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segunda-feira, 16 de junho de 2025

Guiné 61/74 - P26924: Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo) - Adenda: Kalú de Nhô Roque e a sua "circunstância"



Capa do livro de Carlos Filipe Gonçalves (que teve a gentileza de nos mandar, a título pessoal, uma cópia em pdf deste seu livro; a edição de 2019 está esgotada).

Ficha técncia:

Título: Bá Da'l na Rádio – Memórias da Rádio Barlavento
Autor: Carlos Filipe Gonçalves
Editora : LPC – Livraria Pedro Cardoso – Bairro da Fazenda, Cidade da Praia, Cabo Verde.
Ano : 2019
Nº páginas : 252
ISBN : 978-989-8894-34-2


Sinopse: o titulo é em crioulo, significa literalmente: Vai dar isso na rádio. Ou seja, vai difundir isso na rádio. Trata-se uma frase jocosa que surgiu depois da invasão / assalto da Rádio Barlavento, na Ilha de S. Vicente, em Dezembro de 1974, em pleno período «revolucionário» após o 25 de Abril. É que o assalto ou «tomada da rádio» foi justificado por uma «soit disant» democratização/pluralismo de acesso, o que na verdade não se verificou porque todos os elementos contrários à «Unidade entre a Guiné e Cabo-Verde» foram presos poucos dias depois...

Teve início então uma avalanche de «comunicados revolucionários» depois das reuniões do comités do PAIGC, que eram enviados à rádio! Surgiu então esta frase jocosa, a criticar esta situação… Começou deste modo o «regime de Partido Único»…

Carlos Filipe Gonçalves, que começou a trabalhar na Rádio Barlavento aos 16 anos, conta as recordações dele, de colegas e amigos que lá trabalharam, descreve o contexto social da época e traça o percurso histórico que culmina no assalto e encerramento daquela rádio e do Grémio Recreativo Mindelo em 1974: um acerto de contas numa luta de classes latente desde inícios do século XX que terminou com a nacionalização dos órgãos de comunicação social e um monopólio/situação dominante do Estado que vigora até ao presente. (*)


I. O Carlos Filipe Gonçalves, nosso antigo camarada na Guiné (foi fur mil amanuense,  CefInt/QG/CTIG, Bissau, 1973/74), é uma figura pública no seu país, Cabo Verde (ver aqui entrada na Wikipedia). 

Fez questão de partilhar connosco, em 9 (+5) postes, as suas recordações desse tempo (**). Por dever e direito de memória, que assiste a qualquer um de nós, antigos combatentes. 

Temos trocado com ele algumas mensagens, e ele tem gentilmente respondido a perguntas nossas ou comentários dos nossos leitores. 

Os excertos que aqui publicámos fazem parte de um livro que ele tem em mãos, mas, para efeitos de publicação no nosso blogue, ele omitiu as notas de rodapé  e outras informações mais detalhadas. Daí fazer sentido publicar uma "adenda" à sua série, "Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74)".


II. Mensagem de Carlos Filipe Gonçalves, com data de 10 de junho último:


Olá caro amigo e camarada:

Antes de mais, desejos de vida e saúde.

Sobre a tua pergunta, o conteúdo dos pontos 1 e 2 é público; são dados conhecidos de biografias dessas pessoas.

O ponto 3 é a minha resposta a alguns comentários que foram feitos, nos meus postes. Logo é público.  

Sobre o teu comentário, em que dizes que passaste a conhecer melhor as minhas origens e ligações - afinal o mundo é pequeno!... Devo chamar a tua atenção, no meu texto já publicado (Despedida e Partida para a Guiné, poste P26819, de 20 de maio de 2025), faço uma referência à minha tia Orlanda Amarílis (1924-2014), que foi se despedir de mim no cais da Alcântara. 

Aliás, durante o tempo que estive em Portugal desde Dezembro de 1971 a Fevereiro de 1972 passava os fins de semana em casa da Orlanda Amarílis e do meu tio Manuel Ferreira, em Linda a Velha.

Outro dado, que devo indicar é que Manuel Ferreira  conheceu e namorou a Orlanda na mesma casa de família onde eu cresci, em Mindelo, onde vivia o meu avô, Roque da Silva Gonçalves, pai de António Aurélio Gonçalves, o escritor, um dos fundadores com Baltazar da revista Claridade em 1936. 

Ora, o meu avô Roque faleceu e o filho, António de Nhô Roque, acabou a ser conhecido apenas, por Nhô Roque! Bem, eu como fui educado pelo meu tio António de Nhô Roque, acabei também por passar a ser chamado de Kalú de Nhô Roque. 

Devo explicar, em Cabo Verde, tradicionalmente, as pessoas, são referidas pela evocação da ascendência dos familiares mais próximos ou diretos, ou seja, pai, avô ou bisavô: António de Nhô Roque, é, pois, António, filho de Nhô Roque... 

Continuando, Manuel Ferreira acabou por se integrar na elite literária de Mindelo, através das relações que desenvolveu com a nossa família. O meu tio António é primo da Orlanda, é parente próxima do poeta José Lopes, a quem ela e minha mãe chamavam tio José Lopes. 

O pai da Orlanda Amarílis, que é Armando Napoleão Fernandes (meu avô),  é o autor do primeiro Dicionário Crioulo Português, já pronto em meados dos anos de 1940.

 Manuel Ferreira casou-se com a Orlanda, em casa do genro, em Santa Catarina (Vila da Assomada),  Ilha de Santiago; foi uma festa que contou o tradicional Batuque que antecede as bodas. Como estás, a ver o Manuel Ferreira teve contactos profundos com Cabo Verde e com a elite literária, daquele tempo....

Agora, referencias num poste e comentário, sobre o Grémio Recreativo Mindelo, alguém escreveu sobre Rafael Torres e outros a tocarem naquele clube... pois, é, esse conjunto era do meu pai, Arnaldo Gonçalves (Naldinho) pianista, muito conhecido. 

No meu canal You Tube poderás escutar Naldinho Morna Perseguida FINAL uma faixa do conjunto Centauros; na foto pode-se ver, Rafael Torres, o primeiro à direita, a seguir, Ângelo Lima, afamado guitarrista, foi um membro ativo do partido UDC (União Democrática de Cabo Verde), foi preso dezembro de 1974, enviado para o Tarrafal, juntamente umas dezenas dos chamados «contrarrevolucionários», seriam soltos na véspera da Independência. 

O meu pai não foi preso, foi para Portugal em março de 1975, como era casado com uma grega, foi para Atenas, onde faleceu em fevereiro de 1991.

O livro sobre a Rádio Barlavento, está esgotado, mas, vou te enviar uma cópia em PDF, para teu consumo privado, agradecia que não fosse divulgada, devido aos direitos editoriais e de autor.



Fonte: (1963-1973), "Júlio de Carvalho, Tchifon, Cláudio Duarte e Valdemar Lopes", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43496 (2025-5-31) (Coim a devida vénia...)


III. Mensagem  anterior, com data de 2 de junho, do Kalú de Nhô Roque:


1. Sobre a foto, eis as pessoas nela constantes (vd. poste P26871) (**): 

  • Eduardo Silva Santos ("Tchifon"). Mindelo, S. Vicente 1942 – 22 de Janeiro de 1997. Depois de uma comissão na tropa em Moçambique, integrou o PAIGC; 
  • Claúdio Duarte, vive desde 1975 na Praia, foi estudante em Louvain na Bélgica (não tenho a data de nascimento, mas se conseguir envio; 
  • Valdemar Lopes da Silva ("Val de Nhô Balta"),  músico, violão – Mindelo, S. Vicente, 1943 – 2000. Filho do célebre escrito Baltazar Lopes da Silva. Organizou o grupo musical que gravou o disco de música revolucionária, em 1973 intitulado “Música Cabo Verdiana Proteso e Luta” que marca uma época depois do 25 de Abril. 

Nota – enviarei por outro email a biografia do Valdemar Lopes da Silva que consta do meu livro, “Kab Verd Band Música & Tradições” ed. do autor Carlos Filipe Gonçalves, em 2023; é um dicionário da música de Cabo Verde, com mais de 3 mil entradas/verbetes 700 páginas.


