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quinta-feira, 30 de maio de 2019

Guiné 61/74 - P19842: Os nossos seres, saberes e lazeres (328): Excertos do "meu diário secreto, ainda inédito, escrito na China, entre 1977 e 1983" (António Graça de Abreu) - Parte VII: o socialismo, a amizade entre os povos, o internacionalismo proletário, a beleza da mulher chinesa, a bruxa de Nanquim, o maldito e tão amado patacão do Tio SAM... e as"Kalash", "made in China", que matavam os meus camaradas de armas no CTIG...

Assim se faz a guerra e a paz... Dez anos depois, em 1982, o António Graça de Abreu, então a viver na China, vê, pela televisão, um general chinês a colocar, no Regimento de Comandos da Amadora, antigo RI 1,  "uma coroa de flores no monumento aos militares Comandos, homenageando os portugueses mortos, muito deles caídos diante das balas disparadas por estas armas, made in China"


1. Mensagem do António Graça de Abreu, com data de  29/05/2019 à(s) 02:24:

Meu caro Luís

Mais uns textos do meu inédito Diário (secreto) de Pequim, para eventual publicação no blogue.
Publica o que quiseres.

Forte abraço,
António Graça de Abreu



2. Excertos do "meu diário secreto, ainda inédito, escrito na China, entre 1977 e 1983" (António Graça de Abreu) 


Mais uns excertos do "diário chinês, secreto", ainda inédito, do nosso camarada António [José] Graça de Abreu. Recorde-se que ele viveu na China, em Pequim e en Xangai, entre 1977 e 1983; foi professor de Português em Pequim (Beijing) e tradutor nas Edições de Pequim em Línguas Estrangeiras.  Na altura, ainda era, segundo sabemos, simpatisante ou militante do Partido Comunista de Portugal  (marxista-leninista), o PC de P (m-l), fação Vilar (Eduímno Gomes), alegadamente o único recomhecido pela República Popular da China.

Ex-alf mil SGE, CAOP 1 (Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74), é membro sénior da nossa Tabanca Grande, e ativo colaborador do nosso blogue com mais de 230 referências. Compulsivo  viajante, tem "morança"  em Cascais. É um cidadão do mundo, poeta, escritor e reputado sinólogo. Nasceu no Porto em 1947.] É casado com a médica chinesa Hai Yuan, natural de Xangai, e tem dois filhos, João e Pedro. (*)

Pequim, 20 de Maio de 1981

Agora veio à China uma delegação da Frelimo, encabeçada pelo moçambicano Marcelino dos Santos, ministro da Economia. Li Shunbao, o intérprete desta delegação, trabalha comigo na secção portuguesa das Edições de Pequim em Línguas Estrangeiras e contou-me, com algum desgosto, a visita dos camaradas de Moçambique ao Armazém da Amizade, a maior loja de Pequim reservada apenas a estrangeiros.

Chegaram às sete da tarde, os chineses fecharam a loja para servir apenas os distintos africanos e a comitiva por lá permaneceu durante duas horas. Compraram, compraram, compraram, as senhoras moçambicanas abasteceram-se, em quantidade, dos mais variados produtos, artesanato chinês de qualidade, jades, jóias e até colecções de casacos de peles. No fim, à saída, tiveram o privilégio de não gastar um tostão.

A conta, extraordinária e exorbitante, era para ser paga pelas autoridades chinesas, pelo
generoso e mais do que irmão Partido Comunista da China, tudo em nome do socialismo, da amizade entre os povos e do internacionalismo proletário.

Li Shunbao, humilde chinês, meu amigo e camarada, não gostou do que viu.


Pequim, 22 de Agosto de 1981

Mas quando é que eu ganho juízo? Hoje descubro outra mulher chinesa, quase a beldade perfeita, no lugar certo, passeando-se pelo Vale das Cerejeiras, por detrás do Wo Fo Si卧佛寺, o templo do Buda Deitado, na Colina Perfumada, arredores oeste de Pequim. Dela, pouco mais fiquei a saber do que o seu nome, Liu Xiaochun, sendo Liu刘 o apelido de família e Xiaochun小春, o nome próprio que significa "pequena Primavera, ou Primavera Breve." 

