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sábado, 15 de novembro de 2025

Guiné 61/74 - P27425: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (37): o Petromax de 500 CP/Velas





Ilustração: Chat Portuguès / GPTonline.ai



1. Nunca tive um Petromax. Nem em casa nem na Guiné. Por muitas voltas que dê ao meu "arquivo", não encontro nem memórias nem referências (escritas) ao Petromax. No nosso blogue há 22 referências.

Ainda sou do tempo do candeeiro a petróleo. Fiz a quarta classe com ele. A eletricidade chegou tarde. Na Guiné, muitos dos nossos resorts turísticos, ecológicos, eram alumiados a Petromax. Sobretudo nos primeiros anos da guerra... 

Ainda não havia geradores em muitos sítios. A luz elétrica, mesmo só à noite, ainda não era para todos. Aliás, nada é para todos neste mundo.  Se fosse tudo para todos, ninguém queria ir para o céu.  A luz elétrica ainda não chegou, por exemplo,  à maior parte das tabancas da Guiné -Bissau.  Cinquenta anos depois da independência.  Nem Deus, nem Alá, nem os bons irãs têm ajudado. Se calhar, os guinenses não rezam o suficiente.  Mas não sejamos cruéis, com a pobreza não se brinca. Nem com a nossa nem com a dos outros.

Por azar o meu, o nosso quarteleiro nunca me dispensou nenhum. Se é que a minha CCAÇ 12, em Bambadinca,  tinha Petromaxes à carga (era assim que se dizia ?).

Os Petromaxes começaram a aparecer nos anos 50, no "Continente" (leia-se: em Portugal Continental, ainda não havia o "Continente", marca registada). 

 Eram fabricados, na Casa Hipólito, em Torres Vedras, concelho vizinho do meu. Mas não eram para as todas bolsas, os Petromaxes. Lembro-me de ficar fascinado com a luz que irradiavam bem como com os segredos do seu funcionamento.  um Petromax era um luxo.  Nunca aprendi a acender nenhum. O terror era poder estragar a camisinha de seda...  

O meu candeeiro a petróleo era mais simples. Comprava-se o "petróleo" ao "pitrolino" que tinha uma carroça puxada por uma mula ( ou era um macho ?) e que vendia tudo, do sabão ao azeite, do petróleo (iluminante) a outros produtos de drogaria, desde a lixívia á "aguardente bagaceira" que até era era usada para assar chouriços! ... Porta a porta, rua a rua,  m tocando uma corneta, "olhó pitrolino!"..

 Bons velhos tempos em que os "supermercados" tinham rodas e iam a casa abastecer-nos.  E nós brincávamos na rua!

Frugalmente. Só se comprava o que era estritamente necessário para a nossa sobrevivência. Não havia sacos de plástico nem "bitcoins". Nem plástico nem digital. Só moedas pretas, bem pretas do "suor" e do "sebo" dos desgraçados que trabalhavam de sol a sol, no campo ou nas oficinas. Fabricas ainda não havia. Nasci no séc. XIX, por sorte irei morrer no séc. XXI. Século prodigioso, dizem os otimistas.  Ou os que são pagos para serem otimistas. Tão prodigioso, afinal, como aquele em que nascemos e vivemos e fizemos a guerra da Guiné.


2. Pedi à minha assistente de IA, a "Sabe-Tudo", para me dar umas "luzes", uma explicação simples e prática, sobre o esquema da lanterna Petromax (modelo ~500 CP / Velas) (o topo de gama, no meu tempo de menino & moço). Aqui vão umas dicas.


2.1. Resumo dos nomes das peças (o que está apontado no desenho, acima)

  • Teto: a tampinha superior que protege e ajuda a espalhar o calor.
  • Camisa: a estrutura/carcaça que envolve o corpo da lâmpada (e o vidro); protege o difusor e ajuda a circulação do ar.
  • Vaporizador/gerador: é onde onde o combustível líquido é aquecido e transformado em gás antes de chegar ao manto.
  • Manto (a peça pontilhada dentro): a "rede" cerâmica/tecida que brilha com luz intensa quando o gás queimado incandesce.
  • Bomba: o pistão manual que pressuriza o depósito (tanque); ao bombear, cria pressão para forçar o combustível através do vaporizador.
  • Válvula de controlo: regula a quantidade de combustível(ou gás, nas versões mais modernas) que vai para o vaporizador/manto: controla a intensidade da luz.
  • Depósito: o tanque que contém o combustível (querosene/parafina, conforme o modelo). 

 2.2. Como funciona (passos simples):


(i) abasteces o depósito com combustível apropriado;

(ii) pressionas (bombeias) o depósito com a bomba manual: isso cria pressão no tanque;

(iii) ao abrir a válvula de controlo, o combustível pressurizado é forçado para o vaporizador;

(iv) o vaporizador está quente (ou é pré-aquecido) e transforma o combustível líquido em vapor/gás;

(v) esse gás sobe para o manto, onde queima e faz o manto incandescente: é isso que produz a luz forte característica;

(vi) a camisa e o teto ajudam a controlar o fluxo de ar e a proteger o conjunto.

23. Dica sobre o termo “500 CP / Velas”

O “500 CP / Velas"  normalmente refere-se à intensidade luminosa aproximada (CP = candlepower / velas). 500 velas, quer dizer que é uma lanterna muito brilhante.

3. Cuidados importantes (segurança):

  • usa apenas o combustível recomendado pelo fabricante;
  • não enchas demais o depósito;
  • faz o pré-aquecimento do vaporizador conforme as instruções (muitos modelos exigem pré-aquecimento para vaporizar corretamente);
  • não toques no manto enquanto estiver quente, é frágil e queima;
  • manuseia a lanterna em local ventilado e mantém-na estável.

4. Conselhos de um veterano (se um dia tiveres ainda que voltar à guerra, noutra incarnação, e levar um Petromax, que pesa menos que um gerador):

  • não o acendas à noite, dentro da tenda ou da tua morança (se estiveres alojado num tabanca);
  • a luz atrai os mosquitos e os "snipers";
  • se tiveres insónias, pesadelos e outras coisas assim, é melhor beber uma golada de aguardente Doc Lourinhã para adormeceres ou então jogar às cartas às escuras;
  • aconselho a aguardente Doc Lourinhã, porque é nossa: o uísque é escocês; mas eu não sou chauvinista, nem racista, nem xenófobo, muito menos supremacista; 
  • sempre é melhor do que o Valum 10 ou o Xanax;
  • sempre é melhor do que levar com um balázio de um RPG "made in China";
  • mas bem melhor ainda é contratares uma bajuda para te catar,  enquanto adormeces;
  • sabes o que é "catar" ?;
  • um gajo no mato apanha muitos "parasitas;
  • "catar" é um ato altamente social, só próprio dos primatas; 
  • mas, por favor, nunca uses o Petromax;
  • mando-o para longe, para iluminar o perímetro do arame farpado;
  • se tiveres quatro, melhor, pões um cada canto do teu "quadrado"; 
  • em alternativa pede á empresa do Patricio Ribeiro para te instalar uns painéis solares.

Foi assim que os nossos "mandjores" ganharam as guerras das "campanhas de pacificação"...Com a estratégia do "quadrado". O capitão Tomé Pinto ficou célebre pela aplicação desta figura geométrica na guerra da Guine. Ainda hoje é  conhecido pelo capitão do quadrado. 

Raios me partam, às vezes assim sonho com os bigodes farfalhudos do Capitão-Diabo que conquistou o Óio em 1915 e não tinha Petromax. Muito menos painéis solares. 
____________

Nota do editor LG:

sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Guiné 61/74 - P27367: Manuscrito(s) (Luís Graça) (276): "A Rua Suspensa dos Olhos", de Ábio de Lápara, pseudónimo literário de José António Bóia Paradela (1937-2023), ilhavense, urbanista, arquiteto e escritor - Parte I: "Rua das Manhãs, a morte levou tudo o que eu amava"




Capa do livro "A Rua Suspensa dos Olhos" de Ábio de Lápara (edição de autor,  José A. Paradela, Aveiro, 2015, 164 pp.) (*)...

Ábio de Lápara é o pseudónimo literário de José António Bóia  Paradela.  Imagens: arquivo de LG + Matilde Henriques 


Fotos (e legendas): © Luís Graça (2025). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




1. Zé António, meu mano:  hoje seria dia dos teus anos.  30 de outuro de 2025. Aliás, é dia dos teus anos. Oitenta e oito.  Um número redondo, uma capicua.  Em boa verdade, não morreste.  Deixaste apenas de aparecer, lá na nossa casa, como nos dias de cozido à portuguesa, feito pela "chef" Alice. Como tu adoravas o caldinho do cozido, a fumegar, já ao fim da tarde dos nossos sábados de eternidade,  com o saborzinho e o cheirinho da hortelã!

Foste-te embora, não encerraste a tua conta do Facebook. E a PAL -Planeamento e Arquitetura Lda, continua de porta aberta. O teu gabinete, a tua torre que não era de marfim. Eras um homem, cidadão, português, ilhavense, escritor, urbanista e arquiteto, profundamente ligado à terra (e ao mar).  Nunca foste ilha, mas arquipélago. Todos os que te ama(va)m continuam a "falar" contigo. Na esperança de que tu nos oiças. Falamos de ti entre nós. Que é também a nossa maneira de "falar" contigo. 

Ainda hoje, ao fim da tarde (os dias agora são mais curtos com o raio da hora de inverno), estivemos, eu, a Alice, a tua Matilde e o teu Jorge, a matar a nossa saudade de ti, à volta de um pastel de nata e de uma bica. Só faltou o "almirante", que anda lá pelo Mar do Norte, no seu porta-contentores, com esta invernia. Virá cá pelo Natal. Para ver a tua neta, que está cada vez mais linda. Ah!, vais ter outra neta (ou neto). Parabéns!... Eu também já tenho duas netas, é bom, dão-nos a ilusão de eternidade.

E, depois, continuas a ter, aqui, um lugar sob o poilão da Tabanca Grande. Foste marinheiro. Nunca foste à Guiné. Mas fizeste a tua tropa, a tua guerra. Foste à Terra Nova. Também foste "periquito", aliás "verde". Aos 17 anos, no teu dóri, nos bancos de pesca da Terra Nova. Na frota branca, a bacalhoeira (*). E também estiveste na marinha de guerra. Darias sempre um "mau infante" como eu.

Hoje ergo a taça, bebendo simbolicamente à tua memória, que continua viva, presente e quente entre os teus (família e amigos).

Lembrei-me dos teus livros. E deu-me uma saudade danada de reler a tua Rua Suspensa dos Olhos (**), que foi a rua da tua infância, em Alqueidão, Ílhavo. Nunca lá fui, a Alqueidão, que pena, tendo-te a ti como cicerone.  Perdi essa oportunidade única. Mas, pelo que me dizias, a tua rua já não existia. As ruas da nossa infància, quando crescemos ou mudamos de rua, de cidade, de país, deixam de existir.  As ruas da nossa infància morrem connosco  se não passarmos para o papel ou para o computador as nossas memórias. Ainda bem que o fizeste. São as tuas geografias emocionais. Mas também não  precisei de ir lá, à tua antiga rua da infância, bastou-me ler o teu livro. 

Todos temos, tivemos,  uma rua da  infância. Imagino que o teu Alqueidão era o da gente humilde, que nasceu com o ADN do mar por brasão. Quando eu te visitava, em agosto, a caminho de Candoz,  era na burguesa Costa Nova. Conheço mal a tua Ílhavo. A última vez que lá estive foi no dia da tua despedida da Terra da Alegria.

O jornalista Viriato Teles, também ele ilhavense, que fez em 2015 a apresentação do teu livro, na terra de ambos, sessão que eu perdi por qualquer razão de agenda, escreveu então o seguinte, sob o título "Os olhos da nossa infància" (excertos reproduzidos aqui com a devida vénia):

(...) Eu não conheci 'A Rua Suspensa dos Olhos',  tal e qual ela como nos é contada neste livro. Nasci uns anitos depois do Zé António, e do Ábio, e por isso já não vi o empedrado nem os poiais em frente das casas de Alqueidão. 

Mas o lugar onde brincou o Zé António é o mesmo onde, anos depois, eu passei muitos dos meus dias — e sobretudo das minhas noites — da adolescência. Pela simples razão de que era em Alqueidão que moravam alguns dos meus melhores amigos, e isso fazia de mim um passeante regular da rua.

Além disso, Alqueidão desembocava no esteiro da Malhada, que nessa altura era o melhor lugar do mundo (...)

(...) E muito daquilo que se passava na Rua Suspensa dos Olhos,  do Ábio de Lápara, passava-se de modo semelhante na Rua da Capela da minha infância. Além de que — e essa é seguramente outra semelhança que existe entre nós — no meu tempo como no dele, a infância vivia-se muito na rua e a partir da rua. Paradoxalmente, nessa época em que a liberdade era, em Portugal, um anseio longínquo e difícil de concretizar, a vida dos miúdos como nós era muito mais livre do que foi a dos nossos filhos.

A rua era o nosso pátio, a nossa casa, o nosso mundo. E a nossa escola, também. (...)

(...) Naqueles tempos em que as crianças vinham da Feira dos Treze pela mão da Dona Alicinha (que "não tinha filhos pois os dava a toda a gente" e que nos ajudou a ambos a vir ao mundo), Ílhavo era muito diferente do que é hoje. 

Nas nossas infâncias, Ílhavo era uma vila, ainda essencialmente ligada ao mar e à pesca longínqua da Terra Nova, e isso modelou inevitavelmente a nossa forma de estar e de sentir: aquele modo de ser meio agreste que nos caracteriza e que se revela nos jeitos e nos trejeitos, no linguajar, na maneira como falamos uns com os outros — e uns dos outros, também.

Não me custa dar razão a quem nos define como sendo uma gente pouco dada a cortesias: afinal, a 'alma ilhavense' moldou-se nos mares do fim do mundo, em meses de solidão e frio glacial, onde pairava sempre o sopro da morte, à espreita em cada vaga. Isto no que aos homens diz respeito. Quanto às mulheres, forçadas a assumir o comando da vida em terra, desenvolveram um forte sentido matriarcal — que se mantém, para o bem e para o mal. (...)


Recordo aqui o que te escrevi e disse, na na minha oração fúnebre, em 23 de fevereiro de 2023, na igreja matriz de Ílhavo:

(...) Ah!, quanto humanidade, ternura, inocência, traquinice, generosidade e poesia havia na tua rua suspensa dos olhos...

Ilhéu, lhavense, filho da terra e do mar, evocas e descreves com enorme ternura e talento a rua onde nasceste e cresceste. E das figuras humanas que marcaram a tua memória e o teu imaginário, não posso deixar de citar o teu pai, marinheiro aos 12 anos, figura de referência na tua vida, sempre ausente e sempre presente, e que gostava de dizer: “O mundo todo não vale o meu lar”…

Tendo tu sido criado no matriarcado, cercado de mulheres e dos seus fantasmas e das suas recordações, fizeste, no entanto, da figura do teu pai a mais bela evocação na tua narrativa ilhavense: “Estávamos todos em casa, isto é, ele não estava no mar, que é como quem diz, sabe-se lá onde”… (...)


LG | Alfragide, 30 de outubro de 2025, 23.00





Excertos de "A Rua Suspensa dos Olhos" - Parte I: "Rua das Manhãs, a morte levou tudo o que eu amava"

por Ábio de Lápara / José António Paradela 
(1937-2023)



Rua das Manhãs
A morte sabia
quem ali morava...
Rua das Manhãs
a morte levou
tudo o que eu amava...


Raul de Carvalho (1920-1984)


(...) Eu, criatura inventada à imagem e semelhança de Deus, fui fabricado em Campo de Ourique. Era o que dizia a minha mãe, casada com um marinheiro nos idos de 35.

Como cada um fica indelevelmente marcado pelo tempo e pelo espaço onde foi concebido, dizem, tive de aceitar logo,  nesse transe, o maldito signo do Escorpião.

Do mesmo modo, assente o sítio da batalha cujo nome, apesar da discórdia, ainda hoje é considerado o locus onde a divindade assinalou o desígnio nacional, o meu brasão só poderia ser o das cinco chagas, para os mais religiosos, ou dos cinco castelos mouros para os mais dados às coisas da guerra.

