sábado, 24 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25877: Timor: passado e presente (18): Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) - Parte IX: Parte IX: resumo dos acontecimentos do 2º semestre de 1943


Timor > s/l > s/d (c. 1936-1940) > O régulo ("liurai") de Ainaro e Suro, Dom Aleixo Corte Real, com a esposa de um funcionário português. Foi  O "liurai" Dom Aleixo Corte-Real (1886-1943), régulo de Ainaro e Suro. Foi um dos heróis luso-timorenses  da resistência contra o ocupante japonês na II Guerra Mundial. Morreu heroicamente com grande parte dos seus filhos.

Foto do Arquivo de História Social > Álbum Fontoura. Imagem do domínio público, de acordo com a Wikimedia Commons. Editada (e legendada) por blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024)

O Álbum «Colónia Portuguesa de Timor», mais conhecido por «Álbum Fontoura», nome do governador que o mandou elaborar em finais dos anos 30, e coincidindo, então, com a permanência em Timor de uma missão geográfica e geológica, chefiada pelo geógrafo Jorge Castilho, contém 549 fotografias relativas a «grupos étnico-linguísticos e tipos em geral», «trajos, ornamentos, pertences e armas», «vida familiar e social», «formas de trabalho (…), arte indígena e instrumentos musicais» e «acção civilizadora e colonizadora». O exemplar do álbum, recuperado após Abril de 1974 pelo antropólogo, professor António de Almeida, foi depositado no AHS (Arquivo Histório Social, ISC/UL, pela «Família Almeida», através do Doutor Pedro Cardim. (Fonte: AHS/Album Fontoura)




1. Mesmo publicado tardiamente, em 1972, trinta anos depois dos acontecimentos (aliás, numa época em que ainda havia a censura a obras literárias, e os autores faziam autocensura), o livro em apreço, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (*), disponível em formato digital no Internet Archive, continua a ser um documento importante para o estudo deste dramático período da história do Timor português (mas também da nossa história),

Há outras fontes contemporâneas: o autor cita, por exemplo, os livros do deportado Cal Brandão e do tenente António Liberato, e
m complemento do seu relato em primeira mão (que, de resto,  só peca por tardio; o de Cal Brandão, "Funo", foi publicado logo em 1946; os do António Oliveira Liberato, "O caso Timor" e "Os Japoneses Estiveram erm Timor" logo a seguir, c. 1946-1951).  

Para ajudar a leitura que estamos a fazer, voltamos a  reproduzir neste poste o mapa de Timor em 1940 (da autoria de José dos Santos Carvalho). Em termos administrativos, a atual República Democrática de Timor-Leste encontra-se dividido em 13 distritos (contrariamente ao que se passou na Guiné-Bissau ou em Angola, por exemplo, os topónimos continuam a ser os mesmos): (i) Bobonaro, Liquiçá, Díli, Baucau, Manatuto e Lautém na costa norte;  |  (ii) Cova-Lima, Ainaro, Manufahi e Viqueque, na costa sul;  (iii) Ermera e Aileu, situados no interior montanhoso;  |(iv) e Oecussi-Ambeno, enclave no território indonésio.



Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.)

Parte IX:  resumo dos acontecimentos do 2º semestre de 1943 (pp.  75-79)


(i) O drama dos portugueses (e dos timorenses) durante a ocupação japonesa vai continuar nos últimos meses que faltam para completar o ano de 1943. A pequena comunidade europeia está concentrada
na zona de Liquiçá e Maubara, a oeste de Díli.
Um outro grupo, está em Lahane, nos arredores de Díli 
(e nele se encontra o médico José dos Santos, 
um dos dois que restam: eram quatro, dois suicidaram-se).
Para a Austrália, conseguiram escapar-se umas tantas famílias.


(...) No dia seguinte ao da sua chegada a Lahane  os portugueses vindos de Viqueque foram cumprimentar e informar o Governador do que tinham passado. Foi então, que o aspirante Oliveira reconheceu as crianças há tempos trazidas pelos japoneses, por serem filhas do seu colega José Armelim de Mendonça que prestava serviço na administração da circunscrição de Manatuto.

Tratava-se das meninas Maria Helena e Maria Ida e foi, para o aspirante Oliveira, grande surpresa encontrá-las pois lhe tinha constado que toda a família do aspirante Mendonça, inexplicavelmente excluída da lista das pessoas autorizadas a embarcar para a Austrália, havia perecido em abril, na região de Barique, no mato para onde fugira, acompanhando o seu chefe.

Conta-nos o capitão Liberato, num dos seus livros (1) o sucedido a essa infeliz família.

«Foram patéticas as operações de embarque. Ninguém queria ficar em terra. Os excluídos das listas pediam que os deixassem embarcar. O oficial australiano, superintendente no serviço de embarque, não se demoveu. Nem as súplicas de uma mãe, acompanhadas do choro enternecedor de seis crianças, de idade inferior a dez anos, conseguiram comover o duro coração do australiano. Foi o caso da família do aspirante administrativo Mendonça. Sucumbiram depois. Minados pela fome, pela febre e pela vérmina, morreram em qualquer parte da colónia. Só duas filhas do casal se salvaram» (1) .

Soubemos no fim da guerra que as duas crianças haviam escapado à morte por se terem perdido dos pais, na ocasião de uma precipitada fuga, sendo encontradas por timorenses que as entregaram aos japoneses.

Na tarde do dia 25 de maio estabeleceu-se em Maubara uma força nipónica comandada pelo tenente Sibassáki que, no dia seguinte, impunha ao tenente Liberato a entrega do armamento do destacamento por ele comandado e instalado em Guguleur (1).

Assim foi dissolvida a última força militar de que dispúnhamos, recolhendo o tenente Liberato a Liquiçá, a 29, ficando alojado numa casa do governador, denominada «o palácio», conjuntamente com as famílias do dr. Nepomuceno dos Santos, juiz da comarca
 [pai do futuro cantar Zeca Afonso, na altura ainda a estudar em Coimbra] , do sargento Ribeiro e do funcionário da F.O.A.G.E., Cláudio Alexandre Vaz, e com o aspirante Eugénio de Oliveira, ao todo treze pessoas ocupando seis compartimentos! (1).

Pouco tempo se demorou o tenente Sibassáki na região de Maubara, voltando para Liquiçá, onde reassumiu o comando das forças japonesas acantonadas na localidade (1) .

«Depois de cinco meses de permanência quase ininterrupta na zona e durante os quais fora o árbitro dos nossos destinos, deixou-nos em princípios de Agosto, não sem que primeiro desse largas ao ódio que lhe inspirávamos, descarregando todo o rancor, acumulado na sua alma perversa, sobre dois infelizes concentrados, esbofeteando-os em plena rua, perante os olhares curiosos dos indígenas e a ira recalcada dos europeus, que assistiram ao ultrajante espectáculo. Motivos fúteis serviram de pretexto à agressão» (1) .

A afronta matou o chefe de posto Nascimento. Sofrendo de doença que não perdoa, o enxovalho abreviou-lhe a existência. Não resistiu à vergonha de se ver esbofeteado na presença de timorenses seus súbditos de véspera (1).

Em fins de julho 
[de 1943] ,  os japoneses exigiram a entrega dos pouquíssimos aparelhos recetores de rádio e respetivo material, que ainda possuíamos, os quais, de resto, já não eram, praticamente, utilizados pela dificuldade de carregar as baterias queos alimentariam de corrente eléctrica. Desapareceu, assim, para nós, este último elo que nos ligava ao mundo, ficando completamente isolados.