2. JJ não consta da foto – Dados, resumidos: João José Lopes da Silva, mais conhecido por JJ, Ilha do Fogo, 26 de Dezembro de 1947 – Praia, Janeiro de 2015. Abandonou em 1969 o curso de engenharia na Universidade de Coimbra para integrar o PAIGC.

 Li os comentários no Blog. Como já esperava, surgem questões sempre relacionadas com a ausência dos rodapés que explicam pormenores no texto, neste caso, as biografias do JJ e Tchifon. 

Por outro lado, por se tratar de extractos, muitas descrições, ficam desenquadradas de contextos anteriormente descritos. Note-se, este meu livro, não é simplesmente uma descrição do que eu vi ou do meio em que vivi em Bissau. No livro, descrevo as impressões de um cabo-verdiano (que sou eu) no ambiente social em Bissau, os problemas vários que enfrentei, etc. 

Por isso, vou te enviar, não para publicação, mas para tua informação, o capítulo 4 (completo) do livro, que que te dará uma outra visão. 

Nos capítulos anteriores sobretudo durante a viagem de Lisboa a Bissau, em «flash back» conto toda uma história da pressão da Pide em Mindelo, de como isso afectava os jovens, depois, como eu, faço tudo em Tavira, para eu e outros colegas, nos «safarmos» e passar aos serviços auxiliares…. 

Surpresa, foi numa consulta no Hopistal Militar em Évora que encontro, um oficial que tinha uma filha casada com um cabo-verdiano e tinha sido minha professora… não vou contar mais… Bem, acredita acabei até por voltar a Mindelo, antes do final da recruta…. Etc. e tal…

A segunda parte do livro, que pode parecer apenas do interesse de guineenses e cabo-verdianos…, conta como vivi e vi o início de uma «repressão» violenta que foram vítimas, antigos militares e pessoal civil guineense… assisti à purga de Março de 1975…. Apresento biografias e dados sobre os cabo-verdianos envolvidos nessas prisões, felizmente, não foram fuzilados…


3. Como, sou o sobrinho e fui educado por António Aurélio Gonçalves, o escritor mentor do movimento Claridade juntamente com Baltazar Lopes da Silva, fui bem acolhido em Bissau depois da vinda do PAIGC,


III. Mensagem de 9 de junho:


Respondi à tua msg, sobre esse assunto, não foi enviado, por isso utilizo agora este meu outro email:

Acabo de receber o teu link, já vi a foto do meu post que publiquei há uns anos. Olha trata-se do Grémio Recreativo Mindelo, era um clube que reunia as pessoas da sociedade mindelense; era a proprietária da Rádio Barlavento. Olha, escrevi um livro sobre a Rádio Barlavento e o Grémio. O meu pai foi um dos fundadores e o último director dessa rádio, aconteceu com ele a «tomada da rádio» pelo PAIGC, eu me encontrava em Bissau, foi em 9 de Dezembro de 1975...

No livro desmistifico a propaganda que foi feita sobre o Grémio e os seus associados, conto a História da Rádio Barlavento. O meu pai acabou exilado em Atenas, Grécia, só nos, vimos 15 anos depois, os meus irmãos, só, nos vimos em 2007 e 2009 respectivamente. Estás a ver a tragédia que foi isso tudo… O título do livro: «Bá D’al na rádio Memórias da Rádio Barlavento, ed. Livraria Pedro Cardoso, 2019.

Quanto ao Zeca Macedo, é um amigo meu desde a infância, a família é do Fogo, são parentes próximos da família do escritor Dr. Teixeira de Sousa. Estivemos juntos na Guiné, era fuzileiro, telefonou-me há dias, mas a chamada caiu, voltei a ligar não respondeu.

Olha, aconteceu, com este teu email, o mesmo que aconteceu com o último que te enviei: só cá chegou metade do teu texto… Parece que há algo com o meu gmail. Já Chamei o meu neto para vir ver. Por isso, eis o meu Hotmail, para caso de dúvidas (...).

Vou passar a utilizar este na nossa correspondência. Olha, não tive tempo, na semana passada para reescrever a mensagem que foi pela «metade», porque estava preparando uma palestra sobre a «música revolucionária/de intervenção» no âmbito dos 50 anos da Independência. Por outro lado, tenho estado com o problema da doença de uma das minhas filhas (...)

Aquele abraço.


IV. Comentário do editor LG:

Afinal, a História com H grande e a história com h pequeno (entre)cruzam-se e, no meio, lá estamos nós, indivíduos e famílias, apanhados desprevenidos...Nos períodos revolucionários (e contrarrevolucionários), ou quando o poder "cai na rua" (ou nas mãos de minoria pretensamente "iluminadas"), tudo pode acontecer...

Seguramente essa foi uma tragédia familiar que tiveste de viver em silêncio, durante os 15 anos que durou o regime de partido único. Não deve ter sido fácil para o teu pai viver no exílio, num país onde, apesar de tudo, também tinha, como nós, reconquistado a democracia. Só agora fico a saber que a tua mã era a escritora Ivone Ramos, a mana da Amarília (temos diversas referências no blogue ao Manuel Ferreira, 3 anos mais velho do que o meu, Luís Henriques, estiveram os dois no MIndelo, durante a II Guerra Mundial,. o meu entre julho de 1941 e setembro de 1943).

Obrigado pela confiança e amizade que demonstraste ao partilhar este teu "segredo"...Já agora, como foi a receção do teu livro ? Vou ver se o encontro por aqui, mas não deve ser fácil...

Há uns anos ofereci o teu "Kap Verd Band" ao meu filho que já tocou em diversas ilhas da tua (é psiquiatra e músico) (já não sei se era a edição antiga, 1998: pensando bem, talvez tenha sido o "Cabo Verde, 30 anos de música 1975 - 2005" in "Cabo Verde 30 Anos de Cultura. Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro, 2005)


(...) Mantenhas. Um forte abraço, Luis
____________________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 16 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20658: Agenda cultural (741): "Bá D'al na Rádio: memórias da Rádio Barlavento", livro do nosso camarada Carlos Filipe Gonçalves, ex-fur mil amanuense, QG/CTIG, Bissau, 1973/74, membro da Tabanca Grande, nº 790, mindelense, jornalista e radialista, a viver na Praia, Santiago, Cabo Verde

(**) Vd. poste de 13 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26917: Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo) - X (e última) Parte : a guerra de nervos nos últimos seis meses

Vd. postes anteriores da série:

8 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26899: Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo) Parte VIII: quando cheguei a São Vicente, de férias, em outubro de 1973, fiquei encabulado, não sabiaaticamemte nada sobre a proclamação unilateral da independência pelo PAIGC

4 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26880: Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo) - Parte VII: Os "turras" têm agora um míssil que abate aviões e helicópteros


27 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26853: Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo) - Parte V: aqui sinto-me em casa, encontro tias, primos, vizinhos, colegas de escola e do liceu...

25 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26843: Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo) - Parte IV: Na Repartição de Autos Víveres, tenho de assinar o ponto todos os dias, trabalha-se das 8h00 às 12h30, e das 15h00 às 18h30, sábado e domingo de manhã... "Estamos em guerra, até em Bissau", dizem-me!...