Isso acarretou alguns amargos de boca no meio familiar, onde um avô republicano casou em primeiras núpcias com uma prima católica, que passou a ser minha avó. E assim tive de herdar, ainda antes de nascer, o nome dele e o carinho extremoso dela.

Um pouco mais tarde, fizeram-me constar que fui comprado na Feira dos Treze, ali na Vista Alegre, sempre perseguido por simbolismos estranhos, e levado para a rua de Alqueidão pela mão de uma Alice que vivia do outro lado do espelho. Não tinha filhos pois que os dava a toda a gente, e ficou conhecida pelo carinhoso diminutivo de Alicinha como nas estórias de duendes e feiticeiras, já que as suas mãos exsudavam milagres em cada parto.

Terá sido este o meu caso, pois as primeiras recordações de que disponho, dão comigo a viver já nessa rua fantástica, tal como vou descrever.  (...)

***

(...) A minha casa tinha porta para ela, que nesse tempo era empedrada com calhau rolado de média dimensão, digamos... do tamanho de padas de Vale d' Ílhavo, que geravam um ruído forte sob os rodados metálicos das carroças de bois e torciam os pés às mulheres que usavam tamancos.

Para ser breve, direi que tirando as casas, de tudo o que hoje lá está, nada existia. Pois é! Pensem no que quiserem... Nada disso existia! Em contrapartida, existiam longos poiais na frente das casas que serviam de bancos onde se sentava a vasta comunidade lá da rua.

Ali, as crianças brincavam, as mulheres ratavam nos casacos de quem passava e os velhos enrolavam cigarros de tabaco desfiado que acendiam nas beatas uns dos outros.

E o que se passava durante o dia, se repetia à noite quando o tempo estava ameno, sob a luz soturna de uma lâmpada eléctrica, adorada pelos morcegos, existente num poste metálico junto à loja do ti Tomé Pascoal !

Aí vivi durante os anos da minha tenra infância e alguns da juventude.

Digamos que era uma rua divertida onde não se vislumbrava nenhuma crise de natalidade, talvez porque a Feira dos Treze ficasse a curta distância e as crianças fossem baratas, ou porque a fome tocasse igualmente a todos quer fossem poucos quer fossem muitos e por isso, nascer era relativamente indiferente.

A verdade é que não faltavam amigos para brincar nem escaramuças entre as mães para nos divertirmos. Os pais, - semente intermitente - como habitualmente, estavam ausentes no mar, muito longe, bem perto das latitudes polares. (...)

***

(...) Os Cagulas eram quatro ou cinco filhos de um cabo do exército, homem aprumado, de frágil figura e aguçado bigode, envergando farda de caqui e capote de burel cinzento. Um justo bivaque, ligeiramente descaído sobre o lado esquerdo, deixava entrever uma madeixa negra encaracolada.

Recordo-o entrando no beco, a cumprimentar os vizinhos com um gesto militar, elevando a mão direita até à orelha do mesmo lado, sem lhes dirigir muitas palavras.

Um militar de pequena patente não ganhava para ter uma família tão grande! Assim, para matar a fome aos filhos, distribuía-lhes uma tarefa ao longo dos dias da semana: dois a dois, cajado e lata ferrugenta na mão, palmilhavam a pé os cinco quilómetros que separavam a sua casa do quartel, em Aveiro, de onde regressavam com ela enfiada no cajado, plena de sopa de feijão com massa e alguns gorgulhos flutuantes.

Acontece que por ironia do meu fraco apetite, adorava aquela sopa! Assim a minha mãe via-se obrigada a promover trocas para satisfazer o meu desejo que, no fim de contas, mais não era do que o prazer de comer na companhia daqueles amigos cujas estórias e aventuras me fascinavam.

Como a sopa já chegava fria, por vezes o prodígio consistia em fazer lume na sua lareira rasa, numa cozinha onde nem sempre existiam fósforos. Então era necessário pedir uma brasa a algum vizinho e, a partir dela, soprar até pegar o fogo à lenha ainda verde, colhida no mato! Lentamente, o lume ia crescendo sob a lata pendurada de um gancho de ferro na chaminé, e o cheiro que exalava ia aumentando a saliva nas nossas bocas: um manjar!

Na penumbra daquele espaço, as estórias tinham já uma aura de mistério ou de terror, associado à luz bruxuleante e ao fumo do pinho verde e cheiroso. E lá vinham os latidos nocturnos dos cães, supostos lobisomens, e as gigantescas gibóias de fatal abraço, vencidas por um pau afiado em ambas as extremidades, seguro pela mão forte do João Cagula, que depois me explicava como ganhava dinheiro com a gordura extraída, para fabricar o unguento que se vendia na Feira dos Treze! A banha de cobra, que curava sarnas, pruridos, eczemas e muitas coisas mais! (...)

***

(... ) Por esse tempo, ao fundo da rua, residiu intermitente, uma das mais divertidas figuras que a Rua Suspensa dos Olhos teve durante anos, inflamando a imaginação dos olhos acabados de nascer: o Ramon.

Loiro, ultra-penteado com azeite, garboso de faena acabada, montava um burro do seu clã, rua acima , desde o pequeno terreiro junto à fonte dos Bastos - a que os folcloristas da outra rua chamaram em tempos Fonte dos Amores, sem que lá tenham amado - até ao Largo da Senhora, que na outra rua tinha um nome já apagado, na tabuleta oval, de esmalte antigo.

Aí, os olhos vivos, sedentos de estranheza, o inquiriam sobre a vida dos ciganos e se deliciavam com o prodígio que era poder ser loiro e simultaneamente cigano, viver numa tenda de pano sujo e ser dono de um transporte individual de quatro patas.

E, para além do mais, ser feliz nas amizades que se prolongavam no tempo - embora interrompidas pela transumância - e nos permitiam cavalgadas heróicas no lombo despido daquele burro!

Porque na outra rua, os ciganos só podiam ser morenos, vendiam cestos, liam a sina nas mãos das solteironas e, por sua causa, era necessário montar vigilância nos quintais... Se isto não é um prodígio, digam-me lá onde é que eles existem! (...)

***

(...) Muitos donos de olhos atrás citados são personagens de estórias pessoais coladas na rua suspensa, evitando a sua queda. Mas o mais importante para o equilíbrio interno de todos eles, era o grupo que permitia aferir a certeza dos seus juízos: o grupo dos loucos daquela rua.

Ficam estes para outra ocasião, porque levam algum tempo a exumar. Os seus nomes são eternos porque estão sentados á direita do Altíssimo: Chiquinho Maneta,  o Ester, Chico Rádio, António Espiga...

Contudo, lembrei-me agora de outro personagem importante lá da rua, figura indesculpavelmente esquecida.

Era um homem de estatura muito pequena, ligeiramente encurvado e com uma perna mais curta que lhe acentuava aquele defeito quando se deslocava. Andava sempre com uma caixa de madeira suspensa do ombro por uma correia de couro, onde transportava os instrumentos do seu ofício.

Chamavam-lhe Manéuzinho Fazenda, e percorria a rua de uma ponta à outra cortando cabelos e escanhoando faces barbudas.

Barbeiro ambulante, utilizava os restantes atafais dos clientes para proceder à depilatória função.

Tive a pouca sorte de o ter como barbeiro nos primeiros tempos da vida. Era nosso vizinho e uma criatura muito afável, mas cheirava a aguardente e a tabaco de séculos anteriores.

As ferramentas de que dispunha há muito que deviam ter sido reformadas! A máquina de cortar tinha falta de dentes e arrepanhava-me o cabelo, já de si finíssimo como seda, cujo eriçado destruía os pentes à minha mãe e o meu couro cabeludo no esforço do puxão.

Mas o pior de tudo era a navalha de barbear para rapar o pelo sobrante da nuca! Os meus lancinantes gritos não paravam, apesar das constantes tentativas que ele fazia para afiar e assentar o fio da lâmina maldita!

E culminavam quando ele perguntava à minha mãe:

 
  Oh Rosinha, tens álcool para lhe desinfectar o pescoço?

Durante anos pedi a Deus, nas minhas rezas nocturnas, um milagre que me libertasse dele. Sendo Deus, já nesse tempo, bastante velho e surdo, esse prodígio só aconteceu mais tarde, quando o meu pai me encomendou ao senhor Leopoldo, barbeiro com ferramentas de outra afinação, barbearia selecta, bem no coração da vila.

