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sexta-feira, 30 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25895: Manuel de Pinho Brandão: entre o mito e a realidade - Parte VI: "Conhecido comerciante e grande proprietário", dono de um dos melhores "sobrados" de Bolama nos anos 30 (António Estácio, "Bolama, a saudosa...", 2016)





Fonte: Estácio (2012) (*)


1.  Se não fosse a Op Tridente, que celebrizou a "Casa Brandão" e o seu antigo dono (**), não estaríamos para aqui hoje, sessenta anos depois (!), às voltas com o fantasma do Manuel de Pinho Brandão (**), cuja fama tem um ângulo de 360º: tanto foi considerado como um grande colono (e, aos olhos do PAIGC, um famigerado "colonialista", terror dos balantas da ilha do Como) como um "turra", um colaboracionista, que as autoridades portuguesas, a seguir ao início da guerra, terão condenado à expulsão do território).

Camaradas nossos que participaram na operação de reocupação da ilha do Como, em jan-mar de 1964, já deram aqui o seu testemunho (**):

(i) Mário Dias:

(...) Na ilha não existia qualquer autoridade administrativa nem força militar pelo que o PAIGC a ocupou (não conquistou) sem qualquer dificuldade em 1963.

 (...) Não tinha estradas. Apenas existia uma picada que ligava as instalações do comerciante de arroz, Manuel de inho Brandão (na prática, o dono da ilha) a Cachil.

A partir desta localidade o acesso ao continente (Catió) era feito de canoa ou por outra qualquer embarcação. A casa deste comerciante era, se não estou em erro, a única construída de cimento e coberta a telha.

Portugal não exercia, de facto, qualquer espécie de soberania sobre a ilha. Tornava-se imperioso a recuperação do Como. 

(...) Meses antes, já a aviação havia attuado na ilha bombardeando e destruindo todas as instalações que pudessem ser proveitosas ao IN. Recordo-me ainda de assistir no QG em Santa Luzia, onde ocasionalmente me encontrava, aos protestos do referido Brandão por lhe terem escavacado tudo quanto possuía no Como. (...)

(...) Um dos pontos que pretendíamos dominar era a picada que, partindo das imediações da casa Brandão, seguia para Norte em direcção a Cassaca e Cachil.

arefa difícil pois o inimigo tinha instaladas à entrada da mata metralhadoras no enfiamento da picada. No dia 23 o grupo de comandos reforçado com uma secção da CCAV 488 e uma secção de fuzileiros dirigiu-se ao local para tentar alcançar e destruir as metralhadoras.

Escondidos na casa Brandão, fomos progredindo de um e outro lado do ourique. Porém, ao chegarmos junto ao rio que atravessa a bolanha tínhamos que subir para o ourique e passar por umas tábuas que faziam de ponte. Como era de esperar, as metralhadoras entraram em funcionamento. Zás. Tudo a saltar de novo para o desnível do ourique. (...)

(ii) Armor Pires Mota:

(...) Como, 16 de janeiro de 1964

(...) Ali, em Cauane, não havia um poço sequer. Só mais longe, a uns trezentos metros, junto à casa do tal Brandão, o único branco que ali vivera, há tempos, onde montara os seus negócios e fizera fortuna.

Ele casara com a filha da rainha dos Bijagós e vivia agora em Catió. O filho, que diziam ter morrido, andara com os terroristas, o Chiquinho. (...).



 2. Mas, nos anos 30, o nosso homem vivia em Bolama, a capital, como de resto lá vivia a elite colonial da época, os funcionários públicos, os missionários, a escassa tropa e os comerciantes (europeus, cabo-verdianos e libaneses).

Ninguém sabe quando aportou à Guiné. Talvez desterrado, no tempo da República. Sendo de Arouca, logo, um "serrano", do interior do Portugal profundo, era muito pouco provável que se tivesse metido em encrencas, de natureza política. 

A ter sido deportado, tê-lo-á sido por algum crime de delito comum, como por exemplo o Abel Gil de Matos, o fundador de Catió, (Natural de Aldeia Galega do Ribatej0, hoje Montijo, foi condenado em 1913 pelo tribunal da comarca a 6 anos de prisão maior celular ou, em alternativa, a 9 anos de degredo.)

Tant0 um como outro, o Brandão e o Matos, figuram, no anuário da Guiné de 1946, como  grandes concessionários de terras, no sul da colónia, mais exatamente na circunscrição de Catió, o grande celeiro do território...  Estamos a falar de centenas de hectares...


(Bissau, 1947-Algueirão, Sintra 20222)


Mas voltemos a Bolama... Talvez ninguém como o nosso amigo e camarada António Estácio (1947-2022) tenha amado tanto Bolama. A prova é o último livro que publicou, em vida, em edição de autor, "Bolama, a saudosa..." (2016, 496 pp.) (*)

Embora tenha nascido em Bissau, em 1947,  em "chão de papel",  e estudado no liceu Honório Barreto, fez a esc0la primária, nos anos cinquenta,  em Bolama, onde a mãe foi professora primária e o pai, transmontano, encarregado de obras municipais . 

Com base na Planta Topográfica da Cidade de Bolama ( à escala 1/2000, levantada nos anos de 1920/21 pelo cor eng José Guedes Quinhones) e outras fontes documentais (como o Anuário da Guiné Portuguesa de 1946), o engº técnico agrário António Júlio Emerenciano Estácio elaborou um precioso "croquis" da sua amada Bolama.

É a partir destes documento, que ficamos a saber que, na Rua João Marques de Barros, perpenmdicular à Rua Sá da Bandeira, se destacava o grande 'sobrado' (casa de 1º andar, de estilo colonial), mandado construir pelo conhecido comerciante e grande agricultor (sic), Manuel de Pinho Brandão, em cujo rés de chão se situava a loja  de Júlio Lopes Pereira, respeitável cidadão e  referência da cidade... (*).

Ali à volta da Praça Infante Dom Henrique e do Mercado, situavam-se as principais casas comerciais da colóniua: a Gouveia, Saad, Pinto, Carlos Gomes, Pintozinho, Duarte, Guedes, Almeida, Manuel Simóes Marcelino, Santos Marques, Nunes Correia, António dos Santos Teixeira, etc.

3. Acerca do Manuel de Pinho Brandão, sabemos adicionalmente que:

 (i) residia em Bolama em 1935,    e  era solteiro;

(ii) tinha diversas concessóes de terras na região de Tombali, circunscrição de Catió, a par de outros negociantes e produtores de arroz, como o Álvaro Boaventura Camacho, o Abel Gil de Matos, o Benjamim Correia, etc.;

(iii) O gerente do BNU, em Bolama, fez-lhe o retrato-robô, em relatório para Lisboa (onde falava dos "caloteiros" do banco): (...) "Manuel de Pinho Brandão – É, francamente, má a moralidade deste indivíduo e citaram-na, decerto por mero lapso, como 'boa'. Só por um muito infeliz acaso não se encontra a ferros para toda a vida.” (...); (*****)

(iv) diz-ser que era natural de Arouca, deportado, irmão do Afonso Pinho Brandão (este, dono da embarcação "Arouca", capturada pelo PAIGC em março de 1963, a par do navio "Mirandela", da Casa Gouveia);

(v) seria tio paterno da nossa amiga Gilda Pinho Brandão;

(vi) niinguém sabe quando nasceu nem onde nem quando morreu;

(vii) não há nenhum retrato dele...

____________

Notas do editor:


(*)  
Vd. poste de 14 de abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9745: Memória dos lugares (179): A saudosa Bolama (António Estácio / Patrício Ribeiro)


(****) Vd. postes de:

20 de maio de 2016 > Guiné 63/74 - P16112: Agenda cultural (478): Sessão de lançamento do novo livro do lusoguineense António Júlio Estácio, "Bolama, a saudosa...", Lisboa, Palácio da Independência, dia 25, às 18h00 - Resumo da obra: parte I

21 de maio de 2016 > Guiné 63/74 - P16115: Agenda cultural (479): Sessão de lançamento do novo livro do lusoguineense António Júlio Estácio, "Bolama, a saudosa...", Lisboa, Palácio da Independência, dia 25, às 18h00 - Resumo da obra: parte II

 (*****) Vd. poste de 28 de setembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19052: Notas de leitura (1104): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (53) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 23 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25873: Manuel de Pinho Brandão: entre o mito e a realidade - Parte IV: Proprietário ou concessionário de terras ?






