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domingo, 24 de setembro de 2017

Guiné 61/74 - P17792: Fotos à procura de... uma legenda (90): uma vida precária de equilibrista na cambança de pequenos cursos de água ... (Luís Mourato Oliveira, ex-alf mil inf, CCAÇ 4740, Cufar, 1.º semestre de 1973)


Foto nº 1 


Foto nº 1A


Foto nº 1B - Guiné > Região de Tombali > Cufar > CCAÇ 4740 > 1973 > 3.º pelotão... Atravessia de... uma "ponte improvisada".

Foto (e legenda): © Luís Mourato Oliveira (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


1. Mais uma foto  álbum do Luís Mourato Oliveira, nosso grã-tabanqueiro, que foi alf mil inf, de rendição individual,  na açoriana CCAÇ 4740 (Cufar,  1.º semestre 1973) e  comandante do Pel Caç Nat 52 (Mato Cão e Missirá, 1973/74). 

A foto merece uma melhor legenda por parte dos nossos leitores. Quem andou no mato, facilmente se reconhece nesta foto... Havia muitas pontes destas que atravessavam pequenos cursos de água. E eram utilizadas tanto por nós como pelo IN... E, em geral, não se pagava "portagem"... (*)

Eram pequenas obras de arte de engenharia... hidráulica. Feitas de estacaria, bambu (?) e lianas... A guerra também nos obrigava ao difícil exercício de equilibrista... De vez em quando, lá ia um de nós ao charco... com armas e bagagens.

2. Recordo-me que, apesar de tudo, houve camaradas... com sorte. E deviam entrar no livro do Guinness dos recordes... O meu camarada, ex-1º cabo Carlos Galvão, da Covilhã,  que já não vejo desde 1994, é um deles...  Foi ferido duas vezes na mesma operação, coisa que deve ter sido rara naquela maldita guerra (**)... 

Era segunda feira de Carnaval, em 9 de bril de 1970, e na cambança do Rio Buruntoni (através de uma ponte de estacaria improvisada, como aquela que a foto nº 1 mostra), por volta das 5 e tal da manhã,  o 1º cabo Carlos Alves Galvão, cmtd da 1ª secção do 3º Gr Comb da CCAÇ 12, sofre um traumatismo num pé, tendo que ser transportado em padiola improvisada pelos seus soldados africanos... (O que seríamos nós sem os nossos bravos e leais soldados fulas que abandonámos em agosto de 1974?!)...

Às 13h, em Gundagé Beafada, já no regresso ao Xime, sofremos um violenta emboscada  de que resultariam uma série de baixas entre as NT (CART 2520, Pel Caç Nat 63 e CCAÇ 12), incluindo o 1º Cabo Galvão que ia nesse momento na "horizontal", de papo para o ar, à altura do capim,  o que o tornava um "fácil tiro ao alvo"...

Teve sorte, apesar de tudo, o Carlos Galvão... Sobreviveu a esta "brincadeira de morte", em dia de carnaval... e ainda lá anda pela Covilhã, deficiente das FA e reformado da AT (Autoridade Tributária)...

Eu fui dos que o ajudou a chegar a bom (heli)porto, em Madina Colhido... Mas nunca consegui, enquanto fundador, administrador e editor deste blogue,  que ele se dignasse descer ao povoado da Tabanca Grande... Lá terá as suas razões pessoais... Como eu costumo dizer, não temos o Panteão Nacional, mas temos melhor, a Tabanca Grande... que não é para todos, é só para quem quer e puder... LG

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quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10826: A minha CCAÇ 12 - Anexos (II): Quem se lembra destes camaradas guineenses da 1.ª Secção do 3.º GComb? (António Mateus / Luís Graça)


Foto nº 1 


Foto nº 2


Foto nº 3

Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Contuboel > junho/julho de 1969 > uma secção do 3º Gr Comb da CCAÇ 2590 (futura CCAÇ 12), em frada nº 3, durante a instrução de especialidade do pessoal de recrutamento local. (*)

Em primeiro plano, na foto nº 1, da esquerda para a direita,  os 1ºs cabos Carlos Alberto Alves Galvão [, vive na Covilhã, foto nº 2], que  irá integrar mais tarde a 1ª secção ; e  António Braga Rodrigues Mateus [, durante muito tempo sem morada conhecida, hoje sabemos que vive em Guifões,  Matosinhos] , que irá pertencer à 2ª secção (**).

