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quarta-feira, 4 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24725: O segredo de... (39): António Medina: O surpreendente reencontro, em Bissau, em junho de 1974, com o meu primo Agnelo Medina Dantas Pereira, comandante do PAIGC



Foto nº 1



Foto nº 2

Lisboa > Antiga sede do BNU,  na Rua Augusta, que hoje aloja o Museu do Design e da Moda (MUDE). Esculturas de Leopoldo de Almeida (1964), que representam a expansão do BNU como banco emissor pelos antigos territórios ultramarinos portugueses (Foto nº 2), e os respetivos escudos (Foto nº1), incluindo a Guiné (cujo escudo é o da direita, a contar de baixo para cima, inspirado no original, a seguir descrito

"Escudo composto tendo a dextra em campo de prata, cinco escudetes de azul, cada um com cinco besantes de prata em aspa e a ponta, de prata com cinco ondas de verde - pretendiam simbolizar a ligação à metrópole; a sinistra em campo de negro, um ceptro de ouro com uma cabeça de africano, alusão ao ceptro utilizado por D. Afonso V, rei de Portugal à época da exploração da região. Brasão de armas simplificado, de 8 de maio de 1935 a 24 de setembro de 1973."

Fonte: BNU. (Reproduzido com a devida vénia...)




1. O António Medina (ex-fur mil op esp, CART 527, 1963/65) (foto acima)  não é homem para levar segredos para o outro mundo (*)... Desde que aderiu ao nosso blogue, em 15/2/2014, já partilhou aqui connosco alguns, a começar pelo seu "desenfianço" em Bissau, quando estava destacado no Cacheu, e que lhe poderia ter valido uma dura pena de prisão... por "deserção" (**).

Recorde-se que o nosso veteraníssimo António Medina, hoje com 84 anos feitos, já aqui nos contou como é que andou três dias "desenfiado" em Bissau, por causa de uns primos que tocavam no conjunto "Ritmos Caboverdianos"... (Ah! A saudade, quando dá num ilhéu! )

Estávamos em meados de 1964 e o que valeu ao Medina, que já não era "pira", mas já andava "apanhado do clima", foi um taxista, seu patrício, cabo-verdiano, que aceitou o risco de o levar de volta, de Bissau até Teixeira Pinto, por mil pesos, sem qualquer escolta (!)...

A única arma que o Medina levava debaixo do assento da viatura, e0ra a sua pistola-metralhadora FBP (de que pouco lhe valeria em caso de mina A/C ou de emboscada)...

Em João Landim, na travessia do Rio Mansoa, deu boleia a uma mulher que vendia ostras, e que ele já conhecia do Cacheu (onde estava destacado)... E lá seguiu a "coluna solitária" até ao Canchungo: o Medina, a mulher, o taxista... A história, completa, desta "pequena loucura" já foi reproduzida no poste P14945 (**)

Talvez o facto de viver nos EUA há mais de 40 anos, facilite a apetência do Medina para "ir ao confessionário" mais vezes do que outros camaradas, mais contidos.

Mas nem todos os seus segredos, já aqui contados, constam da competente série, "O segredo de...", que já tem 4 dezenas de postes.(*)

Alguns dos segredos aqui partilhados são "segredos de... Polichinelo", que poderiam também ser contados por qualquer um de nós... Todos tivemos, afinal, durante o serviço militar (de pelo menos 3 anos), alguns "pecados e pecadilhos", que nunca confessámos a ninguém, nem às paredes do nosso quarto... Às vezes apenas por falta de interlocutor ou "confessor", ou de ocasião ou de ambiente, e não tanto por autocensura ou receio da censura dos outros...

 Noutros casos nem se trata propriamente de "pecados ou pecadilhos", mas de situações que implicam alguma reserva, pudor, acanhamento,  constrangimento,  medo de ser julgado pelos antigos camaradas de armas, etc.

Mas já se ouviram aqui histórias espantosas que seria uma pena ficarem para sempre no "segredo dos deuses", o mesmo é dizer, perderem-se na voragem do tempo... São histórias que seguramente nunca chegaram (nem chegarão) ao Arquivo Histórico-Militar, ou outr0s arquivos públicos, mas que não sobreviverão ao "guardião da memória", que é cada um de nós, se não forem contadas...

Claro que nenhuma destas histórias vem "alterar" a visão final da História com H grande... Mas essa será sempre mais pobre, e mais descolorida, sem as nossas histórias com h pequeno...

É o caso desta, passada em Bissau, em junho de 1974, já com o PAIGC a preparar-se para se instalar nas cadeiras do poder, ainda dois meses antes da assinatura do acordo de Argel (25 de agosto de 1974) e três meses antes  da partida do "último soldado do império". 

Muitos dos nossos leitores não conhecem ainda este episódio, aqui contado no já  longínquo ano de  2014 (***).

Como está aceite, tacitamente, entre nós, não há críticas negativas ou depreciativas (por parte dos nossos comentadores) em relação a estes "segredos de confessionário". Tal como não há penitèncias...




Guiné > Região do Cacheu > Teixeira Pinto > Jolmete > CART 527 (1963/65) > O António Medina à esquerda, de perfil.

Foto (e legenda): © António Medina (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradasas da Guiné]


O segredo de António Medina > O surpreendente reencontro, em Bissau, em junho de 1974, com o meu primo Agnelo Medina Dantas Pereira, comandante do PAIGC


Ano de 1974, da revolução de cravos em Portugal. A voz da liberdade e a derrota do fascismo soaram aos residentes civis em Bissau, Guiné, bastante cedo, na manhã do dia 26 de Abril.

Era eu empregado do BNU desde 1967 e vivia como é obvio em Bissau com a minha mulher e três filhos pequenos, os dois primeiros já quase em idade escolar.

Não me vou alongar nesta estória mas julgo ser um facto bastante interessante que merece ser mencionado, até porque os protagonistas são relacionados com a guerra e tem laços de família.

Depressa reinou uma grande euforia em toda a cidade de Bissau. A caça ao homem e o saneamento começaram, alguns que por qualquer divisionismo familiar eram falsamente acusados, outros por terem sido informadores da PIDE, perseguição e prisão para aqueles que exerciam cargos de chefia nas repartições públicas ou privadas e que não mais mereciam confiança, aqueles que supostamente apoiaram o regime fascista, etc. Arruaças, espancamentos, ofensas, fuzilamentos (o mais notório foi do respeitado Régulo Batican Ferreira, de Teixeira Pinto, que foi do meu conhecimento pessoal quando estive no chão manjaco em 1963/65).

Tempos difíceis vividos sob a pressão constante de ser perseguido, espancado ou aprisionado, aliado à falta de géneros alimentícios que se fazia sentir em todos os aspectos.

Entretanto, chegam as forças do PAIGC a Bissau depois de parte das tropas Portuguesas começarem já a regressar a Lisboa, instalando-se em quartéis e ocupando outras instalações. O Banco Nacional Ultramarino (BNU), esse, lá continuava fazendo as suas operações diárias sem qualquer inconveniente.

Num daqueles dias de calor e humidade, já típico da época das chuvas, depois das 10:00 da manhã, fui chamado para atender um cliente que me procurava - era um militar natural da Guiné, das forças do PAIGC, armado com uma Kalashnikov.

Senti um calafrio pela espinha abaixo quando me aproximei dele que, sem qualquer preâmbulo, apenas me comunicou que eu teria de estar ao meio dia na sede do Partido, ao lado do Palácio. Esperando o pior, prontifiquei-me a estar presente, não perguntando de quem ou de onde vinha tal ordem, o militar mais não disse, retirando-se apressadamente.

