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segunda-feira, 30 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25995: Notas de leitura (1731): "O homem que via no escuro, A Lisboa de Bruno Candé", por Catarina Reis; Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2023 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Maio de 2023:

Queridos amigos,
A mãe de Bruno Candé, Cadi Candé Marques, viera do Olossato em amores com um soldado português, depois da rutura, já em Portugal, nascem mais 3 filhos, entre eles Bruno. Apreciei devidamente este ensaio sobre a Lisboa de Bruno Candé, mas lendo inclusivamente a imprensa daquele malfadado dia de julho de 2020, constato que o homicida Evaristo Martinho, antigo combatente é tratado como um doente de ódio racial, não vi ninguém questionar o que podia levar um ser humano, em 2020, dizer publicamente que violou africanas, matou pretos e tem lá em casa uma arma para fazer da sua justiça. Continuamos indiferentes a estes stressados, isto a despeito de lermos os relatos de antigos combatentes que fazem a vida familiar num inferno ou que se tornaram uns vagabundos a viver debaixo das pontes. Há muito mais história no assassinato do malogrado Bruno Candé de que recusamos falar, é mais económico não ter que tratar, é socialmente mais correto iludir que muitos antigos combatentes guardam dentro de si dolorosas cicatrizes na consciência.

Um abraço do
Mário



História de um assassinato onde faz presença a silenciada guerra colonial

Mário Beja Santos


O ensaio O homem que via no escuro, A Lisboa de Bruno Candé, por Catarina Reis, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2023, espelha esse dado incompreensível da sociedade portuguesa contemporânea e que tem a ver com os traumas que a guerra colonial deixou num número incerto de antigos combatentes. O assassinato de Bruno Candé, em julho de 2020, não tinha razão plausível para acontecer. O assassino era um homem de 76 anos que viu acidentalmente a quem roubou a vida, podemos falar de crime motivado por ódio racial, mas é o rótulo mais cómodo para continuarmos a deixar o esqueleto dentro do armário.

O retrato de Bruno Candé é de um homem bom, um ator dotado, que descobriu, serôdio, a vocação para o palco, que ultrapassou as vicissitudes de famílias disfuncionais, tomado pela curiosidade e pelo entusiasmo fugiu de qualquer abismo de que a Zona J podia favorecer, foi resiliente, três anos antes de morrer, depois de um grave acidente que sofreu, voltou a pôr-se de pé e a amar a vida.

Contribuiu para que a companhia de teatro Casa Conveniente tenha mudado as instalações do Cais de Sodré para o que se teria pensado ser um lugar improvável para fazer teatro, a Zona J.

Catarina Reis conta-nos admiravelmente a história da sua vida, começamos por Cadi Candé Marques, uma muçulmana guineense que se terá embeiçado por um soldado português no Olossato, naquela altura lugar fustigado pela presença do PAIGC no santuário do Morés. Cadi, mãe solteira, e com três filhos nos braços, viajou para Portugal, em 1973, veio só com dois filhos, a Santa Casa da Misericórdia apoiou-a, conheceu o trabalho precário, as limpezas, afeiçoou-se por outro português, dessa relação nasceram três filhos, Bruno foi o primeiro, ocuparam uma casa, veio a filha que ficara na Guiné, Olga, que se revelou uma irmã desvelada com os irmãos mais novos. O pai de Bruno acabou na bebedeira, Bruno e a família fixaram-se na Zona J, em Chelas; ao que consta, tinha o Bruno seis meses e esteve para morrer no Hospital D. Estefânia, houve batismo forçado, na falta de padrinho escolheu-se Santo António, o padroeiro de Lisboa teve direito a altar doméstico, mas a figura do santo seguia sempre no bolso do Bruno.

Adorava representar, tornou-se ator na companhia Casa Conveniente, a companhia transferiu-se para a Zona J em 2014. Entrou numa novela, mas o seu sonho era subir aos palcos, estreou-se no Bairro dos Remolares, no Cais do Sodré, a Casa Conveniente manteve-se aqui durante cerca de 20 anos. Teatro não convencional, pronto a novos desafios, chegou a representar nas prisões. Data de um espetáculo da companhia Rifar o meu coração, no Porto, em 2016, a frase em que Bruno sintetizou toda a sua história, uma consigna: “Eu tinha tudo para dar errado, mas sou o Bruno Candé.”

Um dos pontos mais estimulantes deste ensaio tem a ver com a forma como Catarina Reis põe em cena a Zona J e toda a área de Chelas, com os seus 10 bairros, conta-se a história do plano de urbanização de Chelas, os edifícios da Zona J e quem os habita, fala-se da emigração, das tensões culturais, dos pontos de encontro dos diferentes povos, a natureza das convivências, como a Zona J se reciclou em o Bairro do Condado, onde a cultura esteve ausente até há poucos anos. “A revolução começou há cerca de dez: em 2006, criou-se a Biblioteca de Marvila, seguiu-se o projeto cultural Galeria Underdogs, de Vhils (artista português Alexandre Farto), com o propósito de tornar a arte acessível por via de exibição do trabalho de artistas nacionais e internacionais. Surgiu, então, a Fábrica Braço de Prata, espaço que alberga eventos de todo o tipo. Mais recentemente, ali perto, ouvimos falar da chegada Hub Criativo do Beato, uma incubadora de criatividade situada no antigo complexo fabril do Exército. E, claro, estava presente a Casa Conveniente, a par da companhia de teatro Cepa Torta.”

A Casa Conveniente derrubou muros, instituiu uma cultura de proximidade, apareceram artistas no fado, hip-hop, impôs-se a arte urbana, emergiam as gerações já nascidas em Portugal.

E vamos agora aos três tiros mortais que Evaristo Marinho desfechou em Bruno Candé com uma semiautomática Walther PP de calibre 7,65 mm. As gentes espavoridas, desoladas, perplexas, interrogavam-se sobre o móbil do crime, prontamente se aflorou a palavra racismo. Consultando os jornais da época vejo como se passou por cão por vinha vindimada sobre a saúde mental de Evaristo Martinho. Este antigo combatente encontrara uma vez Bruno na dita avenida de Moscavide, houve uma troca azeda de palavras, Evaristo não se escusou a proferir ofensas e a dizer que matara pretos durante a guerra, isto só para sublinhar que o seu crime de ódio vem de longe, está identificado, existem até associações que procuram acolher antigos combatentes com stress de guerra que levam uma vida de inferno e destroem a família, e há mesmo livros que falam de Evaristos identificados, por vezes autênticos farrapos humanos. Tenho para mim que este ator tão esperançoso, que deixou três filhos menores, um punhado de notas magníficas espalhadas pelas gavetas da sua casa, amável, sonhador, teve um dramático encontro com um desses doentes desse ódio recalcado. E é muito tocante o termo desta narrativa em volta de um homem bom destruído por ódio racial:
“Bruno era o tipo de pessoa que jamais esperava gritos de revolta, canções revolucionárias e homenagens em palco. Jamais pensaria que a história colonial da qual a família nasceu e cresceu foi a mesma que o matou. A guerra levou um português até Cadi Candé Marques, encontro que fez nascer Olga, Carla e Fernando; também foi a guerra que conduziu a guineense até Lisboa, à Zona J. A mesma guerra que tornou um homem revoltado e armado que acabaria por trazer a Cadi a pior dor de uma mãe. O que pensara Candé de um homem que ameaça, a plenos pulmões, ter matados ‘pretos’ na guerra, violado mulheres africanas e ter uma arma em casa pronta a matar outros?
Creio saber o suficiente para adivinhar que Bruno viu neste homem uma amargura curável, travada antes do primeiro tiro, com uma cerveja e uma conversa à mesa.”


De leitura obrigatória para todos aqueles que queiram investigar os porquês de uma guerra colonial onde ainda decorre um sofrimento vivo a que a sociedade se alheia, tratando-o como um mal menor, como uma raiva que gradualmente se extinguirá quando o último antigo combatente fechar os olhos.
Bruno Candé, vítima de ódio racial
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Nota do editor

Último post da série de 27 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25988: Notas de leitura (1730): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, ano de 1876) (22) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 23 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25973: Notas de leitura (1729): "A Guerra Colonial: realidade e ficção" (livro de actas do I Congresso Internacional), organização do professor universitário e escritor Rui de Azevedo Teixeira; Editorial Notícias, 2001, com o apoio da Universidade Aberta e do Instituto de Defesa Nacional (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Maio de 2023:

Queridos amigos,

Este I Congresso Internacional sobre a guerra colonial realizou-se em 2000, o quadro de conhecimentos, o acervo literário, o jornalismo e a literatura e as artes plásticas precisam de uma atualização, quase um quarto de século depois. Agora, quando se esboça o plano das comemorações para os 50 anos do 25 de Abril, bom seria que a comissão organizadora não se esquecesse da guerra colonial em si, do salto que deu a investigação histórica, da explosão literária (se bem que, pelas minhas contas, as peças mais originais e destinadas à galeria dos clássicos, tenham aparecido entre os anos 1980 e 1990, das séries televisivas, das reportagens, do cinema e da televisão e da avalanche de literatura memorial que é a tónica dominante dos últimos anos. 

