Foto (e legenda): © Virgílio Teixeira (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guine]
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Virgílio Ferreira, aspirante a oficial miliciano, Porto, junho de 1967. Foto para o BI militar |
Ele seguiu o seu caminho e eu o meu. Ele foi para o Liceu e eu fui trabalhar, com muito mais possibilidades do que ele. O pai era operário fabril, muito sério e muito boa pessoa, apesar de nunca ter falado com ele. A mãe estava entravada, numa cadeira de rodas, e cozinhava e fazia as coisas, com a ajuda das vizinhas, muito boa senhora, mas ele, o meu amigo, não era amigo, talvez sofresse de inveja, apesar de ele estudar e eu, ao mesmo tempo , trabalhava e estudava de noite.
Como não íamos a parte nenhuma, chegados ou a férias ou fins de semana, nos anos 64,65 e 66 lá organizamos o nosso passatempo. Começámos por viagens pelo país, cada dia inventávamos um percurso, como ir a Trás os Montes, Douro, Alentejo, Algarves, etc.
Vestíamos a capa e batina, que nessa época era um handicap grande, íamos para a estrada à boleia, sem quase dinheiro nenhum. A minha mãe preparava um farnel, que dava só para um dia, e as viagens eram longas, só nos Carnavais de 65 e 66 eram 6 dias a pão e água.
Vamos reduzir isto, que está tão bem documentado na minha vida em livro de 3 mil páginas, nunca editado, nem editável.
Escrevo tudo sem ir lembrar nada o que escrevi, um dia deu-nos na cabeça, que tínhamos que passar fronteiras. Ir conhecer a nossa vizinha Espanha, começando pela Galiza.
No 2º trimestre de 65 , já estávamos apurados para todo o serviço militar, em espera para terminar os cursos, ninguém podia sair de dentro de fronteiras.
Como já expliquei várias vezes, eu tinha uma relação muito especial com uma filha de um camarada de meu pai, que por acaso trabalhava aqui na PIDE, no Porto. Fácil foi convencer o pessoal que nós éramos 'direitinhos' e não íamos 'dar o salto' (ou 'dar os frosques', como se dizia no meu Porto) , e assim passar a fronteira de Valença era apenas coisa de um telefonema do Porto para Valença.
Fomos então, lá para abril de 65, com grande experiência de boleia de estradas, com o aval das capas e batinas, que ainda mantinham muito respeito, porque eram poucas, saímos do Porto, direcção a Valença.
As boleias apanhávamos tudo que fosse na direcção que queríamos, ninguém escusava nada, tudo muito fácil, muitos conhecimentos e algumas amizades.
E lá fomos, passando e parando em vários sítios e cidades. Chegados a Arcos de Valdevez , já começava a ficar escuro, e daí para diante eram florestas carregadas de lobos e cães selvagens.
O homem deixou-nos no cruzamento chamado de Extremo, que em frente era selva e para os lados do mar, nomeadamente Ponte de Lima, era mais agradável e povoado.
Mais nenhum carro passou e ali ficámos plantados no cruzamento da morte, como ainda hoje lhe chamo.
Caminhámos até encontrar luzes, era a casa do Padre, ou estava lá com a amante ou teve medo, apesar de explicarmos por fora sem nunca nos vermos.
Continuámos até ver uma casa de pasto e uma camioneta velha à porta. Tocámos e falámos sem ninguém abrir a porta e explicámos que os lobos e os cães ali perto nos tentavam agredir, nada que comovesse os donos. Disse-nos então que estava ali uma camioneta e que podíamos passar a noite na cabina, sem vidros e sem fechos.
Lá entrámos com os cães a ladrar e os lobos a uivar. O frio era tanto que tivemos de dormir abraçados, enrolados nas capas de ambos. Um terror.
De manhã cedo, com a luz do dia, lá aparece o homem e mulher e filhas, Pediram desculpas e ofereceram o pequeno almoço, que bem nos soube, pois não havíamos jantado. Em cada viagem perdíamos vários quilos.
Obrigado e pusemo-nos à estrada e de dia foi num rápido e estávamos em Valença, passámos sem problemas, e pela Galiza dentro conheci outro mundo, não muito diferente do nosso, só falavam galego.
As boleias foram fáceis e rapidamente antes do almoço estávamos na Catedral de Santiago. Fomos recebidos pelo Prior, ainda tenho uma fotografia (ver acima), tínhamos ar de sofrimento,
Explicada a nossa aventura, almoçámos por ali junto dos restantes membros. Depois não sei como foi a conversa, mas ofereceram jantar e quarto pra dormir. Tudo 5 estrelas, para quem dormira numa cabine de camioneta sem vedação.
Despedimo-nos com as respectivas moradas e nomes, com juras de lá voltarmos. Agora íamos para casa. Não sei se nos deu algum dinheiro para a viagem.
Mas em vez de seguirmos para casa, continuámos à boleia e fomos até à Corunha e todas aquelas praias, e ainda fomos parar a Tordesilhas , e virámos para o ocidente, Salamanca e fronteira. Depois voltámos a casa. Com menos uns quilos...
Esta foi a nossa peregrinação a Santiago, julgo que não se sabia ainda das futuras rotas de peregrinação.
Ficava aqui a falar nas nossas aventuras à volta de Portugal, com 2 carnavais em Loulé em 65 e 66 e a bajulação daquelas raparigas, que aproveitámos para tirar algum proveito, e na última vez acabámos ao fim de 5 dias de ir dormir na Cadeia de Loulé, onde o pai de um dos nossos companheiros era guarda prisional e ali dormimos cerca de 20 estudantes, no meio de colchões de palha carregados de mijo e pulgas, e de manhã fomos ao lavatório passar água nos olhos e fugir dali, a chuva tinha passado e as roupas secado.
Depois fomos ter a Évora, onde estava o meu Pai, que nos matou a fome, e dinheiro para o comboio direto ao Porto. Só que continuámos para Norte, para dar a volta a Portugal, que acabei por fazer sozinho, por desistência do meu amigo e vizinho...
Comecei às 13 horas, agora já são 17 e meia, e vou levar a minha Santa à Missa, eu espero no café.
Nota do editor LG: