À minha Mulher, às nossas Mulheres
por Virgínio Briote (*)
Em Santa Luzia, QG, Bissau
O aroma dela nas cartas,
falta pouco, um mês só, não vou a Lisboa esperar-te, mas quando puseres os pés em terra, lembra-te, estou contigo. Em Bissau, a noite quente não lhe trazia ideias. Uma folha toda em branco, enorme, com tanto espaço para responder, nem sabia como começar.
Quero estar contigo, sem mais ninguém por perto. Uma frase só numa carta. Não tenho mais para dizer, não sei o que escrever.
Vinte e quatro meses de cartas para lá e para cá. Escritas de coisas a encher papel, que de guerra não havia que dizer. Tinha cumprido, sem um desvio, o que tinha prometido a ele próprio, não falar de coisas de um mundo que se vivia longe. Que havia de dizer aos Pais e à namorada? De bazucas, de morteiros, de
costureirinhas, de feridos, de estropiados, de evacuações? De uma guerra que se discutia? Não, não à namorada e aos Pais nem pensar.

Quando falava da Guiné, era do tempo que escrevia. Do calor e da humidade que nunca sentira.
Vê lá tu, acabo de tomar banho e só de me limpar com a toalha estou outra vez a suar. E do tempo que falta,
já estou aqui há quatro meses, falta-me pouco para ir de férias. Umas férias que também nunca vieram, por culpa dele. Quem havia de se meter em sarilhos na Associação Comercial de Bissau? Quem havia de fazer frente a um coronel, na ordem de batalha, dizer-lhe nas trombas, com oficiais presentes, que ele, senhor coronel, estava errado na vocação?
Não posso ir de férias, fui castigado, na tropa diz-se punido, por falta de respeito a um senhor coronel. Já passou um ano, só falta o outro. Vai passar num rápido. Estou bem, em descanso, não tenho nada para fazer, limito-me a esperar pelo dia em que te vou abraçar. Não é preciso testemunhas, só quero estar contigo, os dois sós.

E foi assim, a descontar num calendário riscado dia a dia, que o regresso se foi fazendo, até Janeiro de 1967. Tinha embarcado para a Guiné em 10 de Janeiro de 1965 e, exactamente no mesmo mês e dois anos depois, estava no Uíge, de volta.
Não acreditava, a ponte Salazar acabada, a Conde de Óbidos na mesma, tantas cerimónias de idas e vindas depois. E o ar de Lisboa, o frio de Janeiro, as pessoas enroupadas e ele ainda cheio de calor, da reserva que trazia das terras quentes.
No Depósito de Adidos, pediram-lhe que aguardasse, já que estava cheio de pressa. Só o tempo para lhe passarem um papel para as mãos.
Passa à disponibilidade desde amanhã o Sr. Alferes Mil Gil da Silva Duarte, indo domiciliar-se em Fonte Seca, freguesia de Fonte Seca, concelho de Braga. O portador deste documento deverá apresentá-lo quando lhe for exigido pela autoridade militar ou civil, em substituição da sua caderneta militar. Quartel em Lisboa, 24 de Fevereiro de 1967. O Comandante, Fulano Ferreira de tal, coronel.

Na estrada para o Porto, mal deu pela viagem, fartou-se de dormir. Nem se lembra onde ficou, se em casa dos pais, se na da madrinha. Recorda-se, isso sim, do dia seguinte, a seguir ao almoço. O eléctrico para o Monte dos Burgos, o 6 por ali acima até ao Carvalhido, o passo acelerado até à rua dela, o toque na campainha, a corrida pelas escadas acima e ela a vir por ali abaixo.
Um dia frio de finais de Janeiro. O Porto era o Porto do Sol escondido, o eléctrico chiava pela Carvalhosa e Cedofeita abaixo até aos Aliados. Os olhos nem sabiam para onde se virarem, o cheiro era o mesmo
Lancôme. Dois anos depois e quase tudo na mesma.
Ao lado dele, Ela linda, de sobretudo azul escuro de botões prateados, os olhos levemente pintados, a cara lisa e redonda, os olhos magníficos. Ele, ainda cheio de calor, de blaizer azul escuro e calças cinzentas, camisa branca e gravata de tons vermelhos como gostava,
Atrix nas mãos dadas, rua 31 de Janeiro, de nome mudado para Santo António, acima até à Batalha, muito mais silêncio que palavras de ocasião. Um embaraço, tanto tempo depois, tantas palavras para dizer e tanto silêncio.