Colocado um pequeno assento sobre a cadeira dos adultos, ali me sentava eu, embrulhado numa enorme toalha branca apertada no pescoço, frente ao espelho que me ia devolvendo as imagens de capitães já barbeados, que prolongavam as conversas atrás da minha cadeira, discutindo assuntos de barcos e mares encapelados, quando não dizendo mal do perfume ou do cheiro a mofo da toalha com que Leopoldo lhes secara a cara... E esse gozo prolongava-se pela manhã e pela tarde, à medida que saíam uns e entravam outros. (..:)

Fonte: Excertos do manuscrito , em pdf, de "A Rua Suspensa dos Olhos",  de Ábio de Lápara, que ajudei a rever em 2015, antes da execução gráfica. Recorri de momento ao manuscrito por não aqui à mão um exemplar do livro em papel.

(Revisão / fixação de texto, negritos: LG)

_______________________

Notas do editor LG:

(*) Vd. postes de;


30 de dezembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15554: Notas de leitura (792): "A Rua Suspensa dos Olhos", de Ábio de Lápara (pseudónimo literário de José A. Paradela): reprodução do capítulo 7 com a descrição da viagem de seis meses, aos 17 anos, em 1955, aos bancos de pesca do bacalhau: III (e última) parte

(**) Último poste da série  > 11 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27307: Manuscrito(s) (Luís Graça) (275): 50 pequenas coisas que mudaram em 50 anos no Portugal sacro-profano que eram as terras de Candoz, no Marco de Canveses, em Entre-Douro-e-Minho

quinta-feira, 23 de outubro de 2025

Guiné 61/74 - P27343: S(C)em Comentários (79): Das "Vinhas da Ira" às "sopas de cavalo cansado", passando pelos verdes que me faziam azia... Tudo isto para dizer que prefiro...os maduros (Virgílio Teixeira, Vila do Conde)


O vinho verde branco "Camperlo" que também se
bebia em Bissau (passe a pblicidade...). 
Foto: Vt (2025)


1. Comentário (e fotos) do Virgílio Teixeira, ao poste P27280 (*)



As Vinhas da Ira. Romance de John Steinbeck, Escrito em 1939. A sua obra-prima. Adaptado ao cinema, surge o filme em 1940, dirigido por John Ford, com Henry Fonda como principal protagonista. Vi este filme ainda com 10 a 12 anos. Nunca o esqueci.

Dei este titulo ao comentário por me fazer lembrar as vinhas,  os vinhos e as bebedeiras....

O Luis fala e elenca uma série de vinhos que se bebiam no CTIG, eu conhecia todos, exceto o "Casal Mendes", que não me lembro de ver no meu tempo.

E naturalmente os Alvarinhos que já eram e são artigos de luxo, bebo quando mos oferecem, mas
não compro, até porque não sou apreciador de vinhos verdes, parece que me fazem azia, não os troco por maduros nrancos de qualidade, com graduação acentuada, e tintos obviamente.

O mais consumido por mim era o "Casal Garcia", que, ainda pós-desmobilização, bebia nos
dias muito quentes, mas tudo passa.

Na sequência no excelente trabalho inserto no Poste 27280, resolvi intervir com algo para mais conversa, senão a IA escreve tudo por nós e eu não sei defender-me!

Desde ainda criança começou a minha iniciação dos vinhos como tantos outros conhecem.
 
Estamos ainda em plena 2a guerra mundial, os bens escacionavam, o pequeno almoço eram as celebres "sopas de cavalo cansado": malga com broa desfeita ou casqueiro militar aos bocados; rega-se com vinho tinto, verde de pipa ou garrafão, adicionamos muito açúcar amarelo e depois é só comer.

 Não sei se fez bem ou mal, era o que havia!

E sempre bebia vinho às refeições, era de garrafão de vidro encestado.
 
Lembro me por exemplo, uma despedida de ano, talvez 59 ou 60, e num autocarro dos STCP, em plena Baixa Portuense, foi festejada a efeméride com garrafas de champanhe da conceituada marca  "Magos", uma garrafinha de 0,25

Sem direito a copo, que se abria com as cápsulas tipo cerveja e de águas do "Sameiro". Por isso nós, quando se falava dessa cápsula chamávamos de "Sameira".

Nas brincadeiras de jogar com elas, com enchimento de casca de laranja, e com os dedos fazer as corridas nas bermas dos passeios, sem sair das linhas até chegar o primeiro.

"Casal Mendes"
(passe a publicidade)
que eu náo conheci.
Foto: Vt (2025)

Que raio de brincadeiras que nem os Fulas ou Felupes as adoptaram. Não havia passeios, nem saneiras nem cascas de laranja, talvez.

O vinho que aqui se fala, o "Campelo", verde tinto e verde branco, faziam parte das bebidas de café. Encontrei 2 garrafas com rótulo original numa prateleira. A versão tinto e a versão branco que também a bebi na Guiné.
 

 O "Casal Mendes" não conheci, temos uma garrafa actual em foto, na prateleira de garrafeira. Nunca provei.

O vinho verde branco, bebe se fresco ou geladinho e não se nota defeitos. Nada como alguns vinhos Alvarinho, que são uma selecção à parte. "Palácio da Brejoeiro"  e outros.
 
Afinal não sou cliente de verdes!
 
Nunca vi uma vindima [excepto as que fazia por conta própria nos meus 10 anos nas videiras dos vizinhos]. Depois uma grande dor de barriga!
 
Abraços fraternos.(**)
 
Virgílio Teixeira
Em 2025 10 04

 PS - Nesta hora, ano 67,  já tinha feito o trajecto nos "barcos turra", e por estrda em coluna a caminho de Nova Lamego]. Já passaram 58 anos...




Virgílio Teixeira, ex-alf mil SAM, CCS/BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Dmingos, 1967 /69);  natural do Porto, vive em Vila do Conde.


______________

Notas do editor LG:


Vd. também postes de:

26 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27255: Felizmente ainda há verão em 2025 (39): Quem se lembra do vinho verde branco, "Gatão, em garrafa de cantil com argola, que depois servia para fazer candeeiros de mesa de cabeceira nos nossos "resorts" turísticos ?

20 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27232: Felizmente ainda há verão em 2025 (35): os vinhos verdes que aprendemos a gostar na guerra: Casal Garcia, Aveleda, Gatão, Três Marias, Lagosta, Palácio da Brejoeira (...sem esquecer o Mateus Rosé, da Sogrape)

11 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14598: A bianda nossa de cada dia (5): Se a vida era boa em Lisboa, em Bissau nem tudo era mau... Do arroz de todas cores ao vinho verde alvarinho "Palácio da Brejoeira"... (Hélder Sousa)

11 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14595: A bianda nossa de cada dia (4): Os nossos "chefs gourmet", lá no mato.. A fome aguçava o engenho... (Jorge Rosales / Manuel Serôdio / Vasco Pires)

9 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14589: A bianda nossa de cada dia (3): o melhor casqueiro da zona leste, amassado e cozido em forno a lenha pelo Jacinto Cristina e pelo Manuel Sobral, no destacamento da ponte Caium... Mas nem só de pão viviam os homens do 3º Gr Comb, os "fantasmas do leste", da CCAÇ 3546 (Piche, 1972/74)

7 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14584: A bianda nossa de cada dia (2): homenagem ao nosso cozinheiro Manuel, hoje empresário de restauração (Abílio Duarte, ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Nova Lamego, Paunca, 1969/1970)

5 de maio de 2015 Guiné 63/74 - P14574: A bianda nossa de cada dia (1): histórias do pão e do vinho... precisam-se!


(**) Último poste da série > 1 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27273: S(C)em Comentários (78): Na Guerra (tal como na Política) Não Vale Tudo... (António Rosinha / Cherno Baldé / Luís Graça)

quarta-feira, 6 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27095: Felizmente ainda há verão em 2025 (11): uma crónica pícara das minhas (des)venturas em abril de 1965, quando, com o meu amigo Manuel Salazar, decidi ir a Santiago de Compostela, à boleia, de capa e batina, praticamente sem um tostão no bolso (Virgílio Teixeira)



Espanha  > Galiza > Santiago de Compostela > Abril de 1965 > Da esquerda para a direita, o Virgílio Teixeira, de capa e batina,  o prior da Igreja de São Tiago de Compostela, depois o Manuel Salazar, também de capa e batina;  à direita, um homem à civil, também espanhol, deve ser o sacristão, e outro estudante de capa, que conhecemos lá. 

Viagem feita à boleia, com uma agravante de termos ficado ao relento num local depois de Arcos de Valdevez, chamado Extremo. À noite faltou a boleia até Valença, e ficámos no meio do ‘mato’. Uivos de lobos, frio de rachar, passámos a noite na cabina de uma camioneta abandonada, com as capas à volta de nós, para minorar o frio. Depois de manhã rápido chegámos a Santiago de Compostela. A foto tem a data de 28 de abril de 1965. Data da revelação. O padre prior depois de contarmos as nossas aventuras, ofereceu-nos estadia e comida para dois dias. Mas passámos mal aquela noite no Extremo, terra que nunca mais esqueci.


Foto (e legenda): © Virgílio Teixeira (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guine]

Virgílio Ferreira, aspirante
a oficial miliciano,
Porto, junho de 1967.
Foto para o BI militar


1. Crónica do Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69); natural do Porto, vive em Vila do Conde, sendo economista, reformado; tem já mais de 210  referências no nosso blogue.



Uma crónica pícara das minhas (des)venturas em abril de 1965, quando, com o meu amigo Manuel Salazar, decidi ir a Santiago de Compostela, à boleia, de capa e batina, praticamente sem um tostão no bolso 

por Virgílio Teixeira



Nesse tempo, com o meu amigo Salazar (Manuel e não António), estudante de Direito em Coimbra, de raízes muito humildes, com bolsa de estudo fez o liceu e depois o curso de direito em Coimbra, sem custos. Chegou a Juiz Conselheiro e está,  como eu,  reformado e abandonado.

Muito mais de raízes muito pobres, era meu vizinho com quem joguei à bola na rua, e depois frequentámos o mesmo colégio, e no final perdi o seu rasto. Eu, por razões que não de disciplina, faltei o ano quase todo da 3ª classe, e as bárbaras das freiras chumbaram-me, tive de repetir e atrasei um ano.

Ele seguiu o seu caminho e eu o meu. Ele foi para o Liceu e eu fui trabalhar, com muito mais possibilidades do que ele. O pai era operário fabril, muito sério e muito boa pessoa, apesar de nunca ter falado com ele. A mãe estava entravada, numa cadeira de rodas, e cozinhava e fazia as coisas, com a ajuda das vizinhas, muito boa senhora, mas ele, o meu amigo, não era amigo, talvez sofresse de inveja, apesar de ele estudar e eu, ao mesmo tempo , trabalhava e estudava de noite.

Como não íamos a parte nenhuma, chegados ou a férias ou fins de semana, nos anos 64,65 e 66 lá organizamos o nosso passatempo. Começámos por viagens pelo país, cada dia inventávamos um percurso, como ir a Trás os Montes, Douro, Alentejo,   Algarves, etc.

Vestíamos a capa e batina, que nessa época era um handicap grande, íamos para a estrada à boleia, sem quase dinheiro nenhum. A minha mãe preparava um farnel, que dava só para um dia, e as viagens eram longas, só nos Carnavais de 65 e 66 eram 6 dias a pão e água.

Vamos reduzir isto, que está tão bem documentado na minha vida em livro de 3 mil páginas, nunca editado, nem editável.

Escrevo tudo sem ir lembrar nada o que escrevi, um dia deu-nos na cabeça, que tínhamos que passar fronteiras. Ir conhecer a nossa vizinha Espanha, começando pela Galiza.

No 2º trimestre de 65 , já estávamos apurados para todo o serviço militar, em espera para terminar os cursos, ninguém podia sair de dentro de fronteiras.

Como já expliquei várias vezes, eu tinha uma relação muito especial com uma filha de um camarada de meu pai, que por acaso trabalhava aqui na PIDE,  no Porto. Fácil foi convencer o pessoal que nós éramos 'direitinhos' e não íamos 'dar o salto' (ou 'dar os frosques', como se dizia no meu Porto) , e assim passar a fronteira de Valença era apenas coisa de um telefonema do Porto para Valença.

Fomos então, lá para abril de 65, com grande experiência de boleia de estradas, com o aval das capas e batinas, que ainda mantinham muito respeito, porque eram poucas, saímos do Porto, direcção a Valença.

As boleias apanhávamos tudo que fosse na direcção que queríamos, ninguém escusava nada, tudo muito fácil, muitos conhecimentos e algumas amizades.

E lá fomos, passando e parando em vários sítios e cidades. Chegados a Arcos de Valdevez , já começava a ficar escuro, e daí para diante eram florestas carregadas de lobos e cães selvagens.

O homem deixou-nos no cruzamento chamado de Extremo, que em frente era selva e para os lados do mar, nomeadamente Ponte de Lima,  era mais agradável e povoado. 

Não tivemos alternativa, a noite caiu rapidamente , o vento gélido das montanhas fazem-se sentir, e os uivos dos lobos ouvem-se claramente.

Mais nenhum carro passou e ali ficámos plantados no cruzamento da morte,  como ainda hoje lhe chamo.

Caminhámos até encontrar luzes, era a casa do Padre, ou estava lá com a amante ou teve medo, apesar de explicarmos por fora sem nunca nos vermos.

Continuámos até ver uma casa de pasto e uma camioneta velha à porta. Tocámos e falámos sem ninguém abrir a porta e explicámos que os lobos e os cães ali perto nos tentavam agredir, nada que comovesse os donos. Disse-nos então que estava ali uma camioneta e que podíamos passar a noite na cabina, sem vidros e sem fechos.

Lá entrámos com os cães a ladrar e os lobos a uivar. O frio era tanto que tivemos de dormir abraçados, enrolados nas capas de ambos.  Um terror.

De manhã cedo, com a luz do dia,  lá aparece o homem e mulher e filhas, Pediram desculpas e ofereceram o pequeno almoço, que bem nos soube, pois não havíamos jantado. Em cada viagem perdíamos vários quilos.

Obrigado e pusemo-nos à estrada e de dia foi num rápido e estávamos em Valença, passámos sem problemas, e pela Galiza dentro conheci outro mundo, não muito diferente do nosso, só falavam galego.

As boleias foram fáceis e rapidamente antes do almoço estávamos na Catedral de Santiago. Fomos recebidos pelo Prior, ainda tenho uma fotografia (ver acima), tínhamos ar de sofrimento,

Explicada a nossa aventura, almoçá
mos por ali junto dos restantes membros. Depois não sei como foi a conversa, mas ofereceram jantar e quarto pra dormir. Tudo 5 estrelas, para quem dormira numa cabine de camioneta sem vedação.

Despedimo-nos com as respectivas moradas e nomes, com juras de lá voltarmos. Agora íamos para casa. Não sei se nos deu algum dinheiro para a viagem.

Mas em vez  de seguirmos para casa, continuámos à boleia e fomos até à Corunha e todas aquelas praias, e ainda fomos parar a Tordesilhas , e virámos  para o ocidente, Salamanca e fronteira. Depois voltámos a casa. Com menos uns quilos...

Esta foi a nossa peregrinação a Santiago, julgo que não se sabia ainda das futuras rotas de peregrinação.

Ficava aqui a falar nas nossas aventuras à volta de Portugal, com 2 carnavais em Loulé em 65 e 66 e a bajulação daquelas raparigas, que aproveitámos para tirar algum proveito, e na última vez acabámos ao fim de 5 dias de ir dormir na Cadeia de Loulé, onde o pai de um dos nossos companheiros era guarda prisional e ali dormimos cerca de 20 estudantes, no meio de colchões de palha carregados de mijo e pulgas, e de manhã fomos ao lavatório passar água nos olhos e fugir dali, a chuva tinha passado e as roupas secado.

Depois fomos ter a Évora, onde estava o meu Pai, que nos matou a fome, e dinheiro para o comboio direto ao Porto. Só que continuámos para Norte, para dar a volta a Portugal, que acabei por fazer sozinho, por desistência do meu amigo e vizinho...

Fico por aqui, logo vou continuar com as rotas de Santiago modernas, e dar respostas ao Abilio e Santiago.

Comecei às 13 horas, agora já são 17 e meia, e vou levar a minha Santa à Missa, eu espero no café.