22 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26829: Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo) - Parte III: Desembarque e colocação em Bissau, na CEFINT, 1ª Rep QG/CTIG, em Santa Luzia

20 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26819: Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo) - Parte II: De Lisboa a Bissau, no T/T Uíge

19 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26815: Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo) - Parte I: Em Lisboa, à espera do embarque, aproveitando a farra para esquecer


Vd. também a série complementar:

3 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26760: No 25 de Abril eu estava em... (40): Bissau, em comissão de serviço na Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG (Carlos Filipe Gonçalves, ex-fur mil amanuense, natural do Mindelo, vive hoje na Praia, Cabo Verde) - Parte V

30 de abril de 2025 > Guiné 61/74 - P26744: No 25 de Abril eu estava em... (39): Bissau, em comissão de serviço na Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG (Carlos Filipe Gonçalves, ex-fur mil amanuense, natural do Mindelo, vive hoje na Praia, Cabo Verde) - Parte IV

29 de abril de 2025 > Guiné 61/74 - P26739: No 25 de Abril eu estava em... (38): Bissau, em comissão de serviço na Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG (Carlos Filipe Gonçalves, ex-fur mil amanuense, natural do Mindelo, vive hoje na Praia, Cabo Verde) - Parte III

28 de abril de 2025 > Guiné 61/74 - P26738: No 25 de Abril eu estava em... (37): Bissau, em comissão de serviço na Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG (Carlos Filipe Gonçalves, ex-fur mil amanuense, natural do Mindelo, vive hoje na Praia, Cabo Verde) - Parte II

27 de abril de 2025 > Guiné 61/74 - P26736: No 25 de Abril eu estava em... (36): Bissau, em comissão de serviço na Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG (Carlos Filipe Gonçalves, ex-fur mil amanuense, vive hoje no Mindelo) - Parte I


domingo, 8 de junho de 2025

Guiné 61/74 - P26899: Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo) Parte VIII: quando cheguei a São Vicente, de férias, em outubro de 1973, fiquei encabulado, não sabia praticamemte nada sobre a proclamação unilateral da independência pelo PAIGC


Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > 1969 : Festa de Carnaval no Grémio... O Carlos Filipe Gonçalves é o nº 5...A maior parte do grupo está identificado: 1=Cajuca Feijó; 2=Herberto Martins; 3=Lena Melo; 4= Nini Tristão; 6= Ana Paula Ribeiro Freire; 7=Vanda Mesquitela Fonseca; 8=Fatu Grais; 9= Vicente Chantre; 10= Luís Guimarães Santos; 11= Zinha Pinto; 12= Ana Isabel Chantre Ramos; 13= Teté Bonucci Pias; 14=Filinto Martins. Fonte: Facebook do Carlos Filipe Gonçalves. Foto de Luisa Vidigal (20 de julho de 2017)

Em data anterior, encontrei a mesma foto, com pequenas alterações de legendagem, da autoria do Carlos Filipe Gonçaves: 28 de fevereiro de 2011. Legenda: Conjuntp West-Side, Carnaval 1969 no Grémio, MIndelo, SV, CV". 15=Henrique Sousa ("Nandim"); 16= Juliana; 17= Flintão; 4?Magui Curado... Os músicos do Conjunto West Side são: 1, 2, 5, 15.

Curiosamente, há um comentário sob a forma de pergunta,em crioulo,  que não deixa de ser pertinente: "Esse era naquel tempe que Greme era de "Gente Bronque"? (Traduzindo: Isso era naquele tempo em que o Grémio era da "gente branca",  ou seja elitista, crioula e colonial ) (Elisa Andrade, uma mindelense que vive em Paris).

Deve tratar-se do Grémio Recreativo Mindelense...

Segundo o assistente de IA da Gemini / Google, "o Grémio Recreativo Mindelense tem uma história muito significativa no Mindelo, São Vicente, e é uma entidade distinta, embora por vezes se possa confundir a sua história com a do Clube Sportivo Mindelense (que é o famoso clube de futebol).

É crucial clarificar que existe o Clube Sportivo Mindelense (CS Mindelense), fundado em 8 de outubro de 1919, que é um dos clubes de futebol mais antigos e mais vitoriosos de Cabo Verde e da África Ocidental. É este o clube conhecido pelos seus inúmeros títulos regionais e nacionais e pela sua grande massa adepta.

No entanto, as pesquisas indicam claramente a existência de um Grémio Recreativo de Mindelo, que parece ser uma entidade separada e com um foco mais amplo que o desporto.

Aqui estão os pontos principais sobre a história do Grémio Recreativo de Mindelo:

  1. Natureza e Finalidade: ao contrário dos clubes desportivos que se focam principalmente no futebol, o Grémio Recreativo de Mindelo era uma associação de caráter social e recreativo;  p seu objetivo era proporcionar um espaço de convívio, lazer e entretenimento para os seus membros.

  2. Exclusividade e Elite: era considerado um "bastião da presença colonial" e um local de encontro da alta sociedade mindelense, da elite local;  a admissão de membros era rigidamente controlada;  era frequentado por "gente brónke" (termo que, em Cabo Verde, não se referia necessariamente à cor da pele, mas à posição social e económica da elite, por vezes associada a uma certa "portugalidade").

  3. Localização e Importância: a sede do Grémio Recreativo de Mindelo localizava-se em frente à Praça Nova ( hoje, Praça Amílcar Cabral, no centro histórico do Mindelo), o que demonstra a sua centralidade e importância na vida social da cidade; era um local onde os membros se reuniam para conversar e se divertir.

  4. Papel Cultural e Político (Rádio Barlavento):

    • Um dos aspetos mais marcantes da história do Grémio Recreativo de Mindelo é a sua propriedade sobre a Rádio Barlavento.; esta rádio, instalada nas instalações do Grémio, era um veículo de comunicação crucial para a elite mindelense e teve um papel ativo de oposição à independência imediata de Cabo Verde e à unidade com a Guiné-Bissau ( e , portanto, ao PAIGC).
    • A sua importância foi tal que, em 9 de dezembro de 1974, às vésperas da independência, a Rádio Barlavento foi tomada por um comando do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC); este evento simbólico marcou a transição de poder e a queda do que era visto como o "establishment colonial"; a Rádio Barlavento deu depois lugar à Rádio Voz de São Vicente e, mais tarde, à Rádio Nacional de Cabo Verde (RNCV).
  5. Atividades Recreativas e Culturais:

    • O Grémio era palco de bailes, serenatas e outras atividades sociais; artistas locais atuavam nas suas instalações;  por exemplo, há relatos de músicos como Faia Torres (Rafael Augusto Torres) a tocar com o seu grupo no Grémio Recreativo do Mindelo nos anos 60.
    • Este espaço permitia o convívio e a manutenção de certas tradições culturais e sociais da elite mindelense.

Em resumo, o Grémio Recreativo de Mindelo não era um clube desportivo como o CS Mindelense, mas sim uma importante associação social e recreativa da elite mindelense, que teve um papel cultural relevante e uma significativa implicação política no período pré-independência de Cabo Verde, nomeadamente através da Rádio Barlavento. O seu declínio e a tomada da rádio marcaram o fim de uma era para esta associação."



Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > 1969 > O Conjunto West Side no histórico Cinema Eden Park... O Calu, o nosso Carlos Filipe, é o terceiro, a contar da esquerda, de óculos: tocava percussão.


1. Continuação da publicação da série do nosso camarada Carlos Filipe Gonçalves (*),disponíveis na sua pãgina do Facebook e na nossa página da Tabanca Grande:

Mais uns extratos de "Recordações de um Furriel Miliciano na Guiné 1973/74": são mesmo «pequeníssimos» como indicam a numerosas reticências entre aspas. Isso porque deixo para a edição do livro muitas descrições pormenorizadas e documentadas. Aliás, já estou quase no final da publicação destes extratos das minhas memórias. 



O "senhor rádio", o Carlos Filipe Gonçalves (Kalu Nhô Roque (como consta na sua página no facebook):

(i) nasceu em 1950, no Mindelo, ilha de São Vicente, Cabo Verde;

(ii) foi fur mil amanuense, QG/CTIG, Bissau, 1973/74;


(iii) ficou em Bissau até 1975;


(iv) músico, radialista, jornalista, historiógrafo da música da sua terra, escritor, vive na Praia;


(v) membro da nossa Tabanca Grande desde 14 de maio de 2019, nº 790;


(vi) tem 26 referências no nosso blogue.(*)


Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo)

Parte VIII: quando cheguei a São Vicente, de férias, em outubro de 1973, fiquei encabulado,  não sabia praticamemte nada sobre a proclamação unilateral da independência pelo PAIGC


Naqueles anos de 1973 e inícios de 74, Bissau é uma cidade cheia de festas e bailes, apesar da guerra, no entanto, muito poucos da tropa portuguesa têm acesso a esses convívios privados! 

Geralmente são festas de gente com estudos, quadros, funcionários guineenses e cabo-verdianos que trabalham na administração pública (alfandega, banco, casas comerciais, empresas, etc.). 


Muitos oficiais e sargentos, frequentam a única e famosa boîte de Bissau, o “Chez Toi” com música ao vivo e «brancas» vindas da metrópole… que fazem striptease e outras coisas… para fazer a malta esquecer a guerra…, minimizar o ambiente de horror… (…) 

Os soldados divertem-se em jantaradas e cervejadas nos restaurantes e bares que pululam pela cidade, conversam depois da bica nos cafés, deambulam depois pelas ruas… ou, vão ao famoso bairro infestado pela prostituição que é o Cupelon. 

Aqui, surgem rixas e pancadaria frequente, há tiros, e… de vez em quando, depois de uma discussão qualquer… alguém lança uma granada…. Bum! Salve-se quem puder! 

Porque, em Bissau todo o mundo anda armado, para além disso, muitos militares estão psicologicamente afectados, são os marados, os apanhados pelo clima, ou pelo cacimbo, não estão no seu perfeito juízo! Logo, provocam zaragatas por tudo e por nada, têm reacções violentas, praticam actos irreflectidos. (…)

Como disse antes, eu estava cada mais integrado na sociedade guineense, de modo que nas horas de folga e de lazer, pouco a pouco, fui deixando de ter contactos assíduos com os militares brancos. Os meus colegas de quarto atiram-me então indirectas, criticando a minha integração: “Sortudo! Andando com pretas e mulatas e não ligas à malta!” 

Quando eu chegava altas horas da noite à camarata, não faltavam comentários: “Na borga toda a noite e agora chateias o sono de cada um!” 

E continuei a ser o alvo das provocações do Gabarolas (#), sempre que podia, ele atirava-me diretas «provocatórias» sob a capa de informações as mais diversas. Foi assim que passei a saber muita coisa sobre o desenrolar da guerra e sobre muitos ataques e operações que decorriam no mato naquela altura. 

Foi através de diálogos do tipo (com o Gabarolas) que eu soube que tinha havido no início de maio uma contra-ofensiva da tropa portuguesa, depois de um ataque do PAIGC à localidade de Guidage. (…)

Em Bissau, naquele mês de junho de 1973 falava-se muito sobre Guidaje, (…) Só em meados de julho soubemos de um grande ataque no Sul em Guileje, (…) (##)

No quartel em Bissau, desde finais de maio que a ofensiva do PAIGC era tema recorrente nas conversas, mas, a maioria de nós, não imaginávamos a amplitude (…). Nem podíamos imaginar que os acontecimentos daquele mês de «Maio sangrento», ditariam o final da guerra! 

Anos depois, os ex-militares que lá estiveram, referem maio de 1973 como o «Inferno dos Três G» ou seja: Guidaje, Guileje, Gadamael! A partir de Junho de 1973 a guerra tomou um novo rumo, a cada dia, um novo desenvolvimento, cada vez mais acontecimentos sangrentos… mas, em Bissau a vida continua como se nada tivesse acontecido. (…)~

Pouco dias antes do final de julho (de 1973) por volta das 11 horas, na CHEFINT, ouvimos o roncar de um helicóptero, o ruído aproxima-se e está cada vez mais forte, vimos então o aparelho a descer, levantando muita poeira, aterra na parada do BINT. Estamos todos nas janelas a observar…. Abre-se a porta do helicóptero… logo depois sai o general Spínola, como sempre fardado de camuflado… fui logo avisar o tenente-coronel, nosso chefe, que saiu a correr... 

No rés do chão o comandante do BINT saiu logo,  foi cumprimentar o general Spínola, chegam, entretanto, outros oficiais, conversam todos uns vinte minutos… Spínola volta a entrar no helicóptero e vai-se embora. 

O alferes, que era sempre, o mais bem informado, comentou que Spínola estava a despedir-se, pois ia de férias para a metrópole durante o mês de Agosto. A grande verdade é que em inícios de Setembro, Spínola não voltou, chegou depois a notícia da nomeação de um novo governador e comandante-chefe. (…)

No final do mês de setembro de 1973 aconteceu no mato a proclamação da República da Guiné-Bissau, mas confesso, não foi um assunto badalado entre a tropa. Logo depois, início de outubro, fui de férias a S. Vicente. 

Aqui, na minha cidade do Mindelo, mal cheguei fui logo confrontado com essa notícia! Primeiro pelo meu pai que me acolheu no aeroporto, depois pelo resto da família. Fiquei encabulado, pois não sabia pormenores sobre esse assunto! Porque, esta notícia, nem foi comentada no meu círculo na repartição, nem com colegas na messe. 

Aqui no Mindelo, perguntavam insistentemente pela Guerra na Guiné e diziam: as coisas estão feias! Ah! Isso eu sabia, mas não podia dizer uma palavra sobre os acontecimentos em Guileje ou Guidage! Sabia que a Pide estava omnipresente… qualquer deslize, estaria tramado! O jornal Arquipélago que o meu pai comprava, abordou várias vezes a notícia da Independência da Guiné-Bissau, claro, dizia-se/insistia-se que «era um acto de fantasia». 

Mas… eu sabia, que uma grande parte do território da Guiné, não tinha tropa portuguesa! É que quando eu entrava no gabinete do tenente-coronel, ele ia rapidamente fechar a cortina que cobria o grande mapa que lá havia, no qual se indicava com alfinetes de diversas cores, onde estavam os batalhões e respectivas companhias, pelotões disso e daquilo, etc. 

Mas, tarde de mais… não dava para esconder… eu, via sempre, duas grandes áreas, onde não havia nenhum alfinete, uma zona ali a norte de Mansoa, que venho a saber mais tarde era a “Zona Libertada de Morés”, a outra estendia-se a Leste e para o Sul! Era um buracão sem nada…. Nenhum quartel! 

Meu pai insistia nas perguntas, mas eu, não abria a boca, nem com ele, nem com amigos e malta conhecida… porque eu sabia, a Pide estava sempre por perto…

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Notas do autor:

(#) O Gabarolas era um "camarada" militar, que me acompanhou desde quando estive em Leiria, na especialidade. Gozava comigo, provocava-me com tiradas políticas, enfim, passei muito mal com este «camarada» que só depois do 25 de Abril vim a saber que era da PIDE! (…)

(##) A batalha de Guileje foi em meados de maio de 1973

(Continua)

(Seleção, revisão / fixação de texto, título, edição e legendagem das fotos: LG)

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Nota do editor:

Último poste da série  > de 4 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26880: Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo) - Parte VII: Os "turras" têm agora um míssil que abate aviões e helicópteros

quarta-feira, 4 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24725: O segredo de... (39): António Medina: O surpreendente reencontro, em Bissau, em junho de 1974, com o meu primo Agnelo Medina Dantas Pereira, comandante do PAIGC



Foto nº 1



Foto nº 2

Lisboa > Antiga sede do BNU,  na Rua Augusta, que hoje aloja o Museu do Design e da Moda (MUDE). Esculturas de Leopoldo de Almeida (1964), que representam a expansão do BNU como banco emissor pelos antigos territórios ultramarinos portugueses (Foto nº 2), e os respetivos escudos (Foto nº1), incluindo a Guiné (cujo escudo é o da direita, a contar de baixo para cima, inspirado no original, a seguir descrito

"Escudo composto tendo a dextra em campo de prata, cinco escudetes de azul, cada um com cinco besantes de prata em aspa e a ponta, de prata com cinco ondas de verde - pretendiam simbolizar a ligação à metrópole; a sinistra em campo de negro, um ceptro de ouro com uma cabeça de africano, alusão ao ceptro utilizado por D. Afonso V, rei de Portugal à época da exploração da região. Brasão de armas simplificado, de 8 de maio de 1935 a 24 de setembro de 1973."

Fonte: BNU. (Reproduzido com a devida vénia...)




1. O António Medina (ex-fur mil op esp, CART 527, 1963/65) (foto acima)  não é homem para levar segredos para o outro mundo (*)... Desde que aderiu ao nosso blogue, em 15/2/2014, já partilhou aqui connosco alguns, a começar pelo seu "desenfianço" em Bissau, quando estava destacado no Cacheu, e que lhe poderia ter valido uma dura pena de prisão... por "deserção" (**).

