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Queridos amigos,
Momentos há em que tiro da estante este livro que tem para mim um incalculável valor só para consultar a transcrição da agenda de Orlando Ribeiro. Mas tenho que fazer jus à importância do trabalho desenvolvido por Philip Havik e Suzanne Daveau, tem logo à partida o inegável mérito de nos lembrar que há um conjunto importante de informações relevantes sobre sociedades e paisagens africanas que se conserva inédito em arquivos portugueses. Mérito pela forma como contextualizaram a organização desta missão, como explicam a estrutura do conteúdo do caderno (onde Orlando Ribeiro guardou o seu trabalho de campo) e para além da publicação numa revista, anos depois, a obra tem igualmente muita importância pelos anexos e o acervo fotográfico. Estou absolutamente seguro quando digo que se trata de um livro de arromba, indispensável a quem queira conhecer e estudar este momento tão exaltante do período colonial, correspondente à governação de Sarmento Rodrigues.
Um abraço do
Mário
Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné:
A sua colaboração num livro de arromba, Orlando Ribeiro em 1947, na Guiné (2)
Mário Beja Santos
Desta obra já aqui falei no blogue e fiz um outro texto que publiquei num livro online. Philip Havik, conjuntamente com a viúva do professor Orlando Ribeiro, trouxeram a público um documento portentoso, demonstrativo do poder de olhar do mais conhecido e célebre geógrafo português que contribuiu para o conhecimento da Geografia no Ultramar, nos anos 1940. Havik e a viúva de Orlando Ribeiro, Suzanne Daveau, organizaram o documento, com as notas e os desenhos do caderno de campo que aparece reproduzido no livro, bem como as fotografias que o geógrafo tirou durante as suas estadias na Guiné, em 1947.
Os organizadores desvelam a essência do modo de trabalhar, observar e escrever do consagrado geógrafo:
“Os temas preferidos da investigação foram o povoamento, a economia e os modos de vida rurais, aos quais muitas notas geomorfológicas e climáticas são subordinadas. A importância que sempre deu âs relações com disciplinas próximas, como a agronomia, a etnologia ou a história, perpassa nestas notas.”
E explicam os organizadores como tudo começou:
“A Missão de Geografia na Guiné insere-se nas atividades promovidas pela Junta das Missões Geográficas e de Investigações Coloniais, fundada em 1936, e que a partir de 1951 se passará a chamar Junta de Investigações do Ultramar. Orlando Ribeiro acabava então de solicitar uma missão de estudos a Cabo Verde, mas decidiu aproveitar a oportunidade de ir conhecer e estudar a Guiné. Com efeito, a segunda Conferência Internacional dos Africanistas Ocidentais, a decorrer em Bissau, encontrava-se em preparação. Decidiu-se juntar este conhecido cientista que iria dirigir uma Missão de Geografia. O reconhecimento geral da colónia seria feito em conjunto por Carrington da Costa, o seu ajudante Décio Thadeu e Orlando Ribeiro, para se aproveitar o melhor possível os recursos disponíveis. O essencial do que se sabe, hoje ainda, da geologia da Guiné resulta principalmente daquelas missões.”
Havia, é certo, já trabalhos científicos preliminares, caso da Carta da Colónia da Guiné, em 1933, atuava a Missão Geo-Hidrográfica, havia estudos etnográficos que eram animados pelo então tenente Teixeira da Mota. Os autores recordam que o governador da Guiné era o comandante Sarmento Rodrigues, Avelino Teixeira da Mota dava impulso a uma plêiade de colaboradores locais.
Fora criado em Bissau um Centro de Estudos (1945) e um Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, Teixeira da Mota dirigiu um Inquérito Etnográfico, uma obra de referência. A ajuda de Teixeira da Mota e de funcionários coloniais revelou-se muito importante para a missão de Orlando Ribeiro. Decorria na época uma investigação sobre a habitação indígena, que serviu também de oportuno pano de fundo da missão. Mais tarde, um jovem sociólogo formado pela Escola Superior Colonial, Francisco Tenreiro, iria publicar um estudo sobre as “Populações Nativas da Guiné”, que contou com o inquérito etnográfico de 1946 e com o material recolhido por Orlando Ribeiro durante a sua missão.
Orlando Ribeiro não percorreu toda a Guiné, embora tenha viajado centenas de quilómetros pela rede de estradas de terra batida não conseguiu visitar a parte Sul da província, mas o geógrafo chegou até às solitárias colinas do Boé. Como escrevem os organizadores, as observações e experienciais pessoais feitas no terreno tornaram-se, atualmente, parte integrante das teses de doutoramento em Antropologia, a sua publicação, noutras disciplinas como a Geografa, não era regra, nem o é ainda hoje. Observam os coordenadores:
Orlando Ribeiro não percorreu toda a Guiné, embora tenha viajado centenas de quilómetros pela rede de estradas de terra batida não conseguiu visitar a parte Sul da província, mas o geógrafo chegou até às solitárias colinas do Boé. Como escrevem os organizadores, as observações e experienciais pessoais feitas no terreno tornaram-se, atualmente, parte integrante das teses de doutoramento em Antropologia, a sua publicação, noutras disciplinas como a Geografa, não era regra, nem o é ainda hoje. Observam os coordenadores:
“É importante ponderar em que medida o caderno agora publicado reflete as observações realizadas pelo autor durante esta curta missão. A preparação da sua edição deparou com várias dificuldades. O autor teve raramente o cuidado de datar exatamente os seus apontamentos e de registar imediatamente as numerosas fotografias que foi recolhendo. Tornou-se, portanto, necessário reconstituir o melhor possível o desenrolar da investigação, com a ajuda de uma pequena agenda de bolso, de um caderninho de fazer as contas, também irregularmente preenchido. (…) O caderno contém essencialmente – além de alguns cortes topográficos e geológicos, cuidadosamente levantados – plantas pormenorizadas de casas rurais e inquéritos realizados junto de camponeses ou colonos, sobre as suas atividades, recursos e modos de vida.”
Nestas notas introdutórias, os coordenadores também têm o cuidado de mencionar o conjunto de monografias que se publicaram na época e posteriormente e dão um amplo esclarecimento sobre o significado da missão na Guiné de Orlando Ribeiro. Dá-se igualmente conta da organização do caderno, explana-se sobre as características geomorfológicos e pedológicas da Guiné, as fases da missão e como se plasmam as duas partes do caderno.
Segue-se a transcrição do caderno que, confesso, põe à prova o grau apurado deste intelectual, senão mesmo a prova provada de um raríssimo poder de análise, ainda por cima de um geógrafo que pisava pela primeira vez aquele terreno. Segue-se a reprodução do artigo que Orlando Ribeiro publicou em 1950 sobre esta missão de geografia na publicação Anais, da Junta de Investigações Coloniais do Ministério das Colónias. Há parágrafos que são bem elucidativos da têmpera deste geógrafo e do seu humanismo:
“Procurei entrar em contacto com as populações e informar-me dos seus modos de vida e economia. A época era má, visto que as culturas se fazem quase só durante o tempo das chuvas. Vi ainda lavrar algumas bolanhas e recolhi uma coleção de instrumentos gentílicos usados no amanho de terra (…) Qualquer trabalho de geografia carece de base cartográfica. A colónia possui apenas um mapa de reconhecimento na escala de 1:500 000, cheio de imperfeições, lacunas e erros. As necessidades da colónia e da investigação científica tornam urgente a publicação de um mapa mais exato, com o relevo figurado e em maior escala.”
Descreve os objetivos do trabalho, faz uma súmula de resultados científicos, o seu capítulo sobre a colonização é de inegável interesse, merece reflexão o que este investigar escreveu em meados do século XX:
“A Guiné não é uma colónia de povoamento. Sejam quais forem os atrativos do desenvolvimento recente da capital e outras vilas proporcionem aos europeus, sem embargo da exceção velhos colonos que gozaram sempre de saúde e robustez, o clima é pouco propício aos brancos. O paludismo grassa com intensidade, principalmente na época das chuvas; as formosíssimas ilhas de Pecixe e Jata são grandes focos de doença do sono espalhada mais ou menos por toda a colónia, assim como a lepra, a disenteria amibiana, a ancilostomíase, etc. Saneou-se parte dos arredores de Bissau, mas é impossível sanear as bolanhas do litoral que são uma das grandes fontes de riqueza da Guiné pela cultura do arroz. A temperatura é elevada e torna-se molesta e depressiva, principalmente no interior, pior ainda quando no tempo das chuvas se lhes junta uma humidade sempre alta.
"Salvo durante umas breves horas da manhã ou à tarde estão vedados aos brancos o trabalho agrícola e a longa exposição ao Sol. Onde principalmente se vê quanto esta terra é imprópria para o europeu é no aspeto pálido e enfezado que as crianças normalmente robustas adquirem ao fim de pouco tempo de permanência. O branco vem para se demorar uns anos que os azares da vida podem alongar, mas nunca com o espírito de fixar-se; a família fica muito longe ou passa largas temporadas noutro clima. Lentamente o homem isolado, ruído pela melancolia, abandona-se à sedução das belezas locais e às vezes uma prole batizada pode fixá-lo a este solo hostil.”
Por último, esta edição preparada por Philip Havik e Suzanne Daveau recolhe importantes imagens de áreas portuárias, trabalhos agrícolas, palmares, moranças, cenas de mercado, gentes de todas as idades e há uma imagem para a qual ele guardou sempre um grande sentimento, a fotografia em que ele aparece com o seu companheiro guineense de toda a missão, Talibé. Os coordenadores juntam materiais de apoio como glossário e bibliografia.
Não se pode estudar na Guiné deste tempo sem ler este livro admirável, é mesmo de leitura obrigatória.
Notas do editor:
Vd. post de 14 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26496: Notas de leitura (1772): Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné: Uma mulher singularíssima, Bibiana Vaz, século XVII (1) (Mário Beja Santos)
Último post da série de 17 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26504: Notas de leitura (1773): "Os Mais Jovens Combatentes, A Geração de Todas as Gerações, 1961-1974", por José Maria Monteiro; Chiado Books, 2019 (Mário Beja Santos)
Por último, esta edição preparada por Philip Havik e Suzanne Daveau recolhe importantes imagens de áreas portuárias, trabalhos agrícolas, palmares, moranças, cenas de mercado, gentes de todas as idades e há uma imagem para a qual ele guardou sempre um grande sentimento, a fotografia em que ele aparece com o seu companheiro guineense de toda a missão, Talibé. Os coordenadores juntam materiais de apoio como glossário e bibliografia.
Não se pode estudar na Guiné deste tempo sem ler este livro admirável, é mesmo de leitura obrigatória.
Orlando Ribeiro
_____________Notas do editor:
Vd. post de 14 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26496: Notas de leitura (1772): Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné: Uma mulher singularíssima, Bibiana Vaz, século XVII (1) (Mário Beja Santos)
Último post da série de 17 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26504: Notas de leitura (1773): "Os Mais Jovens Combatentes, A Geração de Todas as Gerações, 1961-1974", por José Maria Monteiro; Chiado Books, 2019 (Mário Beja Santos)
3 comentários:
Mário, o que a gente aprende contigo!... Não fazia a mínima ideia que o prof Orlando Ribeiro tivessse estado na Guiné, para mais mais no ano em que eu nasci...(ou seja, no tempo do Sarmento Rodrigues). É também um justa homenagem a um grandes vultos da ciência e da cultura portuguesas do séc. XX...