Comuniquei imediatamente à minha mulher o assunto, pedindo-lhe que se mantivesse calma, que se me pusessem sob custódia ela deveria seguir quanto antes para Cabo Verde, Ilha do Fogo, onde tinha familiares. Aliás, ia sendo este o procedimento com quantos prontos para embarcarem foram proibidos de seguir viagem, sem justa causa.

Imaginem o meu sofrimento durante aquele tempo de espera, contando os minutos e segundos no meu relógio Cortebert. Foram os piores momentos da minha vida, os nervos e o medo não me deixaram mais trabalhar. Irrequieto e preocupado, sem qualquer concentração, andava de um lado para outro sem saber o que se me adivinhava. Na hora certa, saí correndo em direcção à sede do PAIGC para me apresentar a quem (?), no edifício da antiga messe dos Oficiais da Força Aérea Portuguesa.

Quando chego ao pé do sentinela, deparo-me com um sujeito, a uma curta distância, de meia estatura, barba cerrada, com a farda dos revolucionários mas desarmado, sorrindo para mim. Era o meu primo Agnelo Dantas, filho de uma tia, irmã do meu pai. Fiquei deveras surpreendido quando vi a realidade à minha frente, meu primo, um dos combatentes do PAIGC (#)

Ponderei surpreso por alguns momentos, me aproximei sem qualquer relutância e demo-nos então um caloroso e prolongado abraço fraterno. A convite dele entrámos no edifício e depois de um trago de whisky John Walker Black que me ofereceu, senti-me mais relaxado para se conversar.

O ambiente era confuso e barulhento, alguns deles sentados cavaqueando com outros das mesas ao lado, à espera que o almoço lhes fosse servido, outros de pé, encostados ao balcão do Bar conversando em alta voz, pessoas entrando e saindo, mostrando falta de preconceitos e princípios pela maneira como se sentavam e se comportavam à mesa, fruto de terem andado longe da civilização na floresta da Guiné, durante aqueles anos todos.

Sentamo-nos os dois numa mesa mesmo no canto da sala, foi ele pessoalmente ao balcão, pediu duas cervejas fresquinhas. Falamos da nossa infância e dos familiares que se queixavam da falta de notícias dele desde que seguiu para estudar em França. Atentamente ia eu ouvindo o tecer da sua experiência no mato, satisfazendo a minha curiosidade com as perguntas que lhe fazia.

Fiquei sabendo que não desconhecia a minha presença na Guiné, não só do tempo militar assim como de empregado bancário. Que tinha sido aliciado e recrutado com a idade de 20 anos por Amílcar Cabral, para a luta de Libertação da Guiné e Cabo Verde. Que embarcou para Cuba e se formou na Escola Militar em Havana. Que no tempo do general Spínola foi ele quem numa das noites bombardeou Bissau com três misseis teleguiados disparados da Ponta de Cumeré. Carregava com ele um diário repleto de informações recebidas dos colaboradores do Partido.

Chegam mais elementos, identifiquei-os como cabo-verdianos e reconhecemo-nos como amigos de infância, alguns ex-colegas do Liceu Gil Eanes em S. Vicente, Cabo Verde:

  • Honório Chantre,
  • Silvino da Luz,
  • Júlio de Carvalho,
  • Osvaldo Lopes da Silva, etc.

Era um grupo que também queria exteriorizar a sua alegria pelo fim da guerra e a independência da Guiné, reconhecida por Portugal, aguardando a vez de também lhes ser servido o almoço logo após haver mesas desocupadas.

Reinou grande alegria entre todos nós pelo reencontro e amizade, rejuvenescida no momento. Foi bebida à vontade para quem quisesse, cerveja Sagres bem geladinha, goles de whisky Johny Walker com gelo, eram sobras da velha senhora deixadas aí a custo zero por aqueles que partiram.

Como petisco, ostras e camarões cozidos e temperados com molho de piri-piri forte, mancarra torrada sem casca, tudo para matar a sede e o suor que trazia aquele calor asfixiante. De Jure, não sabia absolutamente nada que fossem filiados no Partido como combatentes. Apenas se ouvia dizer que tinhajm saído à procura de trabalho no estrangeiro.

Quando regresso a casa para o meu almoço, encontro a minha esposa bastante preocupada, com os nervos à flor da pele, sem ainda saber do que se tratava. Teve ela um grande alívio quando pela primeira vez conheceu o primo Agnelo mas discretamente me consciencializou e me convenceu que devíamos deixar a Guiné para outras paragens onde pudéssemos cuidar da educação dos nossos filhos e viver com mais tranquilidade.

Durante algum tempo o primo Agnelo esteve em Bissau e mantivemos ótimas relações. A minha mulher passou a cuidar das roupas dele, com frequência se juntava-se a nós para o nosso rancho.

Depois seguiu para Cabo Verde e ocupou o cargo de Chefe das Forças Armadas Revolucionárias do Povo (FARP). Mais tarde foi Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas.

Hoje é reformado como Coronel do Exército cabo-verdiano e vive na cidade da Praia. Comunicamo-nos com frequência através da Net mas nunca voltámos a falar da guerra, águas passadas nao movem moinhos.

Antonio Cândido Medina


(Revisão / fixação de texto / negritos: LG)



(#) Nota biográfica baseada em A Semana, [Em Linha], 27 de janeiro de 2007. "Retratos: Agnelo Dantas, soldado de Cabo Verde", por Gláucia Nogueira



Agnelo Medina Dantas Pereira (foto acima)
Fonte: Casa Comum / Arquivo Amílcar Cabral, com a devida vénia)


(i) o pai é da Brava e a mãe de Santo Antão, nasceu nesta ilha em 1945;

(ii) em 1965, ainda com 19 anos, encontrava-se em Paris quando foi contactado por Pedro Pires, e depois por Cabral, e convidado a integrar "o grupo de estudantes e operários" que iria fazer um treino militar em Cuba;

(iii) chegou à ilha, depois de uma passagem pela Argélia, onde já se encontrava uma parte do grupo, formado por 30 homens e uma mulher; o chamado "grupo de Cuba” durante dois dois anos recebeu treino militar, com o objectivo de fazer "um desembarque armado em Cabo Verde";

(iv) “foram cerca de dois anos, isolados nas montanhas, ou em quartéis formados ad hoc, para nós. Foi muito exercício táctico, físico, até o dia do juramento - 15 de Janeiro de 1967 - quando Cabral se desloca a Cuba para se reunir connosco”, conta Agnelo Dantas, que diz, estarem, na altura, todos “prontos para o desembarque”;

(v) pouco tempo depois, com a morte de Che Guevara (em outubro de 1967), os cubanos têm a noção de que os seus serviços de informação estavam infiltrados, já que o próprio cerco a Che terá resultado desse facto; foi então adiada "sine die" a ida para Cabo Verde, e os militantes partiram para a União Soviética para complementar a formação;

(vi) ao longo de 1968, Dantas especializa-se em artilharia e explosivos; a ida para Cabo Verde ia ficando cada vez mais longínqua; para não ficarem indefinidamente inactivos é-lhes proposta, pela direcção do Partido, a ideia de ir para a Guiné;

(vi) tem o seu baptismo de fogo no início de 1969, quando foi aberta a Frente Leste; daí em diante e até 1974, ora ao lado de Nino Vieira, ora de Pedro Pires, participou em todas as frentes de combate, sempre no mato: primeiro, foi chefe de pelotão, depois chefe de bateria; e em 1973 já tinha o seu posto de comando, na Frente Norte;

(vii) depois do 25 de Abril e durante o período de transição para a independência de Cabo Verde, altura de intensa luta política e diplomática, foram trazidas armas da Guiné, "para qualquer eventualidade", sendo nessa altura que se começaram a formar as Forças Armadas cabo-verdianas: a 5 de Julho, de 1975, data da independência de Cabo Verde, "já tínhamos exército";

(viii) em 200, à data da entrevista, era coronel reformado das Forças Armadas de Cabo Verde, foi condecorado a 15 de janeiro de 2007 com a medalha da Estrela de Honra pelo chefe do Estado-Maior das FA (cargo que também ocupou);

(ix) tem página no Facebook: Agnelo Dantas.