Recorde-se que o nosso veteraníssimo António Medina, hoje com 84 anos feitos, já aqui nos contou como é que andou três dias "desenfiado" em Bissau, por causa de uns primos que tocavam no conjunto "Ritmos Caboverdianos"... (Ah! A saudade, quando dá num ilhéu! )

Estávamos em meados de 1964 e o que valeu ao Medina, que já não era "pira", mas já andava "apanhado do clima", foi um taxista, seu patrício, cabo-verdiano, que aceitou o risco de o levar de volta, de Bissau até Teixeira Pinto, por mil pesos, sem qualquer escolta (!)...

A única arma que o Medina levava debaixo do assento da viatura, e0ra a sua pistola-metralhadora FBP (de que pouco lhe valeria em caso de mina A/C ou de emboscada)...

Em João Landim, na travessia do Rio Mansoa, deu boleia a uma mulher que vendia ostras, e que ele já conhecia do Cacheu (onde estava destacado)... E lá seguiu a "coluna solitária" até ao Canchungo: o Medina, a mulher, o taxista... A história, completa, desta "pequena loucura" já foi reproduzida no poste P14945 (**)

Talvez o facto de viver nos EUA há mais de 40 anos, facilite a apetência do Medina para "ir ao confessionário" mais vezes do que outros camaradas, mais contidos.

Mas nem todos os seus segredos, já aqui contados, constam da competente série, "O segredo de...", que já tem 4 dezenas de postes.(*)

Alguns dos segredos aqui partilhados são "segredos de... Polichinelo", que poderiam também ser contados por qualquer um de nós... Todos tivemos, afinal, durante o serviço militar (de pelo menos 3 anos), alguns "pecados e pecadilhos", que nunca confessámos a ninguém, nem às paredes do nosso quarto... Às vezes apenas por falta de interlocutor ou "confessor", ou de ocasião ou de ambiente, e não tanto por autocensura ou receio da censura dos outros...

 Noutros casos nem se trata propriamente de "pecados ou pecadilhos", mas de situações que implicam alguma reserva, pudor, acanhamento,  constrangimento,  medo de ser julgado pelos antigos camaradas de armas, etc.

Mas já se ouviram aqui histórias espantosas que seria uma pena ficarem para sempre no "segredo dos deuses", o mesmo é dizer, perderem-se na voragem do tempo... São histórias que seguramente nunca chegaram (nem chegarão) ao Arquivo Histórico-Militar, ou outr0s arquivos públicos, mas que não sobreviverão ao "guardião da memória", que é cada um de nós, se não forem contadas...

Claro que nenhuma destas histórias vem "alterar" a visão final da História com H grande... Mas essa será sempre mais pobre, e mais descolorida, sem as nossas histórias com h pequeno...

É o caso desta, passada em Bissau, em junho de 1974, já com o PAIGC a preparar-se para se instalar nas cadeiras do poder, ainda dois meses antes da assinatura do acordo de Argel (25 de agosto de 1974) e três meses antes  da partida do "último soldado do império". 

Muitos dos nossos leitores não conhecem ainda este episódio, aqui contado no já  longínquo ano de  2014 (***).

Como está aceite, tacitamente, entre nós, não há críticas negativas ou depreciativas (por parte dos nossos comentadores) em relação a estes "segredos de confessionário". Tal como não há penitèncias...




Guiné > Região do Cacheu > Teixeira Pinto > Jolmete > CART 527 (1963/65) > O António Medina à esquerda, de perfil.

Foto (e legenda): © António Medina (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradasas da Guiné]


O segredo de António Medina > O surpreendente reencontro, em Bissau, em junho de 1974, com o meu primo Agnelo Medina Dantas Pereira, comandante do PAIGC


Ano de 1974, da revolução de cravos em Portugal. A voz da liberdade e a derrota do fascismo soaram aos residentes civis em Bissau, Guiné, bastante cedo, na manhã do dia 26 de Abril.

Era eu empregado do BNU desde 1967 e vivia como é obvio em Bissau com a minha mulher e três filhos pequenos, os dois primeiros já quase em idade escolar.

Não me vou alongar nesta estória mas julgo ser um facto bastante interessante que merece ser mencionado, até porque os protagonistas são relacionados com a guerra e tem laços de família.

Depressa reinou uma grande euforia em toda a cidade de Bissau. A caça ao homem e o saneamento começaram, alguns que por qualquer divisionismo familiar eram falsamente acusados, outros por terem sido informadores da PIDE, perseguição e prisão para aqueles que exerciam cargos de chefia nas repartições públicas ou privadas e que não mais mereciam confiança, aqueles que supostamente apoiaram o regime fascista, etc. Arruaças, espancamentos, ofensas, fuzilamentos (o mais notório foi do respeitado Régulo Batican Ferreira, de Teixeira Pinto, que foi do meu conhecimento pessoal quando estive no chão manjaco em 1963/65).

Tempos difíceis vividos sob a pressão constante de ser perseguido, espancado ou aprisionado, aliado à falta de géneros alimentícios que se fazia sentir em todos os aspectos.

Entretanto, chegam as forças do PAIGC a Bissau depois de parte das tropas Portuguesas começarem já a regressar a Lisboa, instalando-se em quartéis e ocupando outras instalações. O Banco Nacional Ultramarino (BNU), esse, lá continuava fazendo as suas operações diárias sem qualquer inconveniente.

Num daqueles dias de calor e humidade, já típico da época das chuvas, depois das 10:00 da manhã, fui chamado para atender um cliente que me procurava - era um militar natural da Guiné, das forças do PAIGC, armado com uma Kalashnikov.

Senti um calafrio pela espinha abaixo quando me aproximei dele que, sem qualquer preâmbulo, apenas me comunicou que eu teria de estar ao meio dia na sede do Partido, ao lado do Palácio. Esperando o pior, prontifiquei-me a estar presente, não perguntando de quem ou de onde vinha tal ordem, o militar mais não disse, retirando-se apressadamente.

Comuniquei imediatamente à minha mulher o assunto, pedindo-lhe que se mantivesse calma, que se me pusessem sob custódia ela deveria seguir quanto antes para Cabo Verde, Ilha do Fogo, onde tinha familiares. Aliás, ia sendo este o procedimento com quantos prontos para embarcarem foram proibidos de seguir viagem, sem justa causa.

Imaginem o meu sofrimento durante aquele tempo de espera, contando os minutos e segundos no meu relógio Cortebert. Foram os piores momentos da minha vida, os nervos e o medo não me deixaram mais trabalhar. Irrequieto e preocupado, sem qualquer concentração, andava de um lado para outro sem saber o que se me adivinhava. Na hora certa, saí correndo em direcção à sede do PAIGC para me apresentar a quem (?), no edifício da antiga messe dos Oficiais da Força Aérea Portuguesa.

Quando chego ao pé do sentinela, deparo-me com um sujeito, a uma curta distância, de meia estatura, barba cerrada, com a farda dos revolucionários mas desarmado, sorrindo para mim. Era o meu primo Agnelo Dantas, filho de uma tia, irmã do meu pai. Fiquei deveras surpreendido quando vi a realidade à minha frente, meu primo, um dos combatentes do PAIGC (#)

Ponderei surpreso por alguns momentos, me aproximei sem qualquer relutância e demo-nos então um caloroso e prolongado abraço fraterno. A convite dele entrámos no edifício e depois de um trago de whisky John Walker Black que me ofereceu, senti-me mais relaxado para se conversar.

O ambiente era confuso e barulhento, alguns deles sentados cavaqueando com outros das mesas ao lado, à espera que o almoço lhes fosse servido, outros de pé, encostados ao balcão do Bar conversando em alta voz, pessoas entrando e saindo, mostrando falta de preconceitos e princípios pela maneira como se sentavam e se comportavam à mesa, fruto de terem andado longe da civilização na floresta da Guiné, durante aqueles anos todos.

Sentamo-nos os dois numa mesa mesmo no canto da sala, foi ele pessoalmente ao balcão, pediu duas cervejas fresquinhas. Falamos da nossa infância e dos familiares que se queixavam da falta de notícias dele desde que seguiu para estudar em França. Atentamente ia eu ouvindo o tecer da sua experiência no mato, satisfazendo a minha curiosidade com as perguntas que lhe fazia.

