1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Setembro de 2020:
Queridos amigos,
Melhor complemento para a visita ao Vale Glaciário do Zêzere não podia ser senão ir conhecer com algum pente fino o burel de Manteigas. Que surpresa, que bom gosto na recuperação dos padrões e na adaptação às exigências dos novos tempos, e que dever de memória, já que esta indústria é inquestionavelmente pioneira e deu matéria-prima afamada, lembrem-se os quilómetros de tecido que daqui partiram para a Grã-Bretanha, e atenda-se aos mercados exigentes que se abrem ao burel de Manteigas, esta vila que vem dos confins da nacionalidade e que hoje tem uma sedutora oferta turística, como pude comprovar. Até fiquei com o nariz no ar a pensar no que a natureza pode oferecer em cores outonais, um pouco antes de aqui chegar o cortante frio serrano. Logo que possível, vou voltar a este recanto de apaziguamento, de verdura e de um alcantilado sem rival.
Um abraço do
Mário
De Manteigas para o Vale Glaciário do Zêzere (2): O burel em Manteigas
Mário Beja Santos
É pura coincidência, almoçados e em hora de sesta folheio apontamentos extraídos da Corografia Cabo-Verdiana, de 1841, o seu autor é um general português, de nome José Conrado Carlos de Chelmicki, nascido em Varsóvia e que deu provas de grande bravura nas lutas liberais nas nossas terras, militar prestigiadíssimo e que veio a falecer em Tavira. O seu trabalho incide sobre Cabo Verde e Guiné, falando da indústria, e indústria artesanal, louva a panaria cabo-verdiana que, por caminhos ínvios, também se transplantou para terras guineenses, basta lembrar a panaria manjaca. Retive um parágrafo, para mim bem talhado e à altura do que daqui a um bocado vai acontecer, quando partirmos para visitar fábricas de burel:
“Os panos, tecidos e colchas atraem a admiração de todos os viajantes, por bem-feitas, cores lindas e lindos lavores: porém, sobretudo, pela maneira como são fabricados”. Descreve minuciosamente o modo de fiar, o tipo de tear (peça única, com muitas camas, feito a obra de arte e o tear vai para o fogo) e carateriza depois os panos: “Estes panos são de algodão, só ou misturado com lã ou seda. Compõem-se de seis ou mais bandas de um pé de largura sobre seis ou oito de comprimento: cozidas umas às outras pelas ourelas, conforme a largura do pano que se quer ter”. E a cogitar nesta panaria, vamos então admirar a recuperação do burel, parecia caminhar para a extinção, quando se deu o declínio da indústria de lanifícios na Serra da Estrela.
Que o leitor mais curioso vasculhe na Internet o que foi e o que é hoje o burel, a matéria-prima é a lã, sujeita a tratamentos específicos, era o tecido mais apreciado pelos homens da pastorícia, a água e a geada não entram, lã mais protetora não há para quem vagueia sujeito às inclemências do tempo.
Sempre a coscuvilhar literatura sobre os territórios que visito, tirei de uma obra de um acérrimo apaixonado de Manteigas, José David Lucas Batista, alguns elementos curiosos que ele publica numa obra de 2002, dando conta de atividades culturais múltiplas. Refere-se a uma exposição documental fotográfica onde se mostravam instalações e máquinas antigas da indústria têxtil em Manteigas e de tecidos (escocês). Atenda-se ao que escreveu:
“O testemunho seguro mais antigo da existência do fabrico de panos em Manteigas aparece em documento de 1523. Nele, D. João III, concede à Câmara desta terra o direito de nomear o vedor dos panos, o que até então constituía prerrogativa real, daí ser de admitir que os panos apreendidos em Gouveia a dois negociantes de Manteigas, por volta de 1500, fossem aqui fabricados. No Tombo dos bens móveis e de raiz do concelho de Manteigas de 1560 aparecem referências a três prisões. A partir desta data e para os séculos XVII, XVIII e XIX as notícias abundam.
Uma história secular desta actividade, que se pode ainda rectrotrair para tempos mais remotos, a avaliar pelo desenvolvimento implícito na existência de um vedor em 1523 e anos anteriores, implica mudança e substituição de métodos de fabrico e de utensílios e máquinas nele utilizados. Esta mudança foi fortemente acelerada nos últimos anos e continua em curso. Além da redução drástica da maior parte dos antigos engenhos, assistimos ainda bem recentemente à venda como sucata de máquinas cujo interesse era incontestável, como testemunhos de uma fase da indústria local. A documentação fotográfica que aqui se apresenta tem como finalidade chamar a atenção para os riscos que correm peças valiosas do ponto de vista da arqueologia industrial, isto para que sejam a todo o custo preservada e não venham a ser destruídas ou mesmo dispersas, o que representaria grave dano para o património cultural não só de Manteigas, mas ainda para toda a região da Serra da Estrela e mesmo para o país em geral.
As amostras de escocês que igualmente se apresentam foram escolhidas de um conjunto de 200 espécimes, remanescentes de uma colecção de 2000 exemplares, datado de 1949. Por estas indicações se podem avaliar os desgastes que o decorrer de menos de 40 anos provocou e a enorme escala de perdas registada neste ramo”.
Embalado pelo entusiasmo deste autor, lembrando a panaria cabo-verdiana e guineense, atrelo-me ao rancho e vou todo pimpão, disposto a admirar o burel de Manteigas, e que formas toma, nos nossos dias.
O leitor mais interessado saciará a sua curiosidade procurando no digital o nome das duas fábricas que fazem burel em Manteigas. Por ali cirandou vendo roupa de senhora e homem, artefactos de cuidado desenho, peças lindíssimas. E houve visita-guiada a um mundo de fabrico de ontem e de hoje, artesãos em atividade, exige uma vigilância incansável, se os fios saem da norma gera-se o caos, é como se fosse um começar de novo, remexendo em toda a meada. Vale a pena olhar para estas máquinas, dei comigo a lembrar teares de outros lugares, dos Açores a Bafatá, a curvar-me respeitosamente por este artesanato que hoje é disputado no mercado internacional, de Berlim a Tóquio. O que é verdadeiramente original e confortável tem sempre procura.
À saída da visita a uma das fábricas, deparou-se um conjunto de lápides comemorativas, há aqui algo de muito comovente, pois agradece-se ao trabalhador mais humilde e ao investidor a aposta naquele empreendimento, homenageia-se dando nome àqueles seres humanos, uns que meteram dinheiro, outros que trabalharam desalmadamente, sonhando superar a crise da indústria dos lanifícios e pôr coisas belas no mercado. Gostei muito de ver o burel mas não gostei menos desta concórdia serena, ao contrário das pirâmides do Vale dos Reis, aqui estão os nomes dos meus compatriotas que deram o corpo ao manifesto para que aquela fábrica se erguesse e se labutasse. Ainda há portugueses de lei, pelos vistos.
Nota do editor
Último poste da série de 20 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21923: Os nossos seres, saberes e lazeres (437): De Manteigas para o Vale Glaciário do Zêzere (1): (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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