Há que agradecer a Rui de Azevedo Teixeira, João de Melo, Aniceto Afonso e Carlos de Matos Gomes e a Madalena Calafate Ribeiro o empenho de, através de eventos, ter convocado as vozes intervenientes e as plasmado em livro. Talvez mais acertado fosse trazer agora à cena historiadores da Guiné, Angola e Moçambique e os investigadores que ainda subsistem na outra cena internacional para se fazer o ponto de situação atualizado, meio século depois das armas se terem calado. Seria um belíssimo brinde à boa convivência lusófona, não vos parece?

Um abraço do
Mário



A Guerra Colonial: realidade e ficção (livro de atas do I Congresso Internacional) (3)

Mário Beja Santos

O volume A Guerra Colonial: realidade e ficção (livro de atas do I Congresso Internacional), teve como organizador o professor universitário e escritor Rui de Azevedo Teixeira, Editorial Notícias, 2001, com o apoio da Universidade Aberta e do Instituto de Defesa Nacional. Participaram dezenas de comunicadores. Na altura em que foi editada, a obra era assim apresentada:

“Neste livro, que recusa a tirania da coisa política sobre a História ou a Literatura ou a insidiosa pressão do mediaticamente correto, correm textos de estudiosos da guerra e de grandes guerreiros, de portugueses e estrangeiros (lusófilos, lusófobos e lusófonos), de homens e de mulheres, de nomes consagrados e de novos investigadores da temática da Guerra Colonial ou Guerra do Ultramar. Académicos, militares, académicos militares, escritores, psiquiatras, cineastas, jornalistas, gestores e outros contribuem nesta obra para uma compreensão mais alargada e mais profunda da guerra de guerrilha que, fechando o Império, obrigou a uma definitiva mudança de paradigma da nossa História.”

Recomendo aos interessados a leitura dos testemunhos de guerra, Guilherme de Melo, Mário Pádua, António Viana, José Manuel Barroso dão conta das suas observações de como viram e agiram na guerra. O então capitão José Manuel Barroso debruça-se sobre Spínola e relata assim o seu depoimento:

“Eu venho a Lisboa no outono de 73, ele lê-me algumas passagens do livro e diz-me com ar muito divertido: ‘Os tipos estão à rasca, não sabem o que me hão de fazer, não sabem onde me hão de colocar, mas Portugal e o Futuro vai ser publicado’. Na verdade, Spínola, neste momento, também tinha compreendido uma coisa: com a vinda dele para Lisboa, o território Spínola, essa parte dele viera com ele próprio, a Guiné, que, depois de Gadamael já não era o mesmo e que também se estava autonomizando, pelo efeito dos terríveis ataques e pela enorme instabilidade psicológica que isso criara nas tropas. Quando eu regresso à Guiné, Spínola já sabe que vai ser Vice-Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas e diz-me: ‘Eles pensam que, com esta nomeação, não vão levar com o livro, mas vão levar com ele!’ Eu lembrei-me nessa altura de uma conversa que havíamos tido em Bissau em que a certa altura lhe disse: ‘Meu general, o senhor qualquer dia é uma espécie de segundo Delgado.’ ‘Segundo Delgado? Nunca. Há uma coisa que eu nunca farei: é sair do sistema, e é dentro do sistema que vou agir.’”

A psicóloga clínica Teresa Infante abordou as consequências psicológicas da guerra nos indivíduos com stress pós-traumático, isto na qualidade que tinha de ser consultora da ADFA, associação que desde 1987 se dedica ao despiste, avaliação e encaminhamento dos doentes com stress pós-traumático, e procura partilhar com a assistência algumas reflexões sobre as consequências psicológicas destes doentes no meio familiar e social. Refere os sonhos, pesadelos, pensamentos constantes sobre a guerra, frieza afetiva, grande impulsividade, depressão, alcoolismo e até incapacidade de hierarquizar a resolução das situações. Há doentes que partilham com as famílias as vivências da guerra, o que ajuda os familiares a procurarem perceber o que eles sofreram. Há, também, aqueles que nunca disseram nada do que viram ou foram forçados a fazer e há aqueles que foram marginalizados pelos colegas de trabalho e pela sociedade em geral e os tratam como assassinos, nestes casos fecham-se e não partilham com ninguém as suas experiências. Adotam comportamentos extravagantes como verificar antes de se irem deitar se não está ninguém debaixo da cama, saltarem desta ou gritarem a meio da noite, porque alguém os está a atacar, ou manifestarem explosões de raiva que conduzem a agressões físicas, como também têm medo de perder o controlo e querem sempre passar à ação. Em suma, é uma gama de situações que geram um ambiente familiar completamente desadequado, em permanente sobressalto, ambiente familiar disfuncional.

A psicóloga refere a importância do papel das mulheres e dos filhos e põe em equação o doente com stress pós-traumático e o seu trabalho: falta de interesse, problemas de concentração, dificuldade em decidir ou completar uma tarefa, dificuldade em aceitar ordens que eles consideram incorretas (é oportuno lembrar o leitor de que estamos a falar de um relato datado de 2000, teria o maior interesse em conhecer hoje o diagnóstico destes stressados, seguramente que numa situação de reforma).

Na sequência deste depoimento da psicóloga Teresa Infante tomou a palavra Humberto Sertório, então presidente da Associação dos Deficientes das Forças Armadas que expôs as reivindicações que então se faziam para um quadro de proteção aos deficientes militares. Iriam depois depor escritores, investigadores, jornalistas e cineastas sobre a dimensão da ficção com que é vista a guerra. O livro procede a um levantamento dos filmes que passaram em circuito comercial ou na televisão, intervieram escritores e investigadores (Joana Ruas, Manuel Barão da Cunha, Álvaro Guerra, Leonel Cosme, Armandina Maia), fizeram-se exposições sobre importantes obras da literatura da guerra, caso de Os Cus de Judas, de António Lobo Antunes, Lugar de Massacre, de José Martins Garcia, a análise da obra de Manuel Seabra, Maria Velho da Costa e Lídia Jorge; igualmente foram apreciadas as crónicas testemunhais de Vasco Lourenço e Salgueiro Maia. O painel dos jornalistas ofereceu depoimentos de grande interesse, caso de Adelino Gomes, Acácio Barradas, Fernando da Costa e João Paulo Guerra. Por último, falou-se da guerra e do cinema, e quem testemunhou foram mesmo os cineastas.

Esta obra encontra-se presentemente esgotada, faria mais do que sentido diligenciar-se a realização de novo congresso e incluí-lo nas comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, muito mais se tem escrito, filmado, televisionado, investigado sobre a guerra colonial, enfim a realidade e a ficção ganharam mais densidade, os 50 anos ficariam abrilhantados com o ponto de situação atualizado quer quanto a estudos, quer quanto a literatura e o que as artes plásticas vieram denunciar no entretanto.

Aqui fica o desafio, a quem de direito.

Mensagens de Natal, Moçambique, imagem retirada da RTP, com a devida vénia
Guerrilheiros do PAIGC deslocando-se num carro blindado na Guiné-Bissau. Imagem retirada da Casa Comum, Mário Pinto de Andrade, com a devida vénia
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Nota do editor

Vd. post de 16 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25948: Notas de leitura (1727): "A Guerra Colonial: realidade e ficção" (livro de actas do I Congresso Internacional), organização do professor universitário e escritor Rui de Azevedo Teixeira; Editorial Notícias, 2001, com o apoio da Universidade Aberta e do Instituto de Defesa Nacional (2) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 20 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25961: Notas de leitura (1728): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, ano de 1875 e 1876) (21) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 7 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25491: Estórias do Zé Teixeira (62): O “Diário” do José Cuidado da Silva (1) (José Teixeira, ex-1.º Cabo Auxiliar Enfermeiro da CCAÇ 2381)

O Diário de José Cuidado da Silva

1. Em mensagem enviada ao Blog no dia 3 de Maio de 2024, o nosso camarada José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381 (Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70) fala-nos de José Cuidado da Silva, um militar, como muitos outros que todos conhecemos, inadaptado à dura vida em campanha que lhe deixou marcas psicológicas para toda a vida. Só muito recentemente, há dois anos, deu a conhecer ao "seu furriel" Samouco, um diário que escreveu durante a comissão, que manteve em segredo até então.


O “Diário” do José Cuidado da Silva

O “Diário” em verso e em prosa, do meu camarada Maioral (CCAÇ 2381), José Cuidado da Silva, foi o que mais me comoveu e mais gozo me deu a ler e a transcrever para que os camaradas que passaram pela guerra do ultramar, possam apreciar.

Comecemos por descobrir o José Cuidado da Silva. Apareceu na Companhia, já esta estava a preparar-se para partir para a Guiné. Foi parar ao terceiro pelotão e acolhido na equipa do Furriel José Manuel Samouco. Este, começou por perguntar-lhe o nome, de onde vinha e qual a profissão. O pobre do José, aparentemente um simplório, na forma de se apresentar e de falar, disse-lhe que era “cortador de calipos”. Que bela profissão pensou o Furriel e disse estás apresentado. Logo pela aragem viu que era mais um, uma figura típica como soe dizer-se, que tinha de acompanhar de perto e… de “proteger”.
O José Cuidado da Silva

Eu, que fui uma das últimas peças a “encaixar” na Companhia, só me apercebi do José Silva em Ingoré. Aparentemente muito ingénuo, mas bem-educado e respeitador. Eu era “o nosso cabo enfermeiro” tratado por você, a quem foi pedir comprimidos para dores de cabeça. Só muito mais tarde, já em Buba, voltamos ao convívio, quando me juntei ao grosso da Companhia e nos aproximamos nas saídas para a estrada e colunas. A sua forma de se expressar em voz alta escondia um jovem sensível, educado, que pensava, mas não expressava o seu pensamento. Muito disponível e cumpridor de ordens, segundo afirma o Furriel J. M. Samouco. Um militar que nunca deu problemas, mas era marcadamente uma “peça” típica pela forma “atabalhoada” de falar e sujeita a ser gozada pelos camaradas, pelo que precisava de especial atenção.
O Alferes Magro e o Furriel Samouco, ao centro da foto, ladeados por praças do 3.º Pelotão. À direita o Zé da Silva
Da esquerda para a direita: O "Calhordas", o Furriel José Manuel Silva,  Furriel José Manuel Samouco e o Zé da Silva, como era conhecido o nosso herói.