(Revisão / fixação de texto, título, negritos: LG)


2. Comentário do editor LG:

Para quem quiser saber mais sobre a históriia do caminho de Santiago, clicar aqui:



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Nota do editor LG:

terça-feira, 22 de julho de 2025

Guiné 61/74 - P27043: Notas de leitura (1822): 2ª edição do livro do nosso José Saúde, "Aldeia Nova de São Bento" (Lisboa, Edições Colibri, 2021, 299 pp.)



Foto nº 1 > Aldeia Nova de São Bento, concelho de Serpa,  anos 30 > O Poço do Lobo  (1)... Hoje fica na Rua do Poço do Lobo. A povovoação, cuja origem remonta à guerra da restauração (Séc. XVII) foi elevada à categoria de vila em 1988.


Fotos nºs 2 > Aldeia Nova de São Bento, concelho de Serpa, anos 30 > O Poço do Lobo  (2)


Foto nº 3 > Aldeia Nova de Sáo Bento, concelho de Serpa > s/d > Rapariga com "enfusa" à cabeça


Foto nº 4 >  Aldeia Nova de Sáo Bento > Serpa   > José saúde, o autor quando jovem... Aos 9 meses, em 1951...Vê-se o braço da mãe, que o ampara...

José Saúde > Página do Facebook > Fotos do seu álbum (Com a devida vénia...). Presume-se que as fotos nºs 1,2 e 3 sejam do domínio público. (LG)


Fotos (e legendas): © José Saúde (2025). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. O nosso José Saúde,  jornalista e escritor, ex-fur mil OE/Ranger, CCS/BART 6523 (Nova Lamego, 1973/74), antigo desportista, "aldeano", hoje a viver emn Bejam membro da nossa Tabanca Grande, com 255 referências no nosso blogue, publicou em 2021 o seu decimo livro;

José Saúde - "Aldeia Nova de São Bento – Memórias, Estórias e Gentes" 2.ª ed. Lisboa: Edições, 2021, 299 (Prefácio de David Monge da Silva) (Preço de capa atual: 14,40 €).

Apraz-nos registar que a obra foi muito bem aceite pelos seus conterrâneos, pelo que já saiu uma 2ª edição. Vão daqui as nossas palmas para ele e os demais "aldeanos".

Aproveiutamos para publicar, editadas, algumas fotos do seu álbum, disponíveis na sua página do Facebook.


Sinopse

Recanto de imensas conversas, a bica, onde o pessoal da nossa aldeia recorria para encher mais uma “enfusa” de água ou para atestar mais uma pipa instalada num carro de animais que se protegiam debaixo de um enorme chorão ali existente, era um local deveras enternecedor.

(…) Mulheres trajando com os xailes pretos, assim como outras com lenços atados à cabeça, outras com “enfusas” já cheias e transportadas irrepreensivelmente sobre a nuca, outras esperando, gentilmente, que chegasse a sua vez para chegarem às bicas de água, que eram duas, uma menina de pé descalço, um burro que bebia na pia localizada a meio. Enfim, pedaços de histórias que ficam aqui retratadas e que visam trazer à opinião pública um passado que merece um inexcedível respeito.

***

(...) "Ao ler estas deliciosas crónicas regresso de imediato à minha infância e adolescência, a um tempo de felicidade em que todos os nossos familiares e amigos estavam connosco para nos ajudar a crescer e descobrir, sem sobressaltos, o mundo e a vida.

(...) Tudo hoje é diferente. O passado apenas subsiste na minha memória, nas minhas recordações. Somos as nossas memórias. Somos quem fomos. É a nossa história que nos caracteriza e define.

(...) Eu e o Zé Saúde vivemos a nossa infância e juventude nas décadas de 50 e 60, conhecemos a nossa aldeia com a sua população máxima, e acompanhámos o seu progressivo decréscimo.

(...) As memórias que nos são trazidas nesta obra situam-se, sobretudo, nestas duas décadas, trazem-nos personagens, profissões, modos de vida, relações sociais e formas de convívio que não voltarão mais. Há que ler atentamente para que os mais idosos recordem as suas vivências e os mais novos conheçam um pouco do que foi a vida dos seus pais e avós. Este livro é serviço público." (...)


David Monge da Silva | Fonte. Edições Colibri, página do Facebook, 19de dezembro de 2021 


Sobre o autor, José Saúde:

(i) nasceu em Aldeia Nova de São Bento no dia 23 de novembro de 1950, todavia, o seu registo oficial de nascimento reporta-se a 23 de janeiro de 1951;

(ii) desportivamente, iniciou a sua carreira futebolística no Despertar Sporting Clube e aos 16 anos ingressou no Sporting Clube de Portugal;

(iii) como jogador sénior representou o Desportivo de Beja, o FC Serpa e em 1974 foi um dos grandes impulsionadores do futebol de competição na Aldeia Nova de São Bento ao reativar a atividade no Clube Atlético Aldenovense;

(iv) tem colaborado ativamente na Imprensa Regional e Nacional como comentador desportivo.e como cronista do que foi a vida dos seus pais e avós;

(v) tem uma dezena de livros publicados, sobre a sua história de vida,  incluindo  a sua experiència omo militar na Guiné, durante a guerra colonial.


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Nota do editor LG:

Último poste da série > 18 de julho de 202 > Guiné 61/74 - P27030: Notas de leitura (1820): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) - 3 (Mário Beja Santos)

sábado, 14 de junho de 2025

Guiné 61/74 - P26918: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (37): os arraiais e as fogueiras dos santos populares



Alcachofra brava (Cynara cardunculus)

Coisas & loisas do nosso tempo de meninos 
e moços >  Os arraiais e as  fogueiras dos santos populares

por Luís Graça



Havia as fogueiras do Sant'António, 
do São João, e do São Pedro,
os arraiais populares,
a queima das alcachofras, 
os balões, os refrões
("um tostãozinho, vizinho, vizinha,
p'ros santos populares,
primeiro o Sant'António,
depois o Sã João
e por fim o Sã Pedro,
p'ra
nossa reinação!”)

Havia as bichas-de-rabear,
as bombas de carnaval,
o calvário e as suas catorze estações…

Alguém sabia lá o que era o solstício de verão,
e o eterno retorno,
e as festividades cíclicas,
e a purificação do corpo
e o exorcismo do mal...
E, muito menos, as fogueiras da Santa Inquisição.

Sabia-se da salvação da alma,
e dos raspanetes do padre vigário
e dos puxões de orelhas da catequista
quando a malta não decorava a doutrina,
porque só queria jogar à bola.

Não se dizia “alcachofra”, mas “cardo”…
“Cardo florido”,
no dia seguinte, posto à janela,
depois de queimado na fogueira,
era sinal, para as raparigas, de amor correspondido.
Tinha que ser sofrido, mas eterno, o amor, naquele tempo.

Saltei três vezes á fogueira,
Fazendo fisgas à morte,
Sant'António, dai-me sorte,
E amor p'ra vida inteira.

P'ra que o mê amor não sofra,
Oh Sant'António querido,
Queima-me  bem a alcachofra,
E dá-lhe o cardo florido.

Havia as fogueiras dos santos populares.
E a rivalidade dos bandos dos rapazes da tua rua 
e das ruas vizinhas,
da rua Grande, do Clube, das Aravessas...
Faziam-se e desfaziam-se por essa altura, os bandos, as alianças,
E tudo por causa dos santos da nossa devoção.
Era ver quem conseguia roçar, juntar e acarretar
mais mato e lenha para as fogueiras. 

Durante as semanas anteriores,
já andavam a roçar mato
e a escondê-lo uns dos outros.
Chegava a haver assaltos, roubos, ataques, cabeças rachadas…
Arranjavam-se aliados ocasionais, guardas e sentinelas,
nos mais velhos que tinham currais ou fazendas por ali perto,
à volta dos moinhos de vento 
e do castelo dos mouros.
O Néu, da ti Albertina, que já morreu,

emprestava a carroça,
puxada por uma burra…

Era um mundo estritamente masculino,
de brincadeiras de rapazes, aprendizes de machos,
futuros bravos soldados do império.
As meninas, essas, de saia de chita, brincavam entre elas
com bonecas de papel ou matrafonas de pano
sob a supervisão das irmãs mais velhas, das mães ou das avós.