Fixei-lhe o rosto (como é possível uma mulher ser tão serenamente bonita!…), as formas do corpo, os seios perfeitos sob a blusa branca, justa, e as calças bem cintadas, azuis, arredondando o primor das nádegas. Não lhe toquei com um dedo sequer, mas apetecia-me tocar-lhe com todos os dedos, das mãos, dos pés, com todas as células do meu corpo, beijá-la até a polpa dos meus lábios sangrar de prazer e exaustão. Quatro anos na China, a olhar para as meninas chinesas e a não ter nenhuma. Xiaochun, em tempo de Verão, a "Primavera Breve." O avançar por dentro das estações do ano, o perpassar da natureza.


Pequim, 30 de Agosto de 1981

Dia de, no Yuanmingyuan圆明园, o Jardim da Perfeição e da Luz, antigo Palácio de Verão que data dos séculos XVIII e XIX, encontrar uma chinesinha que pega na minha mão, a pousa sobre o seu joelho bonito -- a palma da mão voltada para cima --, e que me lê a sina. Um portento, a mulher, Wu Mei 吴美de seu nome, nascida em Nanquim, 23 anos, aluna do Instituto de Cinema de Xangai. Bruxa. Com toda a aprendizagem e tiques de actriz, mais a percepção do essencial das coisas da vida.

Nunca me tinham lido a sina. Foi preciso viver em Pequim para encontrar uma "cigana de Nanquim" disposta a tal tarefa, cheia de saber e segurança.

Num excelente mandarim à mistura com um macarrónico inglês, a Wu Mei foi-me explicando o significado dos traços na palma da minha mão. Mais ou menos nestes termos:

"Tu és muito forte, na cabeça. Tens uma carreira importante que será interrompida aos cinquenta anos por um acidente grave, de que recuperarás, quanto ao teu trabalho. Tens três mulheres na tua vida, a primeira aconteceu há alguns anos, a segunda e a terceira vão seguir-se uma à outra. Não foste feliz com a mulher com quem casaste, gostas muito dos teus irmãos e da tua família."

Pedi à Wu Mei (Wu吴, apelido de família, associado ao antigo reino de Wu, actual província de Jiangsu cuja capital é Nanquim onde ela nasceu, e Mei美 que significa "bonita"), pedi à Wu Mei que dissesse a minha idade. Confessa que não está escrita na palma da mão, mas ela aponta para 29 anos. Face à minha negativa, corrige de imediato para o número certo, 34 anos. Voltou a insistir que eu era inteligente, mas mal aproveitado pelas outras pessoas, mesmo assim descobriu que eu tenho um futuro brilhante à minha frente. Quero acreditar que sim.

Wu Mei, a bruxa chinesa de Nanquim! Miguel de Cervantes, nas Novelas Exemplares, bem avisou: "Yo no creo en brujas, pero que las hay, hay".

Bruxas bonitas, até na China…

Pequim, 18 de Novembro de 1981

Esta manhã chego à embaixada da União Soviética e o tovarich de serviço na Intertourist recebe-me com as seguintes palavras:

"Good morning, do you have american dollars?"

Eu tinha porque já ia avisado que, depois de fazer a viagem no Transsiberiano, devia pagar a estadia das quatro noites em Moscovo nessa maldita (e tão amada!) moeda dos reacionários e capitalistas filhos do tio Sam. Logo depois segui para a embaixada da Mongólia para pedir outro visto no passaporte, para a passagem do comboio pela república mongol. A primeira coisa com que me deparei à entrada da porta foi o letreiro: "Visas must be paid in USA dollars or Swiss francs, only."

Na China, ao longo destes mais de quatro anos vi, "claramente visto", compreendi a "superioridade" do sistema socialista. Com os parceiros russos e o seu filhote mongol basta entrar nas respectivas embaixadas para entender que os dólares norte-americanos são excelentes para olear o socialismo e ajudá-lo a singrar.

Amadora, 15 de Abril de 1982

Comia sossegadamente o meu bife à hora do almoço quando vi, no pequeno écrã  da TV, um general chinês, de visita a Portugal, a depositar um ramo de flores no monumento aos soldados Comando mortos em combate em África, aqui ao lado no Regimento de Comandos da Amadora, o antigo RI 1 que tão bem conheci há dez anos atrás.

As voltas que o mundo dá, ou simplesmente o doce-amargo do fluir dos dias….