(ii) Mas o drama dos portugueses e timorenses (e também australianos) (terror, fuzilamentos, isolamento, fome, doença, humilhações,  racismo, etc.) foi também,  de algum modo, contrabalançado  por muitos atos de altruísmo e heroísmo por parte de alguns, que inclusivamente se envolveram 
na resistência armada contra o ocupante . 
Os japoneses eram implacáveis contra a guerrilha luso-timorense, 
procedendo a execuções sumárias.



(...) Também, neste mesmo mês  [de julho de 1943], impuseram termo às arriscadíssimas viagens que os deportados, senhores José Rodrigues da Silva (2) e João dos Santos faziam, desde o estabelecimento da zona de concentração, à zona Leste e ao território do Oecússi, para trazerem para Liquiçá todos os géneros alimentícios que pudessem adquirir. 

Viajando nas frágeis embarcações à vela, denominadas «corcoras» em Timor, não haviam temido insistir na sua abnegada empresa apesar de terem sido recebidos a tiro em alguns pontos e, sobretudo, das suspeitas e vexames dos japoneses, a que se expuseram com a maior temeridade.

Em Lahane, éramos testemunhas da permanente e intensa actividade diplomática do engenheiro Canto, exercida temerariamente perante os japoneses, e da vida febril que levava, sempre com o pensamento de levar a bom termo a tarefa em quepatriótica e abnegadamente estava empenhado.

As suas idas e vindas a Liquiçá eram constantes, deixando-nos em Lahane sempre à espera de lhe ser causado o maior dano pelos japoneses. Ele, nunca desanimava. Cheio de energia e com inteiro desprezo pelo perigo que perfeitamente conhecia, enfrentava sorridente as mais difíceis situações e não se dobrava às veladas ameaças.

A polícia nipónica aparecia frequentemente no hospital, para «o visitar», e com infinda diplomacia os aturava, fingindo não compreender as suas intenções. É inenarrável a paciência com que o engenheiro aguentava as suas exigências ou «pedidos» e lutava contra as suas desconfianças, mostrando-lhes, sempre, que a nossa atitude perante eles, somente poderia ser de completa neutralidade e nunca de «cooperação», palavra que muito usavam e, veladamente, insinuavam deveríamos seguir para não sofrermos as agruras da ocupação.


(iii) Julgando poder manter alguma normalidade, mesmo sob violenta ocupação estrangeira, o Governador lá ia tomando algumas decisões administrativas como, por exemplo, nomear (o que é patético!) o dr. José dos Santos Carvalho, novato em Timor (tinha chegado em finais de 1940)
 para chefiar os serviços de saúde pública... E este, por sua vez, ainda arranjava tempo e pachorra para fazer 
os burocráticos relatórios anuais de saúde que a lei exigia... 
Grande exemplo como português e homem foi
 o do engenheiro e cartógrafo  da Missão Geográfica, 
o açoriano Artur do Canto Resende ( 1897-1945), 
que acabaria de morrer na prisão, em resultado de sevícias, fome e doença. 
Será agraciado, a título póstumo, com o grau de oficial 
da Ordem Militar da Torre e Espada


(...) Em fins de agosto resolveu o engenheiro Canto um dos maiores problemas que, então, era necessário eliminar, para sossego dos portugueses. As atividades da guerrilha do sr. Júlio Madeira na região da Hátu-Lia é Ermera, afligiam, incessantemente, os nipónicos, tendo-lhe causado várias baixas, entre mortos e feridos.

Falhadas algumas tentativas para o apanhar, apresentaram nas suas «visitas» o assunto ao engenheiro, mostrando-lhe as gravíssimas consequências que para a comunidade portuguesa concentrada poderiam advir, de portugueses estarem, ainda, violando a neutralidade em favor dos aliados.

O engenheiro iniciou, então, com conhecimento dos japoneses, tentativas perigosíssimas, para ir ao encontro do sr. Júlio Madeira e convencê-lo a vir para a zona de concentração 
 [de Liquiçá / Maubara].

Depois de com ele falar, obteve dos nipónicos a promessa de que garantiam a vida e integridade física do guerrilheiro se viesse para Lahane, à responsabilidade do engenheiro Canto.

Voltou este ao encontro do sr. Júlio e consigo o trouxe para o hospital, onde ficou a viver connosco, nunca incmodado pelos nipónicos, até ao fim da guerra.

Nesta sua última viagem à região da Ermera, colheu o engenheiro Canto a notícia da morte dos europeus que se tinham juntado aos povos do liurai do Suro, D. Aleixo Corte Real. 

Fortificando-se em posições que aguentaram durante longas semanas e rechassando as tentativas de assalto em que se empregava já o uso de morteiros e artilharia de montanha, havia o grupo de D. Aleixo, numa hora feliz, abatido um dos aviões nipónicos que procurava desalojá-los à metralhadora (3).

As forças japonesas, postas em cheque, redobraram os seus esforços, a fundo, para aniquilar os sitiados, e fizeram quebrar aquela heróica resistência (3) .

Neste último combate, travado em maio, nas faldas do monte Ramelau, morreu o deportado sr. Eduardo Felner Duarte, e foram aprisionados o sargento José Estêvão Alexandrino e os soldados Romualdo Aniceto e José Cachaço.

Levados para a Ermera, foram aí fusilados, no mês de junho, os dois soldados. O sargento Alexandrino, quando já os japoneses se tinham comprometido a entregá-lo ao administrador, engenheiro Canto, foi assassinado com um tiro de pistola,na nuca, por um oficial japonês que o convidara a dar um passeio (1). O seu corpo está enterrado junto à tranqueira da pequena localidade (4).

No dia 2 de agosto, o médico que prestava serviço em Lahane foi nomeado, interinamente, por portaria do Governador, chefe da Repartição Técnica de Saúde e Higiene. Assim, passei eu a ser o responsável pelos Serviços de Saúde que, felizmente, puderam sempre cumprir integralmente a sua missão de assistência médica e de enfermagem, apesar de desprovidos da maior parte dos meios de que, antes da ocupação dispunham.

Devido às dificuldades de comunicações e relativo isolamento entre médico responsável pela zona de Liquiçá e Maubara e o chefe da Repartição em Lahane, resolvi delegar no dr. Francisco Rodrigues vários dos meus poderes, o que lheparticipei por nota datada do dia 21.

Logo após a minha nomeação ponderei a grande vantagem em os dois médicos existentes poderem ministrar conhecimentos de enfermagem aos jovens que nada tinham em que se ocupar e que mostravam grande interesse em aprender.

Deste modo, organizei e propus ao Governador cursos intensivos de enfermagem, elaborando os respectivos programas e modo de funcionamento, contando com um único professor, em cada uma das localidades de Liquiçá e Lahane. Em 4 de Setem-bro, principiaram as respectivas lições que puderam ser mantidas, ininterruptamente, até aos exames que se fizeram no fim do 2.° ano.

No dia 17 de setembro fomos surpreendidos no hospital de Lahane pelo aparecimento duma pequena força japonesa que mandou desocupar a casa mortuária e logo aí se instalou, montando uma guarda com patrulhas, durante a noite, em frente ao hospital.

Em breve soubemos que haviam procedido da mesma maneira quanto ao palácio do Governador, instalando-se na casa da guarda, à sua entrada.