2. Comentário do editor LG:

Esta é uma realidade, ignorada ou esquecida por muitos de nós... Na Guiné, no teatro de operações da Guiné, houve familiares e parentes que se combateram de armas na mão, em campos opostos, quer guineenses, quer cabo-verdianos...

Não chegou a ser o caso do nosso camarada António Medina, já que o primo Agnelo era mais novo (cerca de seis anos) e ainda devia estar em Paris (ou já a caminho de Cuba) (#), quando o primo António terminou a sua comissão em 1965 e regressou à vida civil, acabando por se fixar em Bissau e ingressar, como bancário, em 1967, no BNU...

Não temos (eu não tenho...) estatísticas sobre os cabo-verdianos que combateram de um lado e do outro... De qualquer modo, é interessante a referência do António à presença, nesse encontro com o primo Agnelo, em Bissau, em junho de 1974, de outros combatentes do PAIGC, de origem cabo-verdiano, ex-colegas do Liceu Gil Eanes, no Mindelo, em São Vicente... (Nomes sonantes ou pesos pesados do PAIGC como Honório Chantre, Silvino da Luz, Júlio de Carvalho, ou Osvaldo Lopes da Silva.)

No Liceu Gil Eanes, fundado no tempo da I Repúblcia, em 1917, com a designação de Infante Dom Henrique (que manteve até 1938), estudou Amílcar Cabral bem como a "elite portuguesa-cabo-verdiana". Até 1961 era o único estabelecimento de ensino secundário do arquipélago, e por lá passou praticamente toda a elite local...

Os mais afortunados, os filhos das famílias com posses, seguiam depois para a metrópole para prosseguir os estudos superiores na universidade, ou até para o estrangeiro (como fpoi o caso do Agnelo, que em 1965 era estudante em Paris). Eram os/as "m'ninos/as de São V'cente"...

(Fonte: Luís Batalha, investigador do ISCPS, autor do capº 6º ("A elite portuguesa cabo-verdiana: ascensão e queda de um grupo social intermediário") do livro coordenado por Clara Carvalho e João Pina Cabral, "A persistência da história. Passado e contemporaneidade em África" (Lisboa, ICS, 2004, pp. 191-225).


____________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 12 de junho de 2023 > Guiné 61/74 - P24390: O segredo de... (38): António Branquinho (1947-2023): Passei-me dos carretos... Perante a recusa dos helis em levaram os nossos dois mortos, puxei a culatra atrás da G3 e gritei: 'Levais os mortos ou… dou-vos um tiro nos c….!' (Acção Galhito, 22/6/1971, regulado do Cuor, sector L1)

(**) Vd. poste de 29 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14945: O segredo de... (19): António Medina (ex-fur mil, CART 527, 1963/65, natural de Cabo Verde, mais tarde empregado do BNU, e hoje cidadão norte-americano): Desenfiado em Bissau por três dias, por causa dos primos Marques da Silva, fundadores do conjunto musical "Ritmos Caboverdeanos"... Teve de se meter num táxi, até Teixeira Pinto, que lhe custou mil pesos, escapando de levar uma porrada por "deserção"!

(***) Vd. poste de 21 de fevereiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12753: (De)caras (15): O meu primo Agnelo Dantas, e meu conterrâneo da ilha de Santo Antão, comandante do PAIGC, com quem me reencontrei no pós-25 de abril, em Bissau, era eu empregado bancário, no BNU - Banco Nacional Ultramarino (António Medina, ex-fur mil op esp, CART 527, Teixeira Pinto, 1963/65, a viver nos EUA, desde 1980)

sábado, 10 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24384: Os nossos seres, saberes e lazeres (576): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (106): Com sangue d’África, com ossos d’Europa: chegou a hora de me embrenhar na floresta mágica de Santo Antão (5) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Maio de 2023:

Queridos amigos,
Santo Antão vale, é remédio santo para quem porfia êxtases da natureza em espaço insular. Entra-se num coletivo em Porto Novo, o condutor é loquaz, manda olhar para aqui e para ali, olhe lá em cima para o farol de Lombo de Boi, há um estudante que diz que não é bem assim, chama-se farol Fontes Pereira de Melo, há uma paragem em Pombas, o que até agora foi secura e aridez, o que trouxe reminiscências de S. Vicente, começa-se a encher de arvoredo, que sobe pelas escarpas e se avista até ao cimo das montanhas, os nomes dos lugares são adoráveis, momentos há em que me parece que estou em S. Miguel, aliás vamos em direção à Ribeira Grande, depositados à porta do albergue, negoceia-se um passeio para o dia seguinte. Com a senhora italiana que nos acolhe, sorridente, é melhor falar francês, avisou-nos que domina o crioulo, o português moita, descemos por ruelas esconsas para comprar mantimentos e pelo caminho negoceia-se o jantar, virá a revelar-se um manjar dos deuses. Santo Antão já está a enlear-se em mim, atrai-me esta floresta de verde e o mar sempre próximo, consta que aqui chove e que estes leitos de calhaus rolados conhecem, durante escassos dias, a correnteza das águas que vêm dos altos, alguém informa que há minas, água com fartura, daí a diversidade agrícola. Para o dia de chegada, vinte valores.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (106):
Com sangue d’África, com ossos d’Europa: chegou a hora de me embrenhar na floresta mágica de Santo Antão (5)


Mário Beja Santos

Gosto muito desta primeira imagem, estamos ainda na baía de Mindelo, ao fundo o Monte Cara, sei que vou conhecer uma atmosfera bem distinta de S. Vicente, passei uma boa parte do serão a fazer uma síntese da História de Cabo Verde desde que os primeiros colonos aportaram em Santiago em 1462. Rapidamente o conjunto populacional tornou-se heterogéneo, fossem algarvios ou alentejanos deu-se a miscigenação com gente que vinha da Senegâmbia, formara-se uma sociedade escravocrata em Santiago e Fogo, ali confluem brancos, funcionários e degredados, negros que até vêm de Angola, começam as categorias de vizinhos e moradores, pretos-forros casados, escravos de confissão ou ladinos e escravos de doutrinação, os boçais; impossível não considerar o papel do cristianismo nesta fermentação cultural, missões, colégios e escolas aparecem sempre que há população; e muita gente lança-se no comércio da costa ocidental africana, recorde-se que André Álvares de Almada, a quem se deve uma das mais importantes obras da literatura de viagens, o Tratado breve dos Rios de Guiné (1594), era cabo-verdiano e cavaleiro da Ordem de Cristo; proliferam os proprietários da terra, um dia virá a abolição da escravatura, tudo irá mudar, ou quase.
Empolgo-me com este mar, venho à ré ver S. Vicente, a esfumar-se numa coroa de nuvens, Santo Antão vai ganhando nitidez, em breve recorda-se em toda a sua dimensão o Porto Novo, a mais importante infraestrutura portuária de Santo Antão, após desembarque negoceia-se o preço do coletivo e vamos para a próxima morada, Ribeira Grande, a dona é italiana de Bolzano, o marido é pescador, toca viola e canta, fará questão de perguntar sempre que peixinho queremos para o dia seguinte.
No coletivo vem a primeira advertência que nos próximos quilómetros não se espere mais do que muita secura, declives penhascosos sobre o mar, depois, sim, um oásis permanente, que nos preparemos para uma agricultura farta, montanhas e vales, paisagens de sonho.