Acabada a Comissão, o José Cuidado da Silva, regressou a Rio Maior, organizou a sua vida, casou e da união nasceu um rapaz.

Em 2016, após alguns anos de batalha, por parte de alguns de nós, foi possível que uma Junta Médica o classificasse como doente psíquico, com stresse pós-traumático de guerra, e assim, aumentar a sua reforma mensal em perto de 500€, para além do acesso ao Hospital Militar. Um bónus bem merecido para uma vítima de uma guerra cujos mentores, até atrasados mentais classificavam como aptos e enviavam para a frente de batalha. Tenho provas disso, num outro camarada – O José Salvaterra, já falecido, que ao atraso mental, agregava uma deficiência físico-motor.

Em 1990, O José Silva foi um dos primeiros a apresentar-se ao toque de clarim que lancei, para iniciarmos os convívios anuais. Logo no primeiro convívio, apresentou-se na sua motorizada, ele, a mulher e o filho. Fizeram a viagem de Rio Maior a Coimbra. Infelizmente, o filho tem um grau de deficiência mental elevada, mas durante uns anos seguidos, lá vinham os três na motorizada.

A esposa, que é uma mulher, tão simples quanto ele, mas de garra apurada, e muito trabalhadeira, sempre fez questão de vir, e o Zé lá vinha, e ainda vem. Nunca falhou. Ela até conseguiu tirar a carta e juntar dinheiro para comprar um carrito (diz ela) para vir à festa dos Maiorais. O filho, esse teve de ser internado num Lar.

Infelizmente, a esposa, sofreu um acidente e partiu o perónio há mais de um ano. A recuperação não está a correr bem e ela tem muita dificuldade em se deslocar, mesmo com duas canadianas, mas, dizia-me há dias, que já consegue conduzir e não ia faltar ao Convívio que se realizou no passado dia 13 de abril. Foi um dos primeiros casais a aparecer naquela manhã de sábado, onde juntamos oitenta pessoas entre combatentes e familiares. Mulher sorridente, resistente, é ela que motiva o Zé.
Convívio de 2024, em Fátima. O José Cuidado da Silva à mesa com o Acácio

Há dois anos, o Jose Cuidado da Silva, entregou ao “meu furriel” Samouco, como ainda o chama, um tesouro. É verdade, um tesouro. O seu “Diário de guerra” escrito em verso e prosa, durante a sua estadia na Guiné e guardado, anos e anos.

Escrito num português simples por uma pessoa simples, conforme foi sendo vivido. Reflete um jovem ligado à sua família e bem-querido na sua terra. Um homem atento ao que o rodeava e seguro de si. Um homem que viveu como todos nós o drama da separação da família, a ansiedade de partir para o desconhecido, que não se envergonha de ter chorado, quando entrou no Niassa. Que conta pormenores do seu sofrimento com uma agudeza de espírito. Uma autêntica lição de vida. Não desce a pormenores, nem regista todos os momentos em que se cruzou com o inimigo. Talvez tenha registado apenas os que mais o marcaram.

Termina escrevendo: Quero ir embora para matar saudades, que há tanto tempo me encontro ausente. Agora quero ir embora abraçar os meus pais.

É esse diário que apresento aos estimados camaradas, leitores do Blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné.

José Teixeira


********************

História da minha vida militar em verso

José Cuidado da Silva

Assentei praça em Viseu
No dia 24 de outubro (e não em abril),
Na parada superior
Nós eramos mais de mil.

Recebi a farda inteira
Para vestir naquele dia,
As calças eram grandes,
O blusão não me servia.

Tocou para o almoço,
Para a formatura fui então,
Quando entrei no refeitório
Só havia massa e feijão.

Na maior força de Inverno
Esta semana passou,
Só vos tenho a dizer,
Que muito mesmo me custou.

E assim passou a recruta,
(Numa grande bandalheira),
E quando tudo acabou
A continência fiz, à bandeira.

Estive por ali mais uns dias,
E o que aconteceu depois,
Voltei a fazer as trouxas
E fui parar ao R.I.2

Quando ao R.I.2 cheguei,
Cansado de caminhar,
Para aquelas paradas olhei,
E deu-me vontade de chorar.

Quando lá dentro entrei
Chegou-me uma grande saudade,
Da casinha que deixei,
Tão longe daquela unidade.

Lá do alto do quartel
Ouviu-se cantar o fado,
Mas logo para meu azar
De lá fui mobilizado.

Fui transferido para Abrantes,
Terra ribatejana,
Para tirar o IAO,
Logo na mesma semana.

Fui com a mochila às costas
Cinco horas a caminhar,
Já tão longe da cidade
A um deserto fui parar.

Quinze dias lá acampado
No meio de pinheirais,
E aqui fomos tratados
Como se fossemos animais.

Quando cheguei ao quartel,
Para me recompensar,
Deram-me o fim de semana
Para ir até casa gozar.

Quando ao quartel voltei,
Disse-me o capitão,
Vai gozar vinte e dois dias,
Que são da mobilização.

Logo apanhei o comboio
Para a casa regressar,
E assim que lá cheguei
Minha mãe fui abraçar.

Passei lá os vinte e dois dias
Dos melhores da minha vida,
A seguir veio a tristeza
Da hora da despedida

Deixei meu pai e minha mãe,
Toda a família a chorar,
Deixei todo o meu bem,
E lá fui parar ao Ultramar.

Quando de casa eu saí,
E a despedir-me dos meus,
Muita gentinha eu vi
A chorar, dizer-me adeus.

Quando cheguei a Lisboa
Senti minha alma gritar,
Entrei para dentro do Niassa
E comecei a chorar.

Às doze horas e cinco
O Niassa deu a partida,
Tanta gentinha a chorar
Pela nossa despedida.

Quando a Bissau cheguei
Já não aguentava em pé,
Embarquei numa LDG
E fui parar a Ingoré.

Quando a Ingoré cheguei,
Triste, me pus a pensar,
Minha família deixei
E para a selva, vim parar.

Setenta dias lá estive,
Era um lugar sossegado,
Fui transferido para o sul
Onde fui um desgraçado.

Quando a Buba cheguei,
A três dias de lá estar,
Apareceram por lá os turras
Para o quartel atacar.

Estive lá quase um mês,
Sabe Deus a minha dor,
E logo para meu azar
Fui para o sítio pior.

Mudei para Aldeia Formosa
Onde era sempre atacada,
Dia sim e dia não,
À canhonada e morteirada.

Tantas colunas eu fiz,
Patrulhas e operações,
Muitas vezes rastejei
Quando ouvia os canhões.

Por vezes de madrugada
Estava eu, a dormir,
E ouvia as canhonadas
Perto de mim a cair.

Levantava-me em cuecas
Mesmo sem alguém mandar,
E com a G3 na mão
Numa vala me ia deitar.

Triste vida eu passei.
Fui homem de pouca sorte,
Tive dias que cheguei
A pedir a Deus, a morte.

Depois voltamos para Buba,
A malta andava arrebentada,
E ainda por cima nos disseram,
Que íamos parar à estrada.

Então andávamos na estrada,
Fartos de cansaço e porrada,
Uns tempos depois nos disseram
Que íamos parar a Empada.

José Cuidado da Silva

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 10 DE DEZEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24938: Estórias do Zé Teixeira (61): Crónica de uma tarde, em sábado de Festas Natalícias (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

sexta-feira, 19 de abril de 2024

Guiné 61/75 - P25412: 20.º aniversário do nosso blogue: (5): Vinte anos a construir memórias (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf.º da CCAÇ 2381 - Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70)



VINTE ANOS A CONSTRUIR MEMÓRIAS

por Zé Teixeira


Q
uando libertos da pressão da guerra que tínhamos sido forçados a praticar e sentir na pele, na Guiné… que nos mantinha em silêncio. Doentio silêncio que nos abafava o espírito e que a pouco e pouco se foi curando…

Quando libertos da pressão que a liberdade trazida pelo 25 de abril, nos empurrava para um outro tipo de silêncio, porque segundo os mais extremistas, (alguns deles vindos do exterior, onde se refugiaram para evitarem a mobilização), nós, os combatentes, tínhamos sido lacaios do Estado Novo, do fascismo, e até de assassinos fomos apelidados…

Pois! Quando estas pressões se foram dissipando, começou a bailar dentro da nossa cabeça um vazio. E agora?!...