Guiné > Fulacunda > 5 de setembro de 1935 > Resposta do administrador da circunscrição de Fulacuna, Ernesto Lima Wahnom, ao chefe da Repartição Central dos Serviços de Administração Civil, sediada em Bolama.  

A vermelho, vem o parecer do chefe da repartição, José Peixoto Ponces de Carvalho (que entre maio e setembro de 1933, exerceu interinamente o lugar de Governador). O assunto acabou por ser submetido a despacho do Governador... e não sabemos qual o desfecho. 

O processo, de 10 folhas, é encabeçado por  um oficío, que a seguir reproduzimos, assinado por um adjunto do Ponces Carvalho, e dirigido ao Chefe da Repartição Técnica dos Serviços de Obras Públicas, Agrimensura e Cadastro. (É o documento mais antigo do proceesso, correspondendo à folha nº 1.)


Cópia do ofício, datado de Bolama, 26 de setembro de 1935, assinado por António Pereira Cardoso, por delegação do Chefe da Repartição Central dos Serviços de Administração Civil, dirigido ao Chefe da Repartição Técnica dos Serviços de Obras Públicas, Agrimensura e Cadastro, e cujo teor se transcreve:

"A fim de solucionar conflitos que surgem a cada momento, entre proprietários e concessionários e as autoridades administrativas, Sua Excia. o Governador incumbe-me de solicitar de V. Exª para apresentar ao mesmo Exmo. Senhor a informação de, se foram cumpridas as disposições do Diploma Legislativo nº 747, de 22 de fevereiro de 1933, e, bem assim, de proceder nos termos da lei". (Negritos nossos)


Citação: (1935-1935), Sem Título, Fundação Mário Soares / C1.6 - Secretaria dos Negócios Indígenas, Disponível HTTP: http://www.casacomum.org/cc/visualizador?pasta=10429.230 (2024-8-20)



1. Recorde-se o assunto em questão (*): o Manuel de Pinho Brandão, "maior, solteiro, proprietário e comerciante, residente em Bolama", vem junto da Repartição Central dos Serviços de Administração Civil pedir a restituição da importância proveniente da licença para extração de vinho de palma, que julga ter sido cobrada ilegalmente aos índígenas, manjacos,  colonos da sua propriedade, denominada "Belém", sita na circunscrição de Fulacunda.

Depois de uma informação aparentememnte favorável daqueles serviços, temos a resposta do administrador de Fulacunda, que resumimos a seguir:

(i) desconhecia se a dita propriedade era ou não uma "propriedade perfeita" (que na Guiné, nessa época, se confundia muitas vezes com os "baldios do Estado";

(ii) por essa razão mandou cobrar, ao chefe de posto do Cubisseque, "na defesa dos interesses do Estado", a competente licença de extração de vinho de palma;

(iii) os indígenas foram presos porque não procederam expontaneamento ao pagamento da licença;

(iv) o Manuel de Pinho Brandão não faz prova de que a propriedade era sua (confrontava de norte com o rio de Buba, e a sul, leste e oeste com baldios);

(v) os indígenas, para se furtarem ao pagamento da citada licença, "escond(ia)m-se nas chamadas propriedades dos supostos proprietários" e ofereciam resistência às autoridades;

(vi) O Diploma Legislativ nº 747, de 1933, dizia na última parte do seu artigo 2º: "sob pena de se promover à anulação dos respetivos registos prediais", o que seria aplicável a este caso;

(vii) o administrador julgava ter agido bem, na defesa dos interesses do Estado;

(viii) e, finalmente, deixava um remoque ao reclamante, que devia ser seu conhecido (naquele tempo eram poucos os colonos, comerciantes e funcionários civis): 

"Quanto à emigração dos indígenas para a vizinha colónia francesa, devo informar V. Excia. que é uma história muito antiga, que muitos nesta terra se servem para explorar a credulidade do Governo da Colónia".

O Brandão (ou o seu advogado), na sua reclamação,  pedia também a defesa dos interesses dos "indígenas,   que muito tem custado para se ali conservar, pois seus desejos só são seguir para a colónia vizinha, aonde já têm seus bastantes parentes" (sic)  



Excerto da reclamção do Manuel de Pinho Brandão


2. A tinta vermelha, o Chefe da Repartição anotou, no cabeçalho do ofício:

 "Chame-se a atenção do comerciante Pinho Brandão para os art. 1º e 2º do D. L. nº 747, de 22-2-933, sem o que a sua reclamação não pode ser atendida. Diga-se aos Serv. de Agrimensura para  apresentação ou (ilegível),  por uma ordem,  a informção se foram cumpridas as disposições do D. L. 747 e proceder nos termos da lei. 26-9-1935. (Assinatura ilegível)".

Nessa altura era Governador da Guiné o oficial do exército Luís António de Carvalho Viegas. "Enquanto governador da Guiné Portuguesa, deslocou-se à metrópole em 10 de maio de 1933, deixando como encarregado do governo da Guiné, José Peixoto Ponces de Carvalho que se manteve nessas funções até setembro desse ano, altura em que Viegas regressou".

Ainda não conseguimos consultar o Diploma Legislativo nº 747, de 22 de fevereiro de 1933. Mas parece haver aqui um confito entre duas figuras jurídicas, a "propriedade" e a "concessão"... Dez anos depois, os interesses do Manuel de Pinho Brandão concentram-se na Região de Tombali (Catió) e não na Região de Quínara (Fulacunda).  Ali conseguiu várias concessões de terrenos (no setor de Catió, incluindo a ilha do Como). 

Graças ao desenvolvimento da cultura do arroz, Catió tornou-se uma terra próspera, elevada em 1942 ao estatuto de circunscrição, enquanto Fulacunda decaiu. (Curiosamente, Catió foi criada por um antigo degredado, Abel Gil de Matos, natural de Aldeia Galega do Ribatej0, hoje Montijo, condenado em 1913 pelo tribunal da comarca a 6 anos de prisão maior celular ou, em alternativa, a 9 anos de degredo.) (***)

Continuem, entretanto, muitos outros aspetos da vida de Manuel de Pinho Brandão, por esclarecer, e nomeadamente o seu início e o seu fim... Há diversos mitos, de que o nosso blogue se tem feito eco, entre eles o de ter colaborado com o PAIGC (ele, e alguns membros do seu clã). Nem sequer sabemos, ao certo, se era um degredado, nem quantos anos tinha quando se instalou na Guiné.

______________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 22 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25870: Manuel de Pinho Brandão: entre o mito e a realidade - Parte III (Reclamação apresentada, em 1935, ao Chefe da Repartição Central dos Serviços de Administração Civil, Bolama)

(**) Vd. poste de 21 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25863: Manuel de Pinho Brandão: entre o mito e a realidade - Parte II (J. L. Mendes Gomes / Victor Condeço, 1943-2010)

quinta-feira, 20 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23723: Casos: a verdade sobre... (30): Pansau Na Isna, o "herói do Como" (1938 - 1970), entre o mito e a realidade - Parte I: Visto do lado de cá


Efígie de Pansau Na Ina (1938-1970), na nota de 50 pessos emitida em 1990 pelo Banco Central da Guiné-Bissau. Já agora, chamamos a atenção para o valor de cada nota, com a efigie dos heróis da Guiné-Bissau, a seguir à independência: o Domingos Ramos aparece na nota de 100 pesos, o Francisco Mendes (o Chico Tê) na de 500 pesos... O Amícar Cabaral deu a cara nas notas de 1000 pesos (1990), 5000 pesos (1993) e 10 mil pesos (1990)... O peso foi a moeda da Guiné-Bissau de 1975 até 1997, sendo então subtituido pelo franco CFA.


Guiné-Bissau > Bissau > Fortaleza da Amura (ou de São José da Amura> Talhões dos Heróis da Pátria, ao lado do Mausoléu de Amílcar Cabral > Túmulo do Pansau Na Isna  (1938-1970), o "herói do Como".

