Fonte: BNU. (Reproduzido com a devida vénia...)
Recorde-se que o nosso veteraníssimo António Medina, hoje com 84 anos feitos, já aqui nos contou como é que andou três dias "desenfiado" em Bissau, por causa de uns primos que tocavam no conjunto "Ritmos Caboverdianos"... (Ah! A saudade, quando dá num ilhéu! )
Estávamos em meados de 1964 e o que valeu ao Medina, que já não era "pira", mas já andava "apanhado do clima", foi um taxista, seu patrício, cabo-verdiano, que aceitou o risco de o levar de volta, de Bissau até Teixeira Pinto, por mil pesos, sem qualquer escolta (!)...
A única arma que o Medina levava debaixo do assento da viatura, e0ra a sua pistola-metralhadora FBP (de que pouco lhe valeria em caso de mina A/C ou de emboscada)...
Em João Landim, na travessia do Rio Mansoa, deu boleia a uma mulher que vendia ostras, e que ele já conhecia do Cacheu (onde estava destacado)... E lá seguiu a "coluna solitária" até ao Canchungo: o Medina, a mulher, o taxista... A história, completa, desta "pequena loucura" já foi reproduzida no poste P14945 (**)
Talvez o facto de viver nos EUA há mais de 40 anos, facilite a apetência do Medina para "ir ao confessionário" mais vezes do que outros camaradas, mais contidos.
Mas nem todos os seus segredos, já aqui contados, constam da competente série, "O segredo de...", que já tem 4 dezenas de postes.(*)
Alguns dos segredos aqui partilhados são "segredos de... Polichinelo", que poderiam também ser contados por qualquer um de nós... Todos tivemos, afinal, durante o serviço militar (de pelo menos 3 anos), alguns "pecados e pecadilhos", que nunca confessámos a ninguém, nem às paredes do nosso quarto... Às vezes apenas por falta de interlocutor ou "confessor", ou de ocasião ou de ambiente, e não tanto por autocensura ou receio da censura dos outros...
Mas já se ouviram aqui histórias espantosas que seria uma pena ficarem para sempre no "segredo dos deuses", o mesmo é dizer, perderem-se na voragem do tempo... São histórias que seguramente nunca chegaram (nem chegarão) ao Arquivo Histórico-Militar, ou outr0s arquivos públicos, mas que não sobreviverão ao "guardião da memória", que é cada um de nós, se não forem contadas...
Claro que nenhuma destas histórias vem "alterar" a visão final da História com H grande... Mas essa será sempre mais pobre, e mais descolorida, sem as nossas histórias com h pequeno...
É o caso desta, passada em Bissau, em junho de 1974, já com o PAIGC a preparar-se para se instalar nas cadeiras do poder, ainda dois meses antes da assinatura do acordo de Argel (25 de agosto de 1974) e três meses antes da partida do "último soldado do império".
Como está aceite, tacitamente, entre nós, não há críticas negativas ou depreciativas (por parte dos nossos comentadores) em relação a estes "segredos de confessionário". Tal como não há penitèncias...
Foto (e legenda): © António Medina (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradasas da Guiné]
Era eu empregado do BNU desde 1967 e vivia como é obvio em Bissau com a minha mulher e três filhos pequenos, os dois primeiros já quase em idade escolar.
Não me vou alongar nesta estória mas julgo ser um facto bastante interessante que merece ser mencionado, até porque os protagonistas são relacionados com a guerra e tem laços de família.
Depressa reinou uma grande euforia em toda a cidade de Bissau. A caça ao homem e o saneamento começaram, alguns que por qualquer divisionismo familiar eram falsamente acusados, outros por terem sido informadores da PIDE, perseguição e prisão para aqueles que exerciam cargos de chefia nas repartições públicas ou privadas e que não mais mereciam confiança, aqueles que supostamente apoiaram o regime fascista, etc. Arruaças, espancamentos, ofensas, fuzilamentos (o mais notório foi do respeitado Régulo Batican Ferreira, de Teixeira Pinto, que foi do meu conhecimento pessoal quando estive no chão manjaco em 1963/65).
Tempos difíceis vividos sob a pressão constante de ser perseguido, espancado ou aprisionado, aliado à falta de géneros alimentícios que se fazia sentir em todos os aspectos.