Fiquei sabendo que não desconhecia a minha presença na Guiné, não só do tempo militar assim como de empregado bancário. Que tinha sido aliciado e recrutado com a idade de 20 anos por Amílcar Cabral, para a luta de Libertação da Guiné e Cabo Verde. Que embarcou para Cuba e se formou na Escola Militar em Havana. Que no tempo do general Spínola foi ele quem numa das noites bombardeou Bissau com três misseis teleguiados disparados da Ponta de Cumeré. Carregava com ele um diário repleto de informações recebidas dos colaboradores do Partido.

Chegam mais elementos, identifiquei-os como cabo-verdianos e reconhecemo-nos como amigos de infância, alguns ex-colegas do Liceu Gil Eanes em S. Vicente, Cabo Verde:

  • Honório Chantre,
  • Silvino da Luz,
  • Júlio de Carvalho,
  • Osvaldo Lopes da Silva, etc.

Era um grupo que também queria exteriorizar a sua alegria pelo fim da guerra e a independência da Guiné, reconhecida por Portugal, aguardando a vez de também lhes ser servido o almoço logo após haver mesas desocupadas.

Reinou grande alegria entre todos nós pelo reencontro e amizade, rejuvenescida no momento. Foi bebida à vontade para quem quisesse, cerveja Sagres bem geladinha, goles de whisky Johny Walker com gelo, eram sobras da velha senhora deixadas aí a custo zero por aqueles que partiram.

Como petisco, ostras e camarões cozidos e temperados com molho de piri-piri forte, mancarra torrada sem casca, tudo para matar a sede e o suor que trazia aquele calor asfixiante. De Jure, não sabia absolutamente nada que fossem filiados no Partido como combatentes. Apenas se ouvia dizer que tinhajm saído à procura de trabalho no estrangeiro.

Quando regresso a casa para o meu almoço, encontro a minha esposa bastante preocupada, com os nervos à flor da pele, sem ainda saber do que se tratava. Teve ela um grande alívio quando pela primeira vez conheceu o primo Agnelo mas discretamente me consciencializou e me convenceu que devíamos deixar a Guiné para outras paragens onde pudéssemos cuidar da educação dos nossos filhos e viver com mais tranquilidade.

Durante algum tempo o primo Agnelo esteve em Bissau e mantivemos ótimas relações. A minha mulher passou a cuidar das roupas dele, com frequência se juntava-se a nós para o nosso rancho.

Depois seguiu para Cabo Verde e ocupou o cargo de Chefe das Forças Armadas Revolucionárias do Povo (FARP). Mais tarde foi Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas.

Hoje é reformado como Coronel do Exército cabo-verdiano e vive na cidade da Praia. Comunicamo-nos com frequência através da Net mas nunca voltámos a falar da guerra, águas passadas nao movem moinhos.

Antonio Cândido Medina


(Revisão / fixação de texto / negritos: LG)



(#) Nota biográfica baseada em A Semana, [Em Linha], 27 de janeiro de 2007. "Retratos: Agnelo Dantas, soldado de Cabo Verde", por Gláucia Nogueira



Agnelo Medina Dantas Pereira (foto acima)
Fonte: Casa Comum / Arquivo Amílcar Cabral, com a devida vénia)


(i) o pai é da Brava e a mãe de Santo Antão, nasceu nesta ilha em 1945;

(ii) em 1965, ainda com 19 anos, encontrava-se em Paris quando foi contactado por Pedro Pires, e depois por Cabral, e convidado a integrar "o grupo de estudantes e operários" que iria fazer um treino militar em Cuba;

(iii) chegou à ilha, depois de uma passagem pela Argélia, onde já se encontrava uma parte do grupo, formado por 30 homens e uma mulher; o chamado "grupo de Cuba” durante dois dois anos recebeu treino militar, com o objectivo de fazer "um desembarque armado em Cabo Verde";

(iv) “foram cerca de dois anos, isolados nas montanhas, ou em quartéis formados ad hoc, para nós. Foi muito exercício táctico, físico, até o dia do juramento - 15 de Janeiro de 1967 - quando Cabral se desloca a Cuba para se reunir connosco”, conta Agnelo Dantas, que diz, estarem, na altura, todos “prontos para o desembarque”;

(v) pouco tempo depois, com a morte de Che Guevara (em outubro de 1967), os cubanos têm a noção de que os seus serviços de informação estavam infiltrados, já que o próprio cerco a Che terá resultado desse facto; foi então adiada "sine die" a ida para Cabo Verde, e os militantes partiram para a União Soviética para complementar a formação;

(vi) ao longo de 1968, Dantas especializa-se em artilharia e explosivos; a ida para Cabo Verde ia ficando cada vez mais longínqua; para não ficarem indefinidamente inactivos é-lhes proposta, pela direcção do Partido, a ideia de ir para a Guiné;

(vi) tem o seu baptismo de fogo no início de 1969, quando foi aberta a Frente Leste; daí em diante e até 1974, ora ao lado de Nino Vieira, ora de Pedro Pires, participou em todas as frentes de combate, sempre no mato: primeiro, foi chefe de pelotão, depois chefe de bateria; e em 1973 já tinha o seu posto de comando, na Frente Norte;

(vii) depois do 25 de Abril e durante o período de transição para a independência de Cabo Verde, altura de intensa luta política e diplomática, foram trazidas armas da Guiné, "para qualquer eventualidade", sendo nessa altura que se começaram a formar as Forças Armadas cabo-verdianas: a 5 de Julho, de 1975, data da independência de Cabo Verde, "já tínhamos exército";

(viii) em 200, à data da entrevista, era coronel reformado das Forças Armadas de Cabo Verde, foi condecorado a 15 de janeiro de 2007 com a medalha da Estrela de Honra pelo chefe do Estado-Maior das FA (cargo que também ocupou);

(ix) tem página no Facebook: Agnelo Dantas.

2. Comentário do editor LG:

Esta é uma realidade, ignorada ou esquecida por muitos de nós... Na Guiné, no teatro de operações da Guiné, houve familiares e parentes que se combateram de armas na mão, em campos opostos, quer guineenses, quer cabo-verdianos...

Não chegou a ser o caso do nosso camarada António Medina, já que o primo Agnelo era mais novo (cerca de seis anos) e ainda devia estar em Paris (ou já a caminho de Cuba) (#), quando o primo António terminou a sua comissão em 1965 e regressou à vida civil, acabando por se fixar em Bissau e ingressar, como bancário, em 1967, no BNU...

Não temos (eu não tenho...) estatísticas sobre os cabo-verdianos que combateram de um lado e do outro... De qualquer modo, é interessante a referência do António à presença, nesse encontro com o primo Agnelo, em Bissau, em junho de 1974, de outros combatentes do PAIGC, de origem cabo-verdiano, ex-colegas do Liceu Gil Eanes, no Mindelo, em São Vicente... (Nomes sonantes ou pesos pesados do PAIGC como Honório Chantre, Silvino da Luz, Júlio de Carvalho, ou Osvaldo Lopes da Silva.)

No Liceu Gil Eanes, fundado no tempo da I Repúblcia, em 1917, com a designação de Infante Dom Henrique (que manteve até 1938), estudou Amílcar Cabral bem como a "elite portuguesa-cabo-verdiana". Até 1961 era o único estabelecimento de ensino secundário do arquipélago, e por lá passou praticamente toda a elite local...

Os mais afortunados, os filhos das famílias com posses, seguiam depois para a metrópole para prosseguir os estudos superiores na universidade, ou até para o estrangeiro (como fpoi o caso do Agnelo, que em 1965 era estudante em Paris). Eram os/as "m'ninos/as de São V'cente"...

(Fonte: Luís Batalha, investigador do ISCPS, autor do capº 6º ("A elite portuguesa cabo-verdiana: ascensão e queda de um grupo social intermediário") do livro coordenado por Clara Carvalho e João Pina Cabral, "A persistência da história. Passado e contemporaneidade em África" (Lisboa, ICS, 2004, pp. 191-225).


