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segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25164: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (25): A mercearia e a taberna da aldeia (Joaquim Costa, Vila Nova de Famalicão)



O tempo em que se fumava, e a "arraia-miúda" os "três vintês" (passe a publicidade, que agora é proibida...mas a marac já não exite), um cigarro baratucho, sem filtro,  que ia bem com um "neguinhos" (pequeno copo de tinto,  usado nas tabernas no Norte, vocábulo que ue ainda não foi grafado pelos nossos dicionaristas)... (Cortesia do Joaquim Costa.)

 
Coisas & loisas do nosso tempo de meninos >   A mercearia e taberna da aldeia

por JoaquimCosta  (*)


Ainda o sol se escondia atrás do monte de Nossa Senhora da Assunção, já o Zé tirava a grande tranca da porta da mercearia junto à qual já um grupo de homens,  com o cigarro "três vintes" a queimar-lhes os dedos,  o esperavam para o mata-bicho da manhã. Dois copinhos de "cachaça".

Uns de bicicleta e a maioria a pé lá abalavam para mais uma jornada de trabalho, vomitando fogo dada a pureza da aguardente branca das uvas verdes.

Da minha memória de infância tenho bem viva a importância da mercearia da aldeia, que rivalizava com a da igreja. Antes da missa, um "neguinhos" para apaziguar a tosse e depois da missa para encontrar o caminho para casa.

Eram as duas instituições mais importantes da aldeia: uma alimentava a alma e a outra o corpo (A César o que é de César a Deus o que é de Deus!). Razão pela qual o padre e o dono da mercearia eram as pessoas mais respeitadas na terra. Mais do que a do próprio regedor!

Havia mesmo uma grande cumplicidade entre estas duas instituições ao ponto de a festa da Páscoa entrar na taberna dando a cruz a beijar aos mais renitentes e o dono da mercearia ser sempre convidado para mordomo da festa em honra do santo padroeiro da terra.

Ainda muito novo me dei conta da miséria que reinava na maioria das famílias, assistindo com um nó na garganta às lágrimas das mulheres suplicando ao Zé fiado para um naco de pão, um naco de bacalhau e uma mão de arroz para o almoço que levavam aos maridos que trabalhavam numa pedreira de extração de granito. O Zé,  sempre dizendo que não, dada a dívida acumulada, mas sempre cedendo.

Tivesse ele recebido todas as dívidas que constavam no livro dos "assentos" e hoje eu seria um homem rico.

Durante a tarde a mercearia parecia um galinheiro (dizia o Zé), dado a algazarra que faziam as mulheres.

Para além do trabalho,  havia muitos momentos de diversão com as conversas sem filtro de todo aquele "mulherio" ali reunido, em que muitas vinham comprar o que não precisavam só para participarem naquele extraordinário "fórum".

A partir das 19horas chegavam exaustos os homens e aí confraternizavam, jogando as cartas (e bebendo), jogando dominó ( e bebendo),  cantando ao desafia (e bebendo), e às vezes zangando-se, lutando e depois fazendo as pazes bebendo. Regressavam a casa com um (ou muitos) grãos na asa, mas recompostos de mais um dia de trabalho. Este "fórum" era muito mais difícil de controlar...

Aos domingos, depois da missa das sete, aqui se juntavam todos os homens da aldeia dispersando-se pelas diferentes tarefas: 

  • uns faziam fila junto do engraxador para limpar os sapatos de domingo; 
  • outros faziam fila no barbeiro aparando o cabelo e o bigode; 
  • outros participavam na reunião do clube da terra – os mais jovens carregavam os seis paus e abalavam para o campo da Bela (terreno baldio) para o treino da equipa da aldeia; 
  • outros jogavam a malha e às vezes ao galo com setas de pressão de ar;
  • outros participavam na reunião semanal da "Caixa dos vinte amigos" (no fundo era uma réplica de um banco onde cada um pagava uma quota mensal, e onde os mais abastados depositavam determinadas quantias pelo qual recebiam juros; em função do valor em caixa faziam-se empréstimos a juros negociados; na época ainda a D. Branca não tinha nascido!)

Era aqui, na mercearia/taberna onde tudo acontecia. Era a vida da Aldeia.

Aqui não havia lugar para advogados e juízos, todas as desavenças eram resolvidas com muita gritaria, zaragatas – larga-me que eu vou-me a ele!  – e decididas em última instância pelo dona da mercearia ou pelo "supremo", o padre.

Numa das desavenças mal resolvidas, um habitante frequentador assíduo da taberna, consumidor de "neguinhos" (pequenos copos de vinho), enquanto todos bebiam em canecas de porcelana com uma cinta metálica, resolveu ir à vila ouvir a opinião de um entendido sobre leis. 

A consulta teve lugar num café onde não se vendia vinho pelo que (em Roma sê romano), pediu café. Por cada cigarro "três vintes",  pedia um café, tal como  se fossem os "neguinhos" da tasca. Bebeu tantos cafés quantos os cigarros do maço. Obviamente o organismo rejeitou o produto que desconhecia, pelo que teve de ser levado de urgência ao hospital para uma lavagem ao estômago. 

Regressou na ambulância tendo indicado a tasca como sua residência, e convidando no fim os bombeiros para beberem uns "neguinhos" consigo...


(i) ex-fur mil at armas pesadas inf, CCAV 8351, "Tigres do Cumbijã" (Cumbijã, 1972/74);

(ii) membro da Tabanca Grande desde 30/1/2021, tem mais de 7 dezenas de referências no blogue;

(iii) autor da série "Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74)" (de que se publicaram 28 postes, desde 3/2/2021 a 28/7/2022) , e que depois publicou em livro ("Memórias de um Tigre Azul - O Furriel Pequenina", por Joaquim Costa; Lugar da Palavra Editora, 2021, 180 pp);

(iv) tirou o curso de engenheiro técnico, no ISEP - Instituto Superior de Engenharia do Porto;

(v) foi professor do ensino secundário, tendo-se reformado como diretor da escola secundária de Gondomar  (EG nº;

(vi) minhoto, de Vila Nova de Famalicão , vive em Rio Tinto, Gondomar, e adora o Alentejo;

(vii) tem página no Facebook.


(Revisão / fixação de texto, negritos: LG)


2. Comentário do editor LG:

Quim, escangalhei-me a rir com essa  cena dos "três vintes", dos cafés e dos "neguinhos"... É humor de cinco estrelas!... Tens graça, sem achincalhars ninguém, muito menos a gente trabalhador e humilde da tua terra..  

E, olha, os putos de etnografias, sociologias, antropologias, etc.,  bem podem aprender contigo a fazer "observação-participante"!... É uma peça de antologia: partindo do prncípio que tenho "carta branca para, de vez em quando,  te trazer "ao colo" até ao blogue, achei que esta pequena pérola não era para os "porcos", fica aqui também registada na série onde já tens colaborado, "Coisas & loisas do nosso tempo de meninis e moços" (**)... 

Quim (agora avô babado e "feicebuqueiro" de sucesso...),  há coisas que não voltam mais!... Cheiros, sabores, odores, lugares, personagens, palavras, expressões, cenas pícaras como estas... E que têm de ficar registadas para os nossos netos... 

Uma delas é essa "instância de socialização" que era a venda, nas nossas aldeias, de Norte a Sul, misto de taberna e de mercearia e nalguns casos "posto dos correios"), com espaços segregados conforme o sexo... 

A mim a tasca cheira-me sempre a sarro, a serradura,a lexívia e a fritos..Que Deus e os santos não te tirem a inspiração, a motivação e o talento para contar estas micro-histórias!... O "nosso alfero Cabral" vai também escangalhar-se a rir, lá na sua "suite" celestial...  Boa terça feira gorda, meu amigo e camarada!