À saída da baía do Mindelo
S. Vicente cada vez mais longe
Em frente, a terra prometida de Santo Antão, já se vê uma larga mancha de casario
Atenda-se à imagem, bem procurei brochuras, desdobráveis, nada, só mapas enormes que talvez sejam úteis para a rapaziada que faz escalada ou vem disposta a longos percursos pedestres. Dou-me bem com o nome das povoações, saímos em Porto Novo, iremos por Aguada, passa-se ao lado do Farol de Lombo de Boi, mas houve um jovem que me disse enfaticamente que o seu verdadeiro nome é Farol Fontes Pereira de Melo, fiquei intrigado, seguimos por Pombas, o condutor, brejeiro, fez saber que o único cemitério de pombas que existe no mundo é aquele, depois Sinagoga, que tem uma bela praia, pena foi, que no dia da visita, o mais estivesse tão endiabrado, temi ser atirado para aquelas rochas afiadas, limitei-me a contemplar a ondulação bravia na companhia de uma cerveja da terra; não esqueci o Paúl, que também visitarei, e que é um deslumbramento, registei imagens e vou mostrar, há mais de uma hora que vimos por boa estrada, o senhor Adelino larga-nos à porta do albergue, estamos num topo da Ribeira Grande, e já se começa a discutir o peixinho que se vai comer à noite.
A praia da Sinagoga, quem é que em dia de tanta braveza das águas se afoitava a mergulhar naquelas ondas, mas que tudo é belo neste vulcânico agreste, não subsistem dúvidas
Estava em Pombas a comer uma deliciosa cachupa e olhei para o alto, o que é que faz aqui Santo António, perguntei ao patrão do tasquinho, resposta pronta, o santo é nosso patrono, para a próxima venha às festas, até temos corridas de cavalos no leito dos rios, fiquei arrepiado com a informação, mas vi em Pombas monumentos aos cavalos e creio que quem tem devoção antonina se irá comprazer com esta imagem.
Santo Antão é assim mesmo e não há volta a dar, o senhor Adelino irá levar-nos num passeio para percorrer a Ribeira Grande, Corda, Esponjeira, Lagoa, Cova de Paúl, daqui regressaremos à Ribeira Grande para desfrutarmos a beleza primeiro de Xôxô e depois a Ponta do Sol, aqui até parece o fim do mundo mas vê-se à vista desarmada que é uma importante atração turística, tem hotéis e pensões à farta.
Houve um enorme passeio até a um ponto alto onde ficámos dois dias, como já disse teremos ao lado de um balcão imenso de onde se avista a montanha uma fábrica de grogue, com imenso trapiche e montanhas de cana do açúcar à porta. Perguntei se isto da cana era um exclusivo de Santo Antão, que não, S. Nicolau tem várias áreas dedicadas a esta cultura, os engenhos de açúcar estão referenciados há séculos, iremos ver trapiches em atividade (é o nome dado aos engenhos que moem a cana, puxados por animais, esta aguardente foi negócio para a costa da Guiné a troco de escravos, mas o que aqui hoje se pretende mostrar é o esplendor da montanha, por vezes com os seus cimos enevoados e como última imagem, pedi ao senhor Adelino para parar porque não acreditava no que estava a ver, aquela fenda de um bloco monumental de pedra erguia-se, e com alguma majestade uma árvore, com outra encostada ao lado, atenda-se àquela palha pelo chão espalhada, vestígios de que por ali passou a cana sacarina.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 3 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24364: Os nossos seres, saberes e lazeres (575): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (105): Com sangue d’África, com ossos d’Europa: com os pés no Mindelo, mas já a sonhar com Santo Antão (4) (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23833: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte IV - Guiné


1. Parte IV da publicação de um excerto do livro "Um Olhar Retrospectivo", de Adolfo Cruz (ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796 - Gadamael e Quinhamel, 1970/72), parte que diz respeito à sua vida militar.


IV - guiné…

Dia 31 de Outubro de 1970, outra data marcante, lá estamos, no Cais da Rocha Conde de Óbidos, o
nde o velho Carvalho Araújo nos aguardava para o embarque rumo à Guiné.

O agora capitão Assunção e Silva, promovido nessa altura, pôde confirmar a falta de mais dois graduados, o Cunha e o Rosa, nessa altura, já em França… Mas o Neves e o Cruz estavam presentes…

O capitão Assunção e Silva era conhecido, em Lamego, onde tinha dado instrução, por ‘assassino das falinhas mansas’, pelo baixo tom de voz e porque atingiu dois instruendos, durante a instrução, com bala real de G3.

Eu poderia ter pedido adiamento da ida para a Guiné, pois o meu irmão ainda estava em Moçambique, nesta altura, embora por mais dois ou três meses. No entanto, isso significaria mais tempo de serviço militar, para mim, abandonar a companhia já formada e ser mobilizado, novamente, em rendição individual, logo que o meu irmão chegasse.

Cerca do meio-dia, o Carvalho Araújo apita e começa a arrastar-se pelo Tejo, deixando aqueles lenços brancos a esvoaçar e as lágrimas das gentes a correr pelas tristes faces. A navegar, começámos a sentir uma certa instabilidade no navio, bastante de lado, água e lamas pelos corredores e pelos camarotes que utilizávamos, as portas dos corredores arrancadas para passarem a servir de passadeiras, sobre a água e lamas, uma maravilha. E eu que detestava barcos, não pelos barcos, em si, mas pela água, pois não conseguia ver o que estava lá em baixo…

Tudo indicava que não conseguiríamos comer com sossego e isso veio a verificar-se. Além do enjoo que se instalou, os tabuleiros com a comida deslizavam para todo o lado, ao sabor dos balanços do navio. Nos porões, onde era acondicionado o gado dos Açores, durante anos, os soldados tentavam descansar, com um enorme esforço para se alhearem daqueles odores impregnados, sem alternativa.

Ainda não tínhamos completado um dia de viagem, é-me entregue um telegrama. O sentido apurado de mãe e o facto de ter desconfiado da minha despedida, diferente do habitual, no seu dia de aniversário, levou-a a telefonar para o Campo Militar de Santa Margarida e correr tudo até lhe ser dito que eu tinha partido para a Guiné, já a navegar, no Carvalho Araújo! Aquele telegrama da minha mãe deixou-me um pouco triste mas, ao mesmo tempo, cheio de força para enfrentar a aventura que me esperava.

Um dia de felicidade, quando fizemos a escala em Cabo Verde, ilha de S. Vicente, cidade do Mindelo, onde estivemos cerca de doze horas, para abastecer o navio.

Antes de acostarmos ao cais, os miúdos mergulhavam nas águas transparentes daquele mar livre de poluição, para apanharem as moedas com a boca. Mas a felicidade acabou por ser aparente, durante aquelas horas pois, apesar de termos tido a possibilidade de comer bem e relaxar um pouco, o cenário encontrado deixou-nos infelizes, frustrados, revoltados.

Entrámos na cidade - aquilo era uma cidade?! - E procurámos os correios e um sítio onde houvesse jornais ou qualquer coisa que nos desse notícias. Estou nos correios, a preparar um telegrama para a Metrópole, quando sinto alguém a mexer-me nos pés: era um miúdo dos seus quinze anos a limpar-me os sapatos e com material para engraxar.

Disse-lhe que não precisava, pois havia muito pó e iria sujar-me, logo a seguir. Logo me respondeu que precisava de ajuda, que tinha o quinto ano, mas não havia trabalho. Dei-lhe uns escudos, que trocaria por pesos, a moeda local.

A casa do governador, uma moradia de traça tropical, um liceu novo e um hotel novo, tudo o que sobressaía daquele mundo de casinhas de madeira, algumas transformadas em cafés, com esplanadas, e muito, muito pó castanho avermelhado pelo ar. Ficção, pensava eu, mas as cabras e vacas passeavam pelas ruas e comiam papel de jornal!

O pior deste cenário triste era a prostituição, como é costume dizer-se, porta sim, porta sim, ao longo daquelas ruelas de terra e pó castanho, sinal da necessidade instalada.

Hora do almoço e sou aconselhado a comer no hotel. Lagosta enorme, Pesos 70$00 (Esc 70$00 = € 0,35). Garrafa de Casal Garcia, Pesos 120$00 (Esc 120$00 = € 0,60). Claro que os produtos atingem preços altos, mais por força do custo do transporte.

Cenários que foram mal reconstruídos e continuaram mal tratados, podendo ter tido outro destino, principalmente, no acompanhamento dos mais pequenos, aqueles que mais sofrem, pois têm de ajudar os pais, pobres e sem horizonte. 
Aliás, tivemos esse exemplo por cá, em certas zonas do país, como já falámos.

Viagem retomada, restavam-nos as cartas, lerpa, sete e meio e montinho, principalmente, com muito dinheiro a rolar na nossa frente. Final do dia, já noite, notámos a falta do nosso enfermeiro, o Vítor Coelho. De um lado para o outro, corremos tudo e nada dele. Continuámos, até que, num camarote, um rabo e umas pernas saíam de uma janelinha redonda, constatando que o resto do corpo estava do lado de fora do navio.

Era o Vítor Coelho, debruçado para o lado de fora, com um cabo de vassoura na mão, a que tinha atado uma faca de mato, em ângulo recto, a tentar apanhar um peixe voador. Só o Vítor Coelho poderia lembrar-se disto!…

Algum tempo depois, passámos pela capital, a cidade da Praia, na ilha de Santiago, com pena de não ter sido possível conhecer, pois era a parte mais avançada do arquipélago. Limitámo-nos a apreciar, de longe…

No decorrer da viagem, fomos dando algum conforto moral aos soldados, pois eram os que mais mereciam, dadas as circunstâncias em que viajavam. Comer, uma grande dificuldade, pois tudo andava às voltas…

E a viagem continuava longa, como nos tinham dito. O que não nos disseram foi que o navio andava de lado, com água nos corredores e camarotes pelo meio da perna, lama, probabilidade de incêndio, etc.

E dez dias passaram, até que chegámos ao porto de Bissau. Não nos deixaram desembarcar, claro, pois o anoitecer estava perto e tornava-se perigoso.

Sabe uma coisa, Daniel? Tenho pena de não ter preparado uma garrafa de vidro, com uma mensagem dentro, e atirá-la borda fora, lá no alto mar, só para ver onde iria ter e se teria resposta, como tantos fizeram…

Porto de Bissau, oito da manhã, toca a sair do navio e entrar nas viaturas militares que ali nos aguardavam, rumo ao Depósito de Adidos, em Brá, perto do aeroporto de Bissau.
Não poderia imaginar que já éramos conhecidos ou falados, mas logo nos disseram:
- Ah, são a 2796, a que vai para a colónia penal da Guiné?!

Como acabávamos de chegar, logo, designados ‘periquitos’, eu pensei logo que poderia ser uma espécie de praxe, para nos amedrontar. Organizámos o ‘acampamento’, ajudando os nossos homens na distribuição dos espaços e das tendas de campanha, após o que nos deram uma refeição rápida, na cantina do Depósito de Adidos.

Para os graduados, tendas individuais, um colchão pneumático, já com um ou outro gomo rasgado, mas era melhor do que nada. Silêncio, luzes de presença e segurança, ali estávamos a tentar descansar, já sentindo um certo cheiro a pó africano.

De repente, sinto qualquer coisa nas traseiras da tenda, que davam para a vedação de arame farpado, um som que correspondia a corte na lona. Mesmo na penumbra, vejo uma lâmina a entrar e a sair, lentamente, com cuidado, a cortar a lona, junto ao chão de terra castanha com tom avermelhado.

Consigo resvalar para o lado contrário, a saída da tenda, e rastejar de faca de mato na mão, a única coisa de defesa que tinha, pois ainda não tínhamos recebido as armas. Quando chego ao lado de trás, só vejo um vulto, africano, a correr em direcção ao arame farpado, dando um salto de peixe na primeira linha e novo salto na segunda linha, desaparecendo no escuro…

Logo chamei a atenção do sargento Moreira, no sentido de providenciar a distribuição de armas para o dia seguinte, logo de manhã, pois não se sabia que mais nos estava reservado, mesmo dentro do Depósito de Adidos.

Entretanto, tínhamos de aguardar disponibilidade de LDG (lancha de desembarque grande), com transbordo para LDM’s (lancha de desembarque média) e para LDP’s (lancha de desembarque pequena) ou batelões, caso apanhássemos a maré vazia, um grande problema.

O Daniel está a ver que lanchas são estas, as tais utilizadas no desembarque das forças aliadas, EUA, Inglaterra, França Livre e aliados, na Normandia, durante a Segunda Guerra Mundial, em 1944, considerada a maior invasão marítima da história, episódio que quase era dos nossos tempos. Parece que partiram todos de vários portos de Inglaterra, atravessaram o Canal da Mancha e invadiram a França ocupada pelos alemães, a Normandia.

Como eu ia dizendo, enquanto esperávamos pela hora da partida para o Sul, dava para umas visitas ali perto, Engenharia, Força Aérea, Comandos e à cidade, onde podíamos comer e beber umas coisas melhores do que no quartel, enquanto não nos avisavam da hora de partida para Gadamael Porto.

Na Força Aérea, encontrei um amigo da Figueira da Foz, o Flórido, que estava a acabar a comissão, logo, a preparar o regresso à Metrópole. Ficou contente por me ver e, ao mesmo tempo, preocupado comigo, quando lhe respondi que ia para Gadamael Porto, e isso respondeu à minha dúvida sobre o que nos tinham dito quando chegámos, ‘colónia penal…’.

Na cidade, além de tomarmos contacto com alguns locais que nos diziam interessantes e úteis, sinceramente, nada de jeito, tivemos a primeira noção de realidades estranhas, como produtos de consumo corrente com preços distintos, conforme procedentes da Metrópole ou importados, ou produtos inexistentes, sem justificação, para nós. Por exemplo, não havia água de Castelo, sumos e refrigerantes, logo, nacionais.

Havia água Perrier, coca-cola, logo, estrangeiras. Whisky, Gin, Licores de Whisky, por exemplo, imensas marcas, tudo original, importado - mais baratos do que qualquer bebida idêntica na Metrópole. Na esplanada de um café, um cálice balão de Whisky, Pesos 2,50 e uma água pequena Perrier, Pesos 7,50.

Os armazéns e retalho, principalmente, propriedade de portugueses, embora alguns de propriedade libanesa, pela tradição de comércio instalado, que era feito entre os países africanos, passando pela Guiné Conacry, atravessando a Guiné Bissau e seguindo pelo Senegal.

Vasta gama de equipamentos de alta-fidelidade e fotografia, pelo que adquiri um leitor gravador Hitachi, de boa qualidade, e uma máquina fotográfica Olympus.

Ainda me recordo de algumas casas, como a Casa Ultramarina, ligada ao BNU, a Casa Gouveia, ligada ao grupo CUF, a Casa António Pinto, conhecida por Pintosinho.

E fomos sabendo de algumas das etnias indígenas que encontraríamos pela Guiné, como Bailundos, Nalús, Sossos, Manjacos, Futa-Fulas, Fulas, Papeis, Balantas, Mandingas, Beafadas, Bijagós, Mancanhas, Felupes, Banhus, Tandas… Cada etnia tinha a sua própria cultura e estou a lembrar-me dos Manjacos que se distinguiam pelos panos que produziam em teares artesanais, os panos coloridos muito apreciados, as danças e sons muito característicos, só a título de exemplo.