Entretanto, chegam as forças do PAIGC a Bissau depois de parte das tropas Portuguesas começarem já a regressar a Lisboa, instalando-se em quartéis e ocupando outras instalações. O Banco Nacional Ultramarino (BNU), esse, lá continuava fazendo as suas operações diárias sem qualquer inconveniente.
Num daqueles dias de calor e humidade, já típico da época das chuvas, depois das 10:00 da manhã, fui chamado para atender um cliente que me procurava - era um militar natural da Guiné, das forças do PAIGC, armado com uma Kalashnikov.
Senti um calafrio pela espinha abaixo quando me aproximei dele que, sem qualquer preâmbulo, apenas me comunicou que eu teria de estar ao meio dia na sede do Partido, ao lado do Palácio. Esperando o pior, prontifiquei-me a estar presente, não perguntando de quem ou de onde vinha tal ordem, o militar mais não disse, retirando-se apressadamente.
Comuniquei imediatamente à minha mulher o assunto, pedindo-lhe que se mantivesse calma, que se me pusessem sob custódia ela deveria seguir quanto antes para Cabo Verde, Ilha do Fogo, onde tinha familiares. Aliás, ia sendo este o procedimento com quantos prontos para embarcarem foram proibidos de seguir viagem, sem justa causa.
Imaginem o meu sofrimento durante aquele tempo de espera, contando os minutos e segundos no meu relógio Cortebert. Foram os piores momentos da minha vida, os nervos e o medo não me deixaram mais trabalhar. Irrequieto e preocupado, sem qualquer concentração, andava de um lado para outro sem saber o que se me adivinhava. Na hora certa, saí correndo em direcção à sede do PAIGC para me apresentar a quem (?), no edifício da antiga messe dos Oficiais da Força Aérea Portuguesa.
Quando chego ao pé do sentinela, deparo-me com um sujeito, a uma curta distância, de meia estatura, barba cerrada, com a farda dos revolucionários mas desarmado, sorrindo para mim. Era o meu primo Agnelo Dantas, filho de uma tia, irmã do meu pai. Fiquei deveras surpreendido quando vi a realidade à minha frente, meu primo, um dos combatentes do PAIGC (#)
Ponderei surpreso por alguns momentos, me aproximei sem qualquer relutância e demo-nos então um caloroso e prolongado abraço fraterno. A convite dele entrámos no edifício e depois de um trago de whisky John Walker Black que me ofereceu, senti-me mais relaxado para se conversar.
O ambiente era confuso e barulhento, alguns deles sentados cavaqueando com outros das mesas ao lado, à espera que o almoço lhes fosse servido, outros de pé, encostados ao balcão do Bar conversando em alta voz, pessoas entrando e saindo, mostrando falta de preconceitos e princípios pela maneira como se sentavam e se comportavam à mesa, fruto de terem andado longe da civilização na floresta da Guiné, durante aqueles anos todos.
Sentamo-nos os dois numa mesa mesmo no canto da sala, foi ele pessoalmente ao balcão, pediu duas cervejas fresquinhas. Falamos da nossa infância e dos familiares que se queixavam da falta de notícias dele desde que seguiu para estudar em França. Atentamente ia eu ouvindo o tecer da sua experiência no mato, satisfazendo a minha curiosidade com as perguntas que lhe fazia.
Fiquei sabendo que não desconhecia a minha presença na Guiné, não só do tempo militar assim como de empregado bancário. Que tinha sido aliciado e recrutado com a idade de 20 anos por Amílcar Cabral, para a luta de Libertação da Guiné e Cabo Verde. Que embarcou para Cuba e se formou na Escola Militar em Havana. Que no tempo do general Spínola foi ele quem numa das noites bombardeou Bissau com três misseis teleguiados disparados da Ponta de Cumeré. Carregava com ele um diário repleto de informações recebidas dos colaboradores do Partido.
Chegam mais elementos, identifiquei-os como cabo-verdianos e reconhecemo-nos como amigos de infância, alguns ex-colegas do Liceu Gil Eanes em S. Vicente, Cabo Verde:
- Honório Chantre,
- Silvino da Luz,
- Júlio de Carvalho,
- Osvaldo Lopes da Silva, etc.