Para já retenho este excerto que tu selecionaste e citaste. Tu, eu e tantos outros, combatentes, iríamos aprender, à nossa custa, que aquela terra não era pera doce para um europeu... Talvez por isso nos tenha marcado tanto, no corpo e na alma...
E, segundo contas, o Orlando Ribeiro nem chegou a conhecer o "inferno verde" que era o sul da Guiné: vá lá, foi às colinas do Boé, onde nunca fomos, nem tu nem eu... Mas toda a orla do Geba e do Corubal, por onde andámos em penosas e dramáticas operações (como a Op Tigre Vadio, em finais de março/princípio de abril de 1970, deves estar bem lembrado...), também não eram propriamenmte sítios onde Cristo tivesse parado (nem muito menos onde o Judas tivesse perdido as botas):
(...) "A Guiné não é uma colónia de povoamento. Sejam quais forem os atrativos do desenvolvimento recente da capital e outras vilas proporcionem aos europeus, sem embargo da exceção velhos colonos que gozaram sempre de saúde e robustez, o clima é pouco propício aos brancos.
"O paludismo grassa com intensidade, principalmente na época das chuvas; as formosíssimas ilhas de Pecixe e Jata são grandes focos de doença do sono espalhada mais ou menos por toda a colónia, assim como a lepra, a disenteria amibiana, a ancilostomíase, etc.
"Saneou-se parte dos arredores de Bissau, mas é impossível sanear as bolanhas do litoral que são uma das grandes fontes de riqueza da Guiné pela cultura do arroz. A temperatura é elevada e torna-se molesta e depressiva, principalmente no interior, pior ainda quando no tempo das chuvas se lhes junta uma humidade sempre alta.
"Salvo durante umas breves horas da manhã ou à tarde estão vedados aos brancos o trabalho agrícola e a longa exposição ao Sol. Onde principalmente se vê quanto esta terra é imprópria para o europeu é no aspeto pálido e enfezado que as crianças normalmente robustas adquirem ao fim de pouco tempo de permanência. O branco vem para se demorar uns anos que os azares da vida podem alongar, mas nunca com o espírito de fixar-se; a família fica muito longe ou passa largas temporadas noutro clima. Lentamente o homem isolado, ruído pela melancolia, abandona-se à sedução das belezas locais e às vezes uma prole batizada pode fixá-lo a este solo hostil.” (...)
A Guiné, tal como Timor, sempre foi vista pela Lisboa monárquica, republicana ou estado-novista, como uma boa "colónia... de desterro"... O Amílcar Cabral, engenheiro agrónomo, tinha obrigação de conhecer o Orlando Ribeiro. Mas parece que não: num dos seus discursos para "investidor" ouvir, teve o desplante de referir que Lisboa se preparava para mandar 500 famílias para se fixarem e colonizarem a Guiné... Em plena guerra, imagina!...
Essa não devia lembrar nem ao diabo, ó Amílcar!... Com o "bem-bom" em Angola e Moçambique, haveria lá algum desgraçado que se quisesse fixar naquela terra palúdica... onde a água potável era um dos bens mais escassos e preciosos!...
Só dá razão quando se dizia que os soldados portugueses aguentariam tal clima. Devia-se à nossa robustez que a falta de condições com fomos criandos. Quantos milhares chegaram às incorporações sujeitos a trabalho duro desde crianças?
A Guiné era cemitério de brancos dito por ingleses.
Tambem Moçambique foi um calvário mas acabou por haver adaptação e fixação de colonos.
Um abraço
Os climas tropicais são melhores para evitar certas doenças para brancos e pretos do que os climas europeus.
É mais fácil a adaptação de um "robinson crusoé" branco ou preto numa ilha tropical do que numa ilha europeia.
Só precisa ter água em qualquer circunstância.
Claro que um pastor beirão ou transmontano não estranha tanto o isolamento sem farmácia e fogão a gás do que um calcinhas de Cascais.
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