E, apesar da grande confidencialidade, conseguimos um ’cheirinho’ sobre a razão da demora em partirmos para Gadamael Porto: qualquer coisa relacionada com as tais lanchas, ao mesmo tempo que davam a entender qualquer coisa de operações em curso, enfim, coisas que nada nos diziam, mas tinham todo o sentido, pelo que veio, a seguir…


(Continua)
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Nota do editor

Poste anterior de 29 de Novembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23827: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte III - Abrantes e Santa Margarida; três dias de detenção e, o Rosa e o Cunha

quarta-feira, 24 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23552: Meu pai, meu velho, meu camarada (68): Lembrando, no centenário do seu nascimento, a popular figura do lourinhanense Luís Henriques, o “Ti Luís Sapateiro” (1920-2012) - Parte VII

 

Cabo Verde > Ilha de São  Vicente > Mindelo > 9/11/2012 > 11h11 >  Baía do Porto Grande e Monte Cara, ao fundo.

Cabo  Verde > Ilha de São  Vicente > Mindelo > 9/11/2012 > 14h45 > Praia da Lajinha, porto e Ilhéu dos Pássaros, e a silhueta da Ilha de Santo Antão ao fundo.


Cabo  Verde > Ilha de São  Vicente > Mindelo > 9/11/2012 > 12h59 > O calçadão da Praia da Lajinha.

Cabo  Verde > Ilha de São  Vicente > Mindelo > 9/11/2012 > 12h11 >  Edifício da Câmara Municipal (trasnformado em hospital militar em 1941, com a chegada de tropas expedicionárias)

Cabo  Verde > Ilha de São  Vicente > Mindelo > 9/11/2012 > 16h45 > Rua típica, de traça colonial, com vendedeiras ambulantes.


Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > 9 de novembro de 2012 >  Algumas das fotos do álbum de João Graça, que passou por aqui, e passeou pela "capital da morabeza", em trânsito para a Ilha de Santo Antão, com a sua banda, os Melech Mechaya, por ocasião do Festival Sete Sóis Sete Luas

Mindelo, cidade cosmopolita com uma arquitetura  de toque colonial que reflete a influência portuguesa e inglesa, é a capital cultural de Cabo Verde, a terra da Cesária Évora, B.leza, Bana, Luís Morais, Tito Paris,  Bau, e de outros grandes músicos e cantores, terra da morna, da coladera, do funaná, do festival da Baía das Gatas... Terra que faz parte do imaginário da minha infância e à qual nunca cheguei a ir... Foi lá o João por mim, e pelo avô... em 2012. Espero ainda lá poder  ir um dia, mesmo sem o meu pai que amou tanto aquela terra... (LG)


Fotos (e legendas): © João Graça (2012). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Ao João, 
que foi visitar o avô Luís Henriques (1920-2012)
ao Mindelo,
em 9 de novembro de 2012,
seis meses depois da sua morte.


Ouço os passos do meu avô,
arrastando as botas cardadas
ao longo do calçadão da Praia da Lajinha.
E, mais atrás, vislumbro
a sombra frágil do seu impedido, o Joãozinho,
que há-de morrer, meses mais tarde,
por volta de junho de 1943.
De fome. Da grande fome.

Ouço a voz do dr. Baptista de Sousa,
diretor do hospital:
- Então, ó nosso cabo,
há quantos meses é que estás na ilha ?
- 26 meses, meu capitão.
- Eh!, pá, estás farto de engolir pó,
vou te já mandar p'ra casa!

Ouço o meu avô falar, em verso,
em certas noites de luar,
com o Monte Cara,
a Baía do Porto Grande,
e o Ilhéu dos Pássaros.

Ouço o meu avô perguntar
ao Fortunato Borda d'Água
enquanto lhe escreve mais uma das suas cartas
às suas namoradas:
- Ó Fortunato, afinal, de quem é que tu gostas mais ?
Da que ri ou da que chora ?

Vejo uma multidão de gente,
portugueses, africanos, ingleses,
erguer-se do Monte Verde,
abraçar a ilha
e cantar uma morna
à doce e mágica cidade do Mindelo.

Luís Graça

Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > 1942 > "A antiga cãmara [municipal] de Mindelo que hoje é hospital de soldados. Julho de 1942. Luís Henriques". [É hoje de novo, o edifício da Câmara Municipal do Mindelo]

 

Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > Hospital de São Vicente, fundado em 1899, no reinado do Rei Dom Carlos I (1889-1908). Foto do álbum do expedicionário, 1º Cabo Luís Henriques, nº 188/41. Foto; arquivo da família

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2020). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Título de caixa alta do “Diário de Lisboa”, 3 de setembro de 1945.



7. Continuação da "história de vida" de Luís Henriques (Lourinhã, 18/8/1920 – Atalaia, Lourinhã, 8/4/2012), conhecido popularmente na sua terra natal como "ti Luís Sapateiro": 
“Morreu o Luís Sapateiro (1920-2012), uma figura muita popular e querida da nossa terra”, lia-se no jornal “Alvorada”, Lourinhã, nº 1103, 20 de abril de 2012, p. 26. 

Assinalando a efeméride do seu centenário, em 202o, o seu filho editou, em pdf,  uma brochura, de cerca de 100 páginas de que temos estado a publicar alguns excertos, ilustrando com maior detalhe  a sua passagem por Cabo Verde,  durante a II Guerra Mundiaçl: foi 1º cabo atirador de infantaria, 3ª Companhia do 1º Batalhão do RI5 (Caldas da Rainha), unidade mais tarde integrada no RI 23 (São Vicente, Cabo Verde), 1941/43) (**).  

De maio a agosto de 1943, esteve hospitalizado, no Mindelo, com problemas pulmonares. De regresso à Lourinhã, em setembro de 1943, vinha "afanado" e cheio de saudades… de comer uvas. 

Depois de passar à disponibilidade, fará sociedade, durante mais de 10 anos, com o seu irmão Domingos Inocêncio Severino.  Abriram a sua própria oficina de sapataria, na Rua Miguel Bombarda, no atual nº 40 (se não erro). Chegam a ter bastantes empregados. Na época ainda não havia produção industrial de calçado. 

Recorde-se que, aos 13 anos, por volta de 1933/34, o meu pai terá uma nova família de acolhimento, a do seu tio materno, Francisco José de Sousa Jr. (de alcunha, “Fofa”), industrial de sapataria e músico, membro da então Banda dos Bombeiros Voluntários da Lourinhã ( atual Banda da AMAL - Associação Musical e Artística Lourinhanense, cujo presidente da direção é um seu neto, Paulo José de Sousa Torres). E é na empresa do tio, na Rua Grande  (R  João Luís de Moura) que aprende o ofício de sapateiro, que era a sua profissão antes da tropa.

O seu pai, e meu avô, Domingos Henriques (que terá nascido na década de 1890), casara 3 vezes: do primeiro casamento, não teve filhos, do segundo teve o meu pai, Luis, e o meu tio (e padrinho) Domingos, do terceiro teve mais mais 11. Com uma família tão numerosa e com as dificudades da época (anos 20/30), tanto o meu pai como  o seu irmão germano acabaram por ser criados pela  família do lado materno (***).

Mas, no verão de 1945, ainda voltará  a ser “chamado para a tropa”, para se integrar no desfile das forças expedicionárias portugueses que se iriam juntar às brasileiras, em Lisboa, em 3 de setembro de 1945. (Não sabemos se chegou a participar nesse desfile, uma vez que entretanto  partiu uma costela quando estava no quartel.)