_____________

Notas do editor:

(*) Reproduzido com a devida vénia da página do Facebook de Joaquim Costa, 3 de janeiro de 2024, 11.57  > Memórias "boas" da minha infància >  A mercearia /taberna

domingo, 17 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P24968: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (24): O meu natal minhoto (Joaquim Costa, Vila Nova de Famalicão)


As rabanadas. Foto: LG (2023)


É NATAL NO MINHO!

por Joaquim Costa


É o pinheiro “roubado”,
Os penedos tosquiados,
O azevinho sagrado
Da linda moura encantada.

É bonecada que renasce,
O musgo que lhe dá chão,
A manjedoura que se aquece,
É o presépio que nasce.

É as sopas que o vinho aquece,
É a doçura sem doces,
Mexidos com padre nossos,
É o milagre que o pão tece.

É o cheiro que a canela enaltece,
O milagre do esparguete em doce,
Rabanadas que embebedam
E vinho fino que enobrece.

É da salgadeira p’ra devinha
O porco que alimentei,
Bacalhau do miudinho,
Mais espinha que lombinho.

É noite das lamparinas
Nunca mais é amanhã,
Correndo para a chaminé,
Chocolate e tangerinas.

É o rapa, depois a missa,
Para os pezinhos beijar
Beija uma, beija duas,
Beija até o galo cantar.

É a roupa velha quentinha,.
Como eu gosto, meu Deus!
Pena que seja a “girândola”
A anunciar... o ADEUS.

Joaquim Costa

Com votos de um santo e feliz Natal DE 2023 para todos.

_________________

Nota do editor:

Ultimo poste da série > 30 de novembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24898: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (23): Pequeno glossário do português... à moda do Porto

quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24898: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (23): Pequeno glossário do português... à moda do Porto


Porto > 2016 > Zona Histórica do Porto > "Pormenor do Morro de Penaventosa visto do miradouro da Vitória. Casario, Sé Catedral, Paço Episcopal e Igreja de S. Lourenço, mais conhecida como Igreja dos Grilos"... 

Foto (e legenda) do nosso saudoso camarada, e grande fotógrafo, amante da "Invicta", o Jorge Teixeira (Portojo) (1945-2017) (ex-Fur Mil Arm Pes Inf, Pelotão de Canhões S/R 2054, Catió, 1968/70), membro do Bando do Café Progresso.  Publicada  no seu blogue A Vida em Fotos (2 de setembro de 2016), que ele criou em março de 2010 e que alimentou, com grande rigor e  paixão, até fevereiro de 2017, a escassos dois meses de morrer (7 de abril de 2017). É  uma das mais completas fotogalerias do Porto, que eu conheço.  Foto reproduzida aqui com a devida vénia... e com muita saudade.


1. Nesta série sobre os "falares" da gente do nosso tempo de meninos e moços (*), não podia faltar o calão e a gíria do Porto, que é mais do que a cidade, a zona histórica, a  Invicta... "O Porto é uma "Naçom", o Porto e o Grande Porto, ultrapassando as barreiras físicas do rio Douro e da estrada da circunvalação.  

Os nossos camaradas do Norte até trocavavam os bês pelos vês, de indignação,  se a gente não postasse aqui o "galizo" deles... Ora eu não quero que eles digam que eu tenho a mania de ser "dono da estação de São Bento", até porque já tenho uma costela nortenha (daqui a dois anos  vai fazer meio século desde que "cambei" pela primeira vez o rio Douro, na Arrábida, e depois o Tâmega,  em Canaveses)... 

Para que não me chamem mouro, sarraceno, sulista, e outros mimos, aqui vai uma pequena amostra que recolhi, em cima do joelho,  e que atesta a riqueza, a plasticidade, a criatividade, a graça, a verve, o pícaro, o humor  dos falantes da língua portuguesa da "Inbicta"... Outros contributos, e nomeadamente dos camaradas nortenhos, serão bem vindos. Naturalmente que algumas  destas pérolas linguísticas também circulam pelo Sul. E outras podem ter caido em desuso...
LG


Pequeno glossário do português
... à moda do Porto

Alapar –  Assentar
Amarfanhar – Apertar, roubar
Amassos – Troca de carícias
Andar à gosma – Viver à custa dos outros, andar na moinice
Andar de calcantes  Andar a pé
Andor biolete - Desanda
Andrades - Adeptos do FC Porto (não cofundir com "tripeiros")
Apanhador – Pá para o lixo
Arpoar - Fazer uma conquista amorosa
Arreganhar a tachá – Rir à  gargalhada
Arrostar postas de pescada –  Rir à gargalhada
Azeiteiro – Rufia, malandro, chulo

Badalhoca – Porca, desmazelada, prostituta; também nome de uma famosa tasca no Porto
Badeleira  – Mulher que fala demais
Barona – Beata, ponta do cigarro
Basqueiro – Barulho ("Alto basqueiro)
Benha ! – Venha! (termo usado pelos arrumadores de carros)
Besuntas – Mulher muito gorda
Bezana – Bebedeira
Bisga – Escarro
Bitaites – Palpites, dicas, bocas
Bófia –  Polícia
Bóias  Mamas, seios
Bolacha – Bofetada
Boa (boua) como milho  – Diz-se de uma mulher gira
Briol  Frio
 

Cabeça de giz – Polícia sinaleiro (figura cada vez mais rara)
Cachaço – Bofetada no pescoço
Caga e tosse –  Não anda nem desanda
Calacantes baris – Sapato fino
Canalha – Criançada
Carago –  Caraças; forma eufemística de dizer c...alho (o falo, o orgão sexual masculino; do esanhol, "carago")
Cav(b)alão  –  Mulher "atoucinhada" (como diria o Camilo Castel Branco) e de pêlo na venta
Chá de bico – Clister
Chaço – Carro velho,  também "chocolateira"
Choninhas  Gajo mole, sem iniciativa (também se diz "Cunanas")
Chotegane – Arma, arma de cano curto (do inglês, "short gun")
Chica –  Menstruação 
Chuço – Guarda chuva
Coiras – Chatas, más. 
Coirão –  Indivíduo reles com cabedal de respeito
Cor de burro quando foge – Diz-se quando não se sabe a cor de algo
Cresce e aparece  Desanda
Croque – Pequeno murro na cabeça com os nós dos dedos
 

Dar corda aos sapatos 
– Deitar a fugir
Dar corda aos v(b)itorinos – Correr
Dar de frosques – Fugir
Dar lhe a filoxera  Desmaiar
Dar o garfeiro todo – Doer os dentes
Dia de pica-boi  Dia de trabalho
Deitar a fateixa  Conquistar (uma mulher)
Desatinar Dar uma volta
Dobradiças – Joelhos

Encher a mula – Comer muito
Enchousadela – Bater, tareia
Engrupir – Enganar
Estapor – Estupor, mau, cruel
Estar de beiços – Estar amuado
Estar de gesso – Diz-se de alguém que não trabalha
Estar com os bitorinos encharcados – Estar bêbado
Esticar o pernil – Morrer
Estrugido – Sarilho, encrenca ("Meter-se num estrugido"). mas também ligação amorosa ("Ter um estrugido")


Fajardice Trafulhice
Falar para a central – Falar sem ser ouvido ou ouvir sem prestar atenção. 
Faneca – Gaja boa, bonita
Fino  Imperial (cerveja)
Fino como um alho  – Esperto, vivaço, sagaz, astucioso
Fisgar –  Engatar
Flauta 
– Pénis
Foguete – Buraco nas meias (collants)
Foleiro das garulas  – 