O engenheiro Canto foi, então, avisado no consulado nipónico de que todos os portugueses residentes no hospital, assim como os seus criados e auxiliares, se deveriam, sempre, fazer acompanhar de um salvo-conduto, fornecido pelo consulado, para poderem ser identificados pela guarda ao entrarem nopalácio ou no hospital.

Assim, me foi fornecido um quadrilátero de papel, cabendo na carteira, onde o meu nome, escrito em caracteres sínicos e dirigido verticalmente de cima para baixo, era acompanhado da indicação da minha profissão.

Na primeira visita que, a seguir, fiz ao palácio (5) encontrei montado o serviço de guarda, perante o comandante da qual pronunciei a palavra que sabia ser, em japonês, a correspondente a «governador», isto é, «sòtòkò» e apresentei o meu salvo-conduto.

O comandante, leu, em voz alta «JIÕSÉ DOS SANTOSSÊ CÃRÃVÃRIO» e lançou-me a palavra «doutoro», que eu confirmei com um aceno de cabeça afirmativo.

Um seu gesto permitiu, logo, a minha entrada, e assim se passou das outras vezes em que eu visitei o palácio, com guarda, portando-se sempre esta, para comigo, com correcção que posso sinceramente classificar de delicadeza.  (...)


(Continua): A seguir: Os acontecimentos de 1944

(Seleção, revisão / fixação de texto, reordenação das notas de rodapé, comentários introdutórios, negritos, itálicos: LG)


Mapa de Timor em 1940. 

In: José dos Santos Carvalho: "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial", Lisboa: Livraria Portugal, 1972, pág. 11. (Com a devida vénia). Assinalado a vermelho a posição relativa de Maubara e Liquiçá, a oeste de Díli, onde se situava a zona de detenção dos portugueses, imposta pelos japoneses (finais de 1942 - setembro de 1945)

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024)



________________

Notas do autor (JSC):


(1) Vd. Capitão António de Oliveira Liberato, "Os japoneses Estiveram em Timor". Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade. Lisboa, 1951.

(2)  O deportado José Rodrigues da Silva, que deu provas de excepcional valor, era em Timor conhecido como o senhor «José da Rosa».

(3) Vd. Carlos Cal Brandão, "Funo". Porto, 1946.

(4) Vd. Capitão António Oliveira Liberato, "O Caso de Timor",  Portugália, Lisboa. 

(5) "Além das visitas ao palácio feitas por motivo de doença, que felizmente foram raríssimas, eu sempre aí pude passar o domingo, por convite permanente do governador, almoçando e regressando à tarde ao hospital."

________________

Guiné 61/74 - P25876: Os nossos seres, saberes e lazeres (642): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (167): Uma romagem de saudades pelo Pinhal Interior - 6 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Maio de 2024:

Queridos amigos,
Pus-me ao caminho, regresso de Figueiró dos Vinhos em direção a Tomar, primeiro pelo IC8, aproveito as boleias que dá à autoestrada, vou até Alvaiázere, e depois Tomar, são tudo territórios da interioridade, a romagem a que me propus culmina da visita à Charola do Convento de Cristo que teve limpeza no exterior e brilha ao Sol. É dessa viagem que perguntas sem resposta, sobraçando um livro de Paulo Pereira sobre o Convento de Cristo que ali estive sentado a extasiar-me com a Charola e o Portal Sul, pois cativa-me estar diante de uma das mais intrincadas peças da arquitetura peninsular, aqui há estilos que vão do românico ao gótico, do gótico ao manuelino e deste ao primeiro renascimento e ao maneirismo do tempo dos reis Filipes, tenho dúvidas que exista outro monumento com tal caligrafia de estilos em sequência diacrónica. A romagem está feita, impõe-se o desejo de voltar, enquanto houver forças, há sempre o ir e o voltar.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (167):
Uma romagem de saudades pelo Pinhal Interior – 6


Mário Beja Santos

Quando ia para Casal dos Matos, na viragem do século, bordejava a cidade de Tomar, seguia pelo IC3 até apanhar o IC8, e daqui, entre Figueiró dos Vinhos e a vila de Pedrógão Grande, infletia no Outeiro do Nodeirinho, Figueira, e chegava àquela casinha toda reabilitada de que guardo imensa saudade. Já nessa altura dava para perceber onde estava a fronteira da interioridade, pelo IC3 viam-se as casas abandonadas, os campos expetantes, a evidência dos sinais do abandono; a confirmação chegava quando se andava por aquelas pequenas estradas com portões datados dos anos 1950 e anos 1960, do modo geral as casas em ruína. Há para ali uma autoestrada agora com SCUTs, são raros os carros que por ali circulam, mas é uma viagem que nos elucida sobre os tais abandonos que parecem irreversível e os sinais de quem recuperou o casario, mas a interioridade é indisfarçável.

É a pensar no que mudou neste quarto de século que vou a caminho da última etapa desta romagem de saudade, já que tive casa bem perto de Tomar, que troquei com a de Casal de Matos, gosto imenso do aprazimento de Tomar, da escala contida dos edifícios e do seu impressionante património, aqui faço escala para ver um dos mais belos edifícios do património português, a Charola, que está de cara lavada.

Entro no Castelo e continuo com dúvidas por resolver, aquele Castelo possui a melhor tecnologia do seu tempo, imaginaram aquele alambor que impede a escalada das muralhas, a fortificação é sólida em todos os seus lados, lá dentro está a Charola templária, tudo em estilo românico, bem perto da Charola os pequenos claustros góticos do tempo do Infante D. Henrique, como só vejo os claustros questiono onde vivia o Navegador, não consigo obter resposta, sei que houve um paço, das janelas do claustros só vejo pedras no chão, todas aquelas muralhas rasgadas de janelas levam ao pressentimento de que houve para ali habitação, consta que o Infante aqui viveu e num ponto mais ermo a rainha viúva de D. João III, D. Catarina de Áustria, mas aonde?

Rendo-me ao facto de ter diante dos olhos o mais rico depoimento arquitetónico português, o românico, o gótico, o manuelino, o primeiro renascimento, o maneirismo, tudo em sequência, em paredes meias. Por aqui andou D. Afonso Henriques que se dava bem com o Grão-Mestre templário, Gualdim Pais, era a Reconquista Cristã, os guerreiros monges defendiam toda esta linha do Tejo, como atesta o Castelo de Almourol. Diz a historiografia que foi D. Gualdim, que andou uns bons anos em Cuzada lá para Jerusalém, que escolheu este ponto, a Charola iniciou-se por volta de 1160 e concluiu-se em 1250. É um dos monumentos mais importantes de planta centrada de tradição templária.

É o que hoje me trouxe a este ponto alto de Tomar, a Charola, com a sua estrutura cilíndrica e aquele assombroso interior liturgicamente configurado por uma planta circular, octogonal pelo interior (o tambor central possui oito faces) e no exterior possui panos reforçados por sólidos contrafortes, as imagens tiradas permitem ver que foram eliminados dois desses contrafortes para construir aquele fabuloso Portal Sul, construção manuelina.

Há muita especulação sobre o mítico e o místico da Charola. Que se terá pretendido reproduzir a imagem, o desenho do Santo Sepulcro de Jerusalém, edifício de planta circular; que possuiu uma retórica figurativa que guarda os seus códigos secretos; e há quem especule de igual modo quanto aos códigos manuelinos e já não falo das mil e uma interpretações dos elementos constitutivos da mais bela janela que há em Portugal, a Janela do Capítulo.

Sinto-me feliz por aqui acabar esta romagem, empolga-me a Charola, admiro-a sem mística nem mito, é um empreendimento religioso que fez o seu tempo, D. Manuel tornou o seu interior num empolgante espetáculo cromático, não se pode entrar e admirar o interior da Charola sem ficar esmagado com tal e tanto esplendor. Passo em revista algumas dessas imagens da minha permanente admiração, sempre a perguntar-me onde viveu o Infante D. Henrique e a tal rainha viúva, aquelas pedras no chão não em dão resposta… Vamos então aos pormenores ligados ao fecho da romagem de saudade a sítios que tanto me tocam ao coração.
Arruma-se o carro e fica-se especado diante de muralhas tão imponentes, dá para perceber imediatamente que já não há habitação, fica por saber como desapareceram e porquê tais construções, o que resta é mesmo a imponência da pedra e o vazio do seu interior à mostra.
A porta de entrada no Castelo de Tomar, lá no alto o silêncio do paço régio desmoronado
Propositadamente vim atrás para que se possa ver um detalhe do alambor e a torre da velha igreja que também desapareceu
Sim, a Charola beneficia da alvura de toda a sua pedra, quem a contempla também se questiona sobre aquele cubo lá ao fundo à direita, goste-se ou não, não traz qualquer benefício estético à Charola, aliás há aqui outros pormenores para os quais não se tem resposta, elevou-se a escadaria, é graciosa, contudo há aquele muro quase colado à torre sineira que subtrai um olhar desafogado sobre tão bela construção, e faz pena.
Dá perfeitamente para ver que houve dois momentos da construção, como escreve o historiador Paulo Pereira: “O aparelho dos muros é alvenaria miúda até ao primeiro andar, sendo daí para cima em silharia aparelhada, o que assinala dois momentos de construção: o primeiro do último quarto do século XII até cerca de 1190, altura em que as obras terão sido interrompidas quando se verificaram graves escaramuças entre portugueses e Almóadas; o segundo corresponderá à finalização do templo, por volta de 1250.”
Vê-se nitidamente como o rei D. Manuel quis associar o seu projeto religioso à antiga Charola. Olhando todo este Portal Sul vê-se à vista desarmada que o monarca tinha o seu projeto imperial. O historiador Paulo Pereira fala na identificação mítica do rei D. Manuel com os reis magos com o Emmanuel das escrituras, com David e Salomão, admite uma conotação salomónica da Charola e da igreja do Convento de Cristo. O que nós vemos neste Portal Sul é o deslumbramento religioso, a Virgem com o Menino, uma série de figuras instaladas em mísulas, figuras do Novo e do Velho Testamento, pensamos nos Jerónimos, mas aqui o que é de mais tocante é esta igreja estar diretamente ligada a uma construção que evoca Jerusalém, e temos em frente uma casa do Capítulo que nunca foi acabada e foi neste espaço que Filipe II, em 1581, foi aclamado como rei de Portugal.
Despeço-me do leitor com esta imagem que recorda os dois claustros góticos do tempo do Infante D. Henrique, o do Cemitério e o das Lavagens, houve depois uns restauros no século XX, mas a pergunta continua sem resposta, onde era o paço do Infante D. Henrique, o Navegador não tinha acomodações? E com esta pergunta sem resposta findo uma romagem de saudade que me lavou a alma.

_____________

Nota do editor

Último post da série de 17 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25850: Os nossos seres, saberes e lazeres (641): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (166): Uma romagem de saudades pelo Pinhal Interior - 5 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P25875: Parabéns a você (2304): António Fernando Marques, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2590/CCAÇ 12 (Bambadinca, 1968/70)

_____________

Nota do editor

Último post da série de 23 de Agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25871: Parabéns a você (2303): Fernando Cepa, ex-Fur Mil Art da CART 1689 / BART 1913 (Catió, Cabedú, Gandembel e Canquelifá, 1967/69)

sexta-feira, 23 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25874: Notas de leitura (1720): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, de 1872 a 1873) (17) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Maio de 2024:

Queridos amigos,
Escusado é dizer que o Governador do Distrito de Bissau indica para a cidade da Praia que o estado sanitário da Guiné Portuguesa é satisfatório, um tanto contraditado pelo que, sucessivamente, informam os serviços de saúde; agora já há uma chalupa que leva regularmente o correio nas duas direções entre a Praia e Bissau; há guerras tribais em Bolama, obras no Pidjiquiti, a chuva é abundante, a tranquilidade pública não tem sofrido alterações, a administração judicial não pode funcionar corretamente, não dispõe de recursos humanos e os serviços de saúde mencionam uma catadupa de maleitas, começa na letra A com aneurisma, amigdalite e alienação mental, findará com tuberculose pulmonar e úlceras. Já não se estranha o silêncio absoluto com o que se está a passar no Casamansa. Estamos em 1873, estes Boletins prolongar-se-ão até que a Guiné se torna numa província e disporá do seu próprio Boletim Official.

Um abraço do
Mário



Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX
(e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, de 1872 a 1873) (17)


Mário Beja Santos

É importante referir que o tema dominante se mantém, a saúde pública, as referências à cólera, à varíola, ao sarampo, o Governador Geral pretende que os serviços de saúde pública mandem regularmente notícias sobre a evolução do quadro sanitário. Mas, aqui e acolá, sentimos que algo vai mudando nas comunicações, no estabelecimento de infraestruturas, na adaptação da legislação, desde a fiscal à judicial.

No Boletim n.º 19, de 11 de maio, de 1872, publica-se a portaria n.º 136 referente ao contrato celebrado em 6 de maio com o proprietário António de Sousa Machado, dono da chalupa Cabo Verde para que esta embarcação seja empregue pelo serviço de correio entre Cabo Verde e o Distrito da Guiné pelo tempo de 1 ano. “Outrossim há por conveniente determinar que o Governador do Distrito da Guiné Portuguesa, servindo-se para isso da escuna Bissau, ou de qualquer navio ou navios fretados para tal fim, tome as medidas necessárias para que, na ocasião da partida mensal da chalupa Cabo Verde do porto de S. José de Bissau para este arquipélago, esteja habilitado com notícias recentes dos concelhos de Cacheu e Bolama e possa informar o Governo Geral do estado de todo o distrito confiado à sua administração.”

E na sequência desta notícia publica-se o contrato referente à chalupa Cabo Verde: o proprietário da chalupa obriga-se a prestar o serviço do correio uma só vez por mês, partindo da ilha de Santiago entre os dias 25 e 28 de cada mês, dirigindo-se direta e unicamente ao porto da vila de S. José de Bissau; o navio deverá demorar-se 48 horas em Bissau, exceto quando no Distrito da Guiné se tenham dado ocorrências imprevistas e importantes; o navio, nas viagens de serviço do correio, será obrigado a conduzir gratuitamente todos os passageiros de ré e até 15 de proa (mas sem abono de mantimentos) que forem mandados de um para outro ponto pelo Governo; o Governador Geral abonará ao proponente um subsídio de 200 mil réis por cada viagem redonda que a chalupa fizer nos termos contratuais.

No Boletim n.º 28, de 22 de julho, publica-se o extrato das notícias da Guiné Portuguesa:
“Era satisfatório o estado sanitário do distrito; bom o alimentício e pouco animado o comercial. A tranquilidade pública não havia sofrido alteração. Na ilha de Bolama continuavam as desinteligências entre as tribos gentílicas de Inté e Antula, tendo havido ataques em diversos dias, sempre com perda dos gentios de Antula. A guerra promete sustentar-se por terem ambas as tribos por auxiliar diversas outras de Balantas, e por se negar a entrar em negociações de paz o régulo de Antula, não obstante os esforços para isso empregados pelo governador do distrito.
Em Cacheu havia sido ratificada a paz feita em 27 de janeiro último entre a Praça e os gentios do Churo, assistindo à ratificação o governador do distrito, os grandes daquela tribo e os de Bassarel, por ser esta a que serviu de intermediário para a paz. Ficou, portanto, aquela praça em perfeita harmonia com todas as tribos limítrofes. Acham-se bastante adiantadas as obras da tabanca de Bissau, estando concluída a do Pidjiquiti em toda a sua extensão, na altura 2 metros. Também já se havia dado princípio à tabanca que fecha a vila do lado da Puana. O rendimento das alfândegas do distrito no mês de abril foi o seguinte: 2:087$708 réis em Bissau; 3:163$363 réis em Bolama; 192$000 réis em Cacheu.”


O Boletim n.º 86, de 29 de junho, traz o extrato das notícias da Guiné Portuguesa:
“Anunciou-se a estação chuvosa por fortes trovoadas e abundante chuva. Que à saída da chalupa Cabo Verde para a Praia era bom o estado sanitário em todo o distrito, continuando pouco animado o comercial. O estado alimentício, conquanto não abundante por ter sido escassa a colheita do arroz, não oferecia, todavia, receio. A tranquilidade pública não havia sofrido alteração.”

O Boletim n.º 27, de 6 de julho, insere o boletim sanitário de fevereiro de 1872, é extenso, alude às condições meteorológicas, ao vento predominante, ao estado do céu, nevoeiros nas manhãs, quais as doenças observadas na clínica hospitalar e na civil, há o movimento da população na freguesia de Nossa Senhora da Candelária, enuncia os batismos, os falecimentos e o estado de vacinação; dá-nos o quadro do mapa das doenças que foram tratadas no Hospital de Bissau e o resumo dos rendimentos das alfândegas de Bissau, Cacheu e Bolama.

Não se obtém mais informações sobre o ano de 1872, a não ser no Boletim seguinte, de 6 de julho, temos novamente o boletim sanitário, trata-se de fevereiro, muito afim ao anterior, irão aparecer mais, consideramos desnecessário a sua sucessiva citação. Na verdade, o que se diz no Boletim referente a fevereiro é que a febre lavra entre a população flutuante, caracterizada por dores articulares, semelhantes às do reumatismo, por dores nos ossos particularmente nas falanges, nos metacarpos e metatarsos, quanto ao mais temos o diagnóstico médico de mulheres indigentes, se houve ou não chuva, quais as doenças observadas e as doenças que foram tratadas no hospital militar de Bissau.

No Boletim Official n.º 4, de 25 de janeiro de 1873, diz-se que não há no território de Bolama o pessoal e mais condições necessárias para que ali funcione na plenitude a administração judicial na região. Neste mesmo Boletim, o Governador Geral manda executar uma igreja na vila de S. José de Bissau na importância de 9:000$00 réis.
Acontecimento histórico que se relata neste Boletim Official n.º 43, de 22 de outubro de 1870, a posse de Bolama por Portugal, estão presentes o Governador Geral, Caetano de Almeida e Albuquerque, representante britânico, J. Craig Loggie, secretariou o auto da posse o Segundo-Tenente da Armada Guilherme Augusto de Brito Capelo
Planta da Praça de Bissau, por Bernardino António d’Andrade, 1796
Máscara representando um búfalo, ilha de Uno, Bijagós, Museu Nacional de Etnologia, Lisboa

(continua)
_____________

Notas do editor

Post anterior de 16 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25847: Notas de leitura (1718): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, de 1870 a 1872) (16) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 19 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25859: Notas de leitura (1719): Breve história da evangelização da Guiné (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P25873: Manuel de Pinho Brandão: entre o mito e a realidade - Parte IV: Proprietário ou concessionário de terras ?






Guiné > Fulacunda > 5 de setembro de 1935 > Resposta do administrador da circunscrição de Fulacuna, Ernesto Lima Wahnom, ao chefe da Repartição Central dos Serviços de Administração Civil, sediada em Bolama.  

A vermelho, vem o parecer do chefe da repartição, José Peixoto Ponces de Carvalho (que entre maio e setembro de 1933, exerceu interinamente o lugar de Governador). O assunto acabou por ser submetido a despacho do Governador... e não sabemos qual o desfecho. 

O processo, de 10 folhas, é encabeçado por  um oficío, que a seguir reproduzimos, assinado por um adjunto do Ponces Carvalho, e dirigido ao Chefe da Repartição Técnica dos Serviços de Obras Públicas, Agrimensura e Cadastro. (É o documento mais antigo do proceesso, correspondendo à folha nº 1.)


Cópia do ofício, datado de Bolama, 26 de setembro de 1935, assinado por António Pereira Cardoso, por delegação do Chefe da Repartição Central dos Serviços de Administração Civil, dirigido ao Chefe da Repartição Técnica dos Serviços de Obras Públicas, Agrimensura e Cadastro, e cujo teor se transcreve:

"A fim de solucionar conflitos que surgem a cada momento, entre proprietários e concessionários e as autoridades administrativas, Sua Excia. o Governador incumbe-me de solicitar de V. Exª para apresentar ao mesmo Exmo. Senhor a informação de, se foram cumpridas as disposições do Diploma Legislativo nº 747, de 22 de fevereiro de 1933, e, bem assim, de proceder nos termos da lei". (Negritos nossos)


Citação: (1935-1935), Sem Título, Fundação Mário Soares / C1.6 - Secretaria dos Negócios Indígenas, Disponível HTTP: http://www.casacomum.org/cc/visualizador?pasta=10429.230 (2024-8-20)



1. Recorde-se o assunto em questão (*): o Manuel de Pinho Brandão, "maior, solteiro, proprietário e comerciante, residente em Bolama", vem junto da Repartição Central dos Serviços de Administração Civil pedir a restituição da importância proveniente da licença para extração de vinho de palma, que julga ter sido cobrada ilegalmente aos índígenas, manjacos,  colonos da sua propriedade, denominada "Belém", sita na circunscrição de Fulacunda.

Depois de uma informação aparentememnte favorável daqueles serviços, temos a resposta do administrador de Fulacunda, que resumimos a seguir:

(i) desconhecia se a dita propriedade era ou não uma "propriedade perfeita" (que na Guiné, nessa época, se confundia muitas vezes com os "baldios do Estado";

(ii) por essa razão mandou cobrar, ao chefe de posto do Cubisseque, "na defesa dos interesses do Estado", a competente licença de extração de vinho de palma;

(iii) os indígenas foram presos porque não procederam expontaneamento ao pagamento da licença;

(iv) o Manuel de Pinho Brandão não faz prova de que a propriedade era sua (confrontava de norte com o rio de Buba, e a sul, leste e oeste com baldios);

(v) os indígenas, para se furtarem ao pagamento da citada licença, "escond(ia)m-se nas chamadas propriedades dos supostos proprietários" e ofereciam resistência às autoridades;

(vi) O Diploma Legislativ nº 747, de 1933, dizia na última parte do seu artigo 2º: "sob pena de se promover à anulação dos respetivos registos prediais", o que seria aplicável a este caso;

(vii) o administrador julgava ter agido bem, na defesa dos interesses do Estado;

(viii) e, finalmente, deixava um remoque ao reclamante, que devia ser seu conhecido (naquele tempo eram poucos os colonos, comerciantes e funcionários civis): 

"Quanto à emigração dos indígenas para a vizinha colónia francesa, devo informar V. Excia. que é uma história muito antiga, que muitos nesta terra se servem para explorar a credulidade do Governo da Colónia".