Recorde-se este episódio, documentado em filme da então SPAC –Sociedade Portuguesa de Actualidades Cinematográfcias, documento hoje guardadoCinemateca Nacional:

(...) No dia 2 de setembro de 1945, aporta ao estuário do Tejo o navio “Duque de Caxias”, levando a bordo um regimento composta 162 oficiais e 1.636 sargentos e soldados, parte da FEB (Força Expedicionária Brasileira) que lutara na Itália, integrada no exército dos Aliados,  na   segunda guerra mundial, vem  do porto de Nápoles com destino final ao Rio de Janeiro .  

No dia seguinte, 3 de setembro de 1945, o Exército Português recebe os bravos militares brasileiros  com um desfile que envolveu mais  de 14 mil  soldados, viaturas militares de diversos tipos,  das armas de  infantaria e cavalaria. A Força Aérea, voando sob  os céus de Lisboa, associou-se ao evento. Milhares de pessoas assistiram entusiasticamente ao desfile.

O regimento expedicionário  brasileiro desfilou igualmente, saindo do Terreiro do Paço,  passando pela Rua Augusta, Rossio, Praça dos Restauradores, e subindo a Avenida da Liberdade até chegar a Praça do Marques de Pombal. Aí o general António Óscar Fragoso Carmona, presidente da república portuguesa, condecorou a bandeira do batalhão de infantaria da FEB com a Medalha de Valor Militar em grau de Ouro, a mais alta condecoração portuguesa.

O “Diário Popular”, desse dia, referiu-se ao evento, em título de caixa alta como “uma epopeia jamais vista em terras lusitanas”. O “Diário de Lisboa”, por sua vez, sublinha que “as tropas brasileiras (…) causaram esplêndida impressão e foram muito aclamadas”.

À noite, houve jantar com fados para oficiais e sargentos,  portugueses e brasileiros, em locais diferentes. Na Feira popular, militares e civis se misturaram numa confraternização  raramente vista em terras lusitanas. (...)


Lourinhã, Praça Cor António Maria Batista > 2 de fevereiro de 1946 > “Just married”, Maria da Graça e Luís Henriques, ela com 23 anos, ele com 25. A boda foi em Peniche, onde o Luís Henriques tinha primos…  Um dos luxos foi a lagosta, que com a II Guerra Mundial e o afluxo de refugiados em Portugal, começava a estar na moda….O casal parece estar junto ao automóvel de aluguer que os levou ao restaurante, em Peniche. 

Foto: arquivo da família.

Luís Henriques casa, entretanto, em 2 de fevereiro de 1946 com a Maria da Graça, natural do Nadrupe,  criada de servir de senhores e senhoras de Lisboa, da Praia e da Lourinhã, desde tenra idade. Namoravam-se  há já uns anos, ainda antes da tropa.  [Foto à direita].

Ela era filha de Manuel Barbosa, natural do Nadrupe, e de Maria do Patrocínio, natural da Lourinhã.  O apelido Graça não é de família: ela nasceu no dia 6 de agosto, dia da festa da padroeira da terra, a N. Sra. da Graça… A última (ou uma das últimas senhoras) onde ela serviu, foi a dona Rosa Costa Pina, professora primária, oriunda das Beiras.


Lourinhã, jardim da Senhora dos Anjos, c. agosto / setembro de 1947: eu, aos 8 meses, ao colo da minha mãe, Maria da Graça (1922-2014) e ao lado do meu pai, Luis Henriques (1920-2012). 

Foto: arquivo da família.


A 29 de janeiro de 1947 nasci eu. E 18 meses depois, a Graciete (que riá casar com o Cristiano Sardinha Mendes Calado,  Alter do Chão, 19/1/1941- Lourinhã, 21/5/2021). 

Até 1964, haverá ainda mais duas raparigas: Maria do Rosário e Ana Isabel.

O Luís Henriques continuará (pelo menos até ao início da década de 1950) a jogar futebol, como atleta amador, e ao mesmo tempo a participar na vida associativa das diversas coletividades da sua terra, desde o SCL - Sporting Club Lourinhanense, até aos bombeiros, a banda de música e a misericórdia e a colegiada de N. Sra.dos Anjos. É mordomo de festas locais (como a da Sra dos Anjos e de São Sebastião).



Lourinhã > c. 1950> Os dois filhos mais velho, Luís Manuel e Graciete. 
O meu pai sempre me tratou do "Lis Manel"

Foto: arquivo da família.



Alcobaça > 2 de julho de 1977 > No casamento da filha Maria do Rosário 
com o Mário Anastácio, filho de Bernardino Anastácio (Toledo, Lourinhã, 28/11/1925 - Lourinhã, 23/8/2017), 
barbeiro, músico, acordeonista. Ao seu lado direito, a filha mais nova, 
Ana Isabel. Na outra ponta, ao lado do noivo, a Maria da Graça.
 Foto: arquivo de família.

(Continua)
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Notas do editor:


(***) Vd. poste de 20 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21272: Meu pai, meu velho, meu camarada (62): Lembrando, no centenário do seu nascimento, a popular figura do lourinhanense Luís Henriques, o “Ti Luís Sapateiro” (1920-2012) - Parte I

terça-feira, 23 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23549: Meu pai, meu velho, meu camarada (67): Lembrando, no centenário do seu nascimento, a popular figura do lourinhanense Luís Henriques, o “Ti Luís Sapateiro” (1920-2012) - Parte VI

Cabo Verde > S. Vicente > Mindelo > Agosto de 1941 > "Dias depois da nossa chegada. O regresso do banho da linda praia da Matiota". [Luís Henrique está assinalado na foto, é o primeiro do lado esquerdo, da 3ª fila]. Foto: arquivo da família.


Verde > S. Vicente > Mindelo > Praia da Matiota > Maio de 1943 > "Matiota e a sua baía que é a melhor de S. Vicente, aonde se passa um bocado divertido". 

O meu pai falava muito deste local. Tendo nascido à beira-mar, e gostando de nadar, muito provavelmete passou aqui muitas das suas horas de lazer.  As forças do RI 5 (Caldas da Rainha), entretnato integradas no RI 23, estavam aquarteladas no Lazatero, no sopé do Monte Cara,a oeste do Mindelo. Na altura não havia aeroporto (hoje em São Pedro). Nem a Baía das Gatas (na ponta leste da ilha) era uma praia turística...

Foto: arquivo da família.


Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > Outubro de 1941 > "O belo porto de mar de São Vicente; ao centro o ilhéu que se confunde com um barco [o ilhéu dos Pássaros]". Foto: arquivo da família.


Cabo Verde > S. Vicente > 1943 > Postal da época,  foto Melo. Coladeira do S. João"  [ou cola san djon] >  Legenda no verso da foto (a tinta verde, já quase ilegível): "Dançando o batuque (sic) na Ribeira de São João, no dia de São João , no interior (?) de São Vicente. Luís Henriques. 24/6/1943". 

A festa de São João Baptista  continua a ser uma das festividades maiores das ilhas do Barlavento  e da comunidade cabo-verdiana da diáspora, por exemplo, no bairro da Cova da Moura, Amadora; ainda hoje, "em São Vicente a festa decorre na Ribeira de Julião, localidade que dista poucos quilómetros da cidade do Mindelo. Mesquitela Lima descreve-a como uma espécie de romaria onde há de tudo um pouco: missa, comeres, beberes e dança, acompanhada de tambores e de apitos. A dança é a umbicada. A anteceder o dia de São João Baptista, coincidindo com a festa pagã do solstício de Junho, há o tradicional saltar da fogueira (lumenaras)" . Foto: arquivo da família.


Cabo Verde > S. Vicente > Mindelo (ou Ribeira de Julião?) > c. 1943 > "Jantar em San Vicente. Nos tera. Nativos em festa. Recordação da minha estada em C. Verde (Expedição). 1941-1943. Luís Henriques". Presumimos que se trata de uma Foto Melo. Foto: arquivo da família.


Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > Maio de 1943 > "A cidade do Mindelo e ao fundo o Monte Verde. Vê-se parte da baía da Galé". 

A cidade na altura deveria ter 15 mil habitantes. O nº de militares aquartelados na ilha era de 3421: 3015 militares metropolitanos (oficiais: 145; sargentos: 233; praças: 2637) e 406 praças de recrutamento local,  o que dava um rácio de 228:1000 (228 militares por mil habitantes, ou mais do que um militar para cada cinco habitantes).  Os metropolitanos eram conhecidos, em São Vicente, como "mondrongos", termo depreciativo. Na fase da instalação da tropa houve inevitavelmente alguma perturbação e incidentes, mas em geral : "Entre os incómodos e transtornos, por um lado, e os benefícios e vantagens, por outro, o saldo da presença dos militares nas ilhas foi dum modo geral consideradi positivo. E a sua maior evidência é  o sentimento de nostalgia e saudade que a tropa metropolitana deixou nas populações cabo-verdianas" (Adriano Miranda Lima - Forças Expedicionárias a Cabo Verde na II Guerra Mundial. Mindelo, São Vicente, 2020, ed. de autor, pág. 95).

Foto: arquivo da família,


Cabo Verde > São Vicente > Mindelo > “Em 18/5/1943. No dia em que fui para o Depósito de Convalescentes. Os comandantes das esquadras de metralhadoras ligeiras do 2º Pelotão, 3ª secção: [da esquerda para a direita: ] A. C. Pratas, J. C. Filipe e Luís Henriques. Junto à porta da nossa caserna, no Lazareto”. 

Curiosamente, o meu pai (e os seus camaradas) aparece na foto, de cigarro na boca. Julgo que devia ser para a fotografia. Nunca vi o meu pai fumar. Foto: arquivo da família.


Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > Cemitério de Mindelo > 1943 > Foto do álbum de Luís Henriques (1920-2012), com a seguinte legenda: "Justa homenagem àqueles que dormem o sono eterno na terra fria. Companheiros de expedição os quais Deus chamou ao Juízo Final. Pessoal da A[nti] Aérea  [do Monte Sossego]  depois das cerimónias desfila fazendo continência às sepulturas dos companheiros. Oferecido pelo meu amigo Boaventura [Horta, conterrâneo, da Lourinhã,] no dia 17-8-1943, dia em que fiquei livre da junta (médica)."

Segundo o autor e a obra acima citados (Adriano Miranda Lima - Forças Expedicionárias a Cabo Verde na II Guerra Mundial. Mindelo, São Vicente, 2020, ed. de autor), morreram em São Vicente, entre 1941 e 1946, 40 militares das forças expedicionários (pág. 172) e 28 na ilha do Sal (pág, 173).

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2020). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.


6. Continuação da "história de vida" de Luís Henriques, ex-1º cabo at inf,  3ª Companhia do 1º Batalhão do RI5, unidade mais tarde integrada no RI 23 (São Vicente, Cabo Verde), 1941/43) (*).

Esteve no Mindelo entre julho de 1941 e setembro de 1943. Era natural da Lourinhã. Faria 102 anos, se fosse vivo, no dia 19 de agosto de 2022. 

A pandemia de Covid-19 impediu, há dois anos atrás, a realização de uma pequena sessão, pública, da homenagem que a família e alguns amigos lourinhanses queriam prestar-lhe por ocasião do seu centenário. 

 O seu filho mais velho, o nosso editor Luís Graça, reuniu entretanto, numa pequena brochura de 100 páginas, o essencial da informação documental sobre a sua vida (*).

Publicam-se hoje mais umas tantas fotos, legendadas, desse período de 26 meses em que  esteve no Mindelo. 

(Continua)
___________


(...) Antes de partir para Cabo Verde, o jovem Luís Henriques foi ao Nadrupe reiterar a sua vontade de continuar a namorar a filha do senhor Manuel Barbosa, pequeno agricultor com terras próprias (e outras de renda), e sete bocas para alimentar (a esposa e seis filhos, 3 rapazes e 3 raparigas)…

O futuro sogro terá sugerido que rompesse o namoro, porque não se sabia o que podia acontecer, “podia morrer ou arranjar outra” (sic)… Mas o meu futuro pai manteve-se fiel à promessa de continuar a namorar a Maria da Graça (que também assinava Maria da Graça Barbosa, mas no seu BI era apenas a Maria da Graça, nascida em 6 de agosto de 1922, no dia da festa local, o da N. Sra. da Graça). (...)

(...) À semelhança dos Açores (cuja guarnição militar foi reforçada com 30 mil homens, bem como da Madeira, com mil homens), para a defesa de Cabo Verde, e sobretudo das duas ilhas com maior importância geoestratégica, a ilha de São Vicente e a ilha do Sal, foram mobilizados 6358 militares, entre 1941 e 1944, assim distribuídos por 3 ilhas (i) 3361 (São Vicente): (ii) 753 (Santo Antão); e (iii) 2244 (Sal).

Mais de 2/3 dos efetivos estavam afetos à defesa do Mindelo (, ou seja, do porto atlântico, Porto Grande, ligando a Europa com a América Latina, a par dos cabos submarinos). 

Os portugueses, hoje, desconhecem ou conhecem mal o enorme esforço militar que o país fez, na época da II Guerra Mundial, para garantir a soberania portuguesa nos territórios ultramarinos. Cerca de 180 mil homens foram mobilizados nessa época. (...)

(...) Tinha memórias muito fortes (incluindo registos fotográficos, de que se selecionam aqui alguns) dos difíceis tempos que passou no Mindelo, Ilha de São Vicente (26 meses, entre julho de 1941 e setembro de 1943; nos últimos 4 meses esteve hospitalizado, por problemas pulmonares, entre maio e agosto de 1943). Mas voltemos à partida, em 18 de julho de 1941, do paquete "Mouzinho de Albuquerque, que teve honras de título de caixa alta no vespertino "Diário de Lisboa" (...)


(...) Um mês antes do Luís Henriques partir para Cabo Verde, no T/T “Mouzinho” (em 18 de julho de 1941), Portugal acabava de perder um barco de pesca e um navio da marinha mercante:

(i) o barco de pesca "Exportador I" fora cobarde e miseravelmente atacado a tiro de canhão por um submarino italiano. a sul do Cabo de São Vicente, em 1/6/1941....

(ii) o navio da marinha mercante portuguesa, de carga e passageiros, da Companhia Colonial de Navegação, o “Ganda”, de 4.333 toneladas brutas, com 72 tripulantes e passageiros a bordo, tinha sido atacado e afundado, em 20/06/1941, ao largo da costa de Marrocos, pelo submarino alemão U-123, sob o comando do capitão tenente Reinhard Hardegen (1913-2018): moreram 5 tripulantes e os s náufragos foram deixados à sua sorte, num salva-vidas, mas mais tarde recuperados por um navio de pesca português e outro espanhol.(...)


(...) Era casado com Maria da Graça (1922-2014), doméstica. Deixou, como descendentes, 4 filhos (Luís, Graciete, Maria do Rosário e Ana Isabel), 12 netos, 8 bisnetos. Era filho de Domingos Henriques Severino, natural do Montoito, e de Alvarina de Sousa, natural da Lourinhã, mas com raízes em Ribamar.

Tinha raízes, pelo lado do pai, Domingos Henriques Severino, no Montoito, e pelo lado da avó materna, Maria Augusta de Sousa, em Ribamar. Ficou órfão, aos 2 anos, de sua mãe, Alvarina de Sousa, natural da Lourinhã. (...)