Gabardina 
 Preservativo (masculino)
Galga  Mentira, mas também pénis
Galgueiro – Mentiroso
Gangada – Seita, grupo de rapazes, normalmente organizado
Garulas  –  Pernas ("foleiro das garulas", mal ds pernas)
Grav(b)eto  Dinheiro
Grito  Frio
Guna – Ranhoso; rapaz ou rapariga de origem social baixa, de "bairro camarário" que usa roupas de marca, por vezes brincos e boné de pala virado ao contrário

Ir de saco – Ser preso
Ir fazer tijolos  – Morrer
Ir medir caixotes – Morrer

Jeco – Cão

Laurear / laurear a pev(b)ide – Passear, pavonear-se 
Labagice – Porcaria, mistura de comida
Lázaro – Idoso, asilado
Leiteira  Sorte
Leiteirão – Sortudo
Lontra – Pessoa obesa, gorda, que come muito
Lostra  Chapada, estalo

Mais v (b)ale uma rua do Porto que a Gaia toda (lê-se: "cagai-a toda") 
Mamona – Pessoa interesseira
Mandar uma bisga  Escarrar para o chão
Mandar uma traulitada – Dar um murro
Mânfio – Sabidola, astuto
Manguela – Malandro, indivíduo preguiçoso
Martelar – Fazer sexo
Matrona – Mulher desmazelada
Meter os garfos    Palmar, tirar dos bolsos de alguém
Micar  – Perceber, entender,observar
Mijão – Sortudo, "leiteiro"
Mitra - Infiltrado
Moina – Polícia
Molete – Pão, carcaça
Mor – Termo utilizado pelas vendedeiras, abreviatura de «amor» 
Morcão – Estúpido, lorpa

Nardo  – Pénis (também se diz sarda, morcela)
Narizinho de cheiro – Diz-se de alguém que se ofende facilmente, vidrinho
Negócio das carnes – Prostituição

Ouras (Ter) – Ficar atordoado, enjoado

Paiba – Cigarro de substância ilegal
Paleógrafo – Conversa fiada ( “Gajo cheio de paleógrafo”)
Pandeireta – Mulher velha
Pandorca –  Badalhoca, mostrengo, vasculho
Pasteleira – Bicicleta velha, pesada
Passar a ferro – Possuir sexualmente; atropelar
Pastelão – Omeleta; patanisca;  pessoa muito lenta
Pastor – Palerma
Peixão –  Mulher que dá nas vistas, lasca, traço
Picar o ponto – Namorar
Pinoca –   Indivíduo bem arranjado
Pipi da tabela   Todo pinoca, bem vestido, efeminado
Pito - Crica, vagina, mas também frango ("Bibó Pito da Maria")
Play-mobil – Polícia; agente da autoridade
Pôr-se a fancos  – Estar atento, ter cautela
Presunto  – Parolo

Quilhar  – Usado como em “vai-te lixar”

Rópia 
 Vaidade
 
Sameira – Carica, sama,
Selo – Mancha, sujidade nas cuecas
Sêmea – Rabo de mulher
Sertã – Frigideiram da cabeça
Sofrer da cuca –  Não regular bem da cabeça
Sostra – Pessoa preguiçosa

Tecla Três – Anormal, deficiente (por analogia da tecla 3 dos telemóveis)
Toura – Mulher jeitosa
Trav(b)esseira - almofada
Trengo – Atrasado, apalermado
Tripas a moda do Porto  Dobrada
Tripeiro  – Natural do Porto (não confundir com "andrade", adepto do FCP)
Tótil – Muito, “bué”, "manga de" (como se dizia na Guiné)
Trombil – Cara, "fuças"

V(b)ai-te, Afonso 
 Vai-te quilhar, lixar, f...der
V(b)ai no Batalha – Mentira, filme (referência ao cinema Batalha)
V(b)agem – Feijão verde
V(b)ergar a mola – Trabalhar
V(b)idrinho  Diz-se de alguém que é muito suscetível
V(b)ira-v(b)entos  Volúvel

Zaruca 
 O mesmo que sofrer da cuca
Zequinha – Pessoa meio apalermada

Com os contributos de: António Graça de Abreu, Carlos Vinhal, Fernando Ribeiro, Joaquim Costa, Jorge Teixeira, Valdemar Queiroz
________

Fontes (além dos dicionários de português e da Net):
  • Almeida, José João - Dicionário aberto de calão e expressões idiomáticas (recolha de José João Almeida,. Universidade do Minho. 2023. Disponível em https://natura.di.uminho.pt/~jj/pln/calao/dicionario.pdf
  • Brito, João Carlos - Dicionário de Calão do Porto. Editora Lugar da Palavra, 2016 (Tem mais de 4 mil verbetes ou entradas)
  • Pacheco, Hélder - Porto: outra cidade. Porto: Campo das Letars, 1997.
  • Praça, Afonso - Novo Dicionário de Calão", 2ª ed. rev. Lisboa, Editorial Notícias, 2001.
  • Simões, Guilherme Augusto - Dicionário de Expressões Populares Portuguesas. Lisboa: Perspectivas & Realidades, 1985.
___________

Nota do editor:

segunda-feira, 20 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24866: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (22): mais quatro fados com letras em calão do fadista ou faia de antigamente


Capa do livro de Luís  Moita (1894-1967): O Fado, canção de vencidos: oito palestras na Emissora Nacional. Lisboa:  [s.n.] [Lisboa, Oficinas Gráficas da Empresa do Annuário Comercial], 1936, 357 páginas. Ilustrações de Bernardo Marques (1898-1962). Foi, na época, o inimigo público nº 1 do fado... "Enquanto cantamos o Fado, de cigarro ao canto da boca, olhos em alvo e paixão a arrebentar o peito, não passamos de um povo inferior, incapaz de compreender a vida moderna das nações civilizadas. Por isso repito aos rapazes  [da Mocidade Portuguesa] : ' Não cantem o Fado!' " (pág. 229). 

Tanto à esquerda como à direita, em diferentes quadrantes político-ideológicos, o fado nunca foi bem aceite pelas elites portuguesas...a não ser mais recentemente coma sua consagração como "património cultural imaterial da humanidade, pela UNESCO (2011). (Temos mais de 7 dezenas de referèncias com o "tag" ou descritor "Fado-)


1. Mais um excerto  do livro de Alberto Pimentel (1848 -1925),  "A Triste Canção do Sul: subsídios para a história do fado" (Lisboa, 1904, pp. 93/99). (*)

Mas não se pense que o Bairro Alto eram só faias, fado, tabernas, naifas e... rameiras. Também concentrava muita gente da emergente classe operária (com a crescente industrialização da cidade), a par dos homens dos  jornais, artistas, escritores e boémios. Desde meados do séc. XIX que se começaram ali a concentrar as publicações periódicas de Lisboa... Ali e nas zonas adjacentes, como o Chiado (chique e burguês). 

Sem dúvida que o Bairro Alto foi, dos bairros populares e ribeirinhos,  talvez o mais "afadistado", o que também tem a ver com a sua origem aristocrática: a nova fidalguia da época dos Descobrimentos  viveu ali, desde o terramoto de 1513  até ao terramoto de 1755 (este o mais mortífero, quando caiu o Carmo e a Trindade...).

Nos séc. XVI e XVII o Bairro Alto, com as suas ruas ortogonais,  são a primeria urbanização moderna da cidade (conhecido como a Vila Nova de Andrade)... O clero e a nobreza, com a degradação física do bairro,  começaram a mudar-se para zonas mais seguras e desafogadas da cidade...  Na segunda metade do séc. XVIII e princípios do sec. XIX, as classes laboriosas (artesãos, operários,  calafates, marinheiros, etc. mas também o lumpen)  começaram ocupar aquele espaço urbano. A seguir, e instalando-se em grandes edifícios deixados vagos,  vieram os tipógrafos e depois os jornalistas, os artistas, os literatos, etc., uma vez que se circulava facilmente entre o bairro, o Chiado e a Baixa (Rossio, Restauradores e Passeio Público, mais tarde Avenida da Liberdade).