Quando em 1972 parti deste quartel para a guerra na Guiné levava o desgosto de, pequeno alferes miliciano, ir combater por uma causa em que não acreditava. Iria encontrar guerrilheiros que, melhor ou pior, lutavam pela independência das suas terras. Depois, em Teixeira Pinto e em Mansoa, no meu Comando de Operações, estive com as 35ª. e 38ª. Companhias de Comandos, impressionantes tropas de combate com quem fiz amigos e com quem cheguei a sair para o mato.[1] Unidos, camaradas, lutávamos pela sobrevivência, pela vida.

Na Guiné-Bissau, em Mansoa, em Junho de 1973, após uma missão da 38ª. Companhia de Comandos, na estrada Jugudul-Bambadinca, vi-os chegar com quatro espingardas Kalashnikov capturadas aos guerrilheiros mortos numa emboscada, duas delas ainda com sangue fresco. Tomei uma das armas na mão, culatra atrás, bala na câmara e apontei para o céu. Eram quatro Kalashs fabricadas na República Popular da China, oferecidas pelos comunistas de Mao Zedong para matar tropas portuguesas. 

Dez anos depois, um general chinês coloca uma coroa de flores no monumento aos militares Comandos, homenageando os portugueses mortos, muito deles caídos diante das balas disparadas por estas armas, made in China. (**).
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quinta-feira, 10 de abril de 2008

Guiné 63/74 - P2742: Blogoterapia (46): Promessa de comando: vou retomar as minhas crónicas de guerra (Amílcar Mendes, 38ª CCmds)

Guiné > Zona Leste > COP7 > Margem esquerda do Rio Corubal > Gampará > 38ª Companhia de Comandos > Agosto / Dezembro de 1972 > O Comando Amílcar Mendes, cujo último relato foi o de uma operação helitransportada, no dia 13 de Setembro de 1972 (nome de código: Acção Águia Errante), na região de Lagoa de Bionrá, e em que participaram 3 Gr Comb da 38ª CCmds.

Foto: © Amilcar Mendes (2007). Direitos reservados.

1. Mensagem do Amílcar Mendes, taxi driver na praça de Lisboa, ex-1º Cabo Comando, 38ª CCmds (Guiné, 1972/74):

Assunto - As minhas crónicas de guerra

Amigo Luis Graça e camaradas da tertúlia, reconheço que estou em falta com aquilo que te prometi (1). Interrompi as minhas crónicas por vontade própria e porque aquilo que ia transmitindo foram notas tomadas durante situações de stress, algumas delas memorizadas debaixo de fogo, e em que o pensamento na altura pertencia a um jovem e arrogante gerreiro que inchava de vaidade, quando a intervalos das operações descia a cidade da Bissau e se pavoneava de orgulho, exibindo para a plateia o seu camufulado - para que saibas, eramos a única tropa autorizada a fazê-lo na cidade -, o lenço preto e a boina com fitas pretas.

Eramos já nesse tempo admirado por uns e odiado por outros. Nunca compreendi o olhar de desprezo com que alguns camaradas nos brindavam, [em Bissau]. E porquê? A maioria dos soldados que frequentavam a 5ª Rep (Café Bento), Pelicano, Zé da Amura, Ronda, Império, etc... eram militares em trânsito para regressar ao mato e que de alguma forma já tinham colado a orelha ao chão connosco em alguma picada, trilho ou destacamento. Podíamos até nem comungar dos mesmos ideais mas no perigo eramos gémeos.

Só muito mais tarde e com as mudanças da sociedade a nível político consegui decifrar o significado dos olhares que me eram dirigidos no tempo de guerra e em época posterior, já então no Regimento de Comandos da Amadora. Percebi que esses olhares vinham de algums camaradas mais esclarecidos(ou manipulados) em política e em que para eles tropas especiais era o que havia de mais desprezível no teatro de guerra. Assassinos. Comedores de criancinhas, frios e calculistas, sem ponta de emoção. Já na Amadora e com a liberdade esses ódios declararam-se e fui cuspido e chamado frontalmente de assassino.

Vem isto a propósito de quê? Quando comecei a escrever no Blogue, comecaram logo a aparecer ums vozes críticas que eu fui ignorando, direi mais, desprezando, porque realmente já 'tou farto de guerrilheiros do arame farpado e chegou ao ponto de haver aqui quem insinuasse que nós, os COMANDOS, só eramos valentes em grupo, o que quer dizer que isolado sou um cobarde.