A 1ª secção era comandada pelo saudoso Fur Mil Luciano Severo de Almeida, natural do Montijo, enquanto a 2º secção tinha comandante o nosso querido amigo Arlindo Teixeira Roda [, natural de Pousos, Leiria; professor em Setúbal, reformado, e grande damista, e um dos nossos fotógrafos de Bambadinca ]... A 3ª estava entregue ao madeirense, fur mil José Luís Vieira de Sousa.

O comandante do 3º Gr Com era o alf mil inf Abel Maria Rodrigues, Passei por este grupo de combate, como aliás passei por todos, tapando "buracos" (feridos, doentes, desenfiados, de férias...). Mais pelo 3º e pelo 4º do que pelo 1º e pelo 2º. Eu era o furriel "pião das nicas", dizia-me o capitão, e eu nunca soube se, na boca dele, a expressão  era elogio, se era gozo... Foi no 2º Gr Comb que tive o meu batismo de fogo (setembro de 1969), e no 4º que apanhei com uma anticarro (janeiro de 1971). Enfim, não vem ao caso, agora, a minha história...

Os soldados africanos das fotos acima reconheço-os a todos, mas tenho dificuldade, de momento, em identificá-los pelos nomes. Uns eram mais putos e brincalhões, outros mais sérios e reservados, com mais dificuldade em falar português. Tenho hoje uma pena enorme de não ter muitas mais fotos dos nossos camaradas guineenses (da CCAÇ 12 e de de outros unidades africanas), e de não poder identificá-los um a um. O mais provável é que apenas um destes seis meus camaradas guineenses estejam ainda vivo,  talvez o mais jovem (o terceiro a contar da esquerda, na foto nº 2), ainda com cara de criança, jovial, alegre, reguila, de quem me lembro tão bem, e com saudade. Seria o Sambel ?

Os que constam das fotos acima (vd. em detalha, as fotos nº 2 e 3) parecem-me ser os da 1ª secção que era constituída pelos seguintes elementos (***):

Fur Mil Luciano Severo de Almeida [, viva no Montijo, já falecido]
1º Cabo 02920168 Carlos Alberto Alves Galvão [, vive na Covilhã]
Soldado Arvorado 82108769 Totala Baldé (Fula)
Sold 82108569 Sambel Baldé (Fula)
Sold 82108969 Mauro Baldé (Ap LGFog 8,9) (Fula)
Sold 82110369 Jamalu Baldé (Mun LGFog 8,9) (Fula)
Sold 82109169 Malan Baldé (Fula)
Sold 82109569 Iéro Jau (Ap Dilagrama) (Fula)
Sold 82110969 Samba Baldé (Ap Metr Lig HK 21) (Fula)
Sold 82109969 Malan Nanqui (Mamdinga)


O 1º cabo.metropolitano,  da secção era o Carlos Galvão, que eu vejo desde 1992, e que não nos lê... nem nos ouve. O mesmo se passa com o Arlindo Roda (que vive em Setúbal). Talvez o nosso camarada e grã-tabanqueiro, transmontano, Abel Rodrigues, ex-Alf Mil, e comandante deste 3º Gr Comb nos possa dar uma ajuda...

 Quanto ao Carlos Galvão, já tem sido aqui por diversas recordado como o homem que cometeu a proeza de ser ferido duas vezes no decurso da mesma operação (Op Boga Destemida, Fevereiro de 1970). Penso que não haverá muitos casos destes ao longo da guerra...