Eu sentia uma nova pressão. Precisava de falar dos acontecimentos, que o Estado Velho me tinha forçado a viver: das dores, das lágrimas, do sangue que vi derramar, dos camaradas que ficaram estropiados do físico e do espírito, dos camaradas que vi partir ingloriamente, na flor da juventude, sem lhes poder valer, dos “caguefes” que senti tantas vezes, os quais desapareciam, como por encanto, quando as balas começavam a assobiar por cima das nossas cabeças, ou quando os estilhaços das granadas se espetavam na terra à nossa frente, ou “cantavam” ao traçar a ramagem das árvores, atrás das quais nos protegíamos, em que o pensamento dava uma volta sobre si mesmo e nos punha a pensar – como sair daqui? Desapareciam os “caguefes” e começava a luta pela sobrevivência.

Precisava de fazer uma limpeza à caixa dos pirolitos, de fazer a catarse, como está cientificamente comprovado e é moda dizer-se.

Por onde começar? Com quem falar? Ninguém me queria ouvir. Apenas os meus filhos queriam que lhes contasse, à laia de aventura, o que tinha feito na guerra, como agora, os meus netos – conta Avô a história daquela menina que andava sempre ao teu colinho, ao debruçarem-se sobre as fotografias a preto e branco queimadas pelo tempo, perdidas num álbum carregado com o pó da história.

Pois?! E agora?

O Luís Graça, em boa hora, e já lá vão vinte anos, resolveu tirar o “tapa chamas” do computador e começou a disparar em todas as direções que a Internet lhe permitia, não com balas assassinas, mas com o seu blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné, mais propriamente o pomposo Blogueforanadaevaotres, falando de si, das suas vivências na guerra que não quis fazer, mas foi obrigado. Sim. Naquele tempo, ou se ia para a guerra, ou se escapulia a salto para França, confundindo-se ainda hoje o medo, com a dignidade da objeção de consciência, que poucos sabiam o que era e como se podia obter.
O nosso editor Luís Graça, sempre por detrás de uma máquina fotográfica, a sua imagem de marca

Então fugia-se, e, se fosse apanhado pela PIDE ou pela Guardia espanhola era devolvido à procedência e ganhava o direito de embarcar para a guerra, logo de seguida, antes que desse novamente corda às sapatilhas. Assim aconteceu com o meu amigo Fernando que foi “convidado” para ir passar umas férias a Gadamael em 1973 e andou desenfiado na bolanha, aquando do cerco ao quartel. Salvou-o o comandante da Corveta que andava por perto e à revelia das ordens emanadas de Bissau, recolheu umas centenas de jovens militares e civis que, para fugirem da morte que espreitava por todos os cantos de Gadamael, se refugiaram na perigosa bolanha, que rodeava o aquartelamento, ganhando um stress pós-traumático de guerra, que lhe destruiu o futuro.

Para espanto do Luís Graça, não tenho dúvidas, começaram a surgir de todos os cantos, companheiros da jornada que se prolongou por cerca de treze anos, sem armas, sem medos, mas com vontade de conversar, de partilhar as suas “guerras”, de contar as suas dores e suas angústias, as suas alegrias e tainas, o seu estado de alma, talvez o seu desespero. À data éramos um mundo de gente. Hoje, muitos já partiram, contrariados, para o aquartelamento eterno. Nós, os resistentes vamos aguentando a parada no BlogueForandaevãotrês, mais conhecido pelo blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné, que surgiu na sequência do primeiro Blogue, que se esgotou no espaço.

Tudo começou em 23 de abril de 2004, quando o inspirado Luís Graça se lançou à aventura.


V. N. Gaia > Madalena > 26 de Dezembro de 2005 >  Na casa da irmã e do cunhado da Alice Carneiro, a Nita (1947-2023) e o Gusto > Uma minitertúlia de camaradas e amigos da Guiné... > Da esquerda para direita: o nosso editor LG (cunhado dos donos da casa),  o A. Marques Lopes, o Zé  Teixeira, o Albano Costa e o seu filho Hugo Costa, e ainda o saudoso Francisco Allen (mais conhecido pelo Xico de Empada, ou Xico Allen, 1950-2022).

Quem diria que estava aqui um dos embriões da Tabanca Pequena de Matosinhos (pequena só de nome), que iria surgir três anos depois, em 19 de Novembro de 2008. O A. Marques Lopes e o José Teixeira são dois dos "régulos" iniciais: os outros se seguiram, o Álvaro Basto e o Jorge Teixeira (Portojo) (1945-2017), o João Rebola (1945-2018), e agora o Eduardo Moutinho Santos, entre outros (corre-se sempre o risco de cometer a injustiça da omissão)

Foto (e legenda): © Hugo Costa / Albano Costa  (2005).Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Logo sentiu uma “chuveirada”, não de estilhaços, mas de postes com testemunhos vivos, concretos, “disparados” por camaradas que à data não conhecia, como eu, por exemplo, que quando o descobri (fins de 2005) logo comecei a mandar bojardas e ainda vou dando uns “tiritos” de vez em quando, como este, que apenas pretende dar-lhe os parabéns pela iniciativa e agradecer-lhe, a ele, e a tantos camaradas a quem hoje me sinto ligado e preso por uma amizade solidificada neste “estar e sentir” de uma guerra em que participamos sem querer.

Obrigado, Blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné, por ser o meu intermediário na relação com tantos camaradas, muitos dos quais nunca tive a oportunidade de dar o meu abraço, mas a quem me sinto ligado por laços de profunda afetividade. Para todos vós, um abraço do tamanho do Geba.

Obrigado, mais uma vez, Luís Graça e Alice pela profunda amizade, meu mano querido, que nos une e que nasceu naquela véspera de Natal, na Madalena em 2005.

O meu profundo agradecimento, também, ao Carlos Vinhal, em especial, por me ter aturado tantas vezes, e a todos os co-editores que têm dado forma a este nosso grito de paz.

Agora, somos cada vez menos e estamos mais velhos. Muitos de nós já “esgotaram” as munições, ou perderam a vontade e a força de continuarem a escrever, mas continuam, pela calada, a visitar todos os dias o “nosso” Blogue, e de vez em quando, lá sai mais um comentário, ou num rebuscar de memória, mais um acontecimento que estava escondido num escaninho da massa cinzenta. Não desistam, por favor, porque se não formos nós a contruir a nossa história, outro virão, e a nossa verdade histórica corre o risco de ser deturpada.

Aos que deixaram a vida na Guiné e aos que já partiram ao encontro do Além, o meu profundo sentimento de que estejam, onde estiverem, se sintam em paz. Na certeza de que todos nós nos encontraremos por lá um dia.

Aos camaradas que, como eu, continuam a luta pela vida, que se sintam com a saúde possível e não desistam de viver.

Um Grande abraço do
Zé Teixeira

____________

Nota do editor

Último post da série de 6 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/75 - P25348: 20.º aniversário do nosso blogue (4): Alguns dos nossos melhores postes de sempre (IV): Um roteiro poético-sentimental para um regresso àquela terra verde-rubra (Joaquim Mexia Alves / Luís Graça)

terça-feira, 23 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25103: Blogoterapia (313): Irmãos de armas (Joaquim Mexia Alves, ex-Alf Mil Op Especiais)

Dire Straits - Brothers In Arms - Frame do Youtube, com a devida vénia


1. Mensagem do nosso camarigo Joaquim Mexia Alves (ex-Alf Mil Op Especiais da CART 3492/BART 3873, Xitole/Ponte dos Fulas; Pel Caç Nat 52, Ponte Rio Udunduma, Mato Cão e CCAÇ 15, Mansoa, 1971/73) com data de 21 de Janeiro de 2024:

IRMÃOS DE ARMAS

E de repente extinguiu-se-lhe nos olhos o olhar!

Um daqueles que estava sentado à mesa, bastante mais novo do que todos os outros, ficou admirado e perguntou a quem estava ao seu lado o que se passava com aquele cujo o olhar se tinha alheado.

Respondeu-lhe o que era mais velho e tinha por lá passado:

- Não te preocupes, porque ele foi viajar ao equador, passear nas bolanhas do calor, visitar as matas do horror, caminhar nas picadas da dor e enfrentar a guerra do desamor.
Agora não está cá, está mais longe, está por lá! 
Mas não te preocupes que ele vai voltar, assim que a recordação o deixar.

Já ninguém olhava para ele, porque todos percebiam aquilo que com ele se passava.

Iam conversando, comendo, bebendo, as vozes elevavam-se por cima de tudo o resto e ele continuava com o seu olhar absorto, passeando por onde ninguém já se encontrava. Passado um pouco de tempo o seu olhar ausente, regressou ao presente. 
Havia nos seus olhos uma espécie de lágrimas, uma espécie de dor, uma espécie de torpor, que ele com um abanar de cabeça, quis afastar daquele momento, mas de tal modo, que um daqueles que estava a seu lado lhe perguntou:

- Estiveste por lá agora. não foi?

Ele respondeu com um tom decidido e afirmativo:

- Sim, andei a passear por aquelas picadas, aquelas bolanhas, aquelas matas, onde tantos de nós ficaram, mas onde se construiu a amizade entre nós, que eu ainda não sei explicar.

Olharam-se nos olhos e aqueles que estavam na mesma mesa perceberam o que se passava. Pois, porque os outros que não tinham vivido aquela guerra, não conseguiam perceber o que se tinha passado naqueles breves e profundos momentos.

Olharam-se, sorriram, os olhos marejaram-se de lágrimas e disseram uns aos outros:

- Que aqueles que lá ficaram, estejam connosco agora, enquanto nós aqui estamos celebrando o que passámos.

Todos perceberam que o coração os oprimia, os levava a viver aquilo que já não queriam viver, mas que tinham vivido um dia. Olharam-se nos olhos mais uma vez, pensaram nos que não percebem aquilo que por eles passaram, e num breve momento de silêncio, perceberam que todos eles falavam afinal a mesma língua.

Raios parta a guerra, disseram uns, e os outros anuíram dizendo:

- Raios parta a guerra, que nos mói por dentro, sem sabermos quanto e quando.

Aquele que tinha começado aquele momento, estava ainda meio afastado de tudo o que se passava, porque não sabia o que havia de dizer, não sabia o que tinha sentido, não sabia como se exprimir.

Então um deles, cheio de coragem, levantou a voz e disse:

- Nós somos muito mais do que nós próprios, somos muito mais do que a opinião dos que pensam mal de nós, somos muito mais do que aquilo somos, porque com estas mãos, com este sentido que temos, com este viver que vivemos, somos tudo aquilo que fomos, mais do que ainda somos, mais do que podemos sentir, porque no fundo, meus caros camaradas, nós somos tão só e apenas, verdadeiramente, Irmãos de Armas!

Marinha Grande, 21 de Janeiro de 2024

segunda-feira, 6 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24825: Casos: a verdade sobre...(35): Op Revistar, programada no ar condicionado de Bissau, uma operação das grandes, destinada ao assalto e ocupação de Salancaura, e que acabou por abortar... (Mário Gaspar, ex-fur mil at inf MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68 / José Brás, ex-fur mil trms, CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68),


Guiné > Região de Tombali > Guileje > CART 1613 (1967/68) e 7º Pel Art / BAC > O obús 8.8. Foto do álbum do nosso saudoso cap SGE ref  José Neto (1929-2007), na altura o 2º sargento da CART 1613, que chefiava a secretaria.

Foto: © José Neto (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem do Mário Vitorino Gaspar (ex-Fur Mil At Art e Minas e Armadilhas da CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68) (entrou para a Tabanca Grande em 8/12/2013; tem 135 referências no nosso blogue; por razões de saúde não tem prestado maior colaboração ao blogue nos últimos tempos; alegramo-nos com
o seu reaparecimento).

Data - 4/11/2023 04:39  
Assunto - Operação Revistar  
Caros Camaradas, Luís e Carlos

Capa do livro
de José Brás, "Lugares de passagem",
Lisboa, Chiado, Editora, 2011


Dia 5 deste mês faz precisamente 55 anos que regressou da Guiné a CART 1659. Desembarcámos só na manhã de 6, passando mais de 12 horas ao largo de Lisboa.

Cheguei com muitas dúvidas, tendo a sorte de desvendar todas,  com uma falha: a "Operação Revistar”.

No Blogue não surgiu ninguém que tivesse conhecimento da mesma. Passei horas no Arquivo Histórico-Militar, esclarecendo muitas dúvidas. Sabia que só era possível levar-se a efeito tal Operação, com objectivos tão ambiciosos, direi inclusive estúpidos. Pretendiam esses senhores de gabinete acabar com a guerra, inclusive matar os líderes ('Nino' Vieira) e apanharem toda a documentação confidencial.

Chegara de licença e em Bissau não se falava de outro assunto. (*)

Um Abraço a todos os Camaradas
Mário Vitorino Gaspar

PS - Podem publicar no Blogue. Continuo bastante doente, mas acrescentar a informação de José Brás à minha, a tudo que assisti, deixou-me melhor. Até parece que tenho menos dores.

2. Operação Revistar (não consta do livro da CECA, 2015, relativo à atividade operacional no CTIG, de 1967 a 1970)(**)



José Brás, (ex-fur mil trms, CCAÇ 1622, 
Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68),

Do livro de José Brás “Lugares de Passagem” (texto que me enviou, a mim, Mário Gaspar, o amigo José Brás; conheço-o desde o início dos anos 60; estudei no Colégio Sousa Martins, em Vila Franca de Xira): 

(..) Mas nada disto de que venho a falar-vos tem importância e a importância dou-lha eu no
 engano de vos fazer compreender melhor a encomenda do Santinhos no episódio burlesco que desde o início vos quero relatar. 

Comecemos pelo princípio! Em certo tempo, que como vocês sabem não é o mesmo que em tempo certo… em certo mau tempo, direi, foi programada no ar condicionado de Bissau uma operação das grandes, destinada ao assalto e ocupação de Salancaur (...). Salancaur, imaginem…  

Tal operação envolvia várias Companhias que passaram a noite deitadas pelo chão do acanhado quartel de Medjo e incluía bombardeamentos prévios nos dias precedentes pela aviação, Fiats, T6’s (...), e DO-27 no ar a horas que deveriam ser as do assalto, e bojardas dos tais obuses do Santos a partir de Medjo, tudo antes da planeada entrada da tropa apeada. 

As quatro peças de artilharia foram deslocadas dos seus espaldares para o exterior da paliçada, alinhadas lado a lado e apontadas em paralelo ao objetivo como dedos de deuses vingativos. A regulação do tiro seria feita, e foi, a partir do voo de um DO-27, Major de operações mais que duvidoso a mandar vir, tantos graus à esquerda, alongar o tiro mais cem metros…

Diz-se que o homem põe e Deus dispõe. Dizia Fernando Pessoa que Deus quer, o homem sonha e a obra nasce. Que Deus quisesse tal coisa, quer dizer, o assalto a Salancaur, é duvidoso, ainda que num mundo como este nem em deuses se possa confiar, e esta parte digo eu que tanta desgraça vi naquelas terras. O sonho, neste caso, o sonho seria do mastronço que ocupava a cadeira do poder de Bissau, ou de alguns dos seus bengalinhas querendo mostrar serviço, movendo pioneses coloridos no amplo mapa que ornamentava paredes nas competentes salas do QG (...) e do palácio do Governador. 

Pesadelo se deveria dizer, em vez de sonho, já que sonho é palavra mais adequada a gente que luta e morre por liberdade de sua terra e povos, e por justiça, o que ali, claramente, não era o caso, mas bem o seu contrário. Pesadelo, portanto, também querendo justificar-se a coisa torta e deformada, causadora de sofrimento e dores, talvez mortes a somar a mortes nos dois lados da contenda. 

A operação que deveria ser de um dia, naquela mata quase virgem, avançando nos poucos quilómetros à força de catana para evitar sinais de picada antiga, chegou à antecâmara do destino apenas na terceira madrugada. Sete quilómetros, a bem dizer, se medidos em linha reta, acho que era a leitura dos generais em Bissau. Fomes, sedes, exaustão, desidratação, medos, esfrangalharam corpos e convicções. As evacuações começaram em catadupa, umas de necessidade absolutamente comprovada e outras aproveitadas no ressalto, todas, vi eu, mais que justificadas no limite de cada um, nas caras torcidas de esgar, nos olhos febris. Na frente da tropa que se aprestava para o ataque, havia agora um enorme espaço de bolanha nua e rasa que era necessário passar para chegar ao objetivo.

Ordem para iniciar procedimentos de tiro de obus em Mejdo. Tudo a postos, cada peça com seu apontador e municiador. Em PRC-10 (...) ouvia eu as ordens do DO ao Santinhos, e em wallkie talk, a comunicação entre o Santinhos e o apontador de cada obus, conversa esta, em especial, para a qual peço a vossa inesgotável imaginação, recriando a manhã naquele lugar, quente e húmida, mais abafada ainda pelo stress da espera de meia dúzia de soldados que haviam ficado a garantir a segurança das peças, encarrapitados na bancada da paliçada; o DO esvoaçando e dando indicações, não tão longe dali que não se pudesse enxergar-lhe a evolução a olho nu; a voz do Santinhos nas perguntas ao avião, nas ordens às peças, pastosa, embrulhada na língua, augurando tensões.

− Primeira bateria?

− Pronto,  meu Alferes!

− Segunda bateria?

− Pronto.  meu Alferes!

− Terceira bateria?

− Pronto. meu Alferes!

− Quarta bateria?

− Quarta bateria?!

− Quarta bateria?!!!

− Foooooda-se!

BUUUUUUUUUUUUUUUUUM!!! Quatro buuuns num só, ecoaram inesperados nos meus ouvidos e no susto dos ocupantes do DO que voava em frente, não muito acima da linha de tiro!

− Tirem-me daqui!!!  − esganiçou o Alferes.  − Tirem-me daquiiiii!

Um médico de fora que por ali ficara para a possibilidade de ter de servir na operação, diagnosticou sintomatologia histeriforme e solicitou evacuação para o Alferes. O helicóptero que o veio buscar,  carregou já para Medjo o seu substituto, outro Alferes, açoriano, diferente do Santinhos no talhe físico e na atitude. Para aquele dia nem valia a pena a pressa da substituição. 

Os obuses não teriam mais serventia naquela operação acabada por ordem superior, como superior havia sido a do seu início. Do DO para a tropa na orla da mata a ordem foi de recuar porque do outro lado daquele largo espaço aberto, eram muitos os morteiros, canhões sem recuo, possíveis foguetões terra-terra dissimulados e outros materiais eficazes na função de matar, prontos para bater a bolanha nua e rasa.

Não havia tropas helitransportadas. E que houvesse! A morte de dezenas estaria assim mais que certa, ainda por cima, para nada, segundo concluíram os chefes. Sensatamente, desta vez.

Não morreu ninguém, portanto, do nosso lado, pelo menos.

Só fomes.

Só sedes.

Só medos.

Só pragas.

Só raivas!

