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terça-feira, 23 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25103: Blogoterapia (313): Irmãos de armas (Joaquim Mexia Alves, ex-Alf Mil Op Especiais)

Dire Straits - Brothers In Arms - Frame do Youtube, com a devida vénia


1. Mensagem do nosso camarigo Joaquim Mexia Alves (ex-Alf Mil Op Especiais da CART 3492/BART 3873, Xitole/Ponte dos Fulas; Pel Caç Nat 52, Ponte Rio Udunduma, Mato Cão e CCAÇ 15, Mansoa, 1971/73) com data de 21 de Janeiro de 2024:

IRMÃOS DE ARMAS

E de repente extinguiu-se-lhe nos olhos o olhar!

Um daqueles que estava sentado à mesa, bastante mais novo do que todos os outros, ficou admirado e perguntou a quem estava ao seu lado o que se passava com aquele cujo o olhar se tinha alheado.

Respondeu-lhe o que era mais velho e tinha por lá passado:

- Não te preocupes, porque ele foi viajar ao equador, passear nas bolanhas do calor, visitar as matas do horror, caminhar nas picadas da dor e enfrentar a guerra do desamor.
Agora não está cá, está mais longe, está por lá! 
Mas não te preocupes que ele vai voltar, assim que a recordação o deixar.

Já ninguém olhava para ele, porque todos percebiam aquilo que com ele se passava.

Iam conversando, comendo, bebendo, as vozes elevavam-se por cima de tudo o resto e ele continuava com o seu olhar absorto, passeando por onde ninguém já se encontrava. Passado um pouco de tempo o seu olhar ausente, regressou ao presente. 
Havia nos seus olhos uma espécie de lágrimas, uma espécie de dor, uma espécie de torpor, que ele com um abanar de cabeça, quis afastar daquele momento, mas de tal modo, que um daqueles que estava a seu lado lhe perguntou:

- Estiveste por lá agora. não foi?

Ele respondeu com um tom decidido e afirmativo:

- Sim, andei a passear por aquelas picadas, aquelas bolanhas, aquelas matas, onde tantos de nós ficaram, mas onde se construiu a amizade entre nós, que eu ainda não sei explicar.

Olharam-se nos olhos e aqueles que estavam na mesma mesa perceberam o que se passava. Pois, porque os outros que não tinham vivido aquela guerra, não conseguiam perceber o que se tinha passado naqueles breves e profundos momentos.

Olharam-se, sorriram, os olhos marejaram-se de lágrimas e disseram uns aos outros:

- Que aqueles que lá ficaram, estejam connosco agora, enquanto nós aqui estamos celebrando o que passámos.

Todos perceberam que o coração os oprimia, os levava a viver aquilo que já não queriam viver, mas que tinham vivido um dia. Olharam-se nos olhos mais uma vez, pensaram nos que não percebem aquilo que por eles passaram, e num breve momento de silêncio, perceberam que todos eles falavam afinal a mesma língua.

Raios parta a guerra, disseram uns, e os outros anuíram dizendo:

- Raios parta a guerra, que nos mói por dentro, sem sabermos quanto e quando.

Aquele que tinha começado aquele momento, estava ainda meio afastado de tudo o que se passava, porque não sabia o que havia de dizer, não sabia o que tinha sentido, não sabia como se exprimir.

Então um deles, cheio de coragem, levantou a voz e disse:

- Nós somos muito mais do que nós próprios, somos muito mais do que a opinião dos que pensam mal de nós, somos muito mais do que aquilo somos, porque com estas mãos, com este sentido que temos, com este viver que vivemos, somos tudo aquilo que fomos, mais do que ainda somos, mais do que podemos sentir, porque no fundo, meus caros camaradas, nós somos tão só e apenas, verdadeiramente, Irmãos de Armas!

Marinha Grande, 21 de Janeiro de 2024

segunda-feira, 6 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24825: Casos: a verdade sobre...(35): Op Revistar, programada no ar condicionado de Bissau, uma operação das grandes, destinada ao assalto e ocupação de Salancaura, e que acabou por abortar... (Mário Gaspar, ex-fur mil at inf MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68 / José Brás, ex-fur mil trms, CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68),


Guiné > Região de Tombali > Guileje > CART 1613 (1967/68) e 7º Pel Art / BAC > O obús 8.8. Foto do álbum do nosso saudoso cap SGE ref  José Neto (1929-2007), na altura o 2º sargento da CART 1613, que chefiava a secretaria.

Foto: © José Neto (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem do Mário Vitorino Gaspar (ex-Fur Mil At Art e Minas e Armadilhas da CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68) (entrou para a Tabanca Grande em 8/12/2013; tem 135 referências no nosso blogue; por razões de saúde não tem prestado maior colaboração ao blogue nos últimos tempos; alegramo-nos com
o seu reaparecimento).

Data - 4/11/2023 04:39  
Assunto - Operação Revistar  
Caros Camaradas, Luís e Carlos

Capa do livro
de José Brás, "Lugares de passagem",
Lisboa, Chiado, Editora, 2011


Dia 5 deste mês faz precisamente 55 anos que regressou da Guiné a CART 1659. Desembarcámos só na manhã de 6, passando mais de 12 horas ao largo de Lisboa.

Cheguei com muitas dúvidas, tendo a sorte de desvendar todas,  com uma falha: a "Operação Revistar”.

No Blogue não surgiu ninguém que tivesse conhecimento da mesma. Passei horas no Arquivo Histórico-Militar, esclarecendo muitas dúvidas. Sabia que só era possível levar-se a efeito tal Operação, com objectivos tão ambiciosos, direi inclusive estúpidos. Pretendiam esses senhores de gabinete acabar com a guerra, inclusive matar os líderes ('Nino' Vieira) e apanharem toda a documentação confidencial.

Chegara de licença e em Bissau não se falava de outro assunto. (*)

Um Abraço a todos os Camaradas
Mário Vitorino Gaspar

PS - Podem publicar no Blogue. Continuo bastante doente, mas acrescentar a informação de José Brás à minha, a tudo que assisti, deixou-me melhor. Até parece que tenho menos dores.

2. Operação Revistar (não consta do livro da CECA, 2015, relativo à atividade operacional no CTIG, de 1967 a 1970)(**)



José Brás, (ex-fur mil trms, CCAÇ 1622, 
Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68),

Do livro de José Brás “Lugares de Passagem” (texto que me enviou, a mim, Mário Gaspar, o amigo José Brás; conheço-o desde o início dos anos 60; estudei no Colégio Sousa Martins, em Vila Franca de Xira): 

(..) Mas nada disto de que venho a falar-vos tem importância e a importância dou-lha eu no
 engano de vos fazer compreender melhor a encomenda do Santinhos no episódio burlesco que desde o início vos quero relatar. 

Comecemos pelo princípio! Em certo tempo, que como vocês sabem não é o mesmo que em tempo certo… em certo mau tempo, direi, foi programada no ar condicionado de Bissau uma operação das grandes, destinada ao assalto e ocupação de Salancaur (...). Salancaur, imaginem…  

Tal operação envolvia várias Companhias que passaram a noite deitadas pelo chão do acanhado quartel de Medjo e incluía bombardeamentos prévios nos dias precedentes pela aviação, Fiats, T6’s (...), e DO-27 no ar a horas que deveriam ser as do assalto, e bojardas dos tais obuses do Santos a partir de Medjo, tudo antes da planeada entrada da tropa apeada. 

As quatro peças de artilharia foram deslocadas dos seus espaldares para o exterior da paliçada, alinhadas lado a lado e apontadas em paralelo ao objetivo como dedos de deuses vingativos. A regulação do tiro seria feita, e foi, a partir do voo de um DO-27, Major de operações mais que duvidoso a mandar vir, tantos graus à esquerda, alongar o tiro mais cem metros…

Diz-se que o homem põe e Deus dispõe. Dizia Fernando Pessoa que Deus quer, o homem sonha e a obra nasce. Que Deus quisesse tal coisa, quer dizer, o assalto a Salancaur, é duvidoso, ainda que num mundo como este nem em deuses se possa confiar, e esta parte digo eu que tanta desgraça vi naquelas terras. O sonho, neste caso, o sonho seria do mastronço que ocupava a cadeira do poder de Bissau, ou de alguns dos seus bengalinhas querendo mostrar serviço, movendo pioneses coloridos no amplo mapa que ornamentava paredes nas competentes salas do QG (...) e do palácio do Governador. 

Pesadelo se deveria dizer, em vez de sonho, já que sonho é palavra mais adequada a gente que luta e morre por liberdade de sua terra e povos, e por justiça, o que ali, claramente, não era o caso, mas bem o seu contrário. Pesadelo, portanto, também querendo justificar-se a coisa torta e deformada, causadora de sofrimento e dores, talvez mortes a somar a mortes nos dois lados da contenda. 