Porque não dizes nada? Mais perguntas, maior a vontade de se fechar. Um mundo diferente passava-lhe à frente. Pessoas nas ruas, sorridentes, a vida a correr e as recordações não despegavam. Bolanhas, camaradas, trilhos, coladeras, cerveja, tiros, uísque, terra a ferver, pés queimados, noites escuras e logo a seguir brilhantes como se dia fosse. Outro mundo, uma semana e pouco depois.
As nossas Mulheres. As que nos acompanharam desde os bancos das escolas. Que viveram, com a Cruz na parede das salas, com o olhar severo e crítico dos Pais, sempre presentes ao jantar, e o olhar benevolente e compreensivo das Mães, presentes o dia todo.
As nossas Mulheres. Amantes, de beijos roubados às portas das casas, de um sôfrego respiro de ânsias e desejos difíceis de esconder.
As nossas Mulheres. Que nos acompanharam com linhas escritas com lágrimas, em aerogramas de saudade e esperança numa vida que diziam estar, mesmo aqui, ao lado da esquina, amanhã, o mais tardar. De tão jovens, algumas não aguentaram tanta separação. Quem lhes leva a mal, que a vida é curta e a Guiné estava tão longe.
As nossas Mulheres. Que nos recolheram, exaustos de uma vida tão mal vivida, e nos ensinaram de novo a vivê-la.
Em 1971, quatro anos depois da Guerra e ainda à procura da paz.
Foto: © Virgínio Briote (2008). Direitos reservados
As nossas Mulheres. Que foram dando à luz e criando, quantas vezes sós, os filhos de uma geração desperdiçada, tantas vezes com os companheiros ausentes e desinteressados.
Às nossas Mulheres, às que estiveram nos Terreiros do Paço a receberem medalhas e a todas as Mulheres da nossa geração, que de uma ou outra forma, compartilharam a nossa vida.
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Nota dos editores LG/CV:
(*) Vd. poste de 11 de Julho de 2007 >
Guiné 63/74 - P1943: Virgínio Briote, novo co-editor do blogue
(i) Virgínio António Briote, 63 anos, nascido em Cascais.
(ii) Asp mil em Set de 1964, no BII17, Angra do Heroísmo, Terceira.
(iii) Mobilizado para Cabo Verde, dois dias depois para a Guiné. Engano, disse-lhe o Comandante do BII17.
(iv) Em rendição individual, foi para
Cuntima, onde permaneceu de Janeiro até Maio de 1965 na CCAV 489, do BCAV 490.
(v) No final da comissão do Batalhão, esteve nos Comandos, onde fez o 2º curso de Instrução.
(vi) Comandante do Grupo Diabólicos, de Setembro de 1965 até Junho de 1966.
(vii) Extinta a CCmds da Guiné nessa data, foi destacado com o remanescente dos grupos para reforço do sector de
Mansoa, onde se manteve até Set do mesmo ano.
(viii) Até à data de embarque em finais de Janeiro de 1967, prestou serviço na CCS do QG em
Bissau.
(ix) Na vida civil, ingressou na Indústria Farmacêutica, tendo trabalhado em várias multinacionais, como responsável pelos departamentos comerciais.
(x) Motivos de saúde obrigaram-no a reformar-se aos 60 anos. Dá colaboração a empresas farmacêuticas, em colaboração com empresas de recursos humanos.
(xi) Vive em Lisboa e é casado com a Mria Irene, professora do ensino secundário, ainda activíssima. É pai e avô... babado.
Vd. também o blogue do Virgínio Briote >
Guiné, Ir e Voltar - Tantas Vidas> Guiné. Ir e voltar.
1965 e 1967. Histórias baseadas em factos reais, mas vistas por um certo olhar. Outras vistas por esse olhar e que mais ninguém viu . (...).