 A concentração de tipografias e redações de jornais no Bairro Alto tem uma explicação, mais ou menos óbvia: ficando numa colina, a famosa 7ª Colina de Lisboa, e fazendo-se a distribuição dos jornais através de "ardinas" (hoje uma "profissão extinta"),  que iam de porta a porta, loja a loja, rua a rua, praça em praça, com quilos de papel às costas, era mais fácil descer do que subir, neste caso, da 7ª Colina para a Baixa... 

Já foram recenseadas algumas centenas  de publicações periódicas, de todo o género, com localização nesta zona histórica (Bairro Alto / Chiado), ao longo de mais de um século e meio... Hoje só o jornal desportivo "A Bola" ainda continua no Bairro Alto. Mas continuam a existir a rua do Diário de Notícias (antiga rua dos Calafates), a rua do Século, etc.

Dito isto, desafia-se o leitor a ler e a "descodificar" os vocábulos e as expressões  do calão, usados pelo  fadista ou faia de antigamente (que, diga-se de pssagem, é também uma figura estereotipada que nos veio dos primórdios do fado, ou seja anos 30/40 do séc. XIX)...  

A imposição, pela Ditadura Militar, em 1927 (e mantida depois pelo Estado Novo), do licenciamento dos recintos, da emissão de carteiras profissionais para os fadistas e da censura prévia das letras, vai ter grandes implicações na evolução do fado e dos seus cultores. E este tipo de letras (e outras com conteúdo mais contestário, no plano social e político) irão desaparecer...

Para os nossos leitores, fica  aqui  a tarefa de descodificar estas letras,  o que  não é fácil, à falta de um glossário (**). Alguns destes vocábulos e expressões ideomáticas chegaram, todavia,  até aos nossos dias (e faziam parte do nosso léxico de caserna)... Prometemos,  em próximo poste, publicar um pequeno glossário do calão fadista.


Cap III - Os assumptos do Fado (pp. 93 / 99)

(...) Há, porém, outros Fados compostos em calão. Conhecemos quatro que não devemos deixar de transcrever, tanto mais que elles contêem alguns termos, como por exemplo antrames e gamotes, que não foram incluídos no diccionario do sr. Bessa.(**)


Quem se metter c'um fadista
E o ouvir faltar calão, 
Fica logo a ver navios, 
Té perde a mastreação. 

Chamam ao bater suquir
A' gazúa uma retanha. 
A' bofetada uma sanha
Roncar é estar a dormir
Esgueirar é ter de fugir, 
Um arranjo é uma conquista, 
A taverna é uma modista
Cemitério se m'entende 
Decerto o nâo comprehende, 
Quem se metter c’um fadista. 

Homem honesto e honrado, 
É um gajo direitinho
Bater é fazer joginho, 
Mattar é deixar espalhado
Ser pobre estar desarmado
Gamote é reunião: 
Pois quem se chegue a um bailhão 
Passe-lhe logo as palhetas
Quando o vir fazer caretas, 
E o ouvir fallar calão

Elles chamam laia á prata, 
A um casebre um cortiço
Namorar é um serviço
A pancada é zaragata
Um sôcco é uma batata,
Chapéus altos são cepios, 
Aos ladrões chamam larpios
A’s algibeiras antrames
Quem ouvir dizer arames
Fica logo a ver navios.

Arames é o dinheiro;
Ao vinho chamam briol;
Ao apito um rouxinol;
Jogador de pau, cocheiro
Um bêbado é um archeiro
Um gabinardo um gabão
Dois vinténs um buzilhão
Avésa quer dizer tem: 
Quem os não percebe bem, 
'Té perde a mastreação. 

_____________________

Passei os butes (#) á Annica, 
Pois tinha naifa na liga: 
Boas noites, meus senhores. 
Vou cantar uma cantiga. 

De briol tinha atirado 
Duas viuvas e meia: 
Sentou-se uma centopeia 
Junto onde eu estava sentado. 
Fiquei mais envinagrado
Quiz dar cabo da futrica
Já por ser feia e não rica 
E me negar um paivante
Em tempo que é já distante 
Passei os butes á Annica. 

Puz-me a mirar a gajona 
E fez- me tanta arrelia
Que por pouco a não enfia
 À minha naifa, intrujona
Tinha um ar de marafona, 
De mulher que vende em giga
Mas não quiz armar a briga
Apesar já da piélla
Não me quiz medir com ella, 
Pois tinha naifa na liga. 

A final engole a isca 
Que tinha mandado vir, 
E diz- me assim ao sair : 
«Chamo-me Nuna Francisca. 
Se você se não arrisca 
A mostrar-me os seus valores,
Vá ter co'a Julia Dolores,
P'ra nos soccarmos com ela».
Vejam lá que bresundella!
Boas noites, meus senhores.

Se alguém d'aqui foi capaz
De saber o que eu cantei,
Uma prenda lhe darei,
Seja velhote ou rapaz.
Sabem o que aqui me traz,
O que a servil-os me obriga ?
É essa amizade antiga
Que por mim lhes é bem dada.
Visto que fiz esta entrada,
Vou cantar uma cantiga.

_______________________

Quando tenho um carinha
E um charuto a fumegar,
Já sou mais que o faroleiro,
É dar-lhe, toca a gimbrar


0 meu corpo não foi feito
P'ra se ralar...—isso pára!
P’ra gozança é que esta cara
Sempre teve todo o geito.
Se avélo por o direito,
Seja só uma rodinha,
Já dou mil voltas á pinha
A pensar como estafa-la,
E então isso não se falia
Quando eu tenho uma carinha!

Elle é a bella murraça,
E’ a bella rapioca
Elle é a gostosa móca,
Elle é tudo que tem graça.
Lá p'ra fazer de panaça
Co’as mondongas a versar,
Nunca me esteve a calhar;
Prefiro bater a bisca,
Ou dar-lhe então d’uma isca
E um charuto a fumegar.

Se a cousa gruda ao domingo.
Dou girança até ás hortas,
E de lá por horas mortas
É já torto que me tingo:
Que eu também nunca me pingo
Até perder o carreiro ;
Fico só um pouco archeiro,
A trez furos de pingado,
E assim mystico, orchatado,
Já sou mais que o faroleiro.

Todo o gajo que na orchata
Nunca entortou o pescoço,
Avezando bago grosso,
Tem a pitorra bem chata
Devia logo uma data
De camolete apanhar,
Que era então p'ra se lembrar
Que o mundo é uma fumaça,
E emquanto n’elle se passa
E' dar-lhe, toca a gimbrar.

______________________

Em calão a atirar

Dê me a naifa, não se ponha 
Comigo ás duas por trez . 
Não passe os butes agora... 
Que está na mão de má rez. 

— Eu estafo-o, seu mariola
—E eu cá chego-lhe umas todas. 
—Não se me ponha com modas, 
«Que o mando já p'ro esfolla
—Olhe que é de ponta e móla. 
«Olhe que esta  tem peçonha
—Você perdeu a vergonha ? 
—Perdi a vergonha ? Hom'essa! 
— Vamos lá, que lenho pressa, 
«Dê-me a naifa, não se ponha... 

— Não me ponho a fazer vistas 
«De fadista ou galopim
"Lá eslá aberto o estarim 
"P'a quem rentar com fadistas. 
Você porque faz conquistas... 
«Que eu não sei já quantas fez,
 «Vem cá fazer-se francez
«Porque pertence á gentalha
«Vem pôr-se aqui, seu canalha, 
«Comigo ás duas por trez !

—Está nadando, meu amigo; 
«Passe p’ra cá essa espinha.
 Isso, não; que é muito minha:
 «Você, chamava-lhe um figo! 
— Eu se lhe afinfo no embigo
"Um sôcco sem mais demora.. 
"Veremos, se você chora 
"O seu empenho tão cego!...
«Eh! onde vai, seu gallego?
«Não passe os butes agora !
 
—Arrede-se já d'aqui...
«Já o não vejo, percebe? 
—Pois já a comadre bebe!|
«Seu pateta!. .. seu cri-cri
—Eu cá logo quando o vi, 
«Puxei da naifa outra vez : 
«Vá, marche, seu montanhez
«Ou dou-lhe quatro naifadas
"Conte co’as guellas cortadas, 
Que está na mão de má rez.


(#) Bute é uma das palavras que o calão adoptou das línguas estrangeiras. Vem do inglez boot,  bota, pé. (Adolpho Coelho.)  

In: Alberto Pimentel - A triste canção do sul: subsídios para a história do fado. Lisboa: Livraria Ce
ntral de Gomes de Carvalho, editot, 1904, pp. 89-93

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Notas do editor:


Último poste da série > 19 de novembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24864: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (21): Os sinais de código da estrada é para... respeitar, e os dos códigos comportamentais ainda mais... (Hélder Sousa, Setúbal)

(*) Vd. "A gíria portuguesa: esboço de dicionário do 'calão', de Alberto Bessa (1901), citado por Alberto Pimentel (1904)... Foi considerada na época a mais completa recolha de termos e expressões idiomáticas da gíria e do calão, feitas em Portugal e no Brasil, contendo mais de cinco entradas.

Há uma edição, recente, da Húmus (2022, 248 pp; coleção A Iha; preço de capa: 4 euros).

domingo, 19 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24864: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (21): Os sinais de código da estrada é para... respeitar, e os dos códigos comportamentais ainda mais... (Hélder Sousa, Setúbal)


GONÇALVES, Gerardo Vidal; PEREIRA, Dina; LOPES, Gonçalo e LISA-FREIRE, David (2021) – “Marcas de Canteiro, Cantaria Histórica e Arqueologia do Construído: a Igreja de Santa Maria do Castelo, na vila da Lourinhã”. Al-Madan Online. Almada: Centro de Arqueologia de Almada. 24 (2): 130-142. Em linha. Disponível em https://issuu.com/almadan. (Com  a devida vénia...)

Resumo: Estudo de marcas de canteiro, cantaria histórica e Arqueologia do construído, a partir de trabalhos arqueológicos preventivos realizados, em 2021, na envolvente da Igreja de Santa Maria do Castelo (Lourinhã).

Os autores apresentam a metodologia de registo e os resultados, que incluem 29 marcas de canteiro distribuídas por vários elementos arquitectónicos, maioritariamente em zonas baixas e pouco visíveis. O seu agrupamento tipológico sugere pelo menos três oficinas, mestres ou canteiros diferentes. Há ainda uma inscrição aplicada no pórtico principal, virado a Oeste, provavelmente datada de finais do século XIV.

Palavras-chave: Arqueologia preventiva; Arqueologia da Arquitectura; Pedra; Marcas (de canteiro).



1. Mensagem de ontem` às  15h45, do  Hélder Sousa,  foto à direita: colaborador permanente do nosso blogue, provedor da Tabanca Grande;  tem  193 referências no blogue, tendo ingressado em 11/4/2007 (é, portanto, um "vê-cê-cê", velhinho como o c...); ribatejano, de nascimento (Vale da Pinta, Cartaxo) e formação (Vila Franca de Xira), português, cidadão do mundo, amigo do seu amigo; ex-fur  mil trms TSF (Piche e Bissau, Nov 70 / Nov 72);  engenheiro técnico electrotécnico, pelo ISEL;  consultor em segurança no trabalho; empresário em nome individual; vive em Setúbal; tem página do Facebook aqui.

Caros amigos

Achei por bem dar conta desta minha lembrança que me ocorreu a propósito dos diversos "calões" e também por a eles se terem referido como "códigos".

Assim, também como os chapéus, que há muitos, os códigos também serão de diversa motivação e neste caso concreto, acontecido comigo, aproveitei não só para me lembrar do caso com também, ao dar conta dele, recomendar que os levem a sério, quando vos tocar qualquer coisa do género.

Abraços, Hélder Sousa


OS CÓDIGOS COMPORTAMENTAIS

por Hélder Sous

Meus amigos, esta memória, de que vou dar testemunho, surgiu depois de ler algumas coisas sobre o calão falado, “por aqui e por ali”, e de também se ter referido a eles como que espécie de “códigos” de comportamento para relacionamento e reconhecimento de grupos.

Ora, tanto quanto vou aprendendo também “por aqui e por ali”, isso dos“códigos” é coisa bem antiga.

Por exemplo, é bem conhecido o facto de que os velhos “construtores de catedrais” tinham códigos (sinais) identificadores para se saber a que Mestres correspondiam as pedras colocadas, quando numa mesma obra existiam mais do que um Mestre e seus operários, para que assim o Dono da Obra pudesse quantificar o trabalho efetuado e remunerá-lo adequada e justamente. Isso pode ser observado em vários monumentos um pouco por todo o País.

Mas o que eu vos queria transmitir é que há uns bons pares de anos atrás, quando retomei os estudos interrompidos, primeiro por incorporação no SMO (Serviço Militar Obrigatório), , depois por dedicar mais tempo à ”vida artística”, cumulativamente pelos tempos do imediato pós-25 de Abril, fiz parceria com um colega de turma para a produção de “trabalhos de grupo”.

Ora esse colega era filho dum senhor que tinha uma oficina de manutenção automóvel, trabalhos de bobinagem e relativos, ali para os lados de Campo de Ourique, em Lisboa, já a chegar ao “Casal Ventoso”, em tempos em que esse local era conhecido como “supermercado da droga” e de consumo da mesma.

Recomendaram-me que, quando para lá me deslocasse, tivesse o cuidado de estender por cima do volante um pano amarelado ou laranja. Que fizesse isso e não fizesse perguntas. E assim procedi sempre e não ocorreu nada de registo que merecesse ser contado.

Acontece também que esse meu amigo e colega morava numa casa, num rés-de-chão ligeiramente elevado em relação ao nível da entrada, ali mesmo ao lado da Igreja de Santa Isabel e onde também era devido utilizar o “código do pano sobre o volante”.

Numa noite em que fui para lá para trabalhar, chegando já um tanto atrasado, com a pressa, não tive o cuidado de colocar o “bendito paninho”, mas como o carro (um Renault 5) ficou estacionado mesmo junto à janela (não ao nível da rua, mas um pouco mais elevada, como disse) do compartimento onde estaríamos a fazer os trabalhos e aí o passeio era bem estreito, menos de 1 metro entre o carro e a janela, não me preocupei quando me lembrei do facto e até achei que não deveria ter importância.

Mas teve!

Quando acabámos e fui para o carro, depois de entrar e ligar o motor, quando fui para ligar o rádio só encontrei o buraco. O rádio tinha desaparecido.

Claro que no imediato fiquei “estragado”. Primeiro por ter sido roubado, depois, culpabilizando-me, pelo esquecimento de assim ter desrespeitado a aplicação do código (o tal pano laranja sobre o volante) para que eventuais “amigos do alheio” soubessem que se tratava de um bem pertencente à comunidade, conforme já tinha percebido.

O que “compensou” foi que o trabalhinho foi efetuado por profissional. Nada partido, nada estragado, “apenas” fiquei sem o rádio…..

Portanto, se houver códigos, são para serem respeitados, não se esqueçam.

Hélder Sousa
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Nota do editor;

sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24858: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (20): O calão do Bairro Alto em finais do séc. XIX, algum do qual chegou à nossa caserna...


Capa do livro de Alberto Pimentel (1904), "A triste canção do sul", 
Ilustração: Júlio Leite, 1904.


1.  Ainda a propósito do Bairro Alto, mesmo que já não seja do nosso tempo (estamos a falar de há mais de 100 anos) (*), achámos que pode interessar a alguns leitores, que gostam do fado e da sua história, a reprodução de alguns excertos do livro de Alberto Pimentel (1848 -1925) (curiosamente um homem do Norte, nascido no Porto), que escreveu, em 1904,  "A Triste Canção do Sul". ("Triste", seguramente por contraposição às alegres canções folclóricas do Minho e de Entre Douro e Minho;  acrescente-se que o Alberto Pimentel foi um escritor, jornalista e romancista,  com alguma notoriedade no seu tempo, mas hoje praticamente esquecido,  que escreveu quase tudo sobre quase tudo, incluindo uma primeira biografia de Camilo Castelo Branco, de quem ele se considerava, de resto, se considerava  amigo, admirador e discípulo.)

Tenho uma cópia de "A Triste Canção do Sul", muito desconjuntada, comprada há mais de 50 anos num alfarrabista do Bairro Alto. O livro, que já é do domínio público (isto é, livre de direitos de autor, o Alberto Pimentel já morreu há mais de 70 anos) está felizmente digitalizado pela nossa Biblioteca Nacional  (veja-se cópia em formato pdf aqui.). 

Há um edição mais recente, em papel,  da Dom Quixote, 1989. Da edição de 1904, e sem revisão da ortografia em vigor na época, tomamos a liberdade de reproduzir alguns excertos.

É interessante verificar como algum do calão do "faia do Bairro Alto" dos finais do século XIX chegou até aos nossos dias, e era utilizado por nós na tropa e na guerra; por exemplo: estampa (bofetada), briol (vinho), pinha (cabeça), cebola (relógio),  raspar (fugir), batota (jogo), larica (fome), naifa (faca), butes (pés, bota),  piela (bebedeira), afinfar (bater em), paínço,  milho, graveto (dinheiro). etc. (**).


Cap III - Os assumptos do Fado  (pp. 77, 89-93)

(...) O calão é a linguagem habitual do fadista. Parece un dialecto, sem o ser rigorosamente. Muito pittoresco, não se limita apenas a alterar phoneticamente as palavras como a gíria infantil; além de lhes alterar o som, altera-lhes também  a forma, e muitas vezes lhes desloca a significação, levando-a para outros objectos, n'um sentido tropologico, fundado na relação de semelhança. 

 Assim, a garrafa preta da taberna é viuva; os copos são filhos da viuva: uma viuva e dois filhos quer dizer — uma garrafa e dois copos. Mas se o copo é maior que o da decilitração habitual, chama-se sino grande

 O cigarro é soldado de calça branca; a navalha, sardinha; a faca, sarda; o apito, rouxinol; a quantia que o rufião recebe da amante, queijada; o dinheiro, painço; o café com leite, mulato; a agua com café, meio-caiado; Deus, juiz do Bairro Alto; as pernas, juntas; a barriga, folle das migas; as notas de banco, filhozes; enfiar uma guitarra pela cabeça d'outra pessoa é fazer uma gravata; a bofetada é estampa; a meia-porta dos bordeis do Bairro Alto, avental de madeira, etc. (...)

 Nas outras linguas encontra-se um vocabulário correspondente ao calão dos nossos fadistas: os hespanhoes chamam lhe germania e chamavam lhe antigamente gerigonza; os francezes jargon e argot; os italianos gergo e lingua furbesca; os inglezes cant, etc. (...)

Calão vem de caló, nome que os ciganos dão a si mesmos. (...).

A giria portugueza, isto é, a linguagem especial usada pelas classes vis a fim de que as outras classes sociaes a não entendam, é muito antiga: já no século XVI Jorge Ferreira de Vasconcellos se refere aos que fallavam germania

No século XVII D. Francisco Manuel de Mello empregou alguns termos de giria na Feira dos anexins , que é, como se sabe, uma galante collecção de equívocos e jogos de palavra. 

No século XVIII, o padre Bluteau organizou uma lista d'aquelles termos, que incluiu no seu Vocabulário, e que foi copiada em parte no Compendio de orthographia de Frei Luiz de Monte Garmelo. (...)

No século XIX (...), os Ciganos de Portugal, por Adolpho Coelho (***), abrangendo um importante estudo sobre o calão, e o diccionario de giria ultimamente publicado pelo sr. Alberto Bessa constituem copiosas fontes para o vocabulário do calão portuguez. 

Adolpho Coelho traz o seguinte Fado composto em calão, reproduzido por Alberto Bessa:

Ao fadista chamam faia, 
 Ao agiota intrujão; 
 Ao corcovado golfinho, 
 Ao valente bogalhão. 

Entre o povo portuguez 
Ha calões tão revesados, 
Que deixam muitos pintados 
Por mais de cento e uma vez. 
 Lá vão alguns — trinta e trez 
 (Não sei se n'elles dou raia): 
 A' prata chamam-lhe laia, 
 A's nossas cabeças pinhas
Aos porcos chamam sardinhas
Ao fadista chamam faia

A's nossas mãos chamam batas
Ao génio chamam ralé
A' esperança chamam filé
A's bruxarias bagatas; 
A's velhas chamam cascatas
Ao poupado sovelão
Um gabinardo ao gabão; 
Ao caldo chamam-lhe rola
A um relógio cebola,
Ao agiota intrujão

Ao fugir chamam raspar
Chamam á casa mosqueiro
Ao ébrio chamam-lhe archeiro
Ao comprehender toscar
Ao roubo chamam cortar
A' guitarra pianinho, 
Ao chapéu escovadinho
Ao jogo chamam batota
A uma sardinha aranhota
Ao corcovado golfinho
 
A' fome chamam peneira
Também lhe chamam larica
Chamam á cara botica
A' aguardente piteira
Chamam bico á bebedeira, 
A uma mentira palão
E também é de calão 
Chamar-se ao vinho briol;  
Ao nosso bucho paiol
Ao valente bogalhão
 
In: Alberto Pimentel - A triste canção do sul: subsídios para a história do fado. Lisboa: Livraria Central de Gomes de Carvalho, editot, 1904, pp. 89-93 
___________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 11 de novembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24840: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (19): O Bairro Alto... de finais do séc. XIX, mal afamado durante muitas décadas, e hoje gentrificado...


(***) Os ciganos de Portugal : com um estudo sobre o calão / F. Adolfo Coelho. - Lisboa : Imp. Nacional, 1892. - [8], 302, [1] p.; 26 cm. Obra também do domínio público, digitalizado pela Biblioteca Nacional (ver aqui cópia em formato pdf).

sábado, 11 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24840: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (19): O Bairro Alto... de finais do séc. XIX, mal afamado durante muitas décadas, e hoje gentrificado...

Capa do livro de Avelino de Sousa (1880-1946), "Bairro Alto: romance de costumes populares". Lisboa: Livraria Popular de Francisco Franco, Lisboa, 1944, 290 pp. 


1. Já não é do nosso tempo de meninos e moços...Mas se fosse,  não nos deixavam lá ir, sozinhos... Nem já é do tempo dos nossos pais, nascidos por volta dos anos 20... Estamos a falar de 1896/97/98, e de um dos guetos de Lisboa... o mal afamado Bairro Alto. 

Irreconhecível hoje, ou talvez não: as suas ruas, o seu casario, são os mesmos... Ainda existem casas com aventais de pau (meias-portas, nos pisos térreos), e persianas de tabuinhas nos andares de cima. Mas já ninguém sabe hoje o significado da expressão, "estar de avental de pau" (estar debruçada, a mulher,  sobre as meias-portas, oferecer-se, prostituir-se).

A toponímia pode ter mudado num caso ou noutro. As tascas dos galegos desapareceram. Tal como os candeeiros a gás, de iluminação pública.  E a redação dos jornais e as tipografias, que começaram a concentrar-se nesta zona histórica, logo desde meados do séc. XIX. Já não há cheiro a peixe frito nem se servem entaladas, candas, iscas com elas, etc., nem se bebe um meio-curto (copo mal cheio, com café, vinho, canela e açucar)... Ou uns tintos.... cortados (vinho com soda).

A fauna humana também mudou... Todos/as tinham alcunhas, "nomes de guerra", das rascoas aos faias, dos artistas aos amigos do alheio:  Pinoia, Enjeitada, Pantera, Micas, Camélia, Pinta-Monos, Pé de Chumbo, Zé-Bode, Garrafão, Fininho, Janota... O fadista ou faia, com o seu traje característico e o seu calão,  perdeu-se na voragem do tempo...As modas são outras,,,  A fadista de faca na liga, também. 

Grosso modo, há o antes e o depois de Amália Rodrigues, que ajudou a branquear o passado "lumpen", proletário,  rasca, ordinário, popular, do fado...O mesmo  é dizer: nobilitou o fado, arrancando-o da rua, da viela, do vicio, da taberna... 

E já não há Adelaides Pinóias a cantar ou a gemer: "Quem nasceu no Bairro Alto / há de sofrer e chorar / ao ouvir uma guitarra / docemente a soluçar" (pág. 289).  Nem o Bairro Alto é mais o dos "amores tão delicados": se o foi, foi no bom tempo do palácios e conventos do séc.  XVI... Degradando-se, foi apropriado pelas "classes laboriosas" e pelos grupos socialmente marginalizados. O "acantonamento" das prostitutas em certas zonas da cidade, bairros populares, ribeirinhos  degradados, imposto por postura municipal de 1833, por razões de "saúde pública" e de salvaguarda da "moral pública", de acordo com o discurso liberal então dominante,  acabou por estigmatizar o Bairro Alto (e outros; Mouraria, Alfama, Madragoa, etc.) durante mais de um século... Mas foi também um dos "laboratórios sociais" do fado, "canção popular urbana de Lisboa"... hoje "património imaterial da humanidade", tal como o "cante" (que nasceu nos campos, na rua, na taberna...).

Perderam-se "bons e maus costumes"... Ganharam-se outros.  Em 2013, o antigo bairro aristocrático quinhentista fez 500 anos. O antigo Carnaval de Lisboa. com as suas cegadas,  também não existe mais, "muito bruto, por vezes malcriado, mas ao mesmo tempo divertido e com graça" (pág. 159). Em 1963, o Estado Novo hipocritamente fechou as "casas de passe" (nome eufemístico para os prostíbulos, em que as prostitutas tinham número de matrícula e inspecção médica periódica)... Já o tinha feito, de resto, no Ultramar (em 1954). 

Vinte anos depois, em 1983, Portugal legalizou a prostituição, mas não resolveu o problema das suas suas causas e consequências. 

Vale a pena, todavia, dar aos nossos leitores uma "ideia" e um "cheirinho" do que foi  o Bairro Alto das últimas décadas do século dezanove, social e espacialmenteĺ segregado, mal afamado tantos anos (até mesmo para lá do 25 de Abril de 1974)... 

Alguns de nós ainda o conhecemos nos anos 60/70, ao tempo da tropa e da guerra colonial ... Mesmo para aqueles que nunca lá foram, ficou no seu imaginário, tal como o Pilão, em Bissau...

A partir dos anos 80, o Bairro Alto "aperaltou-se", lavou a cara,  passou a ser uma zona turística, sítio obrigatório da noite de Lisboa, e hoje cada vez mais "gentrificado"...  Novas formas e lugares de prostituição apareceram, a começar pela prostituição de luxo (a que as elites do Estado Novo, de resto, já recorriam: veja-se o "escàndalo" do Balet Rose, em 1967).

Reproduzimos a seguir alguns excertos deste pitoresco "romance de costumes", do Avelino de Sousa,  publicado em 1944, mas que começou por ser uma opereta, com o mesmo nome, e do mesmo autor. (Terá tido bastante sucesso no ano de 1927, já em plena Ditadura Militar...)


O Bairro Alto de antigamente

(...)  Bairro Alto – bairro de gente honesta, bairro de artistas e de operários,      bairro da Imprensa, de boémios e de fadistas e também – na época em que decorre a ação deste romance – bairro de rascoas que se estendiam como que em alas de ambos os lados da maioria das artérias, debruçadas sobre os aventais de pau [nome  dado vulgarmente às meias portas], por todas as ruas, da Atalaia, dos Calafates, da Barroca, das  Salgadeiras, do Norte, das Gáveas, Travessas da Cara, da Boa-Hora, da Água da Flor, dos Fiéis de Deus, das Mercês, da Espera, do Poço da Cidade. (…) (pág. 58).

(...) A velha casa das iscas do Bairro Alto na rua da Atalaia, à esquina da Travessa da Água da Flor, era a mais antiga de Lisboa, depois da que ainda existia na rua do Arsenal, à esquina da Travessa do Cotovelo. Os seus proprietários, dois irmãos galegos, Manuel e José, usavam matacões [suiças],(...) (pág. 76).

***

 (…) Havia no Bairro Alto um fadista − ajudante de cortador no talho do Augusto, na rua da Rosa, esquina dos Inglesinhos − rapaz alto, desempenado, aloirado, de pequeno bigode e nariz saliente, vestindo rigorosamente à fadista: jaquetão e colete de astracã preta, camisa de cordões de seda em substituição da gravata, calça de boca de sino, até ao bico do sapato, em fantasia às riscas, num tom acastanhado,  algibeiras ao alto, larga pestana a guarnecer a perna,  cinto de seda vermelha, chapéu de aba de tela. Usava uma grande melena,  em caracol como que colada à testa, bamboleava muito o corpo,  quando andava, e fumava charutos cortados de dez cada um.

Bons tempos!

Chamava-se Augusto César de Carvalho,  mas era conhecido pelo Augusto   Bombinhas. (…) (pp. 116/117)

***

(...)  Ora, graças!... A velha, foi amiga!... Doze mal reis!...Ena pai!... 24 c’roas!... É melhor do que nada e eu estava sem vintém! (…)

E metendo o dinheiro no bolso do  colete, abandonou o saquito num canto, desceu a escada, saiu pela rua Formosa, meteu-se  à calçada do Combro, entrou na Adega do Estucador ao lado do quartel  dos Paulistas, e, ao mesmo tempo que tirava do prato, que estava em cima do balcão, um ovo cozido pintado de encarnado à força de anilina,molhando-o no sal grosso, depois de rebolar a casca sobre o balcão para a partir, pediu:

Dê cá três celitros, ó patrão!... e deu  uma dentada no ovo.

Mas, nisto, uma voz,  por detrás dele, dizia-lhe ao ouvido:

Não pagas nada, ó Cambalhotas ?...

Era o Pé de Chumbo gatuno como ele.

− Estás teso ?...

− Palavra de honra que estou! Não tenho  chapeca, e o raio da Micas, hoje, ainda não se estreou!

  Andas com azar!... Olha, come um ovo cozido, que estão bons!...Vá anda, e bebe um copo! O cofre, está aberto! Queres duas c’roas emprestadas?...