As fogueiras faziam-se no largo inclinado dos Celeiros
(ou da Bica, por que havia lá um fontanário de 1936,
obra pública do Estado Novo).
Na rua mais alta da vila, 
a do Cemitério ou do Castelo ou dos Valados.

Só havia uma fogueira.
A rivalidade consistia em saber alimentá-la,
e não deixar apagá-la.
E, quanto maior fosse a labareda, melhor.
E só os valentaços se atreviam a furar aquela parede de fogo.

O arraial do largo dos Celeiros
era o orgulho dos meninos da vila velha
e atraía os vizinhos das ruas adjacentes
e os parzinhos,
mais os  casados e os solteiros.

“Um tostãozinho, vizinho, vizinha, 
p'ro Sã João!”…
Era o mais querido dos três santos populares, o São João,
porque era menino.
A seguir vinha o Santo António, 
matreiro, casamenteiro e brejeiro.
Ao São Pedro, de barbas brancas compridas,
já ninguém lhe ligava nenhuma.
E depois já se tinha gasto a lenha toda…

P'lo São Pedro os felizardos juravam amor eterno.
E os rapazes iam às sortes.

Com os tostões angariados,
os pequenos donos do arraial dos santos populares
compravam bichas-de-rabear,
estalinhos,
serpentinas
e até bombas de Carnaval…
E, claro, guloseimas e pirolitos.
Os sonhos pequenos de gente de palmo e meio,
que gostava também de brincar 
ás guerras de índios e cobóis.

Mal sabiam eles que dentro em breve
iria estalar uma guerra a sério,
e que os brinquedos da guerra
já não seriam as bombas de carnaval
nem as bichas-de-rabear
nem as fogueiras de saltar.

Lourinhã, Luís Graça (2005). Revisto, 13/6/2025.

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Nota do editor LG:

terça-feira, 20 de maio de 2025

Guiné 61/74 - P26821: S(C)em Comentários (67): P*rra, dou agora conta, 50 e tal anos depois, que nunca me sentei no rancho geral, para partilhar uma refeição com os meus cabos, que eram metropolitanos, e que tinham uma barriga igual à minha... Em Bambadinca, existia o "apartheid", nobreza, clero e povo, devidamente segregados, em termos sociais e espaciais (Luís Graça)


Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3ª CART / BCART 6520/72 (1972/74) > s/d > Os camaradas (etimologicammente, os que dormem na mesma "câmara", quarto, camarata, no mesmo "buraco", que dormem, comem, vivem e... morrem juntos), sempre presentes no dia a dia da guerra, vão substituindo a família, os vizinhos, os colegas de escola, os amigos, etc. que ficaram lá longe, na terra... São também companheiros, porque comem o mesmo mão à mesma mesa (do latim, cum + panis, o que partilha o pão connosco).


Foto (e legenda): © Armando Oliveira (2025). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Comentário de Luís Graça ao poste P26816 (*):


Há uma coisa que muitos oficiais e sargentos do QP, bem como milicianos (alferes e furriéis) não compreendem (ou pura e simplesmente já esqueceram): as nossas praças (sobretudo o pessoal metropolitano) tiveram que se "desenrascar"... em matéria de comes & bebes.

Comiam "mal e porcamente" (e eu creio que a metáfora do porco não é insulto para ninguém!|)... No mato, nos quartéis do mato (não falo de Bissau)... Mesmo quando "a comida era igual para todos" (nos aquartelamentos das unidades de quadrícula: 1 capitão, 4 alferes, 16 sargentos e furriéis, e o resto cabos e soldados, uns 130/140), as praças comiam sempre pior...

Já não falo nos destacamentos, guarnecidos por 1 Grupo de Combate...onde nem cozinheiro havia, e o reabastecimento (genéros alimentícios, munições, etc.) era sempre um "bico de obra"...

Ninguém é capaz de admitir hoje que "passou fome" na guerra, na Guiné, até por que o "tuga" era sempre capaz de se "desenrascar"...

 Fome ?... Talvez, pontualmente, no mato, em operações... Mesmo "intragáveis", as rações de combate que nos fornecia o exército português,  ainda tinham uma ou outra coisa aceitável para enganar o estômago, sem provocar uma sede do caraças... (Depressa aprendi a prescindir delas, ou de grande parte do seu recheio!)

Mas as nossas operações podiam durar 24 h, 48, 72 h, no máximo... No regresso ao quartel, havia sempre uma sopa quente, com muita água, pouco azeite e poucos legumes, mas ainda assim quente. E havia, graças a Deus e aos bons irãs, e à Intendência (a quem tiro o quico!),  cerveja, muita cerveja, mesmo que que fosse "choca". E coca-cola, e uísque... E até barris de vinho ou "ãgua de Lisboa"!...

O José Claudino da Silva, cantineiro, em Fulacunda, logo em finais de 1972, requisitava, 12 mil cervejas por mês, com medo do "apagão da Intendência", estamos a menos de dois anos do fim da guerra, num quartel isolado, no mato, a 3ª CART / BART 6520/72, que além dos seus 150 homens metropolitanos, tinha mais um Pel Art (em que as praças eram africanas) e um Pel Mil (também de pessoal africano).

De resto, muitos dos nossos militares, sobretudo oriundos das zonas rurais, do interior do país, de Trás-os-Montes ao Alentejo, foram habituados, desde pequeninos, à "frugalidade": 

  • quem é que bebia leite ?
  • quem é que comia queijo ?
  • quem é que sabia o que era um iorgurte ?
  • quem já tinha provado fiambre ?
  • quem comia peixe fresco ?
  • e carne (sem ser da salgadeira) ?
  • e bacalhau (sem ser no Natal e na Quaresma) ?
  • quem bebia cerveja ?
  • e leite com chocolate ?
  • e sumol ?
  • e café ?...
  • (Para não falar da "coca-cola", uma "americanice" que não entrava no Portugal do Estado Novo).

Porra, e ninguém se revoltava !... Comia-se "sopas de cavalo cansado"... E a malta aguentuou 13 anos!... Fala-se em sangue, suor e lágrimas, mas ninguém acrescenta a merda, a fome, a sede!...13 nos anos com a canga em cima, a G3, as cartucheiras, as granadas de mão, as granadas de morteiro (ou de bazuca) às costas, mais os 2 cantis de água... Mais os feridos e os mortos em padiola!...

Eu fiz alguns milhares de quilómetros a penantes, na Guiné, com os meus/nossos "pretos" da CCAÇ 12, entre junho de 1969 e março de 1971...Sei do que falo... Mas chegava a Bambadinca, dois ou três dias depois, com 2, 3 ou 4 quilos a menos, tomava um duche reparador... e não me podia queixar da messe de sargentos..
.

Nunca me faltou o uísque com água de Perrier e duas pedras de gelo!... Nem o gin tónico com limão ou lima!... Não bebia cerveja nem "água de Lisboa", a não ser às refeições...

Mas, porra, dou agora conta, 50 e tal anos depois, que nunca me sentei no rancho geral, para partilhar uma refeição com os meus cabos, que eram metropolitanos, e que tinham uma barriga igual à minha... Em Bambidina, existia o "apartheid", nobreza, clero e povo, devidamente segregados, em termos sociais e espaciais (**)...

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(**) Último poste da série > 16 de maio de 2025 >  Guiné 61/74 - P26807: S(C)em Comentários (66): Eletrificação - As primeiras redes de energia elétrica na Guiné nas décadas de 1930 a 1950 (Manfred Stoppok)

segunda-feira, 28 de abril de 2025

Guiné 61/74 - P26737: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (36): quanto valia o dinheiro de há 65 anos atrás ? O orçamento da festa anual de uma freguesia rural do Marco de Canavezes (Luís Graça)



Marco de Canaveses > Paredes de Viadores > Capela de N. Sra. do Socorro > 
25 de julho de 2015 > Esta capela remonta ao séc. XIX, estando erigida num dos pontos altos do território da freguesia...


Marco de Canaveses > Paredes de Viadores > Capela de N. Sra. do Socorro > 25 de julho de 2015 > Interior, com os andores, prontos para a procissão de domingo, dia 26...

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2025). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné)


1.  Há festa na aldeia... No sábado para domingo, ao darem as 24 badaladas, rebenta o monumental fogo de artifício que é, de há muito, um dos momentos altos desta festa popular... São 20 ou 30 minutos de fogo... Ninguém sabe quanto custa ( a preços de hoje, talvez 20 a 30 mil euros)... Todo o povo contribui generosamente para este e outros encargos da festa de N. Sra. do Socorro, a padroeira desta freguesia de povoamento disperso.