Já aqui apresentei, em abril passado, o meu camarada da CCAÇ 12, António Mateus , de seu nome completo António Braga Rodrigues Mateus, de quem não tinha notícias desde 1971... Depois de ter estado emigrado em França. fixou-se em Guifões, Matosinhos onde é vivizinho do Albano Costa, e tem hoje o seu negócio próprio.  [, foto à esquerda].

Nasceu em 18 de novembro de 1947. É casado com a Laura, tem uma filha. E fez-nos chegar, através do email do seu genro, Emanuel Azevedo (mais conhecido por Tito), as fotos da praxe, bem como as que publicamos acima.

O António Mateus foi gravemente ferido na Op Pato Rufia, em 7 de setembro de 1969, e evacuado para o HM 241. No meu caso, foi o meu batismo de fogo. Eu estava perto dele.



Já falei com o António ao telefone, duas ou três vezes, recordando os nossos velhos tempos da CCAÇ 2590/CCAÇ 12, e finalmente pude revê-lo e abraçá-lo em Monte Real, no dia 21 de abril de 2012, no nosso VII Encontro Nacional.

Depois de regressar do hospital, em data que já não posso precisar (talvez finais de 1969, princípios de 1970), o António Mateus foi integrado na força que defendia o destacamento do reordenamento de Nhabijões, composto por militares da CCAÇ 12, da CCS do BCAÇ 2852 (e depois do BART 2917) e outros. Creio que ficou lá o resto da comissão.

Estava lá quando acionámos duas minas A/C à saída de Nhabijões, no fatídico dia 13 de janeiro de 1971.

Fotos: © António Mateus (2012). Todos os direitos reservados.
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Notas do editor

(*) Primeiro poste da série > 3 de novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10615: A minha CCAÇ 12 - Anexos (I): Sansacuta, tabanca fula em autodefesa no sul do regulado de Badora, onde estive em março de 1970 e onde um dia recebi, do vaguemestre, um lata 5 kg de fiambre dinamarquês... que tive de consumir e repartir pelos putos em escassas horas (Luís Graça)

(**) 20 de abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9775: Tabanca Grande (331): António Mateus, de Guifões/Matosinhos, ex-1º Cabo At Inf, CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, 1969/71), nosso tabanqueiro nº 550

(***) 21 de maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6447: A minha CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, Maio de 1969/Março de 1971) (1): Composição orgânica (Luís Graça)

(...) 2ª Secção
Fur Mil 07098068 Arlindo Teixeira Roda [, natural de Pousos, Leiria; professor em Setúbal]
1º Cabo 17625368 António Braga Rodrigues Mateus [, morada actual desconhecida];
Soldado Arvorado 82108369 Mamadú Jau (Ap Dilagrama) (F)
Soldado 82109369 Malan Jau (Ap Mort 60) (F)
Sold 82100769 Amadú Candé (Mun Mort 60) (F)
Sold 82108869 Quembura Candé (F)
Sold 82109769 Sherifo Baldé (F)
Sold 82115369 Ussumane Jaló (FF)
Sold 82110169 Madina Jamanca (F)

3ª Secção
Fur Mil 06559968 José Luís Vieira de Sousa [, natural do Funchal, agente de seguros]
1º Cabo 12356668 José Jerónimo Lourenço Alves [, morada actual desconhecida];
Soldado Arvorado 82108469 Sajo Baldé (Ap Metr Lig HK 21) (F)
Soldado 82109669 Cherno Baldé (Mun Metr Lig HK 21) (F)
Sold 82109469 Sanuchi Sanhã (Ap LGFog 3,7) (F)
Sold 82109269 Sori Jau (Ap Dilagrama) (F)
Sold 82110569 Mamadu Embaló (F)
Sold 82110769 Chico Baldé (F)
Sold 82115169 Demba Jau (F)
Sold 82108669 Cutael Baldé (F)

domingo, 4 de julho de 2010

Guiné 63/74 - P6672: Para o livro de ouro do Capitão Garcez, um inédito de Mário Cláudio