A operação que deveria ser de um dia, naquela mata quase virgem, avançando nos poucos quilómetros à força de catana para evitar sinais de picada antiga, chegou à antecâmara do destino apenas na terceira madrugada. Sete quilómetros, a bem dizer, se medidos em linha reta, acho que era a leitura dos generais em Bissau. Fomes, sedes, exaustão, desidratação, medos, esfrangalharam corpos e convicções. As evacuações começaram em catadupa, umas de necessidade absolutamente comprovada e outras aproveitadas no ressalto, todas, vi eu, mais que justificadas no limite de cada um, nas caras torcidas de esgar, nos olhos febris. Na frente da tropa que se aprestava para o ataque, havia agora um enorme espaço de bolanha nua e rasa que era necessário passar para chegar ao objetivo.

Ordem para iniciar procedimentos de tiro de obus em Mejdo. Tudo a postos, cada peça com seu apontador e municiador. Em PRC-10 (...) ouvia eu as ordens do DO ao Santinhos, e em wallkie talk, a comunicação entre o Santinhos e o apontador de cada obus, conversa esta, em especial, para a qual peço a vossa inesgotável imaginação, recriando a manhã naquele lugar, quente e húmida, mais abafada ainda pelo stress da espera de meia dúzia de soldados que haviam ficado a garantir a segurança das peças, encarrapitados na bancada da paliçada; o DO esvoaçando e dando indicações, não tão longe dali que não se pudesse enxergar-lhe a evolução a olho nu; a voz do Santinhos nas perguntas ao avião, nas ordens às peças, pastosa, embrulhada na língua, augurando tensões.

− Primeira bateria?

− Pronto,  meu Alferes!

− Segunda bateria?

− Pronto.  meu Alferes!

− Terceira bateria?

− Pronto. meu Alferes!

− Quarta bateria?

− Quarta bateria?!

− Quarta bateria?!!!

− Foooooda-se!

BUUUUUUUUUUUUUUUUUM!!! Quatro buuuns num só, ecoaram inesperados nos meus ouvidos e no susto dos ocupantes do DO que voava em frente, não muito acima da linha de tiro!

− Tirem-me daqui!!!  − esganiçou o Alferes.  − Tirem-me daquiiiii!

Um médico de fora que por ali ficara para a possibilidade de ter de servir na operação, diagnosticou sintomatologia histeriforme e solicitou evacuação para o Alferes. O helicóptero que o veio buscar,  carregou já para Medjo o seu substituto, outro Alferes, açoriano, diferente do Santinhos no talhe físico e na atitude. Para aquele dia nem valia a pena a pressa da substituição. 

Os obuses não teriam mais serventia naquela operação acabada por ordem superior, como superior havia sido a do seu início. Do DO para a tropa na orla da mata a ordem foi de recuar porque do outro lado daquele largo espaço aberto, eram muitos os morteiros, canhões sem recuo, possíveis foguetões terra-terra dissimulados e outros materiais eficazes na função de matar, prontos para bater a bolanha nua e rasa.

Não havia tropas helitransportadas. E que houvesse! A morte de dezenas estaria assim mais que certa, ainda por cima, para nada, segundo concluíram os chefes. Sensatamente, desta vez.

Não morreu ninguém, portanto, do nosso lado, pelo menos.

Só fomes.

Só sedes.

Só medos.

Só pragas.

Só raivas!

E do Santinhos, Alferes e civil, engenheiro brilhante, segundo se dizia, e contestatário, nunca mais ouvi fosse o que fosse, por palavras escritas, ou ditas… ou (des)ditas.


In "Lugares de Passagem" (com a devida vénia...)

Nota do editor: nesta altura devia estar em Mejo o 6º Pel Art / BCAC (8,8 cm). OU o 7º, que depois foi para Guileje.
 



Mário Gaspar, ex-Fur Mil At Art, Minas e Armadilhas,
CART 1659, "Zorba" (Gadamael e Ganturé, 1967/68)
  

3. Sobre a  “Operação Revistar” ver o texto que publiquei no blogue, Poste P14302 (***).

(...) A CCAÇ 1622 viria a ser a maior vítima da “Operação Revistar”, que tinha por objectivo a Acção ofensiva em diversos acampamentos do PAIGC e o aprisionamento do chefe Nino Vieira. Participaram na “Operação Revistar”, a CCAÇ 1622; CCAÇ 1591; CCAÇ 1624 e CART 1613.

No dia 3 (de dezembro de 1967), teve a Companhia, 3 feridos (um Oficial, um Sargento e um Soldado; 18 evacuados por esgotamento físico e dois por doença).

No dia 6, repete-se a Operação, e para além das Companhias que tinham estado na 1.ª Acção no terreno, foram reforçados com a minha CART 1659 e CCAÇ 1620.

Na História da Unidade da CCAÇ 1620, nem uma linha sobre a “Operação Revistar”, entretanto esteve lá.

Na História da Unidade da CART 1659 consta:

“De 1 a 3 e de 6 e 7 de Dezembro de 1967, feita a Operação Revistar, uma Acção ofensiva na Península de Salancaur, tendo as forças da CART 1659 colaborado numa primeira fase, montando segurança ao aquartelamento de Mejo. Numa segunda fase, participaram da operação juntamente com as forças da CART 1613 e CCAÇ 1591, 1622 e 1624. Os objectivos previstos não foram atingidos devido ao esgotamento físico das nossas tropas”.

Na História da Unidade da CCAÇ 1591, repetem-se as dificuldades que a NT teve ao percorrer matas fechadas, calor intenso o que provocou o agravamento do estado físico das NT. Termina dizendo que a Companhia acusou, notoriamente, as 5 noites ao relento, dormindo no chão e a falta de alimentação capaz, antes de iniciar a Operação.

Na História da Unidade da CCAÇ 1624, repete-se o mesmo, só com mais 15 evacuações (1 Oficial e 1 Sargento), não existindo condições para se concluir a Operação. (...)

(...) Sobre a actividade da Força Aérea nada é focado, mas que a aviação esteve lá não me podem negar. Dias antes já actuava, e em força, bombardeando constantemente a Península de Salancaur.

Em relação aos motivos que levaram que a Operação não fosse concluída, todos falam em desgastes nas NT. Estavam Paraquedistas, Fuzileiros e Comandos do lado contrário da Bolanha? E a aviação?

Uma Grande Operação falhada. Quem foram os culpados?

Estes também foram para mim dias horríveis, 7 dias consecutivos que não esqueço. (,,,)


4. E agora acrescento eu, para se percebeu o meu reencontro como Zé Brás:

No início dos anos 60 um grupo de 9 estudantes do Externato Sousa Martins fundaram o Jornal “Eco Académico”, entre eles estava eu. A Direcção do Externato pensou ser um Jornal tipo “quadro de honra”. Através do Padre, Professor de Moral, conseguiu-se que fosse composto e impresso na Tipografia do Centro de Apoio Social Infantil (CASI).

Conseguimos assinantes e publicidade, após cada um de nós entrar, penso com 50$00.

Começámos por inserir artigos que foram contestados pelo Externato e o CASI deixou de nos apoiar. Falou-se em desistirmos mas continuámos. Foi complicado visto termos de pagar a uma Tipografia.

Entretanto já tínhamos sido convidados para colaborar na Criação da Secção Cultural do União Desportivo Vilafranquense (UDV).

Quem nos coordena é o escritor Alves Redol em reuniões semanais (?).

Já deixara de estudar mas continuei a frequentar esses encontros. Nasci em Sintra e desde os meus 3 anos que vivia em Alhandra – rival nº 1 do União. Os meus Amigos chamaram-me traidor por colaborar com o clube de Vila Franca. Trabalhava mas continuei a frequentar o Restaurante Maioral, local onde anteriormente nos juntávamos diariamente e que continuava por ser o “local de encontro”. Vítor Manuel Caetano Dias, meu primo, é um dos obreiros.

A Secção Cultural nasce, já com o amigo José Brás que a compõe. Outras figuras surgem. O Cineclube do UDV faz história.

A 3 de Maio de 1965 sou obrigado a iniciar o Serviço Militar no RI 5, nas Caldas da Rainha o Curso de Sargentos Milicianos. José Brás encontra-se na mesma unidade. Finda a Recruta vou para Tavira em Agosto, e o Amigo José Brás também.

O meu Comandante de Pelotão é o Alferes de Infantaria Luís Carlos Loureiro Cadete.

Devido a ter sido hospitalizado no Hospital Militar de Évora, perco a Especialidade – Armas Pesadas – e vou de Licença Registada para casa. Em Janeiro mandam-me apresentar na Escola Prática de Artilharia (EPA), em Vendas Novas e termino a Especialidade e sou promovido após ter sido forçado contra vontade a prestar Provas para os Comandos – recusei, tive a sorte de me safar – e após Licença sou colocado no RI 14, Viseu. Monitor em várias Recrutas, com sucesso. Imagine-se. 

Quando penso estar prestes em terminar o Serviço Militar vou, contra vontade, Prestar Provas para os Rangeres. Após concluir todas as provas, foram 9 dias, e uma caminhada de 40 quilómetros, regresso a Viseu, onde integro a Equipa de Natação no Campeonato da Região Militar. Sou o único elemento da equipa a apurar-se para os Campeonatos das Regiões Militares Nacionais. Volto a ter esperança, mas sou destacado para o RAC, em Oeiras. Dai sigo para a Escola Prática de Engenharia, Tancos para frequentar o Curso de Minas e Armadilhas. Acontecem aqui umas histórias curiosas, mas noto ter sido deveras enganado. Preferível ter ido para os Comandos ou Rangeres. Passei o Curso com 14,8 (?), recebi um diploma e fui mobilizado para a Guiné.

Chego a Bissau em Janeiro de 1967 – não desembarcamos na cidade – e seguimos de LDM para o desconhecido. Defronte de Cacine dizem irmos para Gadamael Porto. Visto um Pelotão e uma Secção ter de ir para o Destacamento de Ganturé, toca-me esse destino.

Vários Furriéis Milicianos, Amigos e conhecidos que estavam já destacados na zona falam-me que o meu amigo – já Capitão Cadete – se encontrava em Mejo, entre eles o Amigo José Brás. Sempre que era destacado para Operações nesse aquartelamento, tentava que ele não me visse. Em Dezembro de 1967 dou de caras com o Capitão na falada “Operação Revistar”.

Devido a um Rebentamento, no dia 4 de Julho, quando morrem (dizem) 10 nativos e mais de 20 feridos graves,  vou para Gadamael. Entretanto já tenho o doutoramento de Minas e Armadilhas.

Não li o livro de José Brásm  “Lugares de Passagem”, só por mero acaso há poucos dias, tomei conhecimento. É notório que a Operação é a mesma – uma mancha tremenda na História que se recusam em falar – História da Guerra Colonial.


5. Lisboa > 
Hospital Júlio de Matos >  25 de Setembro de 1998 > Colóquio "Amor em Tempo de Guerra"

Volto a encontrar-me com José Brás, Aqui fica uma resumo,

O Amor em Tempo de Guerra

 por Mário Vitorino Gaspar

No dia 25 de Setembro de 1998 houve um Colóquio com o tema “Amor em Tempo de Guerra – A Guerra Colonial Portuguesa”, no Anfiteatro do Hospital Júlio de Matos. Para além do Psiquiatra Doutor Afonso de Albuquerque e da Psicóloga Clínica Doutora Fani Lopes, esteve presente um convidado surpresa, José Brás, ex-combatente que publicou o livro “Vindimas do Capim”, Prémio Revelação do Ano de 1986,  que começou por afirmar: 

– Na Guerra Colonial não existiram, quanto sei, orgias, como as vistas nos filmes americanos da Guerra do Vietname. (…). Que soldados portugueses eram estes? Alguns fizeram-se homens com as prostitutas das feiras anuais da província. E vão para a guerra. Guiné, onde cumpri o serviço militar, é um território pequeno… mas a solidão era maior. O soldado, na maioria carente de bens materiais, e muitas vezes de sexo, vai para a guerra e sente-se mais livre em combate que no quartel. 

Continua: 
– A masturbação, essa, sim, existia, até pela descoberta do corpo.

O Psiquiatra Doutor Afonso de Albuquerque, que cumpriu o serviço militar como Médico em Moçambique, referiu: 
– A sexualidade em tempo de guerra tem a ver com a experiência havida em tempo de paz. Quando parti para Moçambique chorei … limpei as lágrimas e lancei o lenço ao mar… Chegado à zona onde se instalou a minha Companhia, as prostitutas quando souberam que estavam nas imediações novos militares instalados, surgiram logo. Existia uma mulher branca, por cada dez europeus. Os perigos das relações sexuais com as nativas eram as doenças venéreas. Não havia preservativo, mas bisnagas de sulfamida. Os soldados afirmavam que aquilo tirava a potência. Sucedeu que um número de militares analfabetos, e não só, acabaram por ter experiências sexuais com animais.

Falou-se da homossexualidade existente na Guerra Colonial.

A Psicóloga Clínica Doutora Fani Lopes, disse: 

– Era natural que a namorada ou noiva fosse virgem. Casos houve que antes da partida para a guerra deixava de o ser. Decerto que algum pacto foi feito por mulheres de ex-combatentes, visto esses casamentos durarem ainda hoje.

Mário Vitorino Gaspar, fez notar:

– Importante referir, pela minha experiência, que o amor em tempo de guerra, estava aqui e não no sul da Guiné em 1967/1968. Lá existia guerra e não amor. Em Ganturé, destacamento de Gadamael Porto, o Régulo da zona, o beafada Abibo Injasso, Tenente de 2ª Linha, e elo de ligação entre o Exército Português e os “informadores” – que jogavam com um “pau de dois bicos” – e pago com uma viagem anual a Meca pelo Estado Português, proibia que as mulheres, e principalmente as bajudas (raparigas novas e em princípio virgens) de terem relações sexuais com os militares, sendo castigadas se o fizessem. Quando confrontadas com a tropa para terem relações sexuais, as mulheres ou bajudas recusavam com uma frase: - “Mim cá nega!”

Amor era o amor de pais, família, da noiva ou namorada.

Mas até se fazia sexo por correio – por carta ou aerograma – sexo por escrita, com noiva, namorada ou madrinha de guerra, por vezes até havia masturbação! Os militares na zona onde me encontrava só podiam ter relações sexuais, quando evacuados por ferimentos ou doença para Bissau, onde existiam prostitutas

Muitas vezes ficava imensamente triste por receber tanta correspondência e soldados nem um simples aerograma terem. Estes quando me falavam choravam e queixavam-se que as namoradas andavam com outros, por vezes até familiares, principalmente primos.

O Dr. Santinho Martins completou: 
– Necessário fazermos a distinção entre oficiais, sargentos e praças. É que estes últimos não tinham dinheiro. As prostitutas eram mulheres na decadência, já com uma certa idade.

Foi levantada a questão:
– Até que ponto o amor pode ser uma boa terapia para o Ex-Combatente que sofre de Perturbações do Stress Pós Traumático de Guerra?

A Doutora Fani Lopes, ao terminar afirmou: 
– Um ou outro regressa da guerra e posteriormente isola-se de tudo e de todos. O isolamento consigo próprio é uma situação de risco. A vida não é aquilo que queremos, mas aquilo que ela é!

Discutiu-se o “Amor em Tempo de Guerra – o Sexo em Tempo de Guerra”

NOTA: Este texto foi publicado no Jornal APOIAR, fui um dos seus fundadores e 1º Director.
 ____________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 3 de julho de 2023 > Guiné 61/74 - P24447: Casos: a verdade sobre... (34): A CCAÇ 2792 (Catió e Cabedú, 1970/72), comandada pelo cap inf Augusto José Monteiro Valente (1944-2012), e depois maj gen ref, que embarcou para o CTIG sem três alferes (que terão desertado) e durante a IAO ficou sem o último, por motivos disciplinares...

(**) Fonte: Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 6.º Volume; Aspectos da Actividade Operacional; Tomo II; Guiné; Livro II; 1.ª Edição; Lisboa (2015).

terça-feira, 6 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23850: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte VI - Gadamael Porto... Continuando

1. Parte VI da publicação do excerto que diz respeito à sua vida militar do livro "Um Olhar Retrospectivo", da autoria de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796 - Gadamael e Quinhamel, 1970/72.


VI - Continuando…

Parte da primeira companhia de comandos africanos, comandada pelo célebre e temido João Bacar Jaló e pelo segundo comandante Zacarias Saeigh, logo a seguir, apareceu em Gadamael Porto, com indicação de que ficariam uns dias, participando em operações com a nossa companhia.
Aqui estava parte da razão da nossa espera em Bissau, até ao dia 27 de Novembro pois, parte deles, tinha participado na operação de que lhe falarei, a seguir.

Recordo alguns dos elementos: o Jalibá, o Bari, o Tomaz Camara, o Justo, o João Lomba, um felupe com dois metros, sempre de catana à tiracolo, que fazia colecção de crânios do inimigo, segundo diziam os outros, com convicção.
Tenho fotos de recordação com alguns deles.
Tinham feito parte da operação Mar Verde, invasão à República da Guiné-Conacry, em 22 de Novembro, ainda bem marcados e feridos pelos resultados.

Só por curiosidade, uma das nossas operações, em que alguns deles participaram, durante uma emboscada, o Tomaz Camara foi baleado na cabeça, mas de tal forma que a bala entrou pela fronte, não penetrou na parte óssea e deu a volta, ao longo do couro cabeludo, ficando retida na parte posterior da cabeça.
Concluiu-se que aquela bala foi sendo amortecida pelos ramos e folhagem das árvores, chegando à cabeça do Tomaz Camara já com pouca capacidade, a grande sorte dele.
Foi evacuado para o hospital de Bissau e lá se safou, após cirurgia adequada.

Voltando aquela operação Mar Verde, só para o Daniel ter uma ideia, foi uma operação liderada pelo capitão-tenente fuzileiro Alpoim Calvão, com o máximo sigilo e de forma a evitar que algum sinal pudesse indicar como obra de forças armadas portuguesas.
A equipa foi formada por fuzileiros do continente, fuzileiros guineenses formados no local e alguns comandos africanos.
Parte da equipa foi treinada pelo temido Marcelino da Mata, que também participou, de que lhe falarei, se me lembrar.

Como acontecia em outras operações, as armas e os uniformes teriam de ser iguais ou idênticas às usadas pelos militares do PAIGC, além das pinturas a negro, na cara.
Os próprios veículos usados nas operações teriam de ser o mais discretos possível, sem inscrições que os pudessem denunciar, assim como as próprias equipas que deviam ser caracterizadas de forma a confundirem-se com o inimigo, neste caso, africanos.

O objectivo seria destruir bases militares e equipamento, assim como pontos estratégicos que convinha neutralizar, libertar prisioneiros de guerra portugueses e prisioneiros políticos contra o regime de Sékou Touré, tendo em vista um golpe de estado que pudesse aniquilar Sékou Touré e Amílcar Cabral.
Mas o objectivo não foi conseguido, na sua totalidade, claro.

Foram libertados 26 prisioneiros portugueses, cerca de 400 prisioneiros políticos guineenses, além de destruído bastante equipamento militar e causadas centenas de baixas aos guerrilheiros do PAIGC e população, inevitável…

Como era de esperar, as organizações internacionais receberam as queixas por parte do governo da Guiné-Conakry, nada de extraordinário, considerando a gravidade…
Segundo o relatório desta operação, parte do insucesso da operação deveu-se ao mau trabalho da PIDE, nomeadamente, deficientes passos no campo das informações.

Lembro-me da insatisfação do João Bacar Jaló, pelo facto de não termos comida suficiente, além da rotura do stock de ração de combate.
Já tínhamos enviado rádios para Bissau, solicitando alguns mantimentos, mas nada aparecia.
Foi preciso um rádio, com código do João Bacar Jaló, para enviarem frescos, de imediato.
Os frescos eram constituídos, normalmente, por peixe congelado, frango congelado, ovos, lançados em rede por um hélio, com o impacto no solo que se prevê…

Era assim, o reino do Sr Spínola, em Bissau!... O João Bacar Jaló veio a falecer, em combate, uns meses depois, penso que em Abril, na designada operação ‘nilo’.

"O Adolfo fala dessa sua passagem por África com alguma frieza, mas acredito que deixou muitas marcas, como todos sabemos e o Adolfo melhor saberá…"
Sim, mas já tive tempos mais difíceis do que agora.
Quando andava nos quarenta, quarenta e tal, recordo-me de dias e noites bem difíceis, com um grande esforço para evitar transparecer aos que me rodeavam, na empresa e na família.

Uma sensação de distúrbio mental, principalmente, durante a noite, com perturbações de sono, uma certa ansiedade sem razão aparente, uma mistura de revolta com instabilidade, desânimo, saltos repentinos da cama, o gesto tantas vezes lá repetido, tudo isso relatei aos médicos, neurologista e psiquiatra, que definiram como parte das consequências resultantes de momentos vividos neste tipo de cenários.

Não me imaginava a desabafar e, até, a chorar, mas foi uma realidade, logo justificada pelos médicos.
Falaram em stress traumático de guerra, o que atingiu alguns elementos da companhia, com graves consequências para o resto da vida, como constatado, aquando dos nossos encontros/convívio/almoços anuais.
Alguns medicamentos, por pouco tempo, também ajudaram.

Sabe, Daniel, nós só acreditamos nestas coisas quando, realmente, nos tocam pela porta, directamente.
Mas há gente que não compreende, nem os nossos sentimentos, nem a nossa linguagem, mas nós estamos preparados para compreender essa gente que não nos compreende…
A par dos acontecimentos próprios daquela guerra, como já lhe disse, o clima deixava-nos de rastos.
Humidade do ar, na ordem dos noventa por cento, temperatura, na ordem dos quarenta graus, um factor determinante de um certo desespero diário, sem nada se poder fazer para o evitar.

As operações de rotina, tantas vezes, dentro de matas virgens desbravadas à custa de catana, quase de rastos, incluíam entrar em regatos de águas geladas, que nunca viam o Sol, ou lamas negras que se agarravam ao camuflado.
Quando saíamos da mata e entrávamos nas designadas lalas, com aquelas temperaturas, as lamas coziam e eram como lâminas a rasgar a pele, provocando irritações e queimaduras, um tormento, só possível aliviar à custa de fórmula cinco, de que resultava um ardor tal, que só aos saltos!…
Dentro do camuflado, nem pensar em cuecas...

Outras agressividades nos surpreendiam, quando em progressão pelos trilhos ou dentro das matas, como os carreiros de formigas vermelhas, os enxames de vespas e as cobras cuspideiras.
As formigas começavam a entrar, não sabíamos por onde, e alojavam-se pelo corpo, principalmente, nas partes íntimas, cravando as tenazes nos testículos, o que deixava qualquer um desnorteado, pelas dores.
E nós tínhamos o camuflado bem apertado sobre as botas!...
Quando tentávamos tirá-las, a cabeça ficava cravada e apenas saía o corpo.

Os enxames estavam pendurados em ramos das árvores e, logo que algum de nós lhes tocava, elas começavam a sair, endiabradas, ferrando tudo o que podiam, do que resultavam uma espécie de monstros!
Aliás, diziam-nos que os próprios guerrilheiros do PAIGC preparavam esses enxames e colocavam-nos em locais estratégicos, picadas e carreiros de progressão que usávamos, nas nossas operações.

As cuspideiras, pequenas e verdes como os ramos das árvores, cuspiam nas partes brilhantes, logo, nos olhos.
Como imaginará, a população de baratas e formigas com asas, cá conhecidas por agúdias, era uma enormidade, mas habituámo-nos a viver com elas, a dormir com elas.

Também as limitações de alimentos e água ‘bebível’ faziam parte da nossa festa diária…
Tivemos um período que nem ração de combate havia, diziam que estava esgotada!

Outro problema era o paludismo, quando forte, podia matar.
Felizmente, foi coisa que não me tocou!
Mas as diarreias eram um cenário quase comum, deixando muitos de nós de rastos.
No meu caso, felizmente, um só episódio, mas levou-me a ‘buracos do mato’ um monte de vezes, num só dia, que ficaram bem registados!

"Ouvi falar de doenças desse tipo, como o paludismo, e também dos problemas provocados pelas águas, problemas em cima de problemas que vocês tinham de contornar - ossos do ofício…
Se calhar, era o tipo de problemas para o qual não estavam preparados".


Daniel, depois desta experiência, concluo que estamos preparados para muito pouco…
Também me lembro de um quadro muito engraçado, algumas vezes fazendo parte do nosso cenário, quando em progressão pelos carreiros ou picadas: as famílias de sancus (macacos).

Imagine que tínhamos de parar, com os riscos inerentes, para que as famílias atravessassem os carreiros ou as picadas, o pai de um lado, a vigiar o espaço, garantindo a segurança da família, enquanto a mãe ia atravessando com os filhos, todos de mão dada, até chegarem todos ao outro lado, sempre olhando-nos nos olhos e como que a dizerem-nos alguma coisa, numa linguagem acompanhada de um rosnar tipo cão.
Aliás, o macaco-cão abundava e dizia-se muito apreciado pela etnia Fula, que não consumia carne de porco.
E sabia-se que, muitas vezes, os bifes não eram de vaca, porco ou gazela, mas de macaco-cão…
A etnia Balanta criava e consumia porco.

Quando chegava correio, tarde, mas chegava, uma enorme festa para alguns, mas uma tristeza para outros, pois não eram contemplados.
Lembro-me de aerogramas partilhados, um gesto de solidariedade e amizade.
Algumas vezes, quando se ouvia um ligeiro ruído característico do héli, associávamos a correio, logo, toca a pegar no aerograma e escrevinhar qualquer coisa, à pressa, como: ‘meus queridos pais e irmãos, espero que estejam bem, eu estou bem, o resto vão ler aos anteriores, beijinhos.’
Também chegou a acontecer aparecer um héli e, ao dar a entender que tencionava baixar, um dos soldados pegou na G3, apontava para o ar, enquanto outro avisava, pelo radio móvel, que não se aventurassem a baixar, caso não trouxessem correio!…

As revistas da altura, como a Plateia, quando lá chegavam, enviadas por familiares e amigos de alguns, constituíam um alimento para o espírito de todos.
E liam-se, e reliam-se, e reliam-se,…
De vez em quando, eu recebia aerogramas das minhas amigas, que não me esqueciam, cujo significado e efeito não têm tradução, por palavras.
Uma delas enviava-me, de vez em quando, algumas cassetes com gravações de músicas acabadas de sair, o que me permitia estar ao corrente do que se ia passando, na ‘civilização’.
Ainda bem que tinha comprado o tal leitor de cassetes e que podia ouvi-las, sempre que chegavam à minha mão - um verdadeiro milagre…

Algumas vezes, quando se ouvia um ligeiro ruído característico do héli, logo associávamos a correio…

"Ó Adolfo, por falar nisso, lembro-me do Movimento Nacional Feminino que, embora algo contestado, ainda conseguia fazer alguma coisa válida, no apoio aos militares que chegavam feridos e aos familiares dos que morriam. Pelo menos, era o que me constava…"

Sim, Daniel, era um movimento interessante, mas…


mais qualquer coisinha desagradável…

Mas nem tudo o que me chegava era agradável.

Recebo uma carta da minha mãe, não aerograma, com um texto normal de mãe, mas juntando uma foto dos meus pais com a criança Carla ao colo.
Claro que não incluía a mãe, por precaução.
Não foi preciso pensar e não respondi, como se nunca tivesse recebido aquela carta.

Obviamente, associei este quadro ao que o meu irmão me tinha relatado sobre uma Guiomar, embora sem pormenores, mas qualquer coisa seria de desagradável.

Mais tarde, recebi novo aerograma da minha mãe, pedindo-me autorização para levantar dinheiro da minha conta, pois a tia Jú estava aflita com umas despesas inesperadas que tinha de cumprir e a minha mãe já tinha ajudado, um pouco, mas não podia ajudar mais.
Logo respondi que sim, poderia levantar tudo o que a tia Jú necessitasse - para a tia Jú, tudo!
No entanto, deixou-me a pensar na coisa, pois era estranho...

Mesmo com algum problema inesperado, a tia Jú tinha o seu emprego, o marido o seu emprego, a avó Júlia a sua pensão, a sogra a sua pensão, as duas sem despesas, logo, porquê?!
Paciência, mais tarde teria oportunidade de conhecer a resposta e, no momento, era melhor esquecer.

"Adolfo, não consigo imaginar o que sente uma pessoa, em cenário de guerra e de falhas no mais elementar, como a comidinha, ao receber notícias da família, com situações que suscitam dúvidas e criam preocupações…"
Realmente, Daniel, era difícil conciliar a situação com algumas notícias que lá nos chegavam…
Mesmo o pouco tempo de descanso era assaltado por estas dúvidas e preocupações, apesar de sabermos que nada podíamos fazer.

Mas o meu relacionamento com toda a companhia continuava óptimo, em espírito de grupo saudável e imprescindível, com os condicionalismos próprios do contexto, mas com uma grande vontade de, em conjunto, procurarmos vencer todas as dificuldades que nos iam surgindo, sempre motivados pela esperança de um regresso a casa, sãos e salvos.
Mas as situações delicadas não podiam ser contornadas, pois faziam parte daquela realidade, e surgiam a cada momento.
Já com baixas, a moral ia ficando debilitada, mas o nosso espírito ia amadurecendo, a forma possível de continuarmos a nossa marcha.

Pouco mais de dois meses decorridos, durante uma emboscada que sofremos logo uns minutos depois do arame farpado do aquartelamento, ainda no início de mais uma operação, o capitão Assunção e Silva, um ranger bem preparado e bom líder, morre, com tiro certeiro no coração.
Além do capitão morto, mais dois ou três feridos, apenas.

Sim, mais uma operação, designada de reconhecimento, em que saía o primeiro grupo, do Ponte, o capitão Assunção e Silva, um ou dois dos comandos africanos e alguns milícias.
Como era necessário mais um graduado, o Ponte manifestou interesse em que eu participasse nesta operação, apesar de não ser o meu grupo, mas a solidariedade ‘obrigada’ sobrepunha-se a tudo, dadas as circunstâncias.
Mas não me esqueço de que, neste dia, eu estava muito mal disposto, com os meus problemas do aparelho digestivo, já conhecidos, e que se foram agravando.
Mas o cenário que vivíamos não tolerava más disposições…

Como o Daniel saberá, o desenrolar de uma emboscada pode durar segundos ou minutos, depende das circunstâncias.
Início, troca de tiros, uns segundos e… já está - final e retirada estratégica de ambas as partes…

Como o Daniel já deve ter ouvido, sempre que em situações como esta, toca a despir camuflados para apoiar em G3 e improvisar macas, até chegarmos ao aquartelamento, tudo rápido e em silêncio, claro, mais uma experiência para a vida.
Confesso que fiquei bastante abalado quando vi o capitão caído, já sem vida!
Aliás, um sentimento geral, em toda a companhia, quando entrámos no aquartelamento!

(Continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 4 de Dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23843: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte V - Chegada a Gadamael Porto

terça-feira, 22 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23803: A galeria dos meus heróis (48): Adeus e até à próstata! (Luís Graça)


Lourinhã > Grafito > 24 out 2020 > Uma quadra de Fernando Pessoa

Foto: © Luís Graça (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


A galeria dos meus heróis > 

Adeus e até à próstata!

por Luís Graça  (*)


1. Encontrámo-nos na cafetaria do jardim da Gulbenkian, em Lisboa. Recordo-me de nos termos cruzado, por mero acaso, numa exposição sobre o cérebro humano. Acabámos por ver o resto, juntos, e no fim fomos beber um bica e dar os dois dedos de conversa da treta. Era sábado e estávamos livres. Já não via o meu amigo psicólogo há uns largos tempos.

No passado, tínhamos estado ligados a projetos de intervenção e investigação  no domínio da promoção da saúde no local de trabalho, desempenhando ele as funções de assessor para a área da saúde mental. Além disso, era especialista em perturbação do stress pós-traumático  (PSPT), provocado por situações-limite como a guerra, os acidentes, as agressões, os assaltos, e outras formas de violência, mas também a experiência de doença, e nomeadamente da doença oncológica.

Éramos amigos de longa data, sem sermos propriamente íntimos. Ele tinha feito a licenciatura em psicologia no ISPA – Instituto Superior de Psicologia Aplicada. E a tropa nos serviços psicotécnicos do exército.  Doutorou-se depois,  em Lovaina, na Bélgica. Tivera mais sorte do que eu, que não escapei à “guerra do ultramar”, como então se dizia: interrompera-me os estudos e,   depois da “peluda”,  foram mais quatro anos a ganhar ânimo para entrar na calha e continuar a estudar… A trabalhar  e a estudar.

Havia, no entanto, uma “pedrinha no sapato” entre nós. Eu embirrava com a expressão stress pós-traumático  de guerra e, talvez inconscientemente,  dava ouvidos ao coro dos “durães”, os antigos militares das tropas especiais para quem isso era “doença dos cobardes” (as duas expressões, ditas em tom sarcástico,  eram do meu amigo que, por sua vez, achava que eu também ainda sofria de traumas de guerra).

Houve uma altura em que o tema da guerra era recorrente nas conversas entre nós. O que me irritava de sobremaneira.  Mas a mim, desta vez, não me apetecia nada voltar a falar da tropa e  da guerra e, no fundo,  a ter de assumir que durante alguns anos não conseguira ser dono do meu destino. De facto, uns puderam continuar a estudar, sem sair do país, outros, mais afortunados,  demandaram portos de abrigo lá fora. E eu conhecia alguns,  faltosos e refractários, que se piraram antes que a tropa lhes pusesse a mão em cima, e sobre quem tinha sentimentos ambivalentes.

−E tu, meu estúpido, perdeste a guerra e anos de vida! – atenazava-me , uma e outra vez,  o meu amigo da onça, sempre que se falava do tema, em tom paternalista e algo diletante. (Afinal, o que sabia ele da experiência pessoal da guerra ?).

Desta vez, e para variar, estávamos ambos a falar dos “casos” e dos “ocasos” da vida.. Eu tratava-o por “Psi” (de psicólogo). E ele retribuía-me  com outro diminuitivo, o “Soc” (de sociólogo). E veio então à baila a notícia, que eu acabara de receber, uns dias antes, da morte de um conhecido meu, de quem, de resto, não guardava as melhores recordações, mas de quem sentia pena, sem saber por quê. Tinha sido doente do IPO, tal como eu.

− Alguém que eu possa ter conhecido ? – indagou o meu amigo “Psi”.

− Não me parece… Mas até é possível, julgo que ainda era do teu tempo, ou seja, do tempo em que tu lá andaste, com as tuas meninas, a entrevistar doentes pré-terminais. Ele foi visita frequente do IPO, andou por lá em tratamento em diferentes períodos. Quase diria que já fazia parte da mobília…

E adiantei:

− Claro que não te vou dizer o nome, mas tu, como “Psi”, eras capaz de gostar de ter conhecido a personagem.

− Alguém, um bocado bronco, que fazia gala de dizer às "meninas", às médicas,  às enfermeiras e às radioterapeutas  que “tinha sido pegador de touros e ainda gostava de montar” (a cavalo) ?!...

− É capaz de ser o mesmo, talvez o tenhas apanhado no início, na  primeira fase do tratamento, eu só o conheci mais tarde. Era uma figura patética, para o fim da vida. Mas era popular no IPO, e cirandou por lá uns anos. Foi bravo na morte, tenho que o reconhecer.

− É capaz de ter ficado fora no nosso estudo, na altura ele não reunia os requisitos, um deles era ser doente oncológico em cuidados paliativos… Mas julgo que ainda cheguei a falar com ele… Achei-o, além de um triste marialva, um bocado exibicionista e histriónico, se queres que te diga… Mas não sei se  estamos a falar da mesma pessoa…

− Nessa altura, ele devia estar muito longe de saber que ia morrer… Bem pelo contrário. E tinha-se voluntariado para um ensaio clínico, também não sei se chegou a ser aceite… Descobri que tínhamos, afinal, em comum alguns conhecidos, um deles da terra dele,  mas o que nos aproximou foi, de facto, o IPO, que frequentámos juntos durante algum tempo. Vimo-nos ainda diversas vezes. E ele acabou por me confiar umas fotocópias de um caderno com as suas memórias. Ainda eram umas largas dezenas de páginas, talvez perto da centena.  Pediu-me um “parecer”. Achava que eu tinha pinta de crítico literário. No fundo, confiou em mim, não sei por quê, nunca lhe disse o que fazia… Queria saber se valeria a pena publicar a sua “história de vida”, em livro, e “ainda em tempo útil” (sic), à medida que o tratamento não parecia estar a resultar… Tinha um tique: olhava para o relógio como se estivesse a cronometrar o tempo de vida que lhe restava… Os direitos de autor seriam entregues à Liga dos Amigos do IPO, instituição onde tinha sido “tratado por anjos” (sic).


2. E aqui o meu amigo psicólogo, com nome na praça, e que me fazia companhia, não sei se a contragosto (eu achava que sim, que ele dessa vez, num sábado soalheiro, estava mesmo a fazer um frete), não conseguiu deixar de arregalar o “olho clínico” e de passar a mostrar maior interesse na conversa, disparando-me logo uma pergunta algo sarcástica:

−Está bem, mas diz-me então, tu que leste o manuscrito com a sua história de vida: o teu conhecido encaixava-se em que tipo da fauna humana ?

Quis responder-lhe no mesmo tom de chalaça e non-sense:

−Não sou bom em zoologia e muito menos em taxinomia… mas podes pô-lo na gaveta do caceteiro, do energúmeno, do vilão, do “mau da fita”, do “lobo mau” da história do Capuchinho Vermelho… Isto por alguns histórias que sei dele...Podia ter sido marialva e pegador de touros, um valentaço, e ser um gajo minimamente decente, com valores, com ética, com bom senso…

−Também não gosto de catalogar ninguém às primeiras impressões… Mas arriscava-me a dizer que o teu conhecido não passava de um reles predador…

− Predador ?!...

− Sim, como a hiena… Tu que andaste pela Guiné, sabes que lá chamam “lobo”, em crioulo, à hiena. O que  eu acho que é uma ofensa para o lobo, para mim um animal nobre e altamente social…

− A hiena também o é, um animal social, é extremamente eficaz a caçar em grupo, como o lobo em alcateia… Mas não sei se o epíteto é bem aplicado ao nosso conhecido…Podia contar-te histórias do pequeno cacique, capacho dos agrários, ricos e poderosos, capanga, como dizem os brasileiros…

− É sempre interessante, não ?!, conhecer estes exemplares, e estudá-los, pelo menos em laboratório… Não os gosto de encontrar na vida real….Mas tu e eu temos que saber lidar com toda a fauna humana, todo o “bicho-careta” que nos pede ajuda…

− Tu, sim – respondi eu −, que fazes clínica, és psicoterapeuta, ouves no divã, tal como o padre no confessionário, muitas histórias, boas e más, alegres e tristes, cómicas e trágicas… Eu limito-me  a contar ou a inventar algumas, das poucas que me chegam aos ouvidos…


3. Descrevi então ao meu amigo “Psi” quem era essa tal “hiena” da minha pequena história… Oriundo da pequena burguesia rural da província, ali do Médio Tejo, na fronteira entre a Estremadura e o Ribatejo, era o que se podia chamar uma figura recorrente da pequena história da nossa História, com H grande. Sobretudo dos períodos mais conturbados como o foram a “aventura dos Descobrimentos”, as guerras, as invasões (com destaque para as napoleónicas), as revoluções, enfim, todos os períodos de convulsão social, a guerra civil, como a dos tempos do Liberalismo, da República ou dos anos 20/30 que levaram à ascensão da Ditadura Militar e depois ao Estado Novo… Mas também, mais recentemente, a guerra colonial, o fim do salazarismo e do marcelismo, o 25 de Abril, o Verão Quente de 75…

Nos anos 50 o nosso homem tivera a sorte de poder fazer mais do que a quarta classe do ensino primário. Abrira um colégio privado lá na terra (uma vilória na margem direita do rio Tejo), o pai "pô-lo a estudar",  como então se dizia. Deve ter feito o 2º ano,  no máximo. Revelou-se desde cedo um arruaceiro, envolvendo-se “à porrada” com alunos e professores.  Claro, foi expulso, e de algum modo fazia gala disso. É ele próprio que o conta nas suas memórias.

Na época mandavam-se estes casos para o Colégio Nuno Álvares, ali perto, em Tomar. O pai lá fez o sacrifício, na secreta esperança de o corrigir e de “fazer dele um homem”… Deve ter vendido mais umas jeiras de terra da herança da mulher (que essa, sim, é que tinha algo de seu, com restos de família fidalga em Alenquer). O gosto por touros e cavalos  deve ter vindo desses tempos. Mas eu sei pouco do seu passado, baseio-me no que ele contou, no seu manuscrito, ou numa ou noutra conversa avulsa. E algumas confidências enojaram-me, como as suas alegadas "conquistas amorosas".

Ofereceu-se para a Força Aérea, andou por lá os seis anos da praxe, como “mecânico de aviões” (sic). Se bem percebi passou por Cabo Verde e Angola. Aprendeu uns truques de boxe. Passou a confiar na sua estrelinha da sorte e nos seus punhos. Mas foi o fator C que lhe abriu as portas de um emprego civil,  com ordenado certo ao fim do mês, quando regressou de Angola em 1962. O veterinário municipal da terra, que era um cacique a União Nacional, deu-lhe uma mãozinha... 

Passou a vender produtos zoofitossanitários e veterinários, percorrendo boa parte da Estremadura e do Ribatejo. Habituou-se à vida de “caixeiro-viajante”, e à liberdade que isso lhe proporcionava, ficando semanas inteiras fora de casa. Não sei se chegou a ter duas famílias em dois sítios diferentes, mas tinha os seus “arranjinhos por fora” (sic) ao longo do caminho de casa…

− Bem, daí a sociopata vai uma distância…

− Também nunca disse que ele fosse um sociopata, nem sei se ele, em vida, chegou a ter problemas com a justiça… Mas teria alguns traços do sociopata, no mínimo era um homem violento. E, na verdade, não nutria sentimentos de compaixão pelos outros. Contou-me (mas não deixou isso escrito) que atropelara mortalmente um “pobre diabo”, na Estrada Nacional nº 1, na reta da Benedita, de noite. Numa noite de temporal. "Sem culpa"...,  mas nem sequer parou, para prestar socorro à vítima.  “Ia a mais de 150 km à hora, quando lhe apareceu um vulto, curvado,  a sair da berma da estrada”… Bateu-lhe de lado… Confirmou a notícia da morte pelos jornais,  no dia seguinte: “Uma chatice, mas devia ser um bêbado de fim-de-semana”, acrescentou ele, com o maior dos desplantes… e sentindo-se impune. A polícia nunca chegou a descobrir o autor do atropelamento mortal e o caso foi arquivado.

E aqui o meu amigo “Psi”, que na juventude andara pelas “águas turvas de um grupúsculo maoista” (a expressão era dele), ironizou:

− Não é caso virgem. Temos gente (e muito respeitável)  que faz (ou faria) o mesmo, a coberto da impunidade. Ainda bem que a humanidade, a corja humana, não veste toda por igual, como na Coreia do Norte , ainda hoje, ou na China do tempo do “Grande Timoneiro”, meu ídolo de juventude.

− Nem come só arroz chau-chau ou hambúrgueres!

− Às vezes, “Soc”, pergunto-me como é que um gajo, quando é novo, pode ser tão cretino!…

− Para o bem e o mal, a  fauna humana é diversa e multicolorida… E adaptativa. Imagina o  que seria um mundo de presas sem predadores ?... Ou só predadores: comiam-se uns aos outros… Mas, quanto às igrejas, deixa lá – contemporizei eu – muito boa gente sofreu do mesmo mal, antes e depois do 25 de Abril…

−Estou de acordo contigo… O comunismo enquanto utopia foi a doença infantil da nossa geração, nascida no pós-guerra, filha bastarda do Salazar e do Cerejeira…

−… e que terá preenchido o vazio ideológico deixado pela crise do catolicismo. No fundo, saíste de uma igreja para te enfiares noutra… Dizem que houve muitas conversões na manhã do dia 26 de Abril… Tu e eu conhecemos algumas…

O “Psi” não gostou da minha insinuação, relativa ao seu passado. E procurou desconversar:

− Mas voltando ao teu, afinal nosso, conhecido… Parece-me ter sido um gajo que não cresceu, ou não quis crescer… Mas eu diria que não há rapazes maus… Os “teddy boys” do nosso tempo, lembras-te ? Carros, gajas, bandos, música ié-ié…

− Sempre os houve e haverá, bandidos e aprendizes de bandidos que tanto sabem usar os punhos, como engatar, com um sorriso sedutor, a menina do coro e, logo a seguir, ajudar a velhinha a atravessar a rua…

− Estou a ver… Na província, isso ainda é (ou era) notório, tal como nos filmes do velho Faroeste…

− Quanto ao nosso fulano, perguntas… Pelo que li nas fotocópias do seu manuscrito, era um anticomunista primário ou, se calhar, nem era nada. Gabava-se de ter “partido o focinho a alguns comunas, em Rio Maior” e noutras “arenas de combate patriótico”  (sic) onde atuou no Verão Quente de 75. (De vez em quando, eu apanhava, no seu discurso,  alguns restos da sua tosca formação político-ideológica.) E depois, durante a campanha eleitoral de Ramalho Eanes, em 1976, diz que chegou a andar com ele aos ombros… Coitado do Eanes!... O que nunca apurei (nem quis, sabendo-o já bastante doente) foi a sua eventual participação nas redes bombistas que atuaram em 1975, pondo parte do país a ferro e fogo… 

E ainda acrescentei:

− No seu diário faltavam duas ou três folhas, justamente as dessa época. E eu nunca o inquiri sobre isso, achava que não tinha esse direito, para mais numa situação em que  a sua saúde se estava a degradar a olhos vistos... Mas não me parece que tenha sido um operacional de coisa alguma, quando muito um "peão de brega", gostava isso sim de “molhar a sopa”, como terá acontecido algumas vezes ao longo do Verão Quente de 75, nas terras onde havia "caça aos comunas" e que faziam parte do seu roteiro de "caixeiro-viajante".