Foto (e legenda): © Luís Graça (2008). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


A Av Pansau Na Isna é uma das principais artérias da parte histórica, colonial, da cidade de Bissau. Em 20 de janeiro de 1975, a antiga Av Almirante Américo Tomás foi "rebatizada" pelo novas autoridades do país, passando a chamar-se Av Pansa Na Isna: é lá que se situa o hospital nacional Simão Mendes. 

O mesmo aconteceu com outros topónimos: (i) a Av República passou a designar-se por Av Amílcar Cabral); (ii)   a Av Governador Carvalho Viegas  é hoje a Av Domingos Ramos, e (iii) a Praça do Império, obviamente, teria que ser a Praça dos Heróis Nacionais.

Fonte: Adapt de António Estácio - "Nha Bijagó: respeitada personalidade da sociedade guineense (1871-1959)" (edição de autor, 2011, 159 pp., il,). Com a devida vénia..


Guiné > Bissau > c. 1960/70 > Vista aérea de Bissau. Ao centro, o Palácio do Governo e a Praça do Império. Bilhete Postal, Colecção "Guiné Portuguesa, 118". (Edição Foto Serra, C.P. 239 Bissau. Impresso em Portugal, Imprimarte - Publicações e Artes Gráficas, SARL). Coleção do nosso camarada Agostinho Gaspar.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2019).

Legenda:  1=Av República (depois de 1975, Av Amílcar Cabral); 2=Av Alm Américo Tomás (hoje, Av Pansau Na Isna); 3= Av Governador Carvalho Viegas (hoje, Av Domingos Ramos); 4=Praça do Império (hoje. Praça dos Heróis Nacionais)


1. Quem foi Pansau Na Isna (1938-1970) (*) 

Recordo-me de ter perguntado, nos primeiros anos do 3.º milénio, a um médico, guineense, meu aluno, filho de um antigo comandante da guerrilha, que actuou no Morés, entre 1963 e 1974, quem era o Pansau Na Isna, ou se sabia, mais exatamente, quem tinha sido.

  Sim, sei que é um dos nossos heróis nacionalistas, um dos nossos grandes combatentes da liberdade da Pátria. Era balanta.

– Sabe quando e onde morreu? E em que circunstâncias?

– Infelizmente, não sei…

O meu aluno estava a frequentar o curso de saúde pública, e não era seguramente balanta. Para a população, então ainda fracamente escolarizada,  da Guiné-Bissau , e sobretudo para os mais jovens, já sem  quaisquer memórias da luta pela independêbcia, o Pansau Na Isna seria apenas o nome de uma das principais avenidas da capital, Bissau (onde, por exemplo, a OMS tem a sua representação e onde fica o Hospital Nacional Simão Mendes, e a sede de diversas outras  organizações nacionais e estrangeiras).

Eu também não sabia na altura responder à pergunta, para vergonha minha… De facto, nunca tinha ouvido o nome dele, no meu tempo de Guiné, 1969/71; e a batalha do Como, onde se terá notabilizado, já havia ocorrido há meia dúzia de anos, em 1964, e ninguém sabia localizar, com precisão, no mapa, onde ficava essa ilha... Minto: tinha ouvido umas vagas "estórias" deste homem, que seria uma figura bizarra, vestindo-se à cobói e alvejando, com a sua Kalash, os helis dos tugas... Numa destas bravatas terá encontrado a morte... Claro, nunca consegui confirmar a "estória".

Foi através do episódio da série "A Guerra", que passou na RTP 1, no dia 18 de dezembro de 2007, que eu soube que o Pansau Na Isna era um dos três comandantes do PAIGG que combateram os portugueses, na Ilha do Como, durante a Op Tridente. Mas esta era outra versão, nova, para mim. Nunca voltei a ver este episódio, desde então.

De origem camponesa e de etnia balanta, lá teria  encontrado a morte, na ilha do Como. Ele e outro comandante. Percebi isso do depoimento do único sobrevivente dos três, cujo nome não retive.

Fiquei com a ideia de que o Pansau Na Isna terá sido morto pelos fuzileiros navais. Os seus restos mortais (?) repousam hoje, no Forte da Amura, ao lado  do mausoléu de Amílcar Cabral, e dos túmulos de outros míticos guerrilheiros Domingos Ramos e Titinha Silá. Esse mausoléu pelo menos eu vi-o com os meus próprios olhos, em Bissau, na Amura, em 7 de março de 2008, na primeira (e única vez) que voltei à Guiné.

Rapidamente este  guerrilheiro balanta tornou-se uma lenda. Foi, por exemplo,  tema (e título) de canção, criada e interpretada pelo popular conjunto musical, dos anos 70/80, Super Mama Djombo, no seu álbum Super Mama Djombo (2003, etiqueta: Cobiana). Muito acarinhado pelo regime de Luís Cabral (mas não pelo do seu sucessor), manteve-se vivo até hoje, apesar das muitas mudanças por que passou o país e a própria banda (Vd. aqui a sua página no Facebook).

Este grupo musical, sob a liderança inicial de Adriano Atchutchi, estilizou a música tradicional guineense e deu ao conhecer ao mundo (e às gerações mais novas da população da Guiné-Bissau), ao ritmo do estilo Gumbé, o que foi o sonho de Amílcar Cabral, a luta de libertação e a esperança dos guineenses no futuro... A origem do grupo remonta ao início dos anos 70...

 
Retomando o 9.º e último episódio da 1.ª Série do programa A Guerra (1):


Do lado português, bem gostaria de ter ouvido o testemunho do meu querido amigo e nosso camarada Mário Dias, que tem, no nosso blogue,  três notáveis textos sobre a Op Tridente. 

Joaquim Furtado e a sua equipa privilegiaram  os depoimentos dos militares portugueses de alta patente, a começar pelo homem, que comandou as nossas forças terrestres, o tenente-coronel Fernando Cavaleiro (1917-2012), coronel de cavalaria na reforma, entretanto já falecido. Na altura da Op Tridente era também o comandante do BCAÇ 490.

A justificação para a mobilização de vastos meios terrestres, aéreos e marítimos, numa operação de dois meses e tal (14 de Janeiro de 1964 a 24 de Março de 1964) teria a ver com a necessidade de impedir, ao PAIGC, a autoproclamação da República Independente do Como…

A ilha, o melhor, o conjunto de ilhas (Caiar, Como, Cantungo), era um intrincado puzzle de rias, braços de mar, bolanhas, lalas, ilhotas, floresta-galeria, tarrafo, de cerca de 200 Km, onde o PAIGC não teria mais do que 400 homens armados (300, segundo o Mário Dias), controlando no entanto uma vasta população e os seus recursos.

A ilha do Como era farta em gado e arroz, como muito bem frisou o almirante Ribeiro Pacheco. Talvez ainda mais importante, o Como era um ponto vital para as linhas de reabastecimento do PAIGC, dada a sua proximidade com a Guiné-Conacri. E o seu controlo afectava seriamente o reabastecimento das posições portuguesas na região de Tombali.

Outro oficial da Marinha entrevistado foi o comandante  José Luís Gouveia, dos Fuzileiros, que também participou na batalha do Como. Um dos mitos que caiu por terra era existência de bunkers, de cimento armado, onde os guerrilheiros do PAIGC se entrincheiravam e resistiam aos bombardeamentos da aviação e da marinha portuguesea. Não havia bunkers nenhuns… Dos meios navais, retive que eram compostos por uma Fragata (Nuno Tristão), 4 Lancha de Fiscalização, 4 LDP e 2 LDM.

'Nino' Vieira, que também foi entrevistado, era o comandante militar da Região da Sul, mas não participou directamente na batalha do Como, por se encontrar hospitalizado, na Guiné-Conacri, segundo percebi. Ora, ele é muitas vezes apresentado, indevidamente,  como o herói do Como: isso não corresponde à verdade histórica... 

A haver um herói - e os movimentos nacionalistas e os povos que lutam pela sua identidade, emancipação e liberdade precisam, historicamente, de heróis e de mitos - foi o Pansau Na Isna e os seus guerrilheiros-camponeses... 

'Nino' Vieira, de qualquer modo, terá sido, à distância, o principal responsável pela estratégia de defesa da Ilha do Como. Enfim, os louros da vitória (a havê-la, para um lado ou para o outro) terão que ser analisados e discutidos, com objectividade e rigor, pelos historiadores.

Ao que parece, em balanta, Pansau Na Isna (ou N'Isna) quererá dizer a tabanca que está a morrer. Pansau era muito próximo de Amílcar Cabral, mas analfabeto (isto é, sem qualquer grau de escolaridade formal). Também li algures que ele não morreu no Como, mas mais tarde, em Nhacra, em 1970, num bombardeamento da aviação portuguesa. 

A ter morrido em Nhacra, morreu como ele teria gostado de morrer: vestido de maneira excêntrica, cheio de roncos, de cores garridas, muito ao gosto dos balantas, segundo as versões mais ou menos fantasistas que há anos memorizei... Enfim, provavelmente é mais um lenda, tal como aconteceu com outros combatentes de um lado ou do outro ('Nino' Vieira, Marcelino da Mata, etc.).

De qualquer modo, a versão da morte do Pansau Na Isna em Nhacra, posteriormente à batalha do Como, não bate certo com o depoimento que ouvi no 9.º episódio do programa da RTP...

Na batalha do Como, o grande inimigo dos portugueses terá sido  a falta de água potável, as dificuldades de reabastecimento, as rações de combate, os mosquitos, o terreno… Muitos militares portugueses já não podiam com a intragável carne de vaca à jardineira, que faziam parte da invariável ementa das NT... Valeu-lhes, de alguma maneira, o suplemento de carne de vaca, porco e cabrito que abundava pela ilha, deixada para trás pelas populações em fuga,  estratégica ou não...

A G3, que fez a sua estreia em combate, também não se portou muito bem: era muito sensível, às poeira, à areia, etc... A densa floresta-galeria com árvores de grande porte, seculares, frondosas, tornou praticamente inofensivos os bombardeamentos da aviação portuguesa, à parte o terror que as nossas bombas inspiravam, sobretudo nas mulheres, crianças e velhos…

Por outro lado, os guerrilheiros cedo aprenderam a defender-se dos bombardementos, escondendo-se atrás de bagas-bagas. Alguém confirmou que foram utilizados aviões da NATO (F86 e PV2 e 2-5), operando a partir de Cabo Verde. Não ficou claro o uso de napalm. A FAP fez cerca de 850 missões, largou mais de mil bombas.

O PAIGC terá perdido 150 homens e 6 armas. O Mário Dias fala apenas em 7 dezenas de mortos confirmados. Os mais de 1200 militares regressaram a Bissau, depois da mais cara e mais longa operação, levada a cabo na Guiné-Bissau. Os oficiais portugueses entrevistadaos consideram-na como uma operação que teve um sucesso absoluto.

O PAIGC, por sua vez, transformou em mito a batalha do Como. Para Luís Cabral,  a Ilha do Como foi a primeira região libertada. Usando as clássicas tácticas da guerrilha, o PAIGC evitou afinal o confronto directo com as NT, pondo a sua população a recato.

Pelo lado do PAIGC também foi entrevistado o comandante Gazela, entretanto falecido, em Portugal. Também foi dado o testemunho do médico da CCAÇ 557, entretanto falecido, o Rogério Leitão (1935-2010), membro da nossa Tabanca Grande a título póstumo.

Segundo a Comissão para o Estudo das Campanhas de África (2014), o Pan Sau (sic) não seria mais do que um 2.º chefe ou adjunto:

(...) Situção > Forças inimigas (...)

Há notícias que referem:

- Ilha do Como - Chefe Saja e 2.° Chefe Pan Sau.

- Ilha de Catunco - Chefe Sumba Na Quedum, tendo como subchefe Imbali Na Noi e Sia Na Ba.

- Ilha de Caiar - Chefe Bacar Sambu (beafada), Abdu Sandem (beafada) e Ansumane Indjai (nalú). (...)

Fonte: Excertos de: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 6.º Volume - Aspectos da Actividade Operacional: Tomo II: Guiné: Livro 1. 1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2014, pp. 199/200.

Na segunda parte, veremos o ponto de vista de um "intelectual balanta" sobre esta figura lendária (para os balantas e para o PAIGC), prematuramente desaparecida, o Pansau Na Isna. (**)


2. Comentário de Pezarat Correia a este último episódio, o nono, da 1.ª série do programa RTP sobre a guerra colonial:

(...) Creio que chegou ao fim a 1.ª série do programa “A Guerra”, de Joaquim Furtado, na RTP 1. Estamos já em condições de fazer um primeiro balanço e penso que a “expectativa positiva” que registei no meu “Giro do Horizonte 6” de 17 Out, se justificou. O programa, no conjunto dos 9 episódios, merece-me um julgamento favorável.

Encerrou bem com a “Operação Tridente” na ilha do Como, T.O. da Guiné, em que o confronto entre opiniões dos responsáveis portugueses e do PAIGC puseram em destaque um paradigma da guerra colonial. Tinham razão os primeiros quando, na sua perspectiva, diziam que a operação tinha sido um sucesso, pois cumpriram as missões atribuídas, apesar dos insignificantes resultados em baixas ao IN e material capturado. Mas foram ao objectivo e, naquelas operações, os objectivos não eram para se conquistarem, eram para se ir lá. Tinham também razão os segundos quando se congratulavam por, afinal, depois da operação as tropas portuguesas terem retirado e os guerrilheiros reinstalado no terreno, tornando insustentável a vida da reduzida guarnição portuguesa que lá ficou num extremo da ilha, sem poder sair do seu buraco.

Esta controversa foi paradigmática da guerra, disse eu, porque, de facto, esta foi, para nós, militares portugueses, um somatório de sucessos de operação em operação, até ao inevitável insucesso final.

Os sucessos que os responsáveis pelas três maiores operações nos três TO  reclamaram, “Tridente” na Guiné, “Quissonde” em Angola e “Nó Górdio” em Moçambique, às quais poderemos acrescentar a “Mar Verde” na Guiné com a particularidade de esta ter ocorrido em território da Guiné-Conakri, foram, afinal, rotundos fracassos estratégicos.

Aqui reside o fulcro da questão guerra ganha/guerra perdida, que me parece que este programa ajuda a esclarecer. Este será um dos seus méritos. (...)


Extractos de: Blog A25A > Pezarat Correia > 19 de dezembro de 2007 > Giro do Horizonte 17 - Guerra Colonial 2 (conteúdo já não disponível "on line", nem no Arquivo.pt)


3. Comentário de Virgínio Briote:

(...) Não se pode falar da Guerra na Guiné sem evocar Pansau Na Isna. Tal como muitos homens da guerrilha, de Pansau Na Isna sabe-se muito pouco e do que se sabe, muito é lenda.

Os tempos difíceis, como são sempre os inícios, tornam-se propícios a figuras que, de uma ou outra forma, deem nas vistas. De tal forma a sua figura é lendária que, até na morte pairou muito tempo a dúvida, de quando e onde ocorreu. 

Enquanto alguns ainda insistem ter sido um dos mártires da guerra do Como, outros juram que o fim de Pansau ocorreu muito tempo depois e bem longe dali. Pansau Na Isna (ou N’Isna), nome que em Balanta significa “morrer na aldeia”, foi, apesar de analfabeto (aprendeu a ler no decorrer da luta, em acampamentos da guerrilha), um valioso combatente e um dos braços direitos de Amílcar Cabral nos primeiros anos de luta.

O nome de Pansau ficou para a história por ter sido um dos comandantes da resistência na batalha de Como, que se travou nos primeiros meses de 1964. Apesar de, ao fim de cerca de 72 dias de combate, as tropas portuguesas já não encontrarem resistência significativa, a batalha do Como foi considerada pelo PAIGC como uma grande vitória. Porque conseguiram sobreviver ao constante bombardeamento a que estiveram sujeitos e porque, com a saída das tropas portuguesas (ficou apenas uma unidade no Cachil) foram retomando o controle do arquipélago.

O combate do Como foi de enorme importância para o PAIGC, especialmente no capítulo da propaganda interna e externa e Pansau Na Isna foi um dos heróis mais visíveis, ganhando com essa batalha enorme respeito e prestígio entre os camaradas da luta. Não poucos, dos que com ele lutaram, partilham a ideia de Aristides Pereira (que foi secretário-geral do PAIGC), que o descreveu como um lutador excepcional.