O Brandão (ou o seu advogado), na sua reclamação,  pedia também a defesa dos interesses dos "indígenas,   que muito tem custado para se ali conservar, pois seus desejos só são seguir para a colónia vizinha, aonde já têm seus bastantes parentes" (sic)  



Excerto da reclamção do Manuel de Pinho Brandão


2. A tinta vermelha, o Chefe da Repartição anotou, no cabeçalho do ofício:

 "Chame-se a atenção do comerciante Pinho Brandão para os art. 1º e 2º do D. L. nº 747, de 22-2-933, sem o que a sua reclamação não pode ser atendida. Diga-se aos Serv. de Agrimensura para  apresentação ou (ilegível),  por uma ordem,  a informção se foram cumpridas as disposições do D. L. 747 e proceder nos termos da lei. 26-9-1935. (Assinatura ilegível)".

Nessa altura era Governador da Guiné o oficial do exército Luís António de Carvalho Viegas. "Enquanto governador da Guiné Portuguesa, deslocou-se à metrópole em 10 de maio de 1933, deixando como encarregado do governo da Guiné, José Peixoto Ponces de Carvalho que se manteve nessas funções até setembro desse ano, altura em que Viegas regressou".

Ainda não conseguimos consultar o Diploma Legislativo nº 747, de 22 de fevereiro de 1933. Mas parece haver aqui um confito entre duas figuras jurídicas, a "propriedade" e a "concessão"... Dez anos depois, os interesses do Manuel de Pinho Brandão concentram-se na Região de Tombali (Catió) e não na Região de Quínara (Fulacunda).  Ali conseguiu várias concessões de terrenos (no setor de Catió, incluindo a ilha do Como). 

Graças ao desenvolvimento da cultura do arroz, Catió tornou-se uma terra próspera, elevada em 1942 ao estatuto de circunscrição, enquanto Fulacunda decaiu. (Curiosamente, Catió foi criada por um antigo degredado, Abel Gil de Matos, natural de Aldeia Galega do Ribatej0, hoje Montijo, condenado em 1913 pelo tribunal da comarca a 6 anos de prisão maior celular ou, em alternativa, a 9 anos de degredo.) (***)

Continuem, entretanto, muitos outros aspetos da vida de Manuel de Pinho Brandão, por esclarecer, e nomeadamente o seu início e o seu fim... Há diversos mitos, de que o nosso blogue se tem feito eco, entre eles o de ter colaborado com o PAIGC (ele, e alguns membros do seu clã). Nem sequer sabemos, ao certo, se era um degredado, nem quantos anos tinha quando se instalou na Guiné.

______________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 22 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25870: Manuel de Pinho Brandão: entre o mito e a realidade - Parte III (Reclamação apresentada, em 1935, ao Chefe da Repartição Central dos Serviços de Administração Civil, Bolama)

(**) Vd. poste de 21 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25863: Manuel de Pinho Brandão: entre o mito e a realidade - Parte II (J. L. Mendes Gomes / Victor Condeço, 1943-2010)

Guiné 61/74 - P25872: II Viagem a Timor: janeiro / junho de 2018 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte XI: um futuro promissor, com mais de 60% da população abaixo dos 30 anos


Timor Leste > Liquiçá > Manati > Boebau > 2023 > Rui Chamusco e Gaspar Sobral no recreio com os miúdos da ESFA (Escola de São Francisco de Assis)

Foto © Rui Chamusco (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




1. Rui Chamusco partiu para Timor, em 25 de janeiro de 2018. Foi companheiro de viagem o seu amigo luso-timorense Gaspar Sobral. Ambos são cofundadores e dirigentes da ASTIL (Associação dos Amigos Solidários com Timor-Leste), criada em 2015, com sede em Coimbra.

De Timor Leste o Rui mandou-nos na altura as crónicas dessa viagem (a segunda, de cinco já feitas, de 2016 a 2024). Achámos agora oportuno e relevante publicar no nosso blogue uma seleção. Elas ajudam-nos a perceber melhor a idiossincrasia timorense, a história recente e passada deste povo a que nos ligam laços linguísticos, culturais e afetivos.

O Rui é membro da nossa Tabanca Grande desde 10 de maio último. Natural da Malpaca, Sabugal, vive na Lourinhã onde durante cerca de 4 décadas foi professor de música no ensino secundário. Em Timor, o Rui tem-se dedicado de alma e coração aos projetos que a ASTIL tem lá desenvolvido, nas montanhas de Liquiçá, e nomeadamente a Escola de São Francisco de Assis, em Manati / Boebau, frequentada por cerca de 150 crianças locais.

Em Dili ele costuma ficar em Ailok Laran, bairro dos arredores,  na casa do Eustáquio (alcunha do João Moniz) , irmão (mais novo) do Gaspar Sobral,

Recorde-se algumas datas da nossa história comum:

  • os portugueses chegaram a Timor no início do século XVI no âmbito das suas navegações globais;
  • a primeira referência à ilha é atribuída ao capitão de Malaca em carta de 1514 para o Rei D. Manuel:
  • a partir do fim do século XVII Portugal começou a nomear governadores de Timor, dependentes do Vice-rei da India;
  • em meados do século XIX Timor passou a ter o estatuto de colónia portuguesa que manteve até 1975;
  • no final de 1975 a Indonésia invade e ocupa o território, anexando-o no ano seguinte como sua vigésima sétima província; 
  • a 30 de agosto de 1999 a população de Timor votou em referendo a favor da independência; o país esteve então sob administração transitória das Nações Unidas;
  • a 20 de maio de 2002 é formalmente proclamada a independência de Timor-Leste na presença dos Chefes de Estado de Portugal e Indonésia; nesta data  é reconhecida internacionalmente a independência de Timor-Leste. (Fonte: adapt. de  República Portuguesa > Portal do Governo > Portal Diplomático  > Timor Leste) (com a devida vénia...)


II Viagem a Timor: janeiro / junho de 2018 (Rui Chamusco, ASTIL)

Parte XI - Um futuro promissor


Dia 20.05.2018,  domingo - Restauração 
da Independência...


É uma data que não se esquece, até por que a memória ainda está muito fresca.

E neste dia logo de manhã anunciado pela música que se fazia aqui ouvir, convém que, mesmo em clima de festa, se recorde o passado, se viva o presente e se prepare o futuro. 

Mas quem sou eu para fazer comentários ou considerações? Por mais que me digam que tenho alma timorense, o corpo não engana. Sou um malaio, um estrangeiro que vem de fora e que pouca ou nenhuma autoridade moral tem para falar de um povo, de Timor Leste. Por isso tudo o que eu disser terá um valor relativo. No entanto, não quero deixar de dar o meu contributo com esta análise que me é dado fazer no dia de hoje.

Timor Leste é um jovem país independente 
que  depois de se libertar do domínio português e da opressão indonésia está dando passos gigantes no caminho da sua autonomia e independência. O seu crescimento demográfico leva-nos a ter esperança de que este não voltará atrás, apesar das crises de qualquer crescimento. A sua grande riqueza são as pessoas, sobretudo os jovens. Mais de sessenta por cento da sua população tem menos de trinta anos.

Edgar Morin, sociólogo francês, já nos anos 80 dizia que há três grandes fatores para o desenvolvimento de um país, de uma região, de uma terra, a saber: escolas, fábricas e igrejas.