Guiné > Zona Leste >  Sector L1   > Bambadinca > CCS/ BART 2917 (1970/72) > Jovem mãe fula, com o seu filho. Não há qualquer relação, espácio-temporal,  entre a foto, do Benjamim Durães, e o texto (que é de ficção literária) a seguir reproduzido, da autoria de um dos grandes escritores portugueses da actualidade, Mário Cláudio, Prémio Pessoa 2004, e um dos recentes membros do nosso blogue. 
Foto:  ©  Benjamim Durães (2010). Direitos reservados


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > CCAÇ 12 (1969/71) > Em bicha-de-pirilau... A solidão dos combatentes, na hora mortal da madrugada... Um imagem, recuperada de um "slide" do meu amigo e camarada Arlindo Roda, editada (e reeditada) por mim (com a devida vénia...).
 

 
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > CCAÇ 12 (1969/71) > ... E a solidariedade dos combatentes... Dois soldados do 3º Grupo de Combate, do Alf Mil Abel Rodrigues, aparam o 1º Cabo Carlos Alberto Alves Galvão, metropolitano (vive hoje na Covilhã: Um Alfa Bravo, Camarada!), comandante da 1ª secção, o homem que cometeu a proeza de ser ferido duas vezes o decurso da mesma operação (Op Boga Destemida, Fevereiro de 1970). Estes dois camaradas guineneenses podem ser alguns dos seguintes que compunham a 1ª secção: Soldado Arvorado 82108769 Totala Baldé (Fula); Sold 82108569 Sambel Baldé (F); Sold 82108969 Mauro Baldé (Ap LGFog 8,9) (F); Sold 82110369 Jamalu Baldé (Mun LGFog 8,9) (F); Sold 82109169 Malan Baldé (F); Sold 82109569 Iéro Jau (Ap Dilagrama) (F); Sold 82110969 Samba Baldé (Ap Metr Lig HK 21) (F); Sold 82109969 Malan Nanqui (Mandinga). "Slide" do Fur Mil Arlindo T. Roda, comandante da 2ª secção.  Imagem editada por L.G.

Fotos: © Arlindo T. Roda  (2010). Direitos reservados



Para o Livro de Ouro do Capitão Garcez

 por  Mário Cláudio [, foto à direita] (*)

Convoco o banalíssimo rosto do Capitão Garcez, emergido da noite em que se me deparou. Um esfregão parece ter passado por ele, reduzindo-o à suprema inexpressão, despido do fulgor da violência que lhe imputam. Ali está, solitariamente sentado a uma mesa do Clube Militar, atento ao zumbido das ventoinhas do tecto, e ao súbito remexer dos ramos das bananeiras que anuncia um desses tornados da estação das chuvas. À sua frente a minha presunção de virtual escritor implanta uma grande bandeja, repleta de cabeças de guerrilheiros, cortadas numa tarde de assalto a um aldeamento por entre a aguardente emborcada, e o suor empapante dos camuflados. E um outro texto descerra-se diante de mim, já não o que o tenebroso oficial pressupõe, mas o que se estampa na cara dos degolados, contemplando num último lampejo do medo, ou do ódio, o embondeiro distante, a cuja sombra as mulheres se abrigam na amamentação dos filhos.

O bancário aposentado tira os óculos que ficam pendentes de um cordão, e confronta-me como se não quisesse ver-me com demasiada nitidez. “Não creio que tenha muito para lhe contar”, declara ele, e justifica-se, “já lá vão bastantes anos, e aquilo que nesse tempo nos parecia interessantíssimo acabou por não valer um caracol.” Encontramo-nos na salinha sobreaquecida, e a luz do candeeiro de pé reflecte-se no vidro da janela, compensando pelo halo de intimidade que desenha o desolado cinzento do Inverno lá de fora. “Afinal vivíamos praticamente em família”, discorre ele, e eu lanço uma mirada às prateleiras à minha direita, atafulhadas de edições do Círculo de Leitores, inseridas por detrás de uma tralha de lembranças de viagem, dominadas pelas três estatuetas africanas que ocupam o plano mais de cima. O meu informador abre uma gaveta na parte de baixo da estante, retira uma caixa de cartão arrombada, destapa-a com delicadeza, e vasculha na desordem de fotografias de várias dimensões. Descobre a que procura, e entrega-ma com um “aqui tem” apressado. Lá se distingue ele, facilmente identificável pelas orelhas de abano, de calções de caqui, entre dois camaradas, também de barba por fazer, e formando um grupo ligeiramente apartado do indígena bronco, de ombros descaídos, que espeta o olhar na câmara com a vigilância de um cão fiel. “O que está à minha esquerda”, explica num sussurro, “é o Garcez.” Solta uma risadinha como se lhe tivesse sobrevindo a recordação de um episódio pícaro, e remata, “O Garcez era um ponto, não havia outro igual.”


O percurso do Capitão Garcez a custo se acha nesses dilapidados calhamaços, inventariadores dos sucessos dos que serviram nas forças armadas, e que terminaram os seus dias a pedir esmola, a desempenhar o cargo de porteiro de algum condomínio fechado, ou a projectar o futuro na base da jantarada que anualmente reúne o pessoal decrépito da sua unidade. E os jornais do seu tempo, tanta vez apodrecendo no bolor de um sótão de província, permanecem inatingíveis pela falta de paciência de quem pretende estudar os passos dos bravos em desgraça. Terão porventura circulado aerogramas, a descrever-lhe as impetuosas proezas, subscritas pela admiração inescondível, e não raro pela calada repugnância, mas bem sabemos que destino levariam esses documentos, ora despachados para o contentor com o lixo reunido antes de se mudar para a casa nova, ora incinerados por um antigo soldado que nas vésperas do casamento resolveu com a noiva desfazer-se da correspondência de namoro. O Capitão Garcez vai assim perdendo o tal rosto, aquele mesmo que se esparrinhou com o sangue da jugular no instante da catanada, imobilizando-se a seguir na massa fosca das noitadas de whisky do remoto destacamento no mato.

Continuo a observar a foto dos idos da campanha, não tanto porque dela espere obter mais do que aquilo que deduzi já, o apagado facies do Capitão Garcez, alferes na altura, debaixo do cabelo liso e ruço claro, e na palidez que o distingue dos companheiros. Vou meditando no que o meu informador depreende do jogo fisionómico que lhe proponho, tão relevante para ele como o dele para mim, e de idêntica forma à mercê de suspeitas e traições. Apercebe-se da curiosidade com que lhe persigo o desvio da vista, e da minúcia com que lhe inventario os bibelots expostos na biblioteca, babushkas alinhadas em progressão aritmética, e miniaturas de teares e caldeiras, óbvios mementos das peregrinações a Leste, promovidas pelo partido da esquerda bem-comportada de que foi militante. E não deixará de reparar ainda no modo como lhe espio o gesto de selecção dos clichés da caixinha, futurando que será meu objectivo, e a mais do que a simples escrita de uma história, comprometê-lo por desmandos que, não transcendendo todavia a sua inicial responsabilidade, lhe pesam hoje como infames nas madrugadas de insónia. Ao devolver-lhe o retrato amachucado do quarteto com uma palhota atrás, terá porventura entendido o meu sorriso, não como aceno cortês de gratidão, mas como cínica ameaça, resultante do facto de conhecer eu muita, muita coisa que ele preferiria manter em silêncio. Desce a escuridão para além da vidraça, e o clarão da lâmpada denuncia com acrescida clareza quanto guardamos, ele e eu, nas algibeiras mais secretas das intenções que nos movem.

A peça televisiva, sobrevivente num preto e branco que as décadas foram zurzindo, oferece a deslocação lenta, um pouco rígida, do Capitão Garcez, subindo os degraus da tribuna no Terreiro do Paço, erguida para as comemorações do 10 de Junho. Transporta o rosto anódino de sempre, indeciso entre a melancolia e a austeridade, o que redunda na absoluta ausência de emoções. Avança para o Presidente do Conselho que lhe impõe a Torre e Espada, e que o abraça com a finura sinuosa de quem restringiu a paixão a um cálice, um cálice apenas, de porto tawny. Soletra-se entretanto o que se adivinha, a dor das duas viúvas que irão arrecadar a condecoração a título póstumo, o espanto do menino órfão no seu fatinho de piqué, tudo o que a comissão dos festejos imperativamente recomendou. O choro ostensivo que se proibiu, e que se crispa em engolidos soluços, esvai-se na brisa que sopra do Tejo, e que faz esvoaçar o véu de luto do duo das inconsoláveis esposas, e o vestido estampado das senhoras que assistem à cerimónia, e que ficarão lindamente no banquete que fecha o ritual. O nosso Capitão Garcez, e leia-se isto com um misto de pudor e asco, regressa à fileira donde saiu, cravando no vazio do céu azul a vista com que abarcou páginas e páginas de uma crónica heróica, as cabeças em espeques que lhe engalanavam o jeep, os ventres das grávidas rasgados à baioneta, e donde desliza no capim o feto banhado em sangue borbulhante, e o crânio do petiz que, ao esborrachar-se num poste, produziu o ruído das carochas esmagadas pela bota.

No rosto do Capitão Garcez aprendo a alvura que se situa para além da morte, a dos dentes das nativas que vertem a cólera das lágrimas no corpo estraçalhado das crias, a do leite que dolorosamente se retém nas suas mamas, a da esclerótica dos cadáveres que não baixam por completo as pálpebras, a da cal com que se pinta a parede para que não dure na morança o espírito do executado, a do pânico do régulo que cospe em Portugal a cegueira a que o reduziram com o sol a pino, a do esperma do terrorista enforcado que não se veda no meio minuto do estertor, a do manto da Senhora de Fátima a que se abrigam as virgens cristianizadas, a do lenço embainhado do menino de sua mãe que não encarna a coragem de cortar a garganta da impúbere, a dos cornos do boi que alui para alimentar com a sua carne os homens do pelotão, a da manhã de canícula que enrola os defuntos num sudário tão delicado como o linho, a do sabugo das unhas arrancadas ao capturado que se recusa a falar, a do cogumelo de espuma nos beiços do rapaz manietado que se puxa do poço, a do bando de garças que levanta voo a cada rebentamento da granada inserida nas calças de um pobre diabo, a da máscara do feiticeiro que conclui a pantomima, a dos lírios calcados pela sola do Capitão Garcez.
Se o oficial agraciado, tendo volvido ao seu lugar, me avistasse então, conforme me posiciono agora, acomodado defronte do televisor, talvez traduzisse em mim o nojo que lhe suscitaria o seguinte, “E que tem o marmanjo com os actos que pratiquei, ou não pratiquei, estávamos em guerra, na guerra mata-se, e quem poderá acusar-me de celebrar a morte, a fim de a assumir em pleno, com insígnias que eu escolhia, um colar de orelhas enfiadas num arame, postas à volta do pescoço, como se desembarcasse para umas férias no Havai, um bracelete de dedos calejados, colhidos ainda em vida dos anjinhos que despachara, e que me dera na moina enviar à última puta que fodera em Lisboa? Nenhuma destas alegrias curava a tristeza que me assediava, e que provinha de compreender que não existe no Mundo festarola que não seja a que inventamos, e em que ninguém acredita, e deitava-me a dormir, e antes de tombar no sono contava os dentes que se tinham soltado, apegados a lascas de gengiva, do maxilar que eu estourara com a coronha da G-3, ou procurava reproduzir em surdina, muito em surdina, os berros da gaja agarrada ao miúdo, o que tem você mesmo com isso, seu cobardola de merda?”

Na alma do Capitão Garcez colho o vermelho que explode no paroxismo da agonia, o do fio que escorre do buraco da bala na nuca, o do globo ocular que o sabre extirpa como uma ostra, o da papa em que se converte o detido que se ata a uma mina, o dos restos na bocarra do morteiro a que o chefe de posto é amarrado, o da diarreia do velhote que arrastam pelo chão, o da massa dos pulmões à mostra pelo lanho que rasga o peito do comandante deles, o do inchaço das partes que se penduram numa cana, o do vómito do recém-nascido que se arremessa contra o tronco da acácia, o do vinho acre que se bebe na volta à camarata, o da bandeira que se iça para presidir à farra, o da glória dos heróis que sepultam a honra debaixo do lodo, debaixo da lama, e debaixo da trampa.

Chega-me a mensagem de um que andou com o Capitão Garcez nas lutas africanas, e transcrevo dele este bocado, “Há muitíssima confusão, o que favoreceu o mito. Vamos pensar. Mas eu não pretendo branquear-lhe a memória, muita atenção, o tipo era um homicida que descobriu, na guerra colonial, a sua coutada, e que se realizou na tortura, no massacre e na matança. A prova está em que nenhum de nós confraternizava com ele, e havia um como que acordo tácito, entre a malta, nesse sentido. Estou a avistá-lo, ainda, sempre isolado, absorvido nas bolinhas de fumo, que atirava para o ar, com aquele rosto de querubim, mas que, se analisado à lupa, apresentava-se destituído de qualquer sentimento. Por que haveria eu de o desculpar? Mas o que ninguém negará é que as cabeçorras dos pretos, espetadas nos paus, a bordejar a picada, funcionavam como um truque da psico, para demonstrar aos rebeldes, convencidos, pelas igrejas evangélicas, de que Deus os conservava invulneráveis às balas, que não beneficiavam do dom da imortalidade e que não eram menos mortais do que nós. Se isto não escusa as atrocidades, é natural que lhes dê, no entanto, uma certa razão, e uma razão patriótica, que constituia aquilo que, na circunstância, se desejava do sujeito. Quem se adiantaria, se não o Garcez, para executar o trabalho sujo, desempenhado sem luvas, e a que não se furtava, por o considerar imprescindível, talvez, e não tanto porque lhe apetecesse?”

Este rosto que se fixa no meu, devolvido pelo espelho quadrangular que veio da casa dos avós, foi sendo devastado ao longo das quase cinco décadas. Junto a mim pousa a grande jarra de gerberas, arauta da Primavera que desponta, a projectar aquele macerado amarelo, tão característico dos que retornam dos trópicos. A verdade é que, há muito, muito tempo, me não assalta o organismo de pretérito miliciano essa coloração dos surtos palúdicos, precipitando-me em convulsos pesadelos, atrelados a outros experimentados já. Serenamente afastaram-se de mim aqueles transes inexplicáveis, vividos por um soldado sonâmbulo que devagar conduz o Unimog através da povoação em labaredas, cruzada pelo balido das cabras espavoridas, e pelo guincho das fêmeas e crianças que ardem numa habitação esbarrondada. Apagado pela ventania que espanta o incêndio, o rosto do Capitão cristaliza em mim numa neutralidade de cera, de órbitas vazadas, tão frágil e tão efémero como a paisagem que o circunda. E só a minha cara permanece, e nela a intrigada movimentação dos lábios magnetizados pela figura no espelho suspenso perante mim, balbuciando no extremo desespero, “Como te chamas? Como te chamas? Maltez? Calapez? Montez? Garcez! É isso, é isso, Garcez!”

O homem continua acolá, de pés virados para o lume da lareira. Amenizou-se-lhe o clima, respirado pelos netos traquinas que gosta de instalar sobre os joelhos, e pelo gato angorá que langorosamente curva o dorso sob as carícias do dono. E o noticiário da TV relata uma toada de guerras exóticas, empreendidas por mercenários que ganham o bastante para edificar a vivenda dos seus sonhos, descrita à namorada em cartas onde se alude ao cio arrasante, devorador das entranhas. O vetusto Capitão Garcez, admiravelmente robusto para os seus quase setenta, levanta-se da poltrona, e as imensas asas negras, rompendo-lhe das espáduas, batem numa vibração, desplumam-se na treva, e desfazem-se em pó.

Texto: © Mário Cláudio (2010). Direitos reservados

[Foto de Mário Claúdio. Autor: Gaspar de Jesus. Digitalização: Carlos Nery. Fonte:  livro de contos, autografado, oferta do autor, "Itinerários", 1993... Com a devida vénia ao autor e editor...]
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Notas de L.G.:

(*) Mário Cláudio é o pseudónimo literário de Rui Manuel Pinto Barbot Costa, natural do Porto, que esteve na Guiné, como Alferes Miliciano, colocado na Secção de Justiça do Quartel General (1968/70), juntamente o hoje conhecido constitucionalista Gomes Canotilho. Foi nessa altura que conheceu o Carlos Nery (**) e o João Bagre, com quem fez a peça de teatro A Cantora Careca, de Ionesco.

(**) Foi o Carlos Nery que nos enviou, em 18 de Junho, este texto (que se presume seja inédito), remetido pelo escritor Mário Cláudio, na sequência da sua entrada para a nossa Tabanca Grande (onde está registado como Mário Cláudio / Rui Barbot:

Amigos, enviei-vos ontem o primeiro texto que o Barbot me remeteu para ser colocado no blogue. Quando vos remeti o meu "Noite Longa" tive o cuidado de o converter da reprodução do papel impresso para a forma digitalizada. Não sei como isso se chama... Mas fiquei surpreendido com a facilidade como meu filho fez essa conversão. O que vocês receberam parecia ter sido "batido" aqui no teclado mas fora um programa informático quem tinha efectuado o equivalente a esse trabalho a partir de um texto impresso em papel. Confesso que nem sabia que isso já era possível... Trabalhei na Organização e Métodos do Banco de Portugal e lembro-me de, aqui há já alguns anos, ter feito uma consulta ao mercado para saber se havia algum dispositivo que fizesse tal coisa. Não havia. O meu espanto foi ver que, agora, num computador pessoal, isso se faz em minutos...

Mas tanta conversa para quê? Para dizer que, se vocês quiserem, eu me posso encarregar dessa tarefa relativamente ao "Livro de Ouro"...

Uma coisa: o Barbot, não obstante a minha insistência, não me remeteu foto sua actual (***). O homem tem mil afazeres, obrigações e prazos a cumprir, não o quero chatear muito... Temos que entendê-lo... Penso que, se isso for muito importante, é sempre possível encontrar uma foto actual.

Enviei uma foto dele na "Cantora Careca" (juntei-a eu ao material enviado). É uma foto que tenciono usar quando estiver pronto o Poste sobre essa realização teatral. Pode ser ou não usada agora. Mas como falei da sua performance teatral, na altura, pareceu-me não ser descabido essa divulgação, agora, até pelo seu ineditismo...

Abraços CNery

(***) Mail de 17 de Junho do Mário Cláudio / Rui Barbot

Meu Caro Carlos Nery, aqui segue o que lhe prometi. O que não constar dos anexos seguirá depois, ou irá ter-lhe às mãos por via postal. Grande abraço amigo do Rui Barbot.

Vd. poste de 23 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6630: Tabanca Grande (227): Rui Barbot / Mário Cláudio, ex-Alf Mil, Secção de Justiça do QG, Bissau (1968/70).