Nunca, amigo Luis Graça, isso me imcomodou, até ao dia em que as mensagems aónimas começaram a chegar. Aí parei.Mas não foi por medo. Foi por achar que tais pessoas (?) não mereciam partilhar daquilo que me é muito íntimo. O que me pode afectar são acontecimentos e não pessoas. Sou um cota simpático, tentando alegrar os dias que vão passando e em que muita coisa já me passa ao lado e não percebo como ainda existe gente que, decorridas quase quatro décadas, ainda vive ressentida por aquilo que outros fizeram já tão longe.

Bem, amigo Luis, longe já vai este mail e o que te queria dizer é que te vou cumprir o que prometi e vou-te mandar mais apontamentos do meu diário de guerra e isso porque, se há quem não goste, há muito mais quem goste.

AMILCAR MENDES
1º Cabo Comando
38ª Companhia de Comandos (Guiné, 1972/74)
AUDACES FORTUNA JUVATE
[em latim, A Sorte Protege os Audazes]

2. Comentário de L.G.:

Camarada e amigo Amílcar:

Como já te oportunidade de te dizer (e agira passo a partillhar com o o resto dos camaradas e amigos da nossa Tabanca Grande), fico feliz pela tua decisão, sensata e generosa.

Abertamente, no nosso blogue, nunca ninguém te tratou mal... Que eu saiba, ou que me lembre, pelo menos... De qualquer modo, a malta foi aprendendo, nestes últimos 3 anos, a conviver uns com os outros e a respeitar-se, como camaradas, independentemente da arma a que cada um pertencia, do ano em que foi mobilizado, do sítio onde esteve, das ideias e valores que defendia (ou defende), etc. São mais as coisas que nos unem do que as que nos separam... O hífen, o traço de união tem sido a nossa terra, a nossa pátria, Portugal, e a Guiné, país-irmão, a que nos ligam, para além da história e da língua, afectos, emoções, memórias, vivências, amizades...

Por outro lado, e como sabes, é regra de outro, entre nós, não fazer juizos de valor sobre o comportamento militar de cada de um nós enquanto esteve no TO da Guiné... Não somos juízes e muito menos carrascos de ninguém. Agora, já não posso impedir que te mandem, cobardemente, emails anónimos... A única hipótese é ocultar (ou não divulgar mais) o teu endereço de correio electrónico... Mas não adianta. Tu não tens que ter vergonha do que escreves, pelo contrário: fostes um homem e um português do teu/nosso tempo, e que te portaste à altura, e queres dar testemunha disso... aos teus camaradas, aos teus amigos, aos teus filhos e netos, aos teus concidadãos, às gerações do futuro... Ninguém te pode roubar esse direito de contar a tua história de vida... Quem sabe até se não poderás (ou não poderemos), um dia, reunir em livro os teus escritos...

Que fique bem claro: tu e os teus camaradas, comandos, serão sempre bem vindos. Este blogue é teu, é nosso... Não fazemos distinção entre tropas especiais e tropa-macaca, a não a ser às vezes na brincadeira... Também nunca puxa dos galões, nem se rama em herói... E tu já deste mais contributos para este trabalho (colectivo) de preservação, defesa e divulgação da nossa memória de guerra, da memória da nossa geração, do que a grande maioria dos que estão cá estão inscritos, como tu, na tertúlia...

Vá, manda-me os teus textos, as tuas notas (e, se possível fotos), que tens pelo menos em mim um leitor interessado e fiel... Não te esqueças que ficaste em Gampará, f... e esfomeado, lá para o mês de Setembro ou Outubro de 1972... Aqui tens os teus dois últimos postes... Podes clicar e ver o conteúdo (2)...

Vá, recebe um Alfa Bravo do tamanho do Corubal, onde há dias estive, no Saltinho, e entre o Saltinho e o Xitole, na margem direita, em Cusselinta...

Luís Graça
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Notas de L.G.:

(1) Vd. poste de 4 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2719: Guidaje, Maio de 1973: Só na bolanha de Cufeu, contámos 15 cadáveres de camaradas nossos (Amílcar Mendes)

(2) Vd. postes de:

7 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1930: Diários de um Comando: Gampará (Ago-Dez 1972) (A. Mendes) (1): Um sítio desolador

16 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1956: Diários de um Comando: Gampará (Ago-Dez 1972) (A. Mendes) (2): Passa-se fome, muita fome