− Estás armado ?...

− E bem armado! Tive um belo gancho!, camarada.

− Não percebo!

− Contos largos! Toma lá as duas c’roas, não se fala mais nisso!

− Viste o Garrafão ?...

− Hoje, não. Ontem à noite,estive com ele no João da Arruda na rua da Atalaia.  Estava danado com a dor!

− Está no pinho?... [não ter amante]

− Pois, !... A Pantera correu com ele, e passou-se para o Zi-Zi!

 E o gajo não lhe deu um flàquibaque na tabuleta  [ bofetada na cara] ?

− Não, porque  tem medo do Zi-Zi. Tu sabes que o Garrafão não é mau rapaz, mas é fracalhote. Aquele corpo, todo é balofo!

− Ora, meu amigo, tu  também  quando a pregas é à carunfa [à traição] ! – disse o Cambalhotas.

− É como calha! Também não és tu quem dá os bons dias [ser o mais valente, ou o mais cotado em qualquer manifestação da vida].

O Cambalhotas engoliu em seco, e disse, fugindo à discussão:

− Também o Garrafão não perdeu nada! A gaja era um estojo horrível!

  bem, ela é atanado, é feia que nem um pente de pau do ar, mas governa-se bem a vender os trapos  às outras! Olha que o Garrafão talvez não arranje outra assim!

− Não sei… Ele andava a fazer-se [a atirar-se, a fazer o cerco] todo com a Beatriz Gorda, e também com a Augusta do Campos! Mas esta não deixa o João da Isabel [Também cantava o fado e era irmão do Zé-Bode e do Júlio Martelo].

− Pelo lado do interesse, nenhuma delas vale a Pantera! Agora como mulheres…

Enquanto estes dois patifes conversavam, comendo ovos cozidos e bebendo a sua pinga, na Adega do Estucador, outras cenas de roubo se desenrolavam em todas as casas de penhores do Bairro Alto (…) (pp. 129-131).

***

(...) Pendurados junto às ombreiras das  portas de um lado e outro da Travessa do Poço da Cidade, no renque de luz indecisa,  os candeeiros de petróleo difundiam uma claridade bruxuleante, mal eliminando as caras pintadas das infelizes rascoas, encostadas às tradicionais meias portas.  Nos primeiros andares,  de tabuinhas, a mesma luz soturna lucilava, mal se distinguindo da rua.

A cada esquina , um candeeiro de iluminação pública, espalhava aquela luz amarelada e mortiça do gás da Companhia. Lá em cima, na esquina da rua da Rosa, um polícia,  de palestra com o guarda noturno, chupava um magro cigarro.

No Bairro Alto, pelo menos na época que estamos descrevendo. a maioria das raparigas da vida, como era de uso chamar-lhes, eram comedidas de linguagem e de atitudes, raro sofrendo uma admoestação policial, e até se dava o caso interessante de cumprimentarem e serem cumprimentadas, cortesmente, por pessoas honestas da vizinhança. (…) Acarinhavam e  beijavam a petizada da vizinhança, tornando-se assim simpáticas aos pais e às mães das crianças.

E não se pegava nada, como diz o povo judiciosamente,  ou quem sabe ? talvez houvesse menos maldade naquele tempo! (...)  (pp. 137/138)

***

(…) A Enjeitada afastou um pouco a cortina de ramagem, sentou-se no canapé, de guitarra em punho, e a Adelaide, sem sair da porta, pegou no papel dos versos.

− Dá-me entrada, sim?...

A Enjeitada começou a tanger a guitarra,  tirando uns acordes à maneira de introdução.

− Entra agora!

E  a Adelaide começou:

Este livro é a grilheta
que a corrente a desgraçada, 
que chafurda e que vegeta 
nesta vida segregada!

É o nó que à perdição 
nos prende por toda a vida, 
− o selo da podridão,
e a algema da perdida! (…)

A Pinoia interrompeu-se:

− Vou bem ?

− Muito bem ! Segue, anda!

 A Adelaide prosseguiu: 

É ferro em brasa,
 que nos queima
 e nos arrasa! 
Um alvará 
que, por teima, 
a Lei nos dá.

Um passaporte p’ra viver no lodaçal:
Um escarro ignóbil ao serviço da Moral!

− Que tal,  ó Enjeitada ?

− Muito bem, Adelaide! E os versos ? Cheios de verdade!... (pp. 184/185) (**)

***

(...) E  a Adelaide senta-se no canapé.  O Pinta-Monos toma lugar a seu lado e observa:

 − Ah!, Adelaide se tivesses sido a minha, já não estavas aqui!

Ela solta uma gargalhada, e contrapõe;

− Tu estás doido,  rapaz ?! Deixar esta vida, eu ?! Aqui,  é que eu sou gente! Fora disto,  seria uma mulher corriqueira, uma senhora honesta,  como outra qualquer!

− Mas... 

− Já te disse: aqui,  sou eu Rainha! (...) (pág. 198) (**)

(Seleção / revisão e fixação de texto / adaptação: LG. As notas dentro dos parênteses retos são notas de rodapé, da responsabilidade do autor, Avelino de Sousa)
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Notas do editor:

(*) Último poste da série de 5 de novembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24824: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (18): a taberna em meio rural (António Eduardo Ferreira, 1950-2023, Moleanos, Alcobaça)

(**) Glossário (termos e expressões idiomáticas da gíria ou do calão usados no romance):

Alcouce - Bordel, prostíbulo (etimologia duvidosa)

Alcoveta -Mulher intermediária no comércio do sexo (do árabe, al-qawwâd, intermediário.)

Belfe - Calote


Buchinha - Num baile, era ceder a dama a outro cavalheiro

Carunfa - Traição

Carunfeiro - Traiçoeiro

Celitro - Decilitro (de vinho)

Cheta - Um vintém (20 réis), 5 chetas equivalia a 1 tostão

Cortado - Vinho  com soda

C'roa - Dois mil (ou mal...) réis 

Cunfia - Confiança

Dar os bons dias - Ser o mais valente

Duques - (?)

Elas - Batatas ("Iscas com elas")

Ensaio de galheta - Par de bofetadas

Entalada - Uma isca metida num quarto de pão.

Estar no pinho - Não ter amante

Ético - Sem dinheiro ("estar ético")

Flaquibaque - Estalada

Garonga - (?)

Labita - Fraque

Libra - 4500 réis

Meio-curto - Copo mal cheio, com café, vinho, canela e açucar.

Meia-lata - Meio litro (de vinho)

Meia-unha - Meio tostão

Pai de vida - (?)

Ourelo -  Cuidado, cautela

Quarto de bife ou quarto de dose - Um meio bife custava 140 réis (sete vinténs). Um quarto custava metade. Pretexto para se beber nais um copo.

Queijada - Gratificação

Rascoa - "Mulher da vida", prostituta... Era duplamente exploradas: pelos chulos  (rufiões, que nem todos eram fadistas, vivendo do pequeno crime)  e pelas "patroas", as donas das casas ("cobravam, em geral, quinze tostões a dois mil réis por dia por cada casa"; (...) "uma exploração ignóbil de que as infelizes eram vítimas, pois que, na maior parte dos dias, não ganhavam nem para o petróleo, como elas próprias diziam". (pág. 192).

Requineta - Fraque

Roda - Tostão (duas rodas, dois tostões ou dois-tões)

Tabuleta - Cara

Tostão - 100 réis, 5 chetas ou 5 vinténs

Toudas - Sopapo

Trompázio na fuça - Soco na cara

Trovas a atirar - Cantigas que encerravam uma provocação, dando origem por vezes a conflitos.

Vintém - 20 réis