Reinou grande alegria entre todos nós pelo reencontro e amizade, rejuvenescida no momento. Foi bebida à vontade para quem quisesse, cerveja Sagres bem geladinha, goles de whisky Johny Walker com gelo, eram sobras da velha senhora deixadas aí a custo zero por aqueles que partiram.
Como petisco, ostras e camarões cozidos e temperados com molho de piri-piri forte, mancarra torrada sem casca, tudo para matar a sede e o suor que trazia aquele calor asfixiante. De Jure, não sabia absolutamente nada que fossem filiados no Partido como combatentes. Apenas se ouvia dizer que tinhajm saído à procura de trabalho no estrangeiro.
Quando regresso a casa para o meu almoço, encontro a minha esposa bastante preocupada, com os nervos à flor da pele, sem ainda saber do que se tratava. Teve ela um grande alívio quando pela primeira vez conheceu o primo Agnelo mas discretamente me consciencializou e me convenceu que devíamos deixar a Guiné para outras paragens onde pudéssemos cuidar da educação dos nossos filhos e viver com mais tranquilidade.
Durante algum tempo o primo Agnelo esteve em Bissau e mantivemos ótimas relações. A minha mulher passou a cuidar das roupas dele, com frequência se juntava-se a nós para o nosso rancho.
Depois seguiu para Cabo Verde e ocupou o cargo de Chefe das Forças Armadas Revolucionárias do Povo (FARP). Mais tarde foi Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas.
Hoje é reformado como Coronel do Exército cabo-verdiano e vive na cidade da Praia. Comunicamo-nos com frequência através da Net mas nunca voltámos a falar da guerra, águas passadas nao movem moinhos.
Antonio Cândido Medina
(Revisão / fixação de texto / negritos: LG)
(#) Nota biográfica baseada em A Semana, [Em Linha], 27 de janeiro de 2007. "Retratos: Agnelo Dantas, soldado de Cabo Verde", por Gláucia Nogueira
(i) o pai é da Brava e a mãe de Santo Antão, nasceu nesta ilha em 1945;
(ii) em 1965, ainda com 19 anos, encontrava-se em Paris quando foi contactado por Pedro Pires, e depois por Cabral, e convidado a integrar "o grupo de estudantes e operários" que iria fazer um treino militar em Cuba;
(iii) chegou à ilha, depois de uma passagem pela Argélia, onde já se encontrava uma parte do grupo, formado por 30 homens e uma mulher; o chamado "grupo de Cuba” durante dois dois anos recebeu treino militar, com o objectivo de fazer "um desembarque armado em Cabo Verde";
(iv) “foram cerca de dois anos, isolados nas montanhas, ou em quartéis formados ad hoc, para nós. Foi muito exercício táctico, físico, até o dia do juramento - 15 de Janeiro de 1967 - quando Cabral se desloca a Cuba para se reunir connosco”, conta Agnelo Dantas, que diz, estarem, na altura, todos “prontos para o desembarque”;
(v) pouco tempo depois, com a morte de Che Guevara (em outubro de 1967), os cubanos têm a noção de que os seus serviços de informação estavam infiltrados, já que o próprio cerco a Che terá resultado desse facto; foi então adiada "sine die" a ida para Cabo Verde, e os militantes partiram para a União Soviética para complementar a formação;
(vi) ao longo de 1968, Dantas especializa-se em artilharia e explosivos; a ida para Cabo Verde ia ficando cada vez mais longínqua; para não ficarem indefinidamente inactivos é-lhes proposta, pela direcção do Partido, a ideia de ir para a Guiné;
(vi) tem o seu baptismo de fogo no início de 1969, quando foi aberta a Frente Leste; daí em diante e até 1974, ora ao lado de Nino Vieira, ora de Pedro Pires, participou em todas as frentes de combate, sempre no mato: primeiro, foi chefe de pelotão, depois chefe de bateria; e em 1973 já tinha o seu posto de comando, na Frente Norte;
(vii) depois do 25 de Abril e durante o período de transição para a independência de Cabo Verde, altura de intensa luta política e diplomática, foram trazidas armas da Guiné, "para qualquer eventualidade", sendo nessa altura que se começaram a formar as Forças Armadas cabo-verdianas: a 5 de Julho, de 1975, data da independência de Cabo Verde, "já tínhamos exército";
(viii) em 200, à data da entrevista, era coronel reformado das Forças Armadas de Cabo Verde, foi condecorado a 15 de janeiro de 2007 com a medalha da Estrela de Honra pelo chefe do Estado-Maior das FA (cargo que também ocupou);
(ix) tem página no Facebook: Agnelo Dantas.
2. Comentário do editor LG:
Esta é uma realidade, ignorada ou esquecida por muitos de nós... Na Guiné, no teatro de operações da Guiné, houve familiares e parentes que se combateram de armas na mão, em campos opostos, quer guineenses, quer cabo-verdianos...
Não chegou a ser o caso do nosso camarada António Medina, já que o primo Agnelo era mais novo (cerca de seis anos) e ainda devia estar em Paris (ou já a caminho de Cuba) (#), quando o primo António terminou a sua comissão em 1965 e regressou à vida civil, acabando por se fixar em Bissau e ingressar, como bancário, em 1967, no BNU...
Não temos (eu não tenho...) estatísticas sobre os cabo-verdianos que combateram de um lado e do outro... De qualquer modo, é interessante a referência do António à presença, nesse encontro com o primo Agnelo, em Bissau, em junho de 1974, de outros combatentes do PAIGC, de origem cabo-verdiano, ex-colegas do Liceu Gil Eanes, no Mindelo, em São Vicente... (Nomes sonantes ou pesos pesados do PAIGC como Honório Chantre, Silvino da Luz, Júlio de Carvalho, ou Osvaldo Lopes da Silva.)
No Liceu Gil Eanes, fundado no tempo da I Repúblcia, em 1917, com a designação de Infante Dom Henrique (que manteve até 1938), estudou Amílcar Cabral bem como a "elite portuguesa-cabo-verdiana". Até 1961 era o único estabelecimento de ensino secundário do arquipélago, e por lá passou praticamente toda a elite local...
Os mais afortunados, os filhos das famílias com posses, seguiam depois para a metrópole para prosseguir os estudos superiores na universidade, ou até para o estrangeiro (como fpoi o caso do Agnelo, que em 1965 era estudante em Paris). Eram os/as "m'ninos/as de São V'cente"...
(Fonte: Luís Batalha, investigador do ISCPS, autor do capº 6º ("A elite portuguesa cabo-verdiana: ascensão e queda de um grupo social intermediário") do livro coordenado por Clara Carvalho e João Pina Cabral, "A persistência da história. Passado e contemporaneidade em África" (Lisboa, ICS, 2004, pp. 191-225).
http://www.iscsp.utl.pt/~lbatalha/downloads/eliteportuguesacaboverdiana.pdf
Notas do editor:
(*) Último poste da série > 12 de junho de 2023 > Guiné 61/74 - P24390: O segredo de... (38): António Branquinho (1947-2023): Passei-me dos carretos... Perante a recusa dos helis em levaram os nossos dois mortos, puxei a culatra atrás da G3 e gritei: 'Levais os mortos ou… dou-vos um tiro nos c….!' (Acção Galhito, 22/6/1971, regulado do Cuor, sector L1)
(**) Vd. poste de 29 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14945: O segredo de... (19): António Medina (ex-fur mil, CART 527, 1963/65, natural de Cabo Verde, mais tarde empregado do BNU, e hoje cidadão norte-americano): Desenfiado em Bissau por três dias, por causa dos primos Marques da Silva, fundadores do conjunto musical "Ritmos Caboverdeanos"... Teve de se meter num táxi, até Teixeira Pinto, que lhe custou mil pesos, escapando de levar uma porrada por "deserção"!
(***) Vd. poste de 21 de fevereiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12753: (De)caras (15): O meu primo Agnelo Dantas, e meu conterrâneo da ilha de Santo Antão, comandante do PAIGC, com quem me reencontrei no pós-25 de abril, em Bissau, era eu empregado bancário, no BNU - Banco Nacional Ultramarino (António Medina, ex-fur mil op esp, CART 527, Teixeira Pinto, 1963/65, a viver nos EUA, desde 1980)