E do Santinhos, Alferes e civil, engenheiro brilhante, segundo se dizia, e contestatário, nunca mais ouvi fosse o que fosse, por palavras escritas, ou ditas… ou (des)ditas.


In "Lugares de Passagem" (com a devida vénia...)

Nota do editor: nesta altura devia estar em Mejo o 6º Pel Art / BCAC (8,8 cm). OU o 7º, que depois foi para Guileje.
 



Mário Gaspar, ex-Fur Mil At Art, Minas e Armadilhas,
CART 1659, "Zorba" (Gadamael e Ganturé, 1967/68)
  

3. Sobre a  “Operação Revistar” ver o texto que publiquei no blogue, Poste P14302 (***).

(...) A CCAÇ 1622 viria a ser a maior vítima da “Operação Revistar”, que tinha por objectivo a Acção ofensiva em diversos acampamentos do PAIGC e o aprisionamento do chefe Nino Vieira. Participaram na “Operação Revistar”, a CCAÇ 1622; CCAÇ 1591; CCAÇ 1624 e CART 1613.

No dia 3 (de dezembro de 1967), teve a Companhia, 3 feridos (um Oficial, um Sargento e um Soldado; 18 evacuados por esgotamento físico e dois por doença).

No dia 6, repete-se a Operação, e para além das Companhias que tinham estado na 1.ª Acção no terreno, foram reforçados com a minha CART 1659 e CCAÇ 1620.

Na História da Unidade da CCAÇ 1620, nem uma linha sobre a “Operação Revistar”, entretanto esteve lá.

Na História da Unidade da CART 1659 consta:

“De 1 a 3 e de 6 e 7 de Dezembro de 1967, feita a Operação Revistar, uma Acção ofensiva na Península de Salancaur, tendo as forças da CART 1659 colaborado numa primeira fase, montando segurança ao aquartelamento de Mejo. Numa segunda fase, participaram da operação juntamente com as forças da CART 1613 e CCAÇ 1591, 1622 e 1624. Os objectivos previstos não foram atingidos devido ao esgotamento físico das nossas tropas”.

Na História da Unidade da CCAÇ 1591, repetem-se as dificuldades que a NT teve ao percorrer matas fechadas, calor intenso o que provocou o agravamento do estado físico das NT. Termina dizendo que a Companhia acusou, notoriamente, as 5 noites ao relento, dormindo no chão e a falta de alimentação capaz, antes de iniciar a Operação.

Na História da Unidade da CCAÇ 1624, repete-se o mesmo, só com mais 15 evacuações (1 Oficial e 1 Sargento), não existindo condições para se concluir a Operação. (...)

(...) Sobre a actividade da Força Aérea nada é focado, mas que a aviação esteve lá não me podem negar. Dias antes já actuava, e em força, bombardeando constantemente a Península de Salancaur.

Em relação aos motivos que levaram que a Operação não fosse concluída, todos falam em desgastes nas NT. Estavam Paraquedistas, Fuzileiros e Comandos do lado contrário da Bolanha? E a aviação?

Uma Grande Operação falhada. Quem foram os culpados?

Estes também foram para mim dias horríveis, 7 dias consecutivos que não esqueço. (,,,)


4. E agora acrescento eu, para se percebeu o meu reencontro como Zé Brás:

No início dos anos 60 um grupo de 9 estudantes do Externato Sousa Martins fundaram o Jornal “Eco Académico”, entre eles estava eu. A Direcção do Externato pensou ser um Jornal tipo “quadro de honra”. Através do Padre, Professor de Moral, conseguiu-se que fosse composto e impresso na Tipografia do Centro de Apoio Social Infantil (CASI).

Conseguimos assinantes e publicidade, após cada um de nós entrar, penso com 50$00.

Começámos por inserir artigos que foram contestados pelo Externato e o CASI deixou de nos apoiar. Falou-se em desistirmos mas continuámos. Foi complicado visto termos de pagar a uma Tipografia.

Entretanto já tínhamos sido convidados para colaborar na Criação da Secção Cultural do União Desportivo Vilafranquense (UDV).

Quem nos coordena é o escritor Alves Redol em reuniões semanais (?).

Já deixara de estudar mas continuei a frequentar esses encontros. Nasci em Sintra e desde os meus 3 anos que vivia em Alhandra – rival nº 1 do União. Os meus Amigos chamaram-me traidor por colaborar com o clube de Vila Franca. Trabalhava mas continuei a frequentar o Restaurante Maioral, local onde anteriormente nos juntávamos diariamente e que continuava por ser o “local de encontro”. Vítor Manuel Caetano Dias, meu primo, é um dos obreiros.

A Secção Cultural nasce, já com o amigo José Brás que a compõe. Outras figuras surgem. O Cineclube do UDV faz história.

A 3 de Maio de 1965 sou obrigado a iniciar o Serviço Militar no RI 5, nas Caldas da Rainha o Curso de Sargentos Milicianos. José Brás encontra-se na mesma unidade. Finda a Recruta vou para Tavira em Agosto, e o Amigo José Brás também.

O meu Comandante de Pelotão é o Alferes de Infantaria Luís Carlos Loureiro Cadete.

Devido a ter sido hospitalizado no Hospital Militar de Évora, perco a Especialidade – Armas Pesadas – e vou de Licença Registada para casa. Em Janeiro mandam-me apresentar na Escola Prática de Artilharia (EPA), em Vendas Novas e termino a Especialidade e sou promovido após ter sido forçado contra vontade a prestar Provas para os Comandos – recusei, tive a sorte de me safar – e após Licença sou colocado no RI 14, Viseu. Monitor em várias Recrutas, com sucesso. Imagine-se. 

Quando penso estar prestes em terminar o Serviço Militar vou, contra vontade, Prestar Provas para os Rangeres. Após concluir todas as provas, foram 9 dias, e uma caminhada de 40 quilómetros, regresso a Viseu, onde integro a Equipa de Natação no Campeonato da Região Militar. Sou o único elemento da equipa a apurar-se para os Campeonatos das Regiões Militares Nacionais. Volto a ter esperança, mas sou destacado para o RAC, em Oeiras. Dai sigo para a Escola Prática de Engenharia, Tancos para frequentar o Curso de Minas e Armadilhas. Acontecem aqui umas histórias curiosas, mas noto ter sido deveras enganado. Preferível ter ido para os Comandos ou Rangeres. Passei o Curso com 14,8 (?), recebi um diploma e fui mobilizado para a Guiné.

Chego a Bissau em Janeiro de 1967 – não desembarcamos na cidade – e seguimos de LDM para o desconhecido. Defronte de Cacine dizem irmos para Gadamael Porto. Visto um Pelotão e uma Secção ter de ir para o Destacamento de Ganturé, toca-me esse destino.

Vários Furriéis Milicianos, Amigos e conhecidos que estavam já destacados na zona falam-me que o meu amigo – já Capitão Cadete – se encontrava em Mejo, entre eles o Amigo José Brás. Sempre que era destacado para Operações nesse aquartelamento, tentava que ele não me visse. Em Dezembro de 1967 dou de caras com o Capitão na falada “Operação Revistar”.

Devido a um Rebentamento, no dia 4 de Julho, quando morrem (dizem) 10 nativos e mais de 20 feridos graves,  vou para Gadamael. Entretanto já tenho o doutoramento de Minas e Armadilhas.

Não li o livro de José Brásm  “Lugares de Passagem”, só por mero acaso há poucos dias, tomei conhecimento. É notório que a Operação é a mesma – uma mancha tremenda na História que se recusam em falar – História da Guerra Colonial.


5. Lisboa > 
Hospital Júlio de Matos >  25 de Setembro de 1998 > Colóquio "Amor em Tempo de Guerra"

Volto a encontrar-me com José Brás, Aqui fica uma resumo,

O Amor em Tempo de Guerra

 por Mário Vitorino Gaspar

No dia 25 de Setembro de 1998 houve um Colóquio com o tema “Amor em Tempo de Guerra – A Guerra Colonial Portuguesa”, no Anfiteatro do Hospital Júlio de Matos. Para além do Psiquiatra Doutor Afonso de Albuquerque e da Psicóloga Clínica Doutora Fani Lopes, esteve presente um convidado surpresa, José Brás, ex-combatente que publicou o livro “Vindimas do Capim”, Prémio Revelação do Ano de 1986,  que começou por afirmar: 

– Na Guerra Colonial não existiram, quanto sei, orgias, como as vistas nos filmes americanos da Guerra do Vietname. (…). Que soldados portugueses eram estes? Alguns fizeram-se homens com as prostitutas das feiras anuais da província. E vão para a guerra. Guiné, onde cumpri o serviço militar, é um território pequeno… mas a solidão era maior. O soldado, na maioria carente de bens materiais, e muitas vezes de sexo, vai para a guerra e sente-se mais livre em combate que no quartel. 

Continua: 
– A masturbação, essa, sim, existia, até pela descoberta do corpo.

O Psiquiatra Doutor Afonso de Albuquerque, que cumpriu o serviço militar como Médico em Moçambique, referiu: 
– A sexualidade em tempo de guerra tem a ver com a experiência havida em tempo de paz. Quando parti para Moçambique chorei … limpei as lágrimas e lancei o lenço ao mar… Chegado à zona onde se instalou a minha Companhia, as prostitutas quando souberam que estavam nas imediações novos militares instalados, surgiram logo. Existia uma mulher branca, por cada dez europeus. Os perigos das relações sexuais com as nativas eram as doenças venéreas. Não havia preservativo, mas bisnagas de sulfamida. Os soldados afirmavam que aquilo tirava a potência. Sucedeu que um número de militares analfabetos, e não só, acabaram por ter experiências sexuais com animais.