4. Com um sorriso amarelo, contou-me, da última vez que o vi (e que na prática foi uma despedida), que fora a própria médica do IPO quem lhe passou a “certidão de óbito antecipada”:

−Senhor Jota Jota (alcunha fictícia)…, sabe que eu nunca fui de paninhos quentes… O médico tem de dizer a verdade ao doente… No seu caso chegámos ao fim de linha. A medicação, que tomou e que é inovadora, deu-lhe muitos meses de vida… Será uma esperança para futuros doentes com tumores como os seus… A si, deu-lhe mais qualidade de vida, mas não vale a pena continuarmos… Seria causar-lhe falsas ilusões e mais sofrimento. Tem metástases espalhadas por várias partes do corpo, e tudo começou na próstata… Agora a bexiga e o pâncreas… Bem, vamos ter que o passar para os cuidados paliativos. Não quero que sofra. Vou-lhe recomendar também a consulta de psicoterapia. Boa sorte e coragem.

A verdade é que o Jota Jota  apagou-se uns dois ou três ou meses  depois, pelo que eu  vim a saber mais tarde. Esteve numa unidade cuidados continuados, com muita morfina em cima daquele corpo…

Mas, muito antes já lhe tinha devolvido, pelo correio, o seu manuscrito com uma nota, elegante, cortês, até simpática, mas cínica: “Meu caro J… Escrever não é fácil. E menos ainda quando, no fim da viagem (ou da picada, você esteve em Angola, sabe do que falo), um gajo, como nós, olha para trás e põe-se a rebobinar o filme da p… da vida…”

Ele escrevia mal ecom erros de ortografia, mas eu não tinha coragem de dizer-lhe isso diretamente na cara… Como dizer isto, afinal,  a um homem que, pela conversa da sua médica,  ia entrar, dentro de pouco tempo, no terminal da morte, mesmo sabendo que ele era um narcisista ?!… 

Não o desencorajei, acabei por criar-lhe falsas esperanças: que a escrita precisava de ser melhorada, a pontuação, a ortografia, a ligação entre as partes, o fio cronológico, havia parágrafos a acrescentar, outros a cortar ou melhorar, que havia saltos bruscos, "brancas", lapsos de memória, erros factuais...  Enfim, havia que acautelar a privacidade de certas pessoas que, não sendo figuras públicas, eram citadas… 

E depois conviria saber se a Liga dos Amigos do IPO daria o seu aval à iniciativa, por muito boa que fosse a intenção do autor… E era preciso, não menos importante. encontrar um editor… E ainda restava saber qual seria a aceitação do livro, o volume de vendas, o montante dos direitos de autor… Enfim, uma trabalheira. (Eu fazia questão de o tratar por você, para manter um certo distanciamento afetivo, ele era,  de resto,  mais velho do que eu.)

Claro, nunca me chegou a responder. Não teria já ânimo para pensar no projeto, um pouco megalómano e mitómano,  do livro. Teve, até ao fim da vida, uma boa companheira,  creio que de origem cabo-verdiana… Mais do que companheira, enfermeira. Nunca a conheci, a não ser de fotografia:  teria idade para ser filha dele.

Embora tendo casado muito jovem, e com filhos, mas cedo  divorciado, o Jota Jota  era um “engatão compulsivo”. De estatura média, entroncado,  casaco de couro (a lembrar o dos seus tempos da Força Aérea), arranjaria mais tarde uma “pileca” para lisonjear o seu ego e completar a sua auto-imagem de marialva de pacotilha. Gostava de dar a sua “volta  ao redondel”, que era o largo da feira lá do sítio onde morava…  quando ainda tinha forças para tal… Mas nos últimos meses a sua decadência física foi galopante, disse-me um seu conterrâneo,  meu conhecido..

Às tantas tive pena daquele meu companheiro de infortúnio, mesmo sabendo que a sua vida tinha sido um caso de “pulhice humana”, e que tinha feito mal a muita gente, acomeçar por jovens mulheres que ele seduzira,  e que era incapaz de autocrítica e arrependimento…

− Não gosto de bater nos mortos, nem mesmo daqueles que foram em vida, grandessíssimos filhos da mãe…

E acrescentei, retomando a conversa com o "Psi":

− O Jota Jota, à sua escala, reles, desprezível, terá sido um deles… Grande ou pequeno, para mim é um filho da mãe...

− Tal como os esbirros e os lacaios da Santa Inquisição, da PIDE, do Pombal, do Salazar… – complementou o meu amigo “Psi”.

− Eh!, pá, não falo das figuras históricas, deixá-las lá dormir o sono eterno no Panteão Nacional dos Figurões, esse ridículo  ossário das nossas pretensas memórias coletivas… Até por que os portugueses não conhecem a sua própria história…

− Os outros povos também não – respondeu o “Psi” −, sou capaz de concordar contigo, não há céu nem inferno, apenas limbo para aqueles que, no seu tempo, foram grandes, poderosos ou famosos…

− “Aqueles que por obras valorosas se vão da lei da morte libertando!”… Vê o pobre diabo do Camões… Quem o lê hoje ?

− Lemo-lo nós, no nosso tempo, por obrigação, nunca por devoção ou paixão… − ironizou o “Psi”.

− Para mais agora que perdemos o Império (ou a sua ilusão, nunca tivemos dimensão para ser uma nação imperial e imperialista).

− Algumas dessas figuras, a quem chamamos herois,  deram-nos bastos motivos para os continuarmos a odiar, mesmo depois da morte…

− Sim, há homens (e mulheres)  a quem a História não perdoará, a menos que se continue a falsificar a História…

O tema era caro ao “Psi”, que me adiantou:

− Haverá sempre gente pronta a acreditar… e a mentir. Mas felizmente que a História, enquanto ciência, não é do domínio da fé e da propaganda.

E aqui ele foi taxativo;

− Sim, está por fazer a lista dos mais famosos mortos execráveis  de cada país… Mas a nossa História ainda é um ninho de mentiras...

E eu abanei a cabeça, em sinal de concordância, acrescentando que, no dito país dos brandos costumes, não chegaríamos  hoje a um consenso sobre esse macabro “Top Ten”.

− E depois há o “enviesamento ideológico”, como tu, ”Soc”,  gostas de lembrar…  Vê como a historiografia trata os vencidos e os vencedores… Vê o caso dos irmãos, Dom Pedro e Dom Miguel…

− Ou dos pais, o Dom João VI e a espanhola, a Dona Carlota Joaquina, takvez uma das nossas rainhas mais odiadas da nossa História… Mas voltamos ao nosso Jota Jota…, que decerto não ficará na nossa História com H grande…


5. O mais patético foi vê-lo, poucos meses antes de morrer, contar-me, sentado num dos bancos do pequeno espaço ajardinado que existe no IPO, frente ao edifício principal, que aquela devia ser a sua “última visita à Santa Casa” (sic), como ele lhe chamava, ao hospital.

Aguardava  pela ambulância que o devia levar a casa, uns cento e poucos quilómetros a norte de Lisboa.  Fazíamos horas,  eu ia adiando o clique de telemóvel para a minha boleia,  talvez por não querer perder o final daquela história de um homem a lutar contra a morte. Pergunto-me hoje se não fiquei ali apenas por caridade (a palavra repugna-me), ou por compaixão… Ou por simples curiosidade mórbida...Mas ao mesmo tempo eu não queria desmerecer a tão inesperada quanto surpreendente confiança que ele depositara em mim, que só me conhecia do IPO…

Já antes me confirmara que se sentia um “doente milionário” (sic)… Provavelmente queria dizer “privilegiado”. Mas fez questão de esclarecer:

− VIP!... Um doente VIP!...

Nunca tinha ouvido uma tal expressão, algo surrealista e de todo deslocada num sítio daqueles, onde se sofria e morria todos os dias...

− VIP ? – interpelei eu, para logo a seguir acrescentar:

− Mas é um direito, que o meu amigo tem, o direito à saúde,  consagrado na Constituição…

Não sei se ele entendeu a minha observação, tanto mais que ele não deveria ser, pelo que eu deduzia, um fervoroso apoiante do SNS, o Serviço Nacional de Saúde… Mas logo percebi onde queria chegar:  de facto, e pelas suas contas de “caixeiro-viajante”, os gastos do IPO, “só com a sua humilde pessoa” (sic) , já ascenderiam a cerca de 200 mil euros (sem me explicar como teria apurado esse valor).