Diz-se que Pansau era algo excêntrico, devido às roupas brilhantes e à fita rosa que amarrava à cabeça. E a história mistura-se com a lenda, aceitando como realidade (os que afirmam não ter ele morrido no Como) que foi pelo brilho e cor da roupa que viu os seus dias acabarem no terreno enlameado de Nhacra (entre Bissau e Mansoa).

Fonte: Nota do editor ("copydesk") originalmete elaborada para o livro de Amadu Bailo Djaló, "Guineense, Comando, Português" (Lisboa Associação de Comandos, 2010, 229 pp.), Consta do "manuscrito" a que tivemos acesso, por cortesia sua, mas não do livro impresso.

(Continua)
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 12 de janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2435: PAIGC - Quem foi quem (6): Pansau Na Isna, herói do Como (Luís Graça)

(**) Último poste da série > 5 de outubro de 2022 > Guiné 61/74 - P23664: Casos: a verdade sobre... (29): os fotogramas do vídeo com a visita da delegação do Movimento Nacional Feminino a Cufar, no início de fevereiro de 1966 (Mário Fitas / Sílvia Espírito-Santo / António Murta / João Crisóstomo / Joaquim Mexia Alves / Miguel Rocha)

terça-feira, 30 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23569: In Memoriam (451): Gratas recordações do confrade António Júlio Emerenciano Estácio (1947-2022) (4): “Bolama, a saudosa…”, lembranças afetuosas da sua juventude (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de 26 de Agosto de 2022 do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70):

Queridos amigos,
É a hora da despedida do António Estácio, saboreei a releitura da sua pesquisa sobre a presença portuguesa na Guiné, não há revelações surpreendentes, mas uma enumeração exaustiva de eventos, vamos ter informações em catadupa desde a criação de Bolama até à sua viagem de despedida, falará comovidamente da família, do convívio, das brincadeiras com outros meninos, é tocante. Minucioso, não esquece tanto as guerras de pacificação como a questão de Bolama, bateu à porta de muita gente, neste texto recolheu o testemunho de alguém que viveu no ilhéu do Rei e que descreve a intensidade fabril daquela Casa Gouveia; viajaremos por diferentes tempos, ouviremos falar de muita gente, fas publicações, dos escritores e em dado momento ele lembra-nos Fernanda de Castro que era filha do capitão do porto de Bolama, aqui morreu sua mãe, aqui ela encontrará inspiração para aquele que terá sido o best seller infanto-juvenil do Estado Novo, Mariazinha em África. Há que confessar que António Estácio adoeceu entretanto e a edição ressentiu-se da falta de revisão. Mas o que é mais relevante é que esta viagem a Bolama é um testamento de amor que não esqueceremos tão cedo.

Um abraço do
Mário


Gratas recordações do confrade António Estácio:
“Bolama, a saudosa…”, lembranças afetuosas da sua juventude

Mário Beja Santos

Deste livro, edição de autor, 2016, nesse mesmo ano aqui deixei as minhas impressões de leitura, o meu pasmo com o acervo informativo que Estácio foi recolhendo, primeiro sobre a história da nossa presença na Guiné, antes de 1879, quando esta foi desafetada de Cabo Verde. Estácio leu muito, e não se limitou ao Boletim Oficial da Guiné. Leu António Loureiro da Fonseca que recorda aos vindouros o sangue que se derramou em sucessivas guerras. Não esquece os dados essenciais dessa nossa presença, desde as companhias de tipo majestático, o comércio de Cacheu e Ziguinchor, a questão de Bolama, a criação do seu município em setembro de 1871, entre tantíssimos exemplos que eu aqui podia relevar.

Recorre a testemunhos de gente do seu tempo, caso do Manuel Duarte Freire que era filho de trabalhador da Casa Gouveia e que descreve a vida no ilhéu do Rei, ficamos a saber um pouco mais sobre a CUF:

“No ilhéu do Rei, local onde a CUF tinha o seu complexo industrial, talvez o único e o maior que me lembre, o qual era composto por vários armazéns, de enorme capacidade, consoante o tipo de mercadoria a que se destinasse, como, por exemplo, de 30.000 toneladas para o amendoim, 10.000 toneladas de arroz em casca e de várias toneladas de coconote. Tinha uma fábrica de descasque de arroz, outra para mancarra e uma outra de aproveitamento de óleo. Na fábrica destinada ao descasque de mancarra ficava a de óleo de amendoim, sendo esta ali construída no ano de 1956, ou seja, no mesmo ano em que foi construída uma ponte nova que tornou possível a atracagem de barcos de maior dimensão. 

No ilhéu, havia tratores para mudar e transportar as mercadorias, assim como as diversas balanças para assegurarem as pesagens. No caso do descasque de arroz, ele era ali processado e embalado, enviando-se para Bissau ou carregando-se para outros destinos, quer fosse Lisboa ou diversos países. A mancarra foi ali descascada, ensacada e enviada para a metrópole, onde era produzido o conhecido Óleo Fula. Porém, a partir de 1957, a fábrica de óleo da ilha do Rei começou a separar logo e a produzir o óleo, farinhas, sabão, glicerina e o Óleo Fula passou a ser logo ali produzido. Todos os resíduos foram aproveitados para farinhas que eram exportadas para a Holanda, o mesmo sucedendo com o sabão e a glicerina. Este é o meu testemunho, vivido no ilhéu do Rei, na boa e velha Guiné, onde cheguei em 15 de março de 1951 e permaneci até 1958. Regressei com a finalidade de continuar a estudar em Tomar, tendo tido a sorte de ir parar onde havia tantos guineenses amigos e de quem guardo imensas saudades (certamente que Manuel Duarte Freire se refere ao Colégio Nun’Álvares, instituição de ensino onde estudaram muitos guineenses)".

Nesta curta memória é inviável elencar a farta pesquisa de Estácio, põe o enfoque no período republicano, fala-nos da Liga Africana, Liga Guineense e Centro Escolar Republicano; não esquece a bravura de Sebastião Casqueiro e as operações militares no Churo, a ocupação do Oio, as operações de Teixeira Pinto, transcreve mesmo as narrativas do próprio Capitão João Teixeira Pinto. E há o contraditório, o advogado Loff de Vasconcelos a apresentar queixa-crime contra Teixeira Pinto e Abdul Indjai, indicando um rol de testemunhas de grande peso socioeconómico, era a contestação ao que se chamou o regime abusivo de Teixeira Pinto. E se isto se trata de uma listagem impressionante de nomes, informações em catadupa sobre acontecimentos de vária ordem, nomeações, inaugurações, muitos recortes de notícias publicadas na imprensa local.

Não esquece Honório Pereira Barreto, a presença de Gago Coutinho, a governação de Velez Caroço, o acidente com a Esquadra Balbo, as visitar alemãs, a autorização dada a Pan American de faz escala em Bolama; em 1947 dá-se a inauguração da carreira aérea Dacar-Bissau, por avião e Junker 52 da Air France; e a participação de dezenas de guineenses das etnias Bijagó, Balanta e Fula na I Exposição Colonial Portuguesa, capitaneava a participação um bravo militar, o régulo Mamadu Sissé, acompanhado de quatro mulheres e dois filhos; não são esquecidos os periódicos (todos eles de vida breve); a revolta republicana de 1931 e a sua precária Junta Governativa; a figura do escritor e publicista Fausto Duarte; e em 1953 chega a Guiné o professor Paulo Quintela à frente de um grupo de antigos estudantes de Coimbra; e até o Manuel Joaquim do cinema não é esquecido.

Convém abreviar, aqui se endereça um derradeiro abraço de saudade a este confrade que irá lembrar emotivamente a vida familiar, os seus amigos, irá ouvi-los e não se coibirá de dizer que estava a viver as mais belas recordações da sua vida. Não esquece o nome de escritores e evoca Fernanda de Castro que viveu em Bolama, autora de um impressionante bestseller infantojuvenil que marcou gerações, Mariazinha em África, fui buscar a minha edição da Ática, de 1947, com desenhos de Ofélia Marques, e transcrevo algumas passagens:

“Dum lado e doutro da estrada, só se viam arrozais, arrozais verdes, arrozais a perder de vista… Estava calor, um calor de rachar, mas o ar deslocado pelo carro em movimento dava uma sensação de frescura a Mariazinha e a Ana Maria. Pássaros de todas as cores, de todos os feitios, voavam sobre o arrozal. Insetos enormes vinham esborrachar-se de encontro aos vidros do automóvel. Uma cobra amarela, pintalgada de preto, rastejava ao longo da estrada. E nem uma árvore, nem um arbusto, nem uma sombra no horizonte.

Pouco a pouco, porém, a paisagem foi mudando. Às superfícies cultivadas dos arrozais sucedia-se agora o capim, capim alto, serrado, onde uma fauna perigosa e hostil proliferava, palpitava, rastejava… Árvores enormes, a princípio isoladas, pareciam sentinelas à beira da floresta”
.


E, mais adiante:

“Meia hora depois, surgia Buba, terra de maravilha! Nem casas, nem barcos, nem carros, nenhum sinal de civilização. Os raros comerciantes brancos que ali viviam, tinham as suas casas no interior, muito longe do cais, e este cais rudimentar era o único vestígio da passagem dos brancos por aquelas terras.

No rebocador, os marinheiros manobravam para atracar e todos se preparavam já para o desembarque.

A região não podia ser mais bonita! Bananeiras carregadas de bananas vinham quase até ao rio. Borboletas que pareciam flores e flores que pareciam pássaros confundiam-se, nas árvores, com os frutos coloridos – as mangas, as goiabas, os cajus.
- Olha, Ana Maria! – exclamou Mariazinha. – O cais está cheio de gente!

Com efeito, no cais apinhavam-se dezenas, centenas de pretos, alguns dos quais tocavam uma música estranha nuns instrumentos ainda mais estranhos. O barulho era ensurdecedor… Raparigas e mulheres, embrulhadas em panos berrantes, com lenços vistosos na cabeça e fios de contas de vidro em volta do pescoço, dos pulsos e dos tornozelos, batiam palmas a compasso e sorriam para os brancos; pretinhos nus, com enfiadas de sementes vermelhas em volta da barriga, guinchavam e saltavam como macaquinhos; separados dos outros, estavam os tocadores, que tocavam tantã e uns instrumentos esquisitos que pareciam violinos mal feitos. E, ao longo do cais, uma multidão colorida acenava, gritava, barafustava, uma multidão amiga que abriu alas à passagem dos brancos e depois os seguiu, em cortejo, até a casa do Administrador.”

Ainda encontrei uma outra obra da responsabilidade do António Estácio mas dedicada à escola de regentes agrícolas que ele frequentou, seguramente outro belo testemunho de saudade.
Porto de Bolama, 1912
Bolama, fachada do Banco Nacional Ultramarino, mais tarde Hotel Turismo
Monumento aos aviadores italianos caídos em desastre aéreo, no início da década de 1930
Lembranças da velha Bolama
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Nota do editor

Último poste da série de 25 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23555: In Memoriam (450): Gratas recordações do confrade António Júlio Emerenciano Estácio (1947-2022) (3): Uma viagem a Bissau para saber mais sobre a mítica Nha Bijagó (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 25 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23555: In Memoriam (450): Gratas recordações do confrade António Júlio Emerenciano Estácio (1947-2022) (3): Uma viagem a Bissau para saber mais sobre a mítica Nha Bijagó (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de 23 de Agosto de 2022 do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70):

Queridos amigos,
Nestas horas de releitura dos livros deste nosso bondoso confrade conjecturo o que teria sido bom para conhecer mais aprofundadamente a História da Guiné se o António Estácio, com o cabedal de relações humanas que possuía, tivesse andado pela Guiné a recolher história oral em diferentes dimensões, logo aquele Bissau da sua juventude que ele reteve com a máxima limpidez até que uma doença traiçoeira o foi enchendo de nevoeiro, leem-se estes livros das sinharas, e mesmo com algumas recusas justificadas por falta de lembrança, Estácio entrou na lembrança, nas recordações de mais de meio século atrás. Viremos um dia, portugueses e guineenses, a lastimar profundamente o desaproveitamento deste capital cultural e relacional que aos poucos se vai esvaindo, fazendo arder bibliotecas inteiras.

Um abraço do
Mário



Gratas recordações do confrade António Estácio:
Uma viagem a Bissau para saber mais sobre a mítica Nha Bijagó

Mário Beja Santos

António Estácio, entre os seus sonhos de investigação, não escondia o ardente desejo de tentar um levantamento das sinharas, aquelas matriarcas, habitualmente crioulas e casadas com europeus ou cabo-verdianos que tiveram um papel determinante nos Rios da Guiné, nomeadamente entre os séculos XVI a XIX. Neste texto dedicado a Nha Bijagó citará mesmo o nome de algumas: Bibiana Vaz, Aurélia Correia, Júlia Silva Cardoso e Rosa Carvalho Alvarenga, a mãe de Honório Pereira Barreto. Qual não foi a minha surpresa quando, aí por 2011, num desses encontros espúrios que tínhamos na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa me entregou o seu mais recente livro dedicado a Nha Bijagó. Perguntei-lhe se tinha ido à Guiné em segredo, já que nesta conversa introdutória me referia dezenas de entrevistas, que não, fizera praticamente dois livros de uma só assentada, em 2006 andara pela Guiné a bater por muitas portas, umas vezes para saber de Nha Carlota, outras vezes para saber de Nha Bijagó. Quem era esta matriarca, perguntei-lhe, tão dignas das suas preocupações. E falou-me de Leopoldina Ferreira, filha de uma nativa dos Bijagós e de um comerciante que se dedicava à compra e exportação de couros, de gado bovino e de crocodilo. Com calor, voltou a enquadrar o papel das sinharas, tão maltratadas pela historiografia. E deu-me conta que quanto à investigação da Nha Bijagó ele entendeu que era útil para o leitor fazer uma ligação cronológica entre acontecimentos políticos, administrativos e militares com significado contemporâneos da vida da Nha Bijagó. Se recorreu aos testemunhos, não descurou a árdua tarefa da pesquisa, como escreve no livro: “Desafio que me levou a consultar dezenas de livros, Boletins Oficiais, documentos. Tinha ela um ano quando as ruas de Bissau começaram a ser iluminadas a petróleo. Em 1879, a sede do Governo passa a ser Bolama, a primeira capital. Em 1886, em 12 de maio, assina-se a Convenção Luso-Francesa que define as fronteiras da colónia.”

Leopoldina casou com o cabo-verdiano José Ledo Pontes, teve casamentos subsequentes, filhas e netos. Ora, António Estácio conviveu com vários bisnetos da Nha Bijagó que lhe facultaram nesta investigação informações da maior utilidade. Mas voltando à contextualização de acontecimentos, Estácio socorre-se de uma interessante descrição de Bissau da época, saída da pena do Padre Marcelino Marques de Barros, publicada na Revista As Colónias Portuguesas, n.º 3, fevereiro de 1884, temos ali um quadro preciso desde o Forte de S. José até ao cais de Nasolini, e não se esconde a insalubridade em que se vivia em Bissau, o que justificará ao autor a seguinte observação: “As más condições climatéricas, agravadas pela insalubridade, dizimavam a população de tal modo que, em 1886, quando Nha Bijagó entrava nos 15 anos, Bissau era o menos povoado de todos os aglomerados urbanos da Guiné!”

Acresce os conflitos e os incidentes era moeda corrente em Bissau naquele tempo, uma situação de completa instabilidade que se prolongou até à I República.

O perfil económico de Nha Bijagó distinguia-se de Nha Carlota, Leopoldina era uma abastada proprietária imobiliária, não havia rua no Bissau Velho em que não tivesse uma casa. E começa o tropel das entrevistas para recolha dos testemunhos, logo avulta a disparidade de uma mulher de fé católica que escondia o seu lado animista. E conta-se a história de alguém que veio desabafar com a matriarca e esta propôs a realização de uma cerimónia gentílica a essa pessoa que sofrera uma série de desaires, foi-se comprar para a cerimónia aguardente sacarina, tabaco em folha e arroz, a cerimónia realizou-se em Prábis, no Irã de etnia Papel. Leopoldina era também um bom garfo, era de estatura média mas a puxar para o largo, trocava imensas receitas, descobriu-se um papel em que passou a alguém a receita de brindge (feito à base de carne de pato, galinha ou porco, temperado, cozido ou frito, servindo-se com mandioca ou batata cozida e o omnipresente arroz).

Dotada de forte personalidade, enérgica, não fugindo a atos de cólera, era de extrema solicitude e foi madrinha de meio mundo. E Estácio descreve o ritual da recolha das rendas, no final de cada mês, Leopoldina dirigia-se aos seus inquilinos e anunciava nha povo, djam bem! Sentava-se num banquinho e esperava solenemente que viessem ter com ela e lhe entregassem o montante correspondente à renda.

Dentre as suas pesquisas detectivescas, Estácio encontrou o que restava do local de residência de Nha Bijagó à entrada da estrada de Santa Luzia. Nha Bijagó está sepultada em campa rasa, com o número 189, no talhão n.º 5, do antigo cemitério. Aqui fica a tenra homenagem de Estácio a alguém que ele não conheceu na sua juventude de Bissau, mas ficou para a lenda. Triplov, encontrei na internet, faz publicação integral deste livro, aqui fica a referência:

Texto integral de “Nha Bijagó”. Respeitada Personalidade da Sociedade Guineense. (1871-1959), por António Estácio, edição do autor, 2011. Disponível em:
https://www.triplov.com/guinea_bissau/antonio_julio_estacio/nha_bijago/nha_bijago.pdf 

Leopoldina Ferreira Pontes (a primeira, da segunda fila, do lado esquerdo) nasceu em Bissau em 4 de novembro de 1871. Era filha de João Ferreira Crato (natural do Crato, Alto Alentejo, comerciante na Guiné) e de Gertrudes da Cruz (de etnia bijagó, natural de Bissau). Morreu aos 87 anos, em 26 de maio de 1959.
A Rua de S. José, em Bissau, considerada como a artéria mais importante. Ia do portão da Amura, que estava aberto das 8 às 21h00, ao baluarte da Bandeira. Após 5 de outubro de 1910, passou a designar-se como Rua do Advento da República; depois, Rua Dr. Oliveira Salazar e, após a independência, mudou em 21 janeiro de 1975, Rua Guerra Mendes, um dos combatentes da liberdade da Pátria, mortos em combate.

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Nota do editor

Último poste da série de 21 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23543: In Memoriam (449): Gratas recordações do confrade António Júlio Emerenciano Estácio (1947-2022) (2): Uma viagem a Bissau para saber mais sobre a mítica Nha Carlota (Mário Beja Santos)

domingo, 21 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23543: In Memoriam (449): Gratas recordações do confrade António Júlio Emerenciano Estácio (1947-2022) (2): Uma viagem a Bissau para saber mais sobre a mítica Nha Carlota (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de hoje, 19 de Agosto de 2022 do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70):

Queridos amigos,
Antes do António Estácio partir em 2006 para Bissau, numa daquelas conversas espúrias em voz baixa num recanto da biblioteca da Sociedade de Geografia, fiquei a saber quem era Nha Carlota, nem ela a conheceu pessoalmente nem me foi referenciada nas minhas passagens por Bissau. Reli empolgado a sua inquirição em vários lugares da Guiné onde foi encontrar testemunhos sobre esta negociante que se distinguia por receber em sua casa, em Nhacra, quem quer que lhe batesse à porta, ao cheiro dos seus petiscos, tudo gratuíto, os amesendados só pagavam as bebidas. Uma longa história de negócios e como nos romances mantém-se no mais completo dos segredos a sua vida privada desde que chegou à Guiné, em 1911, até ter casado em finais de 1936, com um antigo empregado, companheiro até ao fim dos seus dias. Um nome que se tornou uma lenda, pela generosidade e afabilidade, leem-se os testemunhos de quem a conheceu e não é difícil perceber a reverência pela Senhora de Nhacra. Que bonito gesto, o do António Estácio, deixar cinzelado no seu tão belo testemunho, a história desta mulher.

Um abraço do
Mário



Gratas recordações do confrade António Estácio:
Uma viagem a Bissau para saber mais sobre a mítica Nha Carlota


Mário Beja Santos

Não sei exatamente se foi em 2005 ou no princípio de 2006 que a subir a escada que dá acesso à Biblioteca da Sociedade de Geografia o António Estácio dá-me a seguinte notícia: imagina que vou a Bissau, recebi apoio para investigar um pouco mais sobre a Nha Carlota. Surpreso, perguntei-lhe quem era a dita. “Nunca foste comer a canja de ostra a Nhacra, em casa da Nha Carlota? Havia ali a melhor cozinha da Guiné, era a senhora mais conceituada da região, com grandes negócios, era ela quem arrematava tudo, o marido ficava atrás, era lendária a sua generosidade”. Ficámos por aqui, cada um foi à sua vida, uns bons meses depois voltou e disse-me que se entregava de alma e coração a pôr todos os seus apontamentos em forma de livro. E em 2010 ofereceu-me Nha Carlota, Carlota Lima Leite Pires, edição sua. Como oportunamente escrevi em recensão aqui feita, era mais uma prova do deslumbramento do António Estácio por pessoas devotadas à sua terra natal e que se tinham distinguido por praticar o bem. Ele replicava escrevendo uma narrativa em sua memória. E esta é digna de pedra mármore.

Muita investigação, bateu à porta de muita gente, foi bem acolhido no essencial, e deixa-nos uma Nha Carlota a roçar a intemporalidade. Não esconde a profunda admiração pela biografada: “É bem o arquétipo de alguém que, oriunda de Cabo Verde e moldada pela dura escola da vida, atingiu invulgar notoriedade na Guiné, onde viveu cerca de seis décadas.” Era conhecida por Nha (Senhora) Carlota do Cumeré ou de Nhacra, visto ter tido negócios em ambas as povoações. Sabe-se que faleceu no Hospital da Parede em setembro de 1970, fica por apurar de que tipo de fratura foi ali tratar, segundo o médico terá sido de fratura do colo do fémur, que obriga à imobilidade e suscita problemas cardíacos.

Já estaria casada com João José Pires em finais de 1936, mas teve uma filha e um filho antes do casamento com este seu antigo empregado. É suposto que tenha nascido em 1889, o António Estácio visitou o cemitério de Bissau e lá fez as suas deduções para chegar a esta data. Era natural de Santo Antão, terá chegado à Guiné em 1911, ela teria então 21 ou 22 anos. E descreve-a: “Alta e de tez clara, constituía uma bela figura, direi mesmo imponente, cujo resoluto olhar irradiava uma grande determinação. A opinião pública é unânime em realçar-lhe a simplicidade no convívio e a hospitalidade, bem patente na lhaneza do seu trato com que a todos recebia.” Era uma admiradora incondicional de Salazar, havia no seu espaço íntimo uma fotografia do ditador, poucos se atreviam a chacotear o seu nome, e em casos tais ela pedia para as pessoas não voltarem. Altruísta, pródiga a ajudar quem precisava, célere a interceder em benefício de terceiros.

E vamos acompanhando a investigação testemunhal, sempre que necessário o António Estácio pôs-se ao caminho para ouvir depoimentos de quem com ela fez negócios, conviveu, recebeu conselhos ou era seu afilhado, deixou-os em grande quantidade. E há a ternura das imagens, naquela viagem de 2006 fez o possível e o impossível para obter imagens de Nha Carlota, que dá à estampa na sua bela narrativa. Quando chegou a luta armada, a sua vida social foi sujeita a grandes alterações, apoiava primordialmente os militares sediados em Nhacra, continuava a abastecer-se em Bissau, viajava através do Impernal na maré-baixa, sempre acompanhada por dois guardiões balantas, a sua sombra, mas nunca ninguém a molestou.

Limito-me a discorrer sobre este texto que vim propositadamente reler à mesa onde ele se sentava, outra homenagem inequívoca não lhe sei prestar, mas seria impensável findar este punhado de recordações sem citar o final do seu livro:
“A ingratidão dos homens e a inexorável voragem dos anos tardam em prestar a merecida distinção. A postura assumida e reconhecida, permitiram-lhe ombrear com grandes vultos da sociedade guineense, pelo que a sua evocação se me afigura ser de elementar justiça. E, embora nunca com ela tenha privado, esta foi a forma que encontrei para lhe tributar o meu reconhecimento, lamentando não ter tido o engenho e arte suficientes para a enaltecer como merecia.”

Como estás enganado, António Estácio, o que há de mais cativante nessa viagem de 2006 foi este processo de enaltecimento completamente desinteressado a uma mulher de boa vontade, que parecia destinada a ficar exclusivamente na memória da tradição oral africana. E nesta secretária em que tanto labutaste já estão mais três livros para te referenciar, tu és credor de todo o nosso agradecimento.

Carlota Lima Leite Pires
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Nota do editor

Último poste da série de 18 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23536: In Memoriam (448): Gratas recordações do confrade António Júlio Emerenciano Estácio (1947-2022) (1): Um homem bom, um estudioso que ligou a China à Guiné, sua terra natal (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 18 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23536: In Memoriam (448): Gratas recordações do confrade António Júlio Emerenciano Estácio (1947-2022) (1): Um homem bom, um estudioso que ligou a China à Guiné, sua terra natal (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de hoje, 18 de Agosto de 2022 do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70):

Queridos amigos,
Confesso que não foi uma notícia totalmente inesperada, a partida do António Estácio. Há poucos anos, terá sofrido um AVC que o deixou bastante diminuído, nas nossas conversas espúrias num cantinho da Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa, queixava-se da perda de memória e do cansaço que sentia quando se embrenhava em novas leituras, retia cada vez menos. Depois desapareceu do convívio da biblioteca, ao telefone a filha explicou-me que o seu pensamento era cada vez mais volátil, que não contasse com o seu regresso aos papéis da biblioteca. O blogue perde alguém que amou profundamente a Guiné, a ela dedicou estudos, uns inovadores, outros de homenagens a figuras de mulheres empreendedoras, entusiasmou-se pelo estudo que fez de Bolama, sonhava em escrever as suas memórias do tempo guineense. Aqui me curvo respeitosamente em sua memória, recordando pedaços do seu legado.

Um abraço do
Mário


António Estácio, um homem bom, um estudioso que ligou a China à Guiné, sua terra natal


Gratas recordações do confrade António Estácio

Mário Beja Santos

Consternou-me muito a partida deste dedicadíssimo amigo da sua terra-berço. A nossa convivência era digna da vida de um clube, não fossem os nossos encontros realizados no ambiente em que ambos trabalhávamos, a Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa. Se havia outra gente às mesas de trabalho, refugiávamo-nos num cantinho, debaixo do quadro a óleo de Gago Coutinho e ali permutávamos informações sobre o que andávamos a fazer, ele era um leitor crónico do Boletim Oficial da Guiné, vasculhava tudo sobre Bolama e Bissau, não só do tempo em que lá andou, na juventude, mas com o firme propósito de estudar Bolama, dali saiu livro pertinente e útil, a que juntou outros estudos como as Nharas, a Carlota e a Bijagó, figuras que sempre o entusiasmaram. Tive a oportunidade de ler o seu artigo, bem original, sobre os chineses em Catió, chegados na alvorada do século XX, e depois o importante trabalho que fez com o Philip Harvik, publicado na revista Africana Studia, N.º 17, 2011. Permitam-me que volte a repertoriar a matéria deste trabalho, aqui o deixo com abraço saudoso deste homem bom. Os autores recordam a utilização de degredados para os trabalhos públicos e administrativos em territórios coloniais. No caso da Guiné, a maioria dos condenados vinha de Cabo Verde, mas a introdução de mão de obra, vinda de outras colónias, também se insere nas mudanças operadas no decurso do século XIX, e que aparecem associadas ao fim do tráfico de escravos e no início da plantação de culturas de renda (caso do algodão, o cacau, o café e o amendoim). Indo diretamente à Guiné, o sinal da transformação deu-se com a introdução do amendoim e a colheita de amêndoas de palmeira. Em simultâneo, a cultura do arroz sofreu alterações profundas através da comercialização na região da África Ocidental de variedades originárias da Ásia, novidade introduzida por comerciantes da Gâmbia inglesa.

Em suma, a criação de explorações agrícolas e comerciais, as chamadas pontas da Guiné, irão ser uma realidade a partir da terceira década do século XIX. A monocultura do amendoim fez com que a Guiné ficasse muito exposta à volatilidade dos mercados, pelo que se explica que a descida das cotações se saldo no fim das pontas, nos anos 1980 do século XIX. Passemos agora para os chineses.

O envio dos primeiros chineses insere-se numa tentativa de se trazer à força novos braços. Eles vieram provavelmente da zona de Cantão do estuário do Rio das Pérolas. Os primeiros cantonenses chegaram à Guiné em 1902, é uma presença diretamente associada à expansão de orizicultura no sul da Guiné a partir das primeiras décadas do século XX. Traziam conhecimentos do cultivo do arroz, estes chineses criaram as condições para um processo de migração em massa de comunidades africanas do interior para terras ainda não aproveitadas. Inevitavelmente, deu-se a mestiçagem, é bem provável que longe dos olhares metropolitanos e até da governação. Os autores recordam que após 1891 se intensificaram as campanhas militares, os Bijagós mostravam-se indomáveis, pouco ou nada recetivos a tratados de paz. Os Nalus afastaram-se das investidas dos Biafadas e dos Fulas, migraram para o Baixo Cacine, Cantanhez e para os Rivières du Sud (rios Componi e Nuno) na Guiné francesa. A presença destes chineses é marcante no Tombali, região onde havia um posto militar português e algumas feitorias. Os autores referem o estabelecimento de pontas, com a anuência dos chefes Nalus e recordam que o rio Tombali se tornou uma área de fixação de ponteiros de origem cabo-verdiana. Não sendo abundante a documentação sobre a presença chinesa, há indícios nos arquivos de pelo menos dois chineses que se diziam oriundos de Macau e eram à época residentes em Bolama, tinham feito um pedido de repatriação em 1909.

Os autores mostram fotografias de descendentes chineses em Catió, estes chineses abriram caminho para o desenvolvimento da orizicultura, ela será potenciada pelos Balantas, que fizeram um povoamento que correu de forma pacífica. Lembram igualmente os autores que aí pelos anos 1930, a Guiné era uma colónia em regime anárquico de concessão de terras. Em jeito de conclusão, dizem os autores que estes chineses se integraram na sociedade guineense, mas não pode ser escamoteado que tinham o estigma de degredados, e por isso eles apresentavam-se como refugiados. Quando chegou a hora da luta pela independência, estes descendentes de chineses dividiram-se entre o apoio ao PAIGC, trabalhar na administração colonial ou vieram para Portugal. E concluem enfatizando a necessidade de continuar os estudos sobre a presença das comunidades chinesas das antigas colónias portuguesas. Não quero terminar aqui a minha homenagem ao António Estácio, permitam-me oportunamente referenciar outros títulos que ele dedicou à sua tão extremosa Guiné.

Recriar a China na Guiné: os primeiros chineses, os seus descendentes e a sua herança na Guiné Colonial. Africana Studia. N.º 17 (2011) Publicado em: https://ojs.letras.up.pt/index.php/AfricanaStudia/article/view/7379/6763

Publicado em: Guiné 63/74 – P14926: Notas de leitura (740): “Recriar a China na Guiné: os primeiros chineses, os seus descendentes e a sua herança na Guiné colonial”, artigo assinado por Philip J. Harvik e António Estácio (Mário Beja Santos).


Revista Africana Studia, 2.º semestre, 2011
Uma imagem de Catió na atualidade
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Nota do editor

Vd. poste de 9 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23510: In Memoriam (445): António Júlio Emerenciano Estácio (Bissau, 1947 - Algueirão, Sintra, 2022): foi alf mil, RM de Angola (1970/72), viveu e trabalhou em Macau (1972/98) e era um apaixonado pela sua terra e as suas gentes

Último poste da série de 14 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23523: In Memoriam (447): Gen João Almeida Bruno (1935-2022): cerimónias fúnebres na Academia Militar, capela do Palácio da Bemposta... E recordando também a sua memória da Op Ametista Real (Senegal, 1973), de que ele foi o comandante