Falou-se da homossexualidade existente na Guerra Colonial.

A Psicóloga Clínica Doutora Fani Lopes, disse: 

– Era natural que a namorada ou noiva fosse virgem. Casos houve que antes da partida para a guerra deixava de o ser. Decerto que algum pacto foi feito por mulheres de ex-combatentes, visto esses casamentos durarem ainda hoje.

Mário Vitorino Gaspar, fez notar:

– Importante referir, pela minha experiência, que o amor em tempo de guerra, estava aqui e não no sul da Guiné em 1967/1968. Lá existia guerra e não amor. Em Ganturé, destacamento de Gadamael Porto, o Régulo da zona, o beafada Abibo Injasso, Tenente de 2ª Linha, e elo de ligação entre o Exército Português e os “informadores” – que jogavam com um “pau de dois bicos” – e pago com uma viagem anual a Meca pelo Estado Português, proibia que as mulheres, e principalmente as bajudas (raparigas novas e em princípio virgens) de terem relações sexuais com os militares, sendo castigadas se o fizessem. Quando confrontadas com a tropa para terem relações sexuais, as mulheres ou bajudas recusavam com uma frase: - “Mim cá nega!”

Amor era o amor de pais, família, da noiva ou namorada.

Mas até se fazia sexo por correio – por carta ou aerograma – sexo por escrita, com noiva, namorada ou madrinha de guerra, por vezes até havia masturbação! Os militares na zona onde me encontrava só podiam ter relações sexuais, quando evacuados por ferimentos ou doença para Bissau, onde existiam prostitutas

Muitas vezes ficava imensamente triste por receber tanta correspondência e soldados nem um simples aerograma terem. Estes quando me falavam choravam e queixavam-se que as namoradas andavam com outros, por vezes até familiares, principalmente primos.

O Dr. Santinho Martins completou: 
– Necessário fazermos a distinção entre oficiais, sargentos e praças. É que estes últimos não tinham dinheiro. As prostitutas eram mulheres na decadência, já com uma certa idade.

Foi levantada a questão:
– Até que ponto o amor pode ser uma boa terapia para o Ex-Combatente que sofre de Perturbações do Stress Pós Traumático de Guerra?

A Doutora Fani Lopes, ao terminar afirmou: 
– Um ou outro regressa da guerra e posteriormente isola-se de tudo e de todos. O isolamento consigo próprio é uma situação de risco. A vida não é aquilo que queremos, mas aquilo que ela é!

Discutiu-se o “Amor em Tempo de Guerra – o Sexo em Tempo de Guerra”

NOTA: Este texto foi publicado no Jornal APOIAR, fui um dos seus fundadores e 1º Director.
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 3 de julho de 2023 > Guiné 61/74 - P24447: Casos: a verdade sobre... (34): A CCAÇ 2792 (Catió e Cabedú, 1970/72), comandada pelo cap inf Augusto José Monteiro Valente (1944-2012), e depois maj gen ref, que embarcou para o CTIG sem três alferes (que terão desertado) e durante a IAO ficou sem o último, por motivos disciplinares...

(**) Fonte: Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 6.º Volume; Aspectos da Actividade Operacional; Tomo II; Guiné; Livro II; 1.ª Edição; Lisboa (2015).

terça-feira, 6 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23850: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte VI - Gadamael Porto... Continuando

1. Parte VI da publicação do excerto que diz respeito à sua vida militar do livro "Um Olhar Retrospectivo", da autoria de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796 - Gadamael e Quinhamel, 1970/72.


VI - Continuando…

Parte da primeira companhia de comandos africanos, comandada pelo célebre e temido João Bacar Jaló e pelo segundo comandante Zacarias Saeigh, logo a seguir, apareceu em Gadamael Porto, com indicação de que ficariam uns dias, participando em operações com a nossa companhia.
Aqui estava parte da razão da nossa espera em Bissau, até ao dia 27 de Novembro pois, parte deles, tinha participado na operação de que lhe falarei, a seguir.

Recordo alguns dos elementos: o Jalibá, o Bari, o Tomaz Camara, o Justo, o João Lomba, um felupe com dois metros, sempre de catana à tiracolo, que fazia colecção de crânios do inimigo, segundo diziam os outros, com convicção.
Tenho fotos de recordação com alguns deles.
Tinham feito parte da operação Mar Verde, invasão à República da Guiné-Conacry, em 22 de Novembro, ainda bem marcados e feridos pelos resultados.

Só por curiosidade, uma das nossas operações, em que alguns deles participaram, durante uma emboscada, o Tomaz Camara foi baleado na cabeça, mas de tal forma que a bala entrou pela fronte, não penetrou na parte óssea e deu a volta, ao longo do couro cabeludo, ficando retida na parte posterior da cabeça.
Concluiu-se que aquela bala foi sendo amortecida pelos ramos e folhagem das árvores, chegando à cabeça do Tomaz Camara já com pouca capacidade, a grande sorte dele.
Foi evacuado para o hospital de Bissau e lá se safou, após cirurgia adequada.

Voltando aquela operação Mar Verde, só para o Daniel ter uma ideia, foi uma operação liderada pelo capitão-tenente fuzileiro Alpoim Calvão, com o máximo sigilo e de forma a evitar que algum sinal pudesse indicar como obra de forças armadas portuguesas.
A equipa foi formada por fuzileiros do continente, fuzileiros guineenses formados no local e alguns comandos africanos.
Parte da equipa foi treinada pelo temido Marcelino da Mata, que também participou, de que lhe falarei, se me lembrar.

Como acontecia em outras operações, as armas e os uniformes teriam de ser iguais ou idênticas às usadas pelos militares do PAIGC, além das pinturas a negro, na cara.
Os próprios veículos usados nas operações teriam de ser o mais discretos possível, sem inscrições que os pudessem denunciar, assim como as próprias equipas que deviam ser caracterizadas de forma a confundirem-se com o inimigo, neste caso, africanos.

O objectivo seria destruir bases militares e equipamento, assim como pontos estratégicos que convinha neutralizar, libertar prisioneiros de guerra portugueses e prisioneiros políticos contra o regime de Sékou Touré, tendo em vista um golpe de estado que pudesse aniquilar Sékou Touré e Amílcar Cabral.
Mas o objectivo não foi conseguido, na sua totalidade, claro.

Foram libertados 26 prisioneiros portugueses, cerca de 400 prisioneiros políticos guineenses, além de destruído bastante equipamento militar e causadas centenas de baixas aos guerrilheiros do PAIGC e população, inevitável…

Como era de esperar, as organizações internacionais receberam as queixas por parte do governo da Guiné-Conakry, nada de extraordinário, considerando a gravidade…
Segundo o relatório desta operação, parte do insucesso da operação deveu-se ao mau trabalho da PIDE, nomeadamente, deficientes passos no campo das informações.

Lembro-me da insatisfação do João Bacar Jaló, pelo facto de não termos comida suficiente, além da rotura do stock de ração de combate.
Já tínhamos enviado rádios para Bissau, solicitando alguns mantimentos, mas nada aparecia.
Foi preciso um rádio, com código do João Bacar Jaló, para enviarem frescos, de imediato.
Os frescos eram constituídos, normalmente, por peixe congelado, frango congelado, ovos, lançados em rede por um hélio, com o impacto no solo que se prevê…

Era assim, o reino do Sr Spínola, em Bissau!... O João Bacar Jaló veio a falecer, em combate, uns meses depois, penso que em Abril, na designada operação ‘nilo’.

"O Adolfo fala dessa sua passagem por África com alguma frieza, mas acredito que deixou muitas marcas, como todos sabemos e o Adolfo melhor saberá…"
Sim, mas já tive tempos mais difíceis do que agora.
Quando andava nos quarenta, quarenta e tal, recordo-me de dias e noites bem difíceis, com um grande esforço para evitar transparecer aos que me rodeavam, na empresa e na família.

Uma sensação de distúrbio mental, principalmente, durante a noite, com perturbações de sono, uma certa ansiedade sem razão aparente, uma mistura de revolta com instabilidade, desânimo, saltos repentinos da cama, o gesto tantas vezes lá repetido, tudo isso relatei aos médicos, neurologista e psiquiatra, que definiram como parte das consequências resultantes de momentos vividos neste tipo de cenários.

Não me imaginava a desabafar e, até, a chorar, mas foi uma realidade, logo justificada pelos médicos.
Falaram em stress traumático de guerra, o que atingiu alguns elementos da companhia, com graves consequências para o resto da vida, como constatado, aquando dos nossos encontros/convívio/almoços anuais.
Alguns medicamentos, por pouco tempo, também ajudaram.

Sabe, Daniel, nós só acreditamos nestas coisas quando, realmente, nos tocam pela porta, directamente.
Mas há gente que não compreende, nem os nossos sentimentos, nem a nossa linguagem, mas nós estamos preparados para compreender essa gente que não nos compreende…
A par dos acontecimentos próprios daquela guerra, como já lhe disse, o clima deixava-nos de rastos.
Humidade do ar, na ordem dos noventa por cento, temperatura, na ordem dos quarenta graus, um factor determinante de um certo desespero diário, sem nada se poder fazer para o evitar.