− Dava para comprar um bom apartamento em Lisboa – asseverava ele.

− Sim, talvez há uns largos anos atrás… − atalhei eu. – Agora Lisboa é fogo, o metro quadrado já ultrapassa os 3 mil euros…

Com algum humor negro, a que se juntavam uns restos esfarrapados da sua proverbial gabarolice,  garantia-me que a “menina da farmácia” (sic)  já brincava com ele, quando lá ia levantar a sua medicação:

  Senhor Jota Jota, por este andar vai levar o IPO à falência.

E seguia-se a justificação:

− A gente gasta  um milhão e meio de euros por semana só em medicamentos. O senhor leva a parte de leão…

E ele ria-se, não era bem riso, era uma estranha mistura do riso alarve do marialva fanfarrão e do sorriso triste, amarelo, forçado, do palhaço.  Ao mesmo tempo, provocava-me compaixão e irritação. Ele era daquele tipo de doentes para quem o “consumo sumptuário” de cuidados médicos (consultas, exames, fármacos, aparelhos…, "quanto mais caros melhores!"), era uma forma de “status” social… Era um traço distintivo… dos ricos com que ele se gabava de ter privado, "nos bons velhos tempos"....Ele sorria porque se sentia de algum modo lisonjeado com as palavras da “menina da farmácia”… Afinal, estava no “quadro de honra dos doentes despesistas” (sic). Havia nele um estranho prazer, quase sadomasoquista,  por estar a gastar, com a sua doença, tanto dinheiro ao Estado.

Duvido que a farmacêutica (ou mais provavelmente a técnica de farmácia que estava de serviço), em geral tão circunspecta e distante, fechada na sua “redoma de vidro” (colocada por causa da Covid-19), lhe tenha dito, textualmente, essas palavras, e muito menos falado nos milhões do orçamento do IPO. É mais provável que tenha sido a sua médica  oncologista  a dar-lhe essa informação, embora muito por alto. Mas eu registei  as suas palavras como tal, no meu caderninho de notas,  com a data desse dia.  

Logo que a ambulância partiu  com o meu companheiro de infortúnio,  tive o pressentimento (para não dizer a certeza) que nunca mais o voltaria a ver. E, confesso, com algum alívio… A sua história acabrunhava-me. Ou, talvez pior, a “sentença de morte” que lhe fora ditada pelos médicos…”Já não havia nada a fazer", conformava-se ele, completando já talvez o seu processo de luto...


6. R
ecordo-me ainda de ele me dizer, ao contar-me a primeira vez que teve de ir a um urologista:

– Sou um maricas, não posso ver sangue! 

Andara a “mijar sangue” (sic), e a levantar-se amiudadas vezes, de noite, para ir à casa de banho. Até pensou que tinha apanhado algum “esquentamento” (sic).

Foi protelando  a ida a um consulta médica, até que uma crise maior, há uns  anos atrás,  o forçou a chamar o 112. Aliás, não foi ele, mas a sua “Bia", o seu "anjo da guarda" (sic)...

A ambulância do INEM  levou-o, de imediato, à urgência do centro hospitalar da sua área de residência. Ele protestou, que tinha um seguro de saúde caríssimo, que queria ser visto num hospital privado, que o público tinha má fama, que ia ficar toda a noite numa maca, aos berros, no corredor, e por aí fora.

− Mas em boa hora lá me  levaram ao sítio certo. Dei de caras, no SO, com um urologista, que não era homem mas mulher, para minha surpresa.  A princípio, confesso, senti-me intimidado  e até humilhado quando ela me mandou despir as calças, e ficar em posição fetal na marquesa…

E justificou-se, como se tivesse perdido a honra:

− Nunca  tinha feito o toque retal, nunca ninguém (e muito menos uma mulher) me tinha posto o dedo no cu… Nem o dedo nem outra merda qualquer!

− Nunca tinha feito sequer uma eco prostática  ? – quis saber eu, evidenciando  algum pudor, delicadeza e cautela na pergunta.

− Nada, nunca precisei, graças a Deus! 

Perante a reação, algo desastrada, do doente, a médica riu-se para aliviar a  tensão, e gracejou:

− Senhor Jota Jota,  porte-se como um homem, já não tem idade para ser criança!... Aqui é apenas um paciente. Mas está no seu direito de recusar o toque retal… Se se portar bem, eu conto-lhe no fim uma história engraçada… Vem a propósito do pudor masculino, e passou-se comigo no início da minha carreira médica…

E,  depois de feito o toque retal, a médica prosseguiu:

− Como viu,  não doeu nada... Ou doeu ?!

− Não, senhora doutora.

E o senhor J... está inteiro, não perdeu nada!… Mas falando de coisas sérias: a próstata está muito inflamada, e mais dura do que seria normal… Vamos já fazer análises clínicas, para ver o valor do PSA (que deve estar alto) ... E muito provavelmente vamos ter que fazer uma biópsia nos próximos dias… Só  lamento o sr Jota Jota não ter vindo mais cedo ao urologista, ou à urologista… Fica aqui mais um dia ou dois, em observação e para fazer a eco, as análises… Depois irá para casa, ficando à espera que o chamem para a biópsia… (Infelizmente, vai ter que a fazer, mas é para melhor esclarecimento do diagnóstico.)

A médica fez depois questão de tranquilizar o doente, continuando a conversa bem humorada que mantivera logo de início:

− Afinal, a urologia é uma especialidade tão masculina ou tão feminina como qualquer outra… No caso de nós, as mulheres médicas urologistas, só não podemos é ter as unhas compridas e pintadas… Ou melhor, não convém…

E finalizando:

− Fique tranquilo… Tudo se há de compor. Hoje, se formos a tempo, ninguém morre de carcinoma da próstata… Esperemos é que não haja mais complicações… O nosso corpo é uma caixinha de surpresas... É preciso saber falar com ele, saber vê-lo e ouvi-lo,  estar atento aos seus sinais... E então agora vou-lhe contar a história que lhe prometi, no caso de se portar bem como aconteceu.

E a história podia resumir-se nestes termos, tal como o Jota Jota ma contou, com graça, pondo-se na pele da médica:

− Como deve imaginar, a urologia foi durante muito tempo uma especialidade médico-cirúrgica exercida por homens… Nos EUA as mulheres começaram mais tarde, nos anos 60… No nosso caso, só mais recentemente. Eu fui a primeira mulher do meu ano,  do meu curso, a escolher esta especialidade como primeira opção… O meu pai, alentejano, caçador, “bon vivant”, bom garfo e melhor copo (faleceu de gota, coitado!), levou-me um dia a uma montaria, uma caçada ao javali.  Era uma espécie de prémio, pelo meu sucesso no exame da especialidade. Eu era a única mulher no meio de tantos caçadores, todos empertigados nas suas fatiotas.  Um mulher de arma em punho, está a ver ?!...  Isto foi no Norte, em Trás-os-Montes, junto à raia espanhola… Desde miúda que eu gostava de acompanhar o meu pai, embora perto de casa, na caça ao coelho, à lebre,  à    perdiz… Quando fui, pela primeira vez, à montaria, os presentes, todos homens, começaram a torcer o nariz à minha presença, alguns tossiam para disfarçar o desconforto, ou puxavam grandes fumaças dos cigarros… E antes que se  avolumasse o mal-estar e se começasse a gerar algum burburinho, o meu pai (que nestas coisas tinha um sexto sentido apurado, a par de muita graça e bonomia, ou não fosse um "chaparro" de gema)  fez-me a presentação ao grupo dos machos lusitanos (também havia alguns espanhóis): “A minha filha, fulana de tal, médica, urologista… Estejam à vontade, meus senhores, podem continuar a mandar as vossas cara...lhadas (acho que foi esse o termo que ele usou), que ela, embora seja uma senhora muito bondosa e fina, está farta de ver piças e cus… Só espero é que os senhores nunca precisem  dos seus serviços, dela ou dos seus colegas”… Fez-se silêncio, por uns largos segundos, até que alguém, de copo na mão,  exclamou, para desanuviar o ambiente: “Seja bem vinda, doutora. Vê-se que é uma mulher de armas!”.

O nosso homem, o Jota Jota,  ficou visivelmente bem disposto e lisonjeado com estes mimos todos, vindos de uma mulher, para mais doutora… E, à despedida, teve este rasgo de bom humor, que deixou a médica encantada e até enternecida:

− Então, adeus, e até à próstata,  senhora doutora!


© Luís Graça (2022). Todos os direitos reservados

[ Nesta série, " A galeria dos meus heróis", a realidade e a ficção misturam-se. E ainda bem que  temos a literatura, uma forma de arte, que os seres humanos inventaram, e que nos ajuda a suportar melhor a verdade e a mentira, o céu e o inferno, a sordidez e a beleza da vida... LG]

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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 17 de agosto de  2022 > Guiné 61/74 - P23532: A galeria dos meus heróis (47): O tio Ortiz (1906-1944) (Luís Graça)