Terras antiquíssimas estas, com forte trradições de que são guardiãs e continuadoras as nobres e valentes gentes entaladas entre o Rio Tâmega e o Rio Douro.

Estas festas fazem parte dos "nossos seres, saberes e lazeres" e são acarinhadas pelo pessoal da Tabanca de Candoz... Nunca é de mais lembrar, por outro lado, que o extenso concelho do Marco de Canaveses pagou um pesado imposto em "sangue, suor e lágrimas" durante a guerra colonial, tendo 45 dos seus filhos lá morrido, em terras de Angola, Guiné e Moçambique.  

A população do concelho era na altura de 39,3 mil (em 1960) e 42,1 mil (em 1970), Sabendo nós que a população portuguesa em 1970 era de 8,59 milhões, e tendo sido mobilizados 570 mil militares metropolitanos (70% de 800 mil, incluindo a tropa do recrutamento local), o número de jovens marcoenses que foram parar ao ultramar (Angola, Guiné e Moçambique) terá sido da ordem dos 2800.

Em chegando o verão, há foguetes e alegria no ar. Há festa, há a festa anual da padroeira de Paredes de Viadores, da freguesia do mesmo nome (mas agora mais comprido, já que á Paredes de Viadores juntou-se também a antiga freguesia de Manhuncelos). 

Por estas terras também andou o lendário herói do "banditismo social", Zé do Telhado ( Castelões de Recesinhos, Penafiel, 1818 / Mucari, Malanje, Angola, 1875). e o seu bando, cujas façanhas ficaram na memória das gentes dos vales do Sousa e Tâmega (onde nasceu Portugal). Desterrado, Zé do Telhado morreu em Angola (onde a sua memória ainda é, ao que parece, venerada).

Por aqui, Marco de Canaveses e Baião, passa também a rota do românico... que os portugueses de hoje deviam fazer pelo menos uma vez na vida!...

Por curiosidade, qual o orçamento desta festa ? Não tenho dados recentes, mas encontrei na Quinta de Candoz um apontamento de há 65 anos atrás.

 Trata-se da folha,  manuscrita,  com a escrituração das despesas e receitas, feita por José Carneiro (1911-1996), mordomo da festa, proprietário da Quinta de Candoz.

 Segundo a filha,  Ana Ferreira Carneiro Pinto Soares, "Nita" (1947-2023), era referente  à festa do ano de 1960, em que ela própria também participou,  então com os seus 13 anos. (#).


Lista 1 - Despesa  / Valor (em escudos | em euros, a  preços de 1960)

  • Fogo de quatro fogueteiros > 7600$00 | 3941 €
  • Música (sic) dos B. V. Portuenses > 4100$00 | 2126 €
  • Iluminação > 2750$00 |  1426 €
  • Música (sic) dos B. V. de Rio Mau  [Penafiel] > 2500$00 | 1297 €
  • Carne para os músicos [ das bandas] > 1222$00 | 634 €
  • Vinho para os músicos  > 1000$00 | 519 €
  • Armação [dos andores] > 1000$00 | 519 €
  • Mercearias > 763$60 | 396 €
  • Zés Pereiras > 450$00  | 233 €
  • Padres  450$00 | 233 €
  • Guarda [Nacional] Republicana > 360$00 | 187 €
  • Tipografia: programas e estampas > 290$00 | 150 €
  • Autofalante > 250$00 | 130 €
  • Carpinteiro do sr. Geraldes [do Juncal] > 162$00 | 84 €
  • Câmara  [Municipal]: Energia e eletricista > 137$50 | 71 €
  • 4 quilos de cavacas para os anjinhos > 100$00 | 52 €
  • Pão de trigo e de milho > 96$00 | 50 €
  • Licença da Câmara para as músicas > 66$00 | 34 €
  • Flores e correio > 58$80 | 30 €
  • João de Magalhães [que deitou o fogo] > 50$00 | 26 €
  • Gratificação para o electricista > 50$00 | 26 €
  • Carro em que regressou a GNR [ao posto, que era na vila]  > 40$00 | 21 €
  • Expediente > 28$80 | 15 €
  • Selo de 35 programas > 14$40 | 7 €
  • Despacho do fio de cobre para iluminação > 9$70 | 5 €
Total = 23447$6 | 12160

Lista nº 1 - Discriminação das despesas, por ordem decrescente,  da Festa de Nossa Senhora do Socorro (1960), Paredes de Viadores, Marco de Canaveses.   


Lista 2 - Receita   / Valor (em escudos | em euros, a  preços de 1960)


  • Recebeu-se dos mordomos de Paredes > 5791$60 | 3004  €
  • Recebeu-se dos mordomos de Viadores > 5186$50 | 2690 €
  • Rendeu a festa em dinheiro > 4240$20 | 2199 €
  • Apurou-se em ouro  [oferecido à santa]  > 1817$50 | 943 €
  • Renderam as flores [de papel] > 642$00 | 333 €

Total =17677$80 | 9168 €

Lista nº 2 - Discriminação das receitas, por ordem decrescente,  da Festa de Nossa Senhora do Socorro (1960), Paredes de Viadores, Marco de Canaveses.   

O prejuízo da festa (c. 5,8 contos)  foi dividido pelos 6 mordomos da comissão organizadora (cabendo 961$63, a cada um, ou seja, 499 € a preços de 1960…).  Outros tempos, outras gentes, outros valores!...


O famoso "santo Antoninho" dos anos 60...   A nota de "20 paus" (cópia)...(Segundo o Museu de Lisboa , a nota de 20$00 com a imagem de Santo António foi emitida pela primeira vez a 16 de janeiro de 1965.  Com a data de 26 de maio de 1964, no total foram emitidas  299,1 milhões de  notas. A 30 de maio de 1986 foram retiradas de circulação.)







Como termo de comparação, registe-se que nessa época  (1960) um jornaleiro ganhava, em média, 20 escudos (10 euros) por dia, enquanto um oficial (como o José Carneiro, ramadeiro, construtor de ramadas) cobrava 50 escudos (25 euros) pelo seu trabalho diário.(##)

A "Nita" lembrava-se, tinha ela 13 anos já feitos, de andar na festa a angariar dinheiro com as florinhas de papel que eram espetadas, com um alfinete, na lapela do casaco dos homens, à entrada do recinto. As receitas que daí provieram ainda atingiram uma cifra razoável para a época: 642$00 (333 €)... (###)

Também era vulgar as as pessoas ofereceram à santa padroeira da freguesia, a  Nª Srª do Socorro,  objetos em ouro (fios, anéis, mo sebrincos, cordões, etc.), como forma de pagamento de promessas.

Repare-se, por outro lado, que o foguetório já nessa altura representava 1/3 do total das despesas, e mais de outro tanto a contratação de duas bandas de músicas (uma do Porto e outra local, Rio Mau, Penafiel, concelho vizinho), pagas em dinheiro e em géneros (38%).  As duas bandas tocavam à compita.

Nas despesas com os padres (450 escudos, 233 euros com a correção da inflação), inclui-se o pregador, que vinha de fora.

Quanto às receitas, note-se que mais de 60% do total era constituído pelos peditórios, casa a casa, feitos por 2 grupos de mordomos, os de Paredes e os de Viadores, representando as duas metades do território da freguesia ( era, em geral, um padre com grandes dotes de orador).

Também como termo de comparação, refira-se que,  hoje em dia, o compasso pascal da freguesia gasta facilmente em 10 ou 20 minutos de fogo artifício 10, 20 a 30 mil euros...É uma estimativa, grosseira, de quem está por dentro do assunto.

José Carneiro foi mais de uma vez mordomo destas festas de N. Srª do Socorro, que se realiza todos os anos no último domingo de julho.  Tem um recinto encantador.
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Notas do autor:

(#) Blogue A Nossa Quinta de Candoz > 30 agosto 2012 > José Carneiro (1911-1996). mordomo da festa da Nossa Senhora do Socorro em 1960

(##) Vd. logue A Nossa Quinta de Candoz > 29 agosto 2012 >  José Carneiro (1911-1996), construtor civil de ramadas