As operações de rotina, tantas vezes, dentro de matas virgens desbravadas à custa de catana, quase de rastos, incluíam entrar em regatos de águas geladas, que nunca viam o Sol, ou lamas negras que se agarravam ao camuflado.
Quando saíamos da mata e entrávamos nas designadas lalas, com aquelas temperaturas, as lamas coziam e eram como lâminas a rasgar a pele, provocando irritações e queimaduras, um tormento, só possível aliviar à custa de fórmula cinco, de que resultava um ardor tal, que só aos saltos!…
Dentro do camuflado, nem pensar em cuecas...

Outras agressividades nos surpreendiam, quando em progressão pelos trilhos ou dentro das matas, como os carreiros de formigas vermelhas, os enxames de vespas e as cobras cuspideiras.
As formigas começavam a entrar, não sabíamos por onde, e alojavam-se pelo corpo, principalmente, nas partes íntimas, cravando as tenazes nos testículos, o que deixava qualquer um desnorteado, pelas dores.
E nós tínhamos o camuflado bem apertado sobre as botas!...
Quando tentávamos tirá-las, a cabeça ficava cravada e apenas saía o corpo.

Os enxames estavam pendurados em ramos das árvores e, logo que algum de nós lhes tocava, elas começavam a sair, endiabradas, ferrando tudo o que podiam, do que resultavam uma espécie de monstros!
Aliás, diziam-nos que os próprios guerrilheiros do PAIGC preparavam esses enxames e colocavam-nos em locais estratégicos, picadas e carreiros de progressão que usávamos, nas nossas operações.

As cuspideiras, pequenas e verdes como os ramos das árvores, cuspiam nas partes brilhantes, logo, nos olhos.
Como imaginará, a população de baratas e formigas com asas, cá conhecidas por agúdias, era uma enormidade, mas habituámo-nos a viver com elas, a dormir com elas.

Também as limitações de alimentos e água ‘bebível’ faziam parte da nossa festa diária…
Tivemos um período que nem ração de combate havia, diziam que estava esgotada!

Outro problema era o paludismo, quando forte, podia matar.
Felizmente, foi coisa que não me tocou!
Mas as diarreias eram um cenário quase comum, deixando muitos de nós de rastos.
No meu caso, felizmente, um só episódio, mas levou-me a ‘buracos do mato’ um monte de vezes, num só dia, que ficaram bem registados!

"Ouvi falar de doenças desse tipo, como o paludismo, e também dos problemas provocados pelas águas, problemas em cima de problemas que vocês tinham de contornar - ossos do ofício…
Se calhar, era o tipo de problemas para o qual não estavam preparados".


Daniel, depois desta experiência, concluo que estamos preparados para muito pouco…
Também me lembro de um quadro muito engraçado, algumas vezes fazendo parte do nosso cenário, quando em progressão pelos carreiros ou picadas: as famílias de sancus (macacos).

Imagine que tínhamos de parar, com os riscos inerentes, para que as famílias atravessassem os carreiros ou as picadas, o pai de um lado, a vigiar o espaço, garantindo a segurança da família, enquanto a mãe ia atravessando com os filhos, todos de mão dada, até chegarem todos ao outro lado, sempre olhando-nos nos olhos e como que a dizerem-nos alguma coisa, numa linguagem acompanhada de um rosnar tipo cão.
Aliás, o macaco-cão abundava e dizia-se muito apreciado pela etnia Fula, que não consumia carne de porco.
E sabia-se que, muitas vezes, os bifes não eram de vaca, porco ou gazela, mas de macaco-cão…
A etnia Balanta criava e consumia porco.

Quando chegava correio, tarde, mas chegava, uma enorme festa para alguns, mas uma tristeza para outros, pois não eram contemplados.
Lembro-me de aerogramas partilhados, um gesto de solidariedade e amizade.
Algumas vezes, quando se ouvia um ligeiro ruído característico do héli, associávamos a correio, logo, toca a pegar no aerograma e escrevinhar qualquer coisa, à pressa, como: ‘meus queridos pais e irmãos, espero que estejam bem, eu estou bem, o resto vão ler aos anteriores, beijinhos.’
Também chegou a acontecer aparecer um héli e, ao dar a entender que tencionava baixar, um dos soldados pegou na G3, apontava para o ar, enquanto outro avisava, pelo radio móvel, que não se aventurassem a baixar, caso não trouxessem correio!…

As revistas da altura, como a Plateia, quando lá chegavam, enviadas por familiares e amigos de alguns, constituíam um alimento para o espírito de todos.
E liam-se, e reliam-se, e reliam-se,…
De vez em quando, eu recebia aerogramas das minhas amigas, que não me esqueciam, cujo significado e efeito não têm tradução, por palavras.
Uma delas enviava-me, de vez em quando, algumas cassetes com gravações de músicas acabadas de sair, o que me permitia estar ao corrente do que se ia passando, na ‘civilização’.
Ainda bem que tinha comprado o tal leitor de cassetes e que podia ouvi-las, sempre que chegavam à minha mão - um verdadeiro milagre…

Algumas vezes, quando se ouvia um ligeiro ruído característico do héli, logo associávamos a correio…

"Ó Adolfo, por falar nisso, lembro-me do Movimento Nacional Feminino que, embora algo contestado, ainda conseguia fazer alguma coisa válida, no apoio aos militares que chegavam feridos e aos familiares dos que morriam. Pelo menos, era o que me constava…"

Sim, Daniel, era um movimento interessante, mas…


Mais qualquer coisinha desagradável…

Mas nem tudo o que me chegava era agradável.

Recebo uma carta da minha mãe, não aerograma, com um texto normal de mãe, mas juntando uma foto dos meus pais com a criança Carla ao colo.
Claro que não incluía a mãe, por precaução.
Não foi preciso pensar e não respondi, como se nunca tivesse recebido aquela carta.

Obviamente, associei este quadro ao que o meu irmão me tinha relatado sobre uma Guiomar, embora sem pormenores, mas qualquer coisa seria de desagradável.

Mais tarde, recebi novo aerograma da minha mãe, pedindo-me autorização para levantar dinheiro da minha conta, pois a tia Jú estava aflita com umas despesas inesperadas que tinha de cumprir e a minha mãe já tinha ajudado, um pouco, mas não podia ajudar mais.
Logo respondi que sim, poderia levantar tudo o que a tia Jú necessitasse - para a tia Jú, tudo!
No entanto, deixou-me a pensar na coisa, pois era estranho...

Mesmo com algum problema inesperado, a tia Jú tinha o seu emprego, o marido o seu emprego, a avó Júlia a sua pensão, a sogra a sua pensão, as duas sem despesas, logo, porquê?!
Paciência, mais tarde teria oportunidade de conhecer a resposta e, no momento, era melhor esquecer.

"Adolfo, não consigo imaginar o que sente uma pessoa, em cenário de guerra e de falhas no mais elementar, como a comidinha, ao receber notícias da família, com situações que suscitam dúvidas e criam preocupações…"
Realmente, Daniel, era difícil conciliar a situação com algumas notícias que lá nos chegavam…
Mesmo o pouco tempo de descanso era assaltado por estas dúvidas e preocupações, apesar de sabermos que nada podíamos fazer.

Mas o meu relacionamento com toda a companhia continuava óptimo, em espírito de grupo saudável e imprescindível, com os condicionalismos próprios do contexto, mas com uma grande vontade de, em conjunto, procurarmos vencer todas as dificuldades que nos iam surgindo, sempre motivados pela esperança de um regresso a casa, sãos e salvos.
Mas as situações delicadas não podiam ser contornadas, pois faziam parte daquela realidade, e surgiam a cada momento.
Já com baixas, a moral ia ficando debilitada, mas o nosso espírito ia amadurecendo, a forma possível de continuarmos a nossa marcha.

Pouco mais de dois meses decorridos, durante uma emboscada que sofremos logo uns minutos depois do arame farpado do aquartelamento, ainda no início de mais uma operação, o capitão Assunção e Silva, um ranger bem preparado e bom líder, morre, com tiro certeiro no coração.
Além do capitão morto, mais dois ou três feridos, apenas.

Sim, mais uma operação, designada de reconhecimento, em que saía o primeiro grupo, do Ponte, o capitão Assunção e Silva, um ou dois dos comandos africanos e alguns milícias.
Como era necessário mais um graduado, o Ponte manifestou interesse em que eu participasse nesta operação, apesar de não ser o meu grupo, mas a solidariedade ‘obrigada’ sobrepunha-se a tudo, dadas as circunstâncias.
Mas não me esqueço de que, neste dia, eu estava muito mal disposto, com os meus problemas do aparelho digestivo, já conhecidos, e que se foram agravando.
Mas o cenário que vivíamos não tolerava más disposições…

Como o Daniel saberá, o desenrolar de uma emboscada pode durar segundos ou minutos, depende das circunstâncias.
Início, troca de tiros, uns segundos e… já está - final e retirada estratégica de ambas as partes…

Como o Daniel já deve ter ouvido, sempre que em situações como esta, toca a despir camuflados para apoiar em G3 e improvisar macas, até chegarmos ao aquartelamento, tudo rápido e em silêncio, claro, mais uma experiência para a vida.
Confesso que fiquei bastante abalado quando vi o capitão caído, já sem vida!
Aliás, um sentimento geral, em toda a companhia, quando entrámos no aquartelamento!

(Continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 4 de Dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23843: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte V - Chegada a Gadamael Porto