 Se olharmos para a realidade timorense constatamos que existe uma razoável rede escolar, que há bastantes igrejas, mas as fábricas são quase inexistentes. O país está muito dependente dos outros (sobretudo Indonésia e China) naquilo que diariamente consome. No entanto toda a gente sabe que Timor Leste é um país rico graças aos recursos naturais e particularmente o petróleo.


Dia 23.05.2018, quarta feira - um estilo de vida diferente


Para nós ocidentais, há comportamentos e estilos de vida destas gentes que podemos estranhar e até nos podem incomodar. O modo de encarar as coisas é bem diferente do nosso: pontualidade, marcação de encontros, ausências... nada disto tira a calma a um timorense. Por tudo e por nada se falta à escola, por tudo e por nada se chega atrasado, por tudo e por nada se desmarca um encontro.

 Razão tinha o amigo D.Basílio do Nascimento quando dizia: “ O timorense pega na guitarra e vai vender bananas ao mercado. Á sombra da bananeira vai tocando a viola enquanto espera os compradores. Se vende, tudo bem. Se não vende, come a banana, toca a guitarra, volta para casa e tubo bem também.”

É esta filosofia de vida que nós ocidentais perdemos ou nunca tivemos. Será bom, será mau? O que é certo é que nós estranhamos e custa a habituar-mo-nos. Até nem sei se serei capaz de viver com estes padrões. Mas como quem chega é que tem de se aculturar  não nos resta senão “comer e engolir”. E quem não está bem que se mude. 

Agora imaginem quando o cenário é ao contrário: um timorense que, em Portugal, na Suíça ou noutro país onde o contra relógio é rei, o esforço que terá de fazer para se adaptar. Por isso nada de julgamentos antecipados. O respeito mútuo é muito lindo...




O "malaio" Rui Chamusco
 e o luso-timorense Gaspar Sobral.
 Foto: LG (2017)

Dia 24.05.2018, quinta feira - E agora, Gaspar ?!...


Hoje o Gaspar conseguiu o que queria. Foi recebido pelo Reitor da UNTL (Universidade Nacional de Timor Leste) e, segundo ele nos diz, tem a porta aberta para no próximo ano letivo dar aulas neste estabelecimento de ensino.

E agora? Imagino o seu dilema interior: “Venho ou não venho? Aceito ou não aceito? Em todo o caso ele vai apresentar por escrito as suas pretensões e só depois, já com o contrato formalizado, se poderá dizer se vai ou não vai lecionar as disciplinas que pretende que, a meu ver, terão de ser disciplinas em que ele possa falar muito e à vontade. O Gaspar é um homem muito culto e sabe demais. Por isso, atenção alunos porque quando ele liga o motor nunca mais ninguém o para...

Quanto a mim, só vendo é que acredito. Já me vou habituando a perceber que nem tudo o que agora se diz terá força de lei. Poderá ser, e poderá não ser. Veremos...

Mas fico contente que o meu camarada tenha conseguido o que há muito tempo sonhava. Avante
camarada, avante!...


Dia 25.05.2018, sexta feira  - Inocência...curiosidade...  ou outra coisa qualquer



O tempo de “não fazer nada” dá para tudo. Aqui estamos nós, em Ailok Laran, à espera de que o tempo passe até fazermos pequenas coisas: ir à cidade, ir a Liquiçá, ir a Boebau, e ir para Portugal. 

Já disse anteriormente que os nossos relógios não são iguais. Esta gente não tem pressa de nada. E por isso, o que para eles é normal para nós, os apressados ocidentais, é impaciência, nervosismo, preocupação. O que se não fizer hoje faz-se amanhã. O que é preciso é manter a calma, o que nem sempre é fácil para quem pensa o contrário:”Não deixes para amanhã o que podes fazer hoje.

Hoje ao mata bicho, pequeno almoço, a conversa derivou para relatos de episódios hilariantes. O Eustáquio, que esteve quase dois anos ao serviço dos médicos sem fronteiras como chauffer, contou-nos que durante muito tempo estranhou um certo material que as senhoras francesas traziam consigo. Algo parecido com um cigarro de filtro, com um fio para puxar. Intrigado durante dias com aquele objeto estranho, decidiu perguntar à senhora o que era aquilo, ao que ela lhe respondeu: “não posso dizer”. 

O Eustáquio veio depois a saber que o tal objeto estranho fazia parte da higiene íntima das senhoras. Fartámo-nos de rir, e ele também, alguém comentando a seguir: ”tiveste uma sorte!... Fumador como tu és, olha se te dava para chupares o dito cigarro?!...

Inocentes são as crianças. Nós, os mais crescidos, parece-me que é mais a curiosidade ou outra coisa qualquer, por exemplo malandrice.


Dia 26.05.2018, sábado  - Lágrimas pela Prety...


Esta vai custar a digerir...

Prety é (era) a cadela cá de casa, que em fevereiro passado foi mãe de cinco lindos cachorros e dos quais só o mais pequeno sobrevive. Agora que já estava refeita dos achaques da maternidade, desapareceu para sempre, segundo convicção geral. 

Morreu? Não, mataram-na!... E venderam a sua carne para consumo. A Adobe e a Eza choram inconsoláveis, mas foi este o destino deste canídeo.

Então é assim. A invasão indonésia trouxe consigo muita coisa boa e algumas coisas más. O consumo da carne de cão, por mais repugnância que tenhamos, é um hábito nestes países sul asiáticos. Pelos vistos este costume veio para ficar, aqui em Timor. 

Verifica-se que a carne de cão tem um preço e apreço elevado. Não é para todas as bolsas nem para o comum dos mortais. Há restaurantes referenciados que fazem deste prato uma iguaria muito procurada.

Estão mesmo a ver no negócio em que isto se transformou. Cão que se distraia tem os dias contados. Há caçadores de cães furtivos, mas especializados em técnicas de captura e de morte. Aqui todos sabem quem é o prevaricador. Até lhe chamam “Naok ten Asu” (ladrão de cão) e “Asu Ulun” (cabeça de cão), mas ninguém ousa denunciá-lo até porque têm medo dele, e pena pois dizem que é pai de duas crianças deficientes. 

Ou seja, “come e cala”  mesmo que sintas muita pena dos teus “fiéis amigos”. E, já agora, aqui fica a técnica da apanha de cães: preparam um balde com carne lá dentro, circundam a abertura do balde com um laço, sobem para uma árvore com o fio, e quando o animal meter a cabeça à procura do alimento, puxam o artefacto que fica logo degolado. Nem ai nem ui, o vivo passa de imediato a morto.

E agora, em jeito de comentário: Como se pode ser tão cruel para com um animal que nos olha nos olhos, nos faz festas e meiguices, cujo epíteto é a fidelidade ao dono? Deus nos livre!... E Deus lhes perdoe...



Dia 28.05.1018,  segunda feira - Olha a chibinha, mé...mé...mé...


Quem já conhece Timor ou outros países similares da Ásia, da África ou da América com certeza que já se deu conta do tipo de transportes terrestres que por cá podemos encontrar. Motores (motorizadas, táxis, microletes e angunas) são os mais comuns. 

As microletes, veículos pelos quais tenho enorme simpatia pois é o transporte de todos e particularmente dos mais pobres, têm uma versão maior que em Timor chamam “ Bis “ e internacionalmente Bus, destinados a transportes de maior percurso. 

Durante o dia e a qualquer hora na cidade de Dili, é um ver se te avias para apanhar o “bis” desejado. Quem tiver paciência para tal e possa observar o fenómeno, vai dar-se conta da quantidade e variedade de passageiros e seus pertences que, de forma mais ou menos organizada (o que interessa é que todos possam viajar) circula por estas estradas.

Hoje, enquanto esperávamos pelo Gaspar, tive a oportunidade de me manter ocupado observando o trânsito que passava em frente do Timor Plaza. E eis que avisto um “Bis” com algo insólito sobre o seu telhado: Uma cabra ou chiba toda airosa e de pé, cabeça ao vento, como se fosse ela a controlar a situação. Sem qualquer esforço de equilíbrio, mantinha-se altiva e desafiadora, como a querer dizer-nos: “Eh pá! Isto aqui é que é bom!...”

Não sei é qual foi o destino deste caprino. Dote de casamento? Faca e garfo? Talvez continue a sua vida nas mãos de outro dono e noutra região. Talvez um dia nos voltemos a ver ou encontrar. Que sejas feliz. irmã cabra (bibi)!...



Dar flor, dar fruto e... morrer


Mais uma lição de vida. A caminho de Maubara, a paisagem é dominada pelas palapeiras, uma árvore da família das palmeiras que tem uma particularidade: só dá flor uma vez na vida, da qual nascem alguns frutos, e a seguir seca...morre. 

Esta árvore que enquanto só dá ramos e folhas é tão utilizada para colmos das casas e para confeção de algum artesanato local, tem esta nobre missão: florir, dar fruto e morrer, de pé, porque como declamava a nossa Palmira Bastos já na fase final da sua vida artística “ As árvores morrem de pé!”.

No imenso palapal que acompanha a estrada de Liquiçá para Maubaura são muitas e muitas heroínas, que já mortas ou quase mortas imperam na paisagem junto ao mar, como que a querer dizer-nos adeus e a lembrar-nos de que a vida é assim. 

Nascer, viver, dar frutos e morrer vale a pena, porque se assim não fosse a vida não se renovava, o devir não acontecia. “Se o grão de trigo não for lançado à terra e não apodrecer não poderá dar o seu fruto”. Todos nós somos grãos de trigo.

(Continua)

(Seleção, alguns dos substítulos, revisão / fixação de texto, negritos: LG)

_______________

Nota do editor:

Último poste da série > 19 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25858: II Viagem a Timor: janeiro / junho de 2018 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte X: "Obrigadu, malae" João Crisóstomo!

Guiné 61/74 - P25871: Parabéns a você (2303): Fernando Cepa, ex-Fur Mil Art da CART 1689 / BART 1913 (Catió, Cabedú, Gandembel e Canquelifá, 1967/69)

_____________

Nota do editor

Último post da série de 22 de Agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25865: Parabéns a você (2302): José Luís Vacas de Carvalho, ex-Alf Mil Cav, CMDT do Pel Rec Daimler 2206 (Bambadinca, 1969/71)

quinta-feira, 22 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25870: Manuel de Pinho Brandão: entre o mito e a realidade - Parte III (Reclamação apresentada, em 1935, ao Chefe da Repartição Central dos Serviços de Administração Civil, Bolama)

 







Guiné > Bolama > 1935 > Repartição Central dos Serviços de Administração Civil - 4ª secção: Negócios Indígenas. Informação: Assunto - Refere-se ao pedido de restituição da importância proveniente da licença para extração de vinho de palma, que julga ter sido cobrada ilegalmente aos índígenas,  colonos da sua propriedade. Informação, datada de Bolama, 27 de julho de 1935. Assinatura ilegível.

Citação:(1935-1935), Sem Título, Fundação Mário Soares / C1.6 - Secretaria dos Negócios Indígenas, Disponível HTTP: http://www.casacomum.org/cc/visualizador?pasta=10429.230 (2024-8-20)


1. Não percebo nada de direito administrativo colonial... Nem sequer alguma vez li o Acto Colonial de 1933 (mas hoje tive que o ler, está aqui disponível em formato pdf, no sítio da Assembleia da República). O artº 3º é taxativo: "Os domínios ultramarinos de Portugal denoninam-se colónias e constituem o Império Colonial Português". 

O Pacto Colonial (Decreto-Lei nº 22 465, de 22 de abril de 1933) tem apenas 47 artigos. Retive estes:



A leitura do Pacto Colonial deve ser complementada pela da Carta Orgânica do Império Colonial Português.

Segundo entrada na Wikipedia, "o Acto Colonial definiu durante muito tempo o conceito ultramarino português, tendo sido revogado na revisão da Constituição portuguesa feita em 1951, que o modificou e integrou no texto da Constituição.

"Com a revisão constitucional de 1951, a visão imperalista foi teoricamente abandonada, sendo substituída por uma estratégia que visava a assimilação civilizadora das colónias à metrópole, com o objectivo final de criar uma nova ordem política, que podia ser a integração total, autonomia, federação, confederação, etc. Reflectindo esta nova visão teórica, as colónias passaram a designar-se por 'províncias ultramarinas' ".

2. Em 1935, o Manuel de Pinho Brandão já estava na colónia da Guiné, como se infere da reclamação que ele apresentou ao Chefe da Repartição Central dos Serviços de Administração Civil, com sede  em Bolama.

Na reclamação,que já reproduzimos em poste anterior (*), ficamos a saber que:

 (i) o Manuel de Pinho Brandão era maior, solteiro, proprietário e comerciante, residente em Bolama (então a capital); 

(ii) era dono e senhor de uma propriedade rústica denominado "Belém", na área da circunscrição civil de Fulacunda,  região de Quínara, exercendo legítima e legalmente o comércio com os indígenas da propriedade, a quem concedia regalias na agricultura e exploração dentro dela;

(iii) o reclamente insurge-se contra a cobrança de imposto de extração de vinho de palma ("licença de furação") a indígenas manjacos, que ele trouxera consigo há vários anos atrás, e  que, com a sua autorização, praticavam esta atividade na sua propriedade para consumo exclusivamente próprio;

(iv) o administrador de Fulacunda mandou-lhes cobrar, indevidamente, o imposto na importância de 760$00 (talvez mais de 500 euros, a preços de hoje):

(v) além disso, terá usado e abusado da sua autoridade, mandando prender e conduzir ao posto de Empada aqueles indígenas;

(vi) pede. por fim, que sejam "restituídos aos indígenas interessados os escudos 760$00 para o bom nome das autoridades administrativas e para o bem geral da colónia" (sic).


3. Um funcionário da 4ª secção (Negócios Indígenas) da Repartição Central  dos Serviços de Administração Civil, dá um parecer em que arrasa o administrador de Fulacunda: a comprovarem-se os factos alegados pelo requerente, o administrador de Fulacunda (na altura teria violado a lei (Código Civil, artºs. 2167 e 2187; Carta Orgânica do Império Colonial Português, artºs.231, 232 e 233).

Era chefe da Repartição José Peixoto Ponces de Carvalho. E o administrador de Fulacunda era o Ernesto Lima Wahnon (cuja resposta ao chefe da repartição publicaremos em próximo poste.)

PS - O Ernesto Lima Wahnon terá nascido na Praia, Santiago, Cabo Verde, em 1895.

__________________

Nota do editor:

(*) Vd. poste anterior da série > 21 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25863: Manuel de Pinho Brandão: entre o mito e a realidade - Parte II (J. L. Mendes Gomes / Victor Condeço, 1943-2010)