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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 12 de junho de 2023 > Guiné 61/74 - P24390: O segredo de... (38): António Branquinho (1947-2023): Passei-me dos carretos... Perante a recusa dos helis em levaram os nossos dois mortos, puxei a culatra atrás da G3 e gritei: 'Levais os mortos ou… dou-vos um tiro nos c….!' (Acção Galhito, 22/6/1971, regulado do Cuor, sector L1)

(**) Vd. poste de 29 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14945: O segredo de... (19): António Medina (ex-fur mil, CART 527, 1963/65, natural de Cabo Verde, mais tarde empregado do BNU, e hoje cidadão norte-americano): Desenfiado em Bissau por três dias, por causa dos primos Marques da Silva, fundadores do conjunto musical "Ritmos Caboverdeanos"... Teve de se meter num táxi, até Teixeira Pinto, que lhe custou mil pesos, escapando de levar uma porrada por "deserção"!

(***) Vd. poste de 21 de fevereiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12753: (De)caras (15): O meu primo Agnelo Dantas, e meu conterrâneo da ilha de Santo Antão, comandante do PAIGC, com quem me reencontrei no pós-25 de abril, em Bissau, era eu empregado bancário, no BNU - Banco Nacional Ultramarino (António Medina, ex-fur mil op esp, CART 527, Teixeira Pinto, 1963/65, a viver nos EUA, desde 1980)

sábado, 10 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24384: Os nossos seres, saberes e lazeres (576): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (106): Com sangue d’África, com ossos d’Europa: chegou a hora de me embrenhar na floresta mágica de Santo Antão (5) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Maio de 2023:

Queridos amigos,
Santo Antão vale, é remédio santo para quem porfia êxtases da natureza em espaço insular. Entra-se num coletivo em Porto Novo, o condutor é loquaz, manda olhar para aqui e para ali, olhe lá em cima para o farol de Lombo de Boi, há um estudante que diz que não é bem assim, chama-se farol Fontes Pereira de Melo, há uma paragem em Pombas, o que até agora foi secura e aridez, o que trouxe reminiscências de S. Vicente, começa-se a encher de arvoredo, que sobe pelas escarpas e se avista até ao cimo das montanhas, os nomes dos lugares são adoráveis, momentos há em que me parece que estou em S. Miguel, aliás vamos em direção à Ribeira Grande, depositados à porta do albergue, negoceia-se um passeio para o dia seguinte. Com a senhora italiana que nos acolhe, sorridente, é melhor falar francês, avisou-nos que domina o crioulo, o português moita, descemos por ruelas esconsas para comprar mantimentos e pelo caminho negoceia-se o jantar, virá a revelar-se um manjar dos deuses. Santo Antão já está a enlear-se em mim, atrai-me esta floresta de verde e o mar sempre próximo, consta que aqui chove e que estes leitos de calhaus rolados conhecem, durante escassos dias, a correnteza das águas que vêm dos altos, alguém informa que há minas, água com fartura, daí a diversidade agrícola. Para o dia de chegada, vinte valores.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (106):
Com sangue d’África, com ossos d’Europa: chegou a hora de me embrenhar na floresta mágica de Santo Antão (5)


Mário Beja Santos

Gosto muito desta primeira imagem, estamos ainda na baía de Mindelo, ao fundo o Monte Cara, sei que vou conhecer uma atmosfera bem distinta de S. Vicente, passei uma boa parte do serão a fazer uma síntese da História de Cabo Verde desde que os primeiros colonos aportaram em Santiago em 1462. Rapidamente o conjunto populacional tornou-se heterogéneo, fossem algarvios ou alentejanos deu-se a miscigenação com gente que vinha da Senegâmbia, formara-se uma sociedade escravocrata em Santiago e Fogo, ali confluem brancos, funcionários e degredados, negros que até vêm de Angola, começam as categorias de vizinhos e moradores, pretos-forros casados, escravos de confissão ou ladinos e escravos de doutrinação, os boçais; impossível não considerar o papel do cristianismo nesta fermentação cultural, missões, colégios e escolas aparecem sempre que há população; e muita gente lança-se no comércio da costa ocidental africana, recorde-se que André Álvares de Almada, a quem se deve uma das mais importantes obras da literatura de viagens, o Tratado breve dos Rios de Guiné (1594), era cabo-verdiano e cavaleiro da Ordem de Cristo; proliferam os proprietários da terra, um dia virá a abolição da escravatura, tudo irá mudar, ou quase.
Empolgo-me com este mar, venho à ré ver S. Vicente, a esfumar-se numa coroa de nuvens, Santo Antão vai ganhando nitidez, em breve recorda-se em toda a sua dimensão o Porto Novo, a mais importante infraestrutura portuária de Santo Antão, após desembarque negoceia-se o preço do coletivo e vamos para a próxima morada, Ribeira Grande, a dona é italiana de Bolzano, o marido é pescador, toca viola e canta, fará questão de perguntar sempre que peixinho queremos para o dia seguinte.
No coletivo vem a primeira advertência que nos próximos quilómetros não se espere mais do que muita secura, declives penhascosos sobre o mar, depois, sim, um oásis permanente, que nos preparemos para uma agricultura farta, montanhas e vales, paisagens de sonho.

À saída da baía do Mindelo
S. Vicente cada vez mais longe
Em frente, a terra prometida de Santo Antão, já se vê uma larga mancha de casario
Atenda-se à imagem, bem procurei brochuras, desdobráveis, nada, só mapas enormes que talvez sejam úteis para a rapaziada que faz escalada ou vem disposta a longos percursos pedestres. Dou-me bem com o nome das povoações, saímos em Porto Novo, iremos por Aguada, passa-se ao lado do Farol de Lombo de Boi, mas houve um jovem que me disse enfaticamente que o seu verdadeiro nome é Farol Fontes Pereira de Melo, fiquei intrigado, seguimos por Pombas, o condutor, brejeiro, fez saber que o único cemitério de pombas que existe no mundo é aquele, depois Sinagoga, que tem uma bela praia, pena foi, que no dia da visita, o mais estivesse tão endiabrado, temi ser atirado para aquelas rochas afiadas, limitei-me a contemplar a ondulação bravia na companhia de uma cerveja da terra; não esqueci o Paúl, que também visitarei, e que é um deslumbramento, registei imagens e vou mostrar, há mais de uma hora que vimos por boa estrada, o senhor Adelino larga-nos à porta do albergue, estamos num topo da Ribeira Grande, e já se começa a discutir o peixinho que se vai comer à noite.
A praia da Sinagoga, quem é que em dia de tanta braveza das águas se afoitava a mergulhar naquelas ondas, mas que tudo é belo neste vulcânico agreste, não subsistem dúvidas
Estava em Pombas a comer uma deliciosa cachupa e olhei para o alto, o que é que faz aqui Santo António, perguntei ao patrão do tasquinho, resposta pronta, o santo é nosso patrono, para a próxima venha às festas, até temos corridas de cavalos no leito dos rios, fiquei arrepiado com a informação, mas vi em Pombas monumentos aos cavalos e creio que quem tem devoção antonina se irá comprazer com esta imagem.
Santo Antão é assim mesmo e não há volta a dar, o senhor Adelino irá levar-nos num passeio para percorrer a Ribeira Grande, Corda, Esponjeira, Lagoa, Cova de Paúl, daqui regressaremos à Ribeira Grande para desfrutarmos a beleza primeiro de Xôxô e depois a Ponta do Sol, aqui até parece o fim do mundo mas vê-se à vista desarmada que é uma importante atração turística, tem hotéis e pensões à farta.
Houve um enorme passeio até a um ponto alto onde ficámos dois dias, como já disse teremos ao lado de um balcão imenso de onde se avista a montanha uma fábrica de grogue, com imenso trapiche e montanhas de cana do açúcar à porta. Perguntei se isto da cana era um exclusivo de Santo Antão, que não, S. Nicolau tem várias áreas dedicadas a esta cultura, os engenhos de açúcar estão referenciados há séculos, iremos ver trapiches em atividade (é o nome dado aos engenhos que moem a cana, puxados por animais, esta aguardente foi negócio para a costa da Guiné a troco de escravos, mas o que aqui hoje se pretende mostrar é o esplendor da montanha, por vezes com os seus cimos enevoados e como última imagem, pedi ao senhor Adelino para parar porque não acreditava no que estava a ver, aquela fenda de um bloco monumental de pedra erguia-se, e com alguma majestade uma árvore, com outra encostada ao lado, atenda-se àquela palha pelo chão espalhada, vestígios de que por ali passou a cana sacarina.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 3 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24364: Os nossos seres, saberes e lazeres (575): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (105): Com sangue d’África, com ossos d’Europa: com os pés no Mindelo, mas já a sonhar com Santo Antão (4) (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23833: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte IV - Guiné


1. Parte IV da publicação de um excerto do livro "Um Olhar Retrospectivo", de Adolfo Cruz (ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796 - Gadamael e Quinhamel, 1970/72), parte que diz respeito à sua vida militar.


