pretendia ser como povo imperial: “As colónias, procuradas pelos melhores de cada geração no ânimo do trabalho, na esperança de construir um Novo Mundo, serão, como já começaram a ser nas campanhas da ocupação a escola na iniciativa, da energia e do carácter. O cruzeiro de férias também é uma campanha: a campanha contra o Quinzinho, a campanha pelo melhoramento moral e intelectual da mocidade portuguesa".

Marcello Caetano aparece assessorado pelos doutores Cardigos dos Reis e Orlando Ribeiro, que se encarregaram de um calendário apertado de cursos para os estudantes e conferências para os seus acompanhantes. Os cursos eram acompanhados de notas e pequenas publicações de apoio preparadas para o efeito. Os estudantes foram estimulados a participar num concurso literário e noutro fotográfico, sujeitos ao tema “O que ouviu em África”. Recordo que já aqui se fez referência ao que Ruy Cinatti escreveu sobre a passagem do cruzeiro na Guiné, exatamente em O Mundo Português.

Marcello Caetano comentará na época numa entrevista ao Diário da Manhã: “Em primeiro lugar vejamos o que o cruzeiro de férias significa nesta nova fase da política colonial. Não há ainda 50 anos a costa de África era o lugar negregado da expiação dos grandes crimes, um motivo dolente de fados da Mouraria: e eis que hoje parte um navio com ar festivo, uma boa parte do escol da mocidade portuguesa e até das camadas dirigentes do país. Os viajantes do cruzeiro são guiados por puro amor de Portugal de além-mar”. Anos depois, em 1958, Marcello Caetano escreverá: “ (…) seria curioso inventariar os estudantes que viajaram no cruzeiro, e ver o que deram na vida. Muitos, muitíssimos mesmo, voltaram ao Ultramar para aí fazerem a sua carreira. Perderam o medo a África ou deixaram-se seduzir por ela".

Há um outro dado do ambiente ideológico que não pode ser escamoteado: a atração sentida pelas teses do luso-tropicalismo de Gilberto Freyre, nomeado em 1938 como membro da Academia Portuguesa de História pelo próprio Salazar. Estas teses do luso-tropicalismo celebravam a miscigenação criada pelos portugueses, era uma fórmula do politicamente correto enquanto na prática vigorava o vigoroso regime do “indigenato”, ainda herdeiro do darwinismo social. Recorde-se ainda que este luso-tropicalismo era aclamado pela UNESCO como bom modelo das relações raciais. Entretanto, o movimento da descolonização começa a descolar e por toda a década de 1950 o quadro ideológico da mística imperial colonial vai-se desagregando, começara com a independência da Índia e da Indonésia, estendia-se agora a África, a um ritmo vertiginoso. E os jovens do cruzeiro de férias deram outros rumos às suas vidas.
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Nota do editor

Último poste da série de 28 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21302: Notas de leitura (1300): “Castelos a Bombordo, Etnografias de Patrimónios Africanos e Memórias Portuguesas”, coordenação de Maria Cardeira da Silva; edição do Centro em Rede de Investigação em Antropologia, 2013 (1) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

Guiné 61/74 - P20445: E as nossas palmas vão para... (21): Caretos de Podence, classificados pela UNESCO como "património imaterial da humanidade"


 Macedo de Cavaleiros > Podence > 3 de março de 2019 > Entrudo Chocalheiro > Pintura mural:  os caretos chocalando as "novas"...


Macedo de Cavaleiros > Podence > 3 de março de 2019 > Entrudo Chocalheiro >  Pintura mural


Macedo de Cavaleiros > Podence > 3 de março de 2019 > Entrudo Chocalheiro > O careto e as "velhas"...


Macedo de Cavaleiros > Podence > 3 de março de 2019 > Entrudo Chocalheiro > A Alice Carneiro, posando com um careto que enverga uma típica máscara de latão.



Macedo de Cavaleiros > Podence > 3 de março de 2019 > Entrudo Chocalheiro > Os famosos chocalhos com que os caretos chocalham as mulheres, novas e velhas.


Macedo de Cavaleiros > Podence > 3 de março de 2019 > Entrudo Chocalheiro > O Francisco Baptista e a espoa. Também lá apareceram, atraídos pela notícia do blogue. Apresentei-o ao João Rebelo e ao Joaquim Pinto de Carvalho, também, camaradas da Guiné, que me acompanhavam nesta visita  (*)

Fotos (e legendas): © João Sacôto (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. A notícia é do DN - Diário de Notícias / Agência Lusa, edição "on line", de ontem, às 16h51:

(...) "os Caretos de Podence foram, esta quinta-feira, declarados Património Cultural Imaterial da Humanidade pela UNESCO.

A decisão foi anunciada na Assembleia Geral da Convenção para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial, que decorre até sábado, em Bogotá, na Colômbia.

Os tradicionais mascarados do Entrudo Chocalheiro da aldeia do concelho transmontano de Macedo de Cavaleiros passam a estar integrados numa lista mundial onde Portugal já tem o Fado, o Cante Alentejano, a Dieta Mediterrânica, a Falcoaria e os chamados "Bonecos de Estremoz".

As "Festas de Inverno Carnaval de Podence" foram a única candidatura selecionada pelo Governo português para representar Portugal nesta que é a XIV reunião do Comité Internacional da UNESCO, o organismo das Nações Unidas para a Ciência, Cultura e Educação.

Os Caretos de Podence marcam a folia de Carnaval no Nordeste Transmontano com coloridos e farfalhudos fatos, máscaras de ferro ou lata, chocalhos à cintura e um pau para amparar as tropelias.

Em toda a região de Trás-os-Montes há Caretos, protagonistas das chamadas Festas de Inverno, que acontecem entre o Natal e o Carnaval. Os de Podence distinguem-se dos restantes pelo chocalho, daí o nome da festa ser "Entrudo Chocalheiro". É apontado como "o mais genuíno carnaval português", sem samba, ao ritmo da tradição.

As ruidosas manifestações dos Caretos atraem, durante quatro dias, à aldeia de Podence com cerca de 180 habitantes, milhares de curiosos portugueses e estrangeiros." (...)


2. Este ano fui conhecer Podence, no concelho de Macedo de Cavaleiros. E lá estavam, para animar  o "entrudo chocalheiro" (*), os famosos caretos que já conhecia de Lisboa, do Festival Internacional da Máscara Ibérica (**).

E até lá fui encontrar o meu amigo e camarada Francisco Baptista, mais a esposa, que é vizinho, natural de Brunhoso, Mogadouro, autor do livro "Brunhoso, era o tempo das segadas; na Guiné, o capim, ardia" (2019).

Ele, por certo, e eu, e tantos transmontanos e amigos de Trás-Os-Montes, juntamo-nos aqui, no blogue, para bater palmas ao sucesso desta candidatura portuguesa.  Os  Caretos de Podence vêm enriquecer a lista do nosso Património Imaterial da Humanidade onde já estão, entre  outras manifestações culturais como  o Fado, a Dieta Mediterrânica,  o Cante, a Falcoaria, os Bonecos de Estremoz, a Manufatura de Chocalhos,  a Olaria Negra de Bisalhães.

E associo-me à alegria das  gentes de Podence / Macedo de Cavaleiros (***), com este excerto de um poema meu, "A Vida é Um Entrudo Chocalheiro" (*).

(...) A máscara também está associada
à festa,  à terra, aos tambores,
à gaita de foles,  aos chocalhos,
ao pão, ao queijo de ovelha e de cabra,
aos enchidos, ao vinho...
Porque não há festa sem o pão
e o vinho, a música, a folia,
a transgressão,  a subversão dos papéis,
o entrudo, o carnaval,
o terreiro,
esse fantástico chão português
que foi e ainda é o teu chão,
de Trás-os-Montes ao Algarve,
e os caretos de Podence,  Grijó e Lazarim...
Sim, a vida é um entrudo chocalheiro,
a vida são dois dias,
e o carnaval são três.
... E eu quero lá estar!

Para saber mais sobre os Caretos de Podence, vd. aqui:



PS - Os filhos de Macedo de Cavaleiros  que morreram na guerra do ultramar / guerra colonial, foram 37, incluindo o José Luís Alves Rancão (1947-1970), natural de Podence: furriel mil paraquedista, CCP 122 / BCP 12, morreu  em combate, na Guiné, em 26/6/1970. Seguramente que também terá participado, no seu tempo, na "festa dos rapazes", e vestido o traje de "careto".
_____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de1 de março de  2019 > Guiné 61/74 - P19541: Agenda cultural (673): Entrudo Chocalheiro, Podence, Macedo de Cavaleiros, 2-5 de março de 2019... Porque A Vida São Dois Dias, e o Carnaval São Três... E Portugal Não é Só Lisboa ... E Eu Vou Lá Estar!... (Luís Graça)

(**) Vd. postes de:

quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

Guiné 61/74 - P20443: E as nossas palmas vão para... (20): A morna, património imaterial da humanidade



1. Foi assim que o "Expresso das Ilhas", na sua edição digiiaol, deu a notícia, ontem, às 16h21




"O meu país celebra a inscrição da sua alma na alma da Humanidade"."




(...) Agora é que é mesmo. A Morna foi hoje proclamada Património Imaterial da Humanidade. “Para todo o Cabo Verde, hoje é um dia feliz, em que nos sentimos felizes de ser cabo-verdianos”, destacou o Ministro da Cultura e Indústrias Criativas, Abraão Vicente, em língua cabo-verdiana, no discurso de celebração, perante o Comité do Património Cultural Imaterial da UNESCO.

No seu discurso, que prosseguiu em castelhano, Abraão Vicente congratulou a consagração desta prática musical que é a alma de Cabo Verde, agradecendo à UNESCO, aos peritos e a toda a comunidade.

“Hoje o meu país celebra! O meu pequeno país, formado por 10 ilhas no meio do Atlântico, meio milhão de habitantes residentes e um milhão em todo o mundo, o meu país celebra a inscrição da sua alma na alma da Humanidade”, disse.

O Ministro assumiu ainda que será cumprido “com honra o privilégio de ver reconhecido como património da Humanidade, o vínculo emocional mais importante do povo e nação de Cabo Verde: a Morna”.

E, em jeito de presente do povo de Cabo Verde, apresentou “dois músicos de referência que irão representar não somente os artistas e os compositores, mas a gente simples de Cabo Verde”.

“Porque a morna é a alma do nosso povo”.

E a morna fez então ouvir, pela voz de Nancy Vieira e a viola de Manuel di Candinho, na reunião do Comité Intergovernamental para a Salvaguarda do Património Imaterial da Humanidade.


Caminho longe

A candidatura da Morna foi oficialmente apresentada no passado mês de Março e hoje, na cidade colombiana de Bogotá, foi confirmada como Património Imaterial da Humanidade.

Neste processo de candidatura, Cabo Verde contou com o apoio de Portugal tendo Paulo Lima, especialista na elaboração de processos de candidatura a Património Imaterial da Humanidade da UNESCO, estado no país para uma missão de assessoria técnica de apoio à instrução da candidatura.

A 27 de Fevereiro, o parlamento aprovou, por unanimidade, a data de 03 de Dezembro como Dia Nacional da Morna, dia em que nasceu Francisco Xavier da Cruz, mais conhecido por B. Léza (1905 - 1958), um dos maiores compositores do género musical.

A 7 de Novembro, Abraão Vicente já tinha dito que a nomeação era certa, no que foi, por muitos, considerado como uma "partida em falso" uma vez que ainda faltava a confirmação oficial do Comité Intergovernamental para a Salvaguarda do Património Imaterial da Humanidade. Esta acabou por surgir hoje durante a reunião que, se iniciou no dia 8 e termina dia 14." (...)



2. Neste dia de alegria e felicidade para os cabo-verdianos (*), a que se associam, seguramente, os demais povos lusófonos, e os amantes da morna, como eu (**), deixem-me aqui lembrar a letra (e a música) da morna talvez mais conhecida em todo o mundo, a mais emblemática, numa interpretação (imortal) da Cesária Évora, a "Sodade":


Quem mostra bo es caminho longe? [Quem te mostra esse caminho longo ?]
Quem mostra bo es caminho longe? [Quem te mostra esse caminho longo ?]
Es caminho pa São Tomé [Esse caminho para São Tomé ?]
Sodade, Sodade, Sodade [Saudade, saudade, saudade]
Des nha terra, São Nicolau [Da minha terra natal São Nicolau]

Si bo screve m', [ Se me escreveres, ]
M' ta screve bo [ Eu escrever-te-ei,]
Si bo squece m' [Se me esqueceres,
M' ta squece bo [Eu te esquecerei,]
Até dia qui bo volta [, Até ao dia em que voltares]
Sodade, Sodade, Sodade [Saudade, saudade, saudade]
Des nha terra, São Nicolau [Da minha terra natal São Nicolau]


A interpretação, na voz luminosa de Cesária Évora, pode ser ouvida aqui no aqui no You Tube, numa ficheiro áudio que tem de 18 milhões de visualizações. Este foi um (ou talvez o maior) dos  sucessos da carreira da cantora mindelense Cesária Èvora (1941-2011), mais conhecida por Cize, entre os amigos e fãs locais. Claro  que há outras mornas, que ficam para a eternidade, como o "Mar Azul" ou a "Miss Perfumado", interpretadas pela "diva de pés descalços"... Mas a morna não é só figura, uma artista, é uma criação coletiva de uma comunidade, de ula cultura,  tal como o fado, e é isso que a torna "património imaterial da humanidade"... E tal como o fado a morna canta a vida e a morte, o amor, o desejo e o ciúme, a alegria e a tristeza, a saudade da partida, a morabeza, a hospitalidade, a amizade, o quotidiano, enfim, a "petite histoire" das gentes das ilhas e da diáspora... E tudo começou na Boavista... onde as primeiras mulheres começaram a cantar a morna. E "os nossos, nossos velhos e nossos camaradas" trouxeram-nos, no sabor de regresso a casa, esse som incomfundível da morna...

Curiosamente a autoria desta morna, a "Sôdade",  ainda hoje é atribuída, indevidamente, nalguns sítios,  à dupla de Amândio Cabral / Luis Morais.

Na realidade, o autor da "Sôdade" foi Armando Zeferino Soares (1920-2007), compositor e comerciante na sua ilha natal, São Nicolau. Segundo declarações à Agência Lusa, sete anos antes de morrer,  ele explicou como esta morna nasceu quando, por volta de 1954,  foi  despedir-se de um grupo de conterrâneos, na situação infamante de "contratados" para trabalhar nas roças de cacau e café de São Tomé e Príncipe. Era  habitual , em Cabo Verde, os amigos e familiares irem-se despedir de quem ia partir, talvez para sempre. A emoção era  grande, dada a incerteza da viagem, da estadia e do regresso.

Os "contratados"  cabo-verdianos, a par de angolanos e moçambicanos, alimentavam a economia colonial local, basada na monocultura do cacau e do café.  enquanto a população local, os "forros" (descendentes de escravos), se recusavam a trabalhar nas roças.

Um ano anos, com início em 3 de fevereiro de 1953, tinha acontecido o "massacre de Batepá"  (, despoletado por um conflito laboral, tal como o massacre do Pidjiguiti, em Bissau, em 3 de agosto de 1959, que se tornou, desgraçadamenet, numa espiral de violência.)

Hoje, dia de festa,  não é a  melhor ocasião para lembrar esta triste efeméride...Em todo caso, convém dizer que sobre o massacre de Batepá há um manto diáfano de efabulações e de silêncios que mascaram e escamoteiam uma realidade complexa e contraditória, em que os próprios "contratados" foram instrumentalizados pelo poder colonial, e pelos fazendeiros,  a responder a uma alegada  revolta dos "forros" (Fala-se em mais de mil mortos, segundo fontes são-tomenses, ou em 100 a 200, segundo as autoridades coloniais da época; continua a ser, em todo o caso, um trágico acontecimento da nossa história colonial, pouco ou nada conhecido tanto dos portugueses, como dos próprios são-tomenses e dos cabo-verdianos, nos seus contornos, antecedentes, causas imediatas, processo, protagonistas e consequências; em São Tomé, o 3 de fevereiro de 1953 é feriado nacional, o " Dia dos Mártires da Liberdade"; o governador geral de São Tomé e Príncipe, cor art Carlos Sousa Gorgulho, fica para sempre associado a esta página negra da história do colonialismo; não escrevo "colonialismo português", porque o colonialismo não tem... pátria!)

A letra e a música da morna "Sôdade" traduzem muito da idiossincrasia do cabo-verdiano, dividido entre o "ter de partir" (para fugir da fome e da miséria) e o "querer ficar" (por amor à terra). Entre 1922 e 1971, estima-se em 12 mil o número de cabo-verdianos que foram forçados a emigrar para São Tomé, numa altura de reto em que a economia são-tomense e o sistema dos "contratados" entravam em crise,,,

Por outro lado, com a descolonização e a independência de São Tomé e Príncipe, muitos destes cabo-verdianos não puderam voltar à sua terra e a situação de miséria, na sequência da decadência e encerramento  das roças de cacau e de café  (,com o regresso de dois mil brancos a Portugal),  ainda hoje é um problema social (e diplomático)  que está por resolver entre as três partes implicadas, São Tomé, Cabo-Verde e Portugal.

Oxalá esta consagração mundial da morna seja, tal como aconteceu com o fado, uma oportunidade  histórica para o renascimento deste género musical, com o aparecimento de novos temas, compositores, músicos, letristas e vozes. Também Cabo-Verde está a sofrer as consequências do "rolo compressor" da globalização que, a par de aspetos positivos, está a matar a diversidade cultural da humanidade (, além da biodiversidade, em consequências das alterações climáticas e dos impactos negativos do desenvolvimento económico e social nos ecossistemas).

PS - Pode ser ver-se aqui, na RTP Play, um excelente trabalho de reportagem sobre a Morna Património Mundial da Humanidade (vídeo: 50' 30''). Um dos entrevistados é o nosso camarada e membro da Tabanca Grande, Carlos Filipe Gonçalves (ex-fur mil amanuense, QG, Santa Luzia, Bissau, 1973/74, jornalista, escritor, estudioso da morna e de outras formas da música de Cabo Verde).

Sinopse: "A Morna é um género musical de Cabo Verde, tradicionalmente tocada com instrumentos acústicos. Reflete a realidade insular do povo crioulo e os seus sentimentos mais genuínos: a saudade; o amor; a morabeza; a chegada e a partida.Apesar das várias versões sobre a sua origem, acredita-se que a Morna terá nascido no século XIX da convergência entre os ritmos melancólicos trazidos pelos judeus do norte de África; da modinha brasileira; do lundum português e mais tarde (princípio do século XX) do fado.

"Tornou-se símbolo nacional, eternizado por vozes tão carismáticas como Bana; Ildo Lobo; Tito Paris; Mayra Andrade; Lura, Mário Lúcio.

"Mas seria Cesária Évora, o seu expoente máximo, a levar a Morna a todo o mundo. Cesária Évora, é, na verdade, um dos mais fortes argumentos do dossier de candidatura da morna a património mundial entregue à Unesco em março de 2018 e cujo desfecho será conhecido entre os dias 10 e 13 de dezembro.

"A confirmar-se o parecer positivo do Comité Científico da Unesco, a Morna será proclamada Património Imaterial da Humanidade." (Fonte: RTP, 5/12/2019).

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Notas do editor:

(*)  Último poste da série > 2 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19642: E as nossas palmas vão para... (19): A. Marques Lopes, cor art ref, DFA, ex-alf mil, CART 1690 (Geba) e CCAÇ 3 (Barro) (1967/68) cujo livro "Cabra-Cega" vai ser publicado no Brasil, em edição revista e aumentada, com a chancela da Paperblur, de São Paulo