IV - Guiné…

Dia 31 de Outubro de 1970, outra data marcante, lá estamos, no Cais da Rocha Conde de Óbidos, o
nde o velho Carvalho Araújo nos aguardava para o embarque rumo à Guiné.

O agora capitão Assunção e Silva, promovido nessa altura, pôde confirmar a falta de mais dois graduados, o Cunha e o Rosa, nessa altura, já em França… Mas o Neves e o Cruz estavam presentes…

O capitão Assunção e Silva era conhecido, em Lamego, onde tinha dado instrução, por ‘assassino das falinhas mansas’, pelo baixo tom de voz e porque atingiu dois instruendos, durante a instrução, com bala real de G3.

Eu poderia ter pedido adiamento da ida para a Guiné, pois o meu irmão ainda estava em Moçambique, nesta altura, embora por mais dois ou três meses. No entanto, isso significaria mais tempo de serviço militar, para mim, abandonar a companhia já formada e ser mobilizado, novamente, em rendição individual, logo que o meu irmão chegasse.

Cerca do meio-dia, o Carvalho Araújo apita e começa a arrastar-se pelo Tejo, deixando aqueles lenços brancos a esvoaçar e as lágrimas das gentes a correr pelas tristes faces. A navegar, começámos a sentir uma certa instabilidade no navio, bastante de lado, água e lamas pelos corredores e pelos camarotes que utilizávamos, as portas dos corredores arrancadas para passarem a servir de passadeiras, sobre a água e lamas, uma maravilha. E eu que detestava barcos, não pelos barcos, em si, mas pela água, pois não conseguia ver o que estava lá em baixo…

Tudo indicava que não conseguiríamos comer com sossego e isso veio a verificar-se. Além do enjoo que se instalou, os tabuleiros com a comida deslizavam para todo o lado, ao sabor dos balanços do navio. Nos porões, onde era acondicionado o gado dos Açores, durante anos, os soldados tentavam descansar, com um enorme esforço para se alhearem daqueles odores impregnados, sem alternativa.

Ainda não tínhamos completado um dia de viagem, é-me entregue um telegrama. O sentido apurado de mãe e o facto de ter desconfiado da minha despedida, diferente do habitual, no seu dia de aniversário, levou-a a telefonar para o Campo Militar de Santa Margarida e correr tudo até lhe ser dito que eu tinha partido para a Guiné, já a navegar, no Carvalho Araújo! Aquele telegrama da minha mãe deixou-me um pouco triste mas, ao mesmo tempo, cheio de força para enfrentar a aventura que me esperava.

Um dia de felicidade, quando fizemos a escala em Cabo Verde, ilha de S. Vicente, cidade do Mindelo, onde estivemos cerca de doze horas, para abastecer o navio.

Antes de acostarmos ao cais, os miúdos mergulhavam nas águas transparentes daquele mar livre de poluição, para apanharem as moedas com a boca. Mas a felicidade acabou por ser aparente, durante aquelas horas pois, apesar de termos tido a possibilidade de comer bem e relaxar um pouco, o cenário encontrado deixou-nos infelizes, frustrados, revoltados.

Entrámos na cidade - aquilo era uma cidade?! - E procurámos os correios e um sítio onde houvesse jornais ou qualquer coisa que nos desse notícias. Estou nos correios, a preparar um telegrama para a Metrópole, quando sinto alguém a mexer-me nos pés: era um miúdo dos seus quinze anos a limpar-me os sapatos e com material para engraxar.

Disse-lhe que não precisava, pois havia muito pó e iria sujar-me, logo a seguir. Logo me respondeu que precisava de ajuda, que tinha o quinto ano, mas não havia trabalho. Dei-lhe uns escudos, que trocaria por pesos, a moeda local.

A casa do governador, uma moradia de traça tropical, um liceu novo e um hotel novo, tudo o que sobressaía daquele mundo de casinhas de madeira, algumas transformadas em cafés, com esplanadas, e muito, muito pó castanho avermelhado pelo ar. Ficção, pensava eu, mas as cabras e vacas passeavam pelas ruas e comiam papel de jornal!

O pior deste cenário triste era a prostituição, como é costume dizer-se, porta sim, porta sim, ao longo daquelas ruelas de terra e pó castanho, sinal da necessidade instalada.

Hora do almoço e sou aconselhado a comer no hotel. Lagosta enorme, Pesos 70$00 (Esc 70$00 = € 0,35). Garrafa de Casal Garcia, Pesos 120$00 (Esc 120$00 = € 0,60). Claro que os produtos atingem preços altos, mais por força do custo do transporte.

Cenários que foram mal reconstruídos e continuaram mal tratados, podendo ter tido outro destino, principalmente, no acompanhamento dos mais pequenos, aqueles que mais sofrem, pois têm de ajudar os pais, pobres e sem horizonte. 
Aliás, tivemos esse exemplo por cá, em certas zonas do país, como já falámos.

Viagem retomada, restavam-nos as cartas, lerpa, sete e meio e montinho, principalmente, com muito dinheiro a rolar na nossa frente. Final do dia, já noite, notámos a falta do nosso enfermeiro, o Vítor Coelho. De um lado para o outro, corremos tudo e nada dele. Continuámos, até que, num camarote, um rabo e umas pernas saíam de uma janelinha redonda, constatando que o resto do corpo estava do lado de fora do navio.

Era o Vítor Coelho, debruçado para o lado de fora, com um cabo de vassoura na mão, a que tinha atado uma faca de mato, em ângulo recto, a tentar apanhar um peixe voador. Só o Vítor Coelho poderia lembrar-se disto!…

Algum tempo depois, passámos pela capital, a cidade da Praia, na ilha de Santiago, com pena de não ter sido possível conhecer, pois era a parte mais avançada do arquipélago. Limitámo-nos a apreciar, de longe…

No decorrer da viagem, fomos dando algum conforto moral aos soldados, pois eram os que mais mereciam, dadas as circunstâncias em que viajavam. Comer, uma grande dificuldade, pois tudo andava às voltas…

E a viagem continuava longa, como nos tinham dito. O que não nos disseram foi que o navio andava de lado, com água nos corredores e camarotes pelo meio da perna, lama, probabilidade de incêndio, etc.

E dez dias passaram, até que chegámos ao porto de Bissau. Não nos deixaram desembarcar, claro, pois o anoitecer estava perto e tornava-se perigoso.

Sabe uma coisa, Daniel? Tenho pena de não ter preparado uma garrafa de vidro, com uma mensagem dentro, e atirá-la borda fora, lá no alto mar, só para ver onde iria ter e se teria resposta, como tantos fizeram…

Porto de Bissau, oito da manhã, toca a sair do navio e entrar nas viaturas militares que ali nos aguardavam, rumo ao Depósito de Adidos, em Brá, perto do aeroporto de Bissau.
Não poderia imaginar que já éramos conhecidos ou falados, mas logo nos disseram:
- Ah, são a 2796, a que vai para a colónia penal da Guiné?!

Como acabávamos de chegar, logo, designados ‘periquitos’, eu pensei logo que poderia ser uma espécie de praxe, para nos amedrontar. Organizámos o ‘acampamento’, ajudando os nossos homens na distribuição dos espaços e das tendas de campanha, após o que nos deram uma refeição rápida, na cantina do Depósito de Adidos.

Para os graduados, tendas individuais, um colchão pneumático, já com um ou outro gomo rasgado, mas era melhor do que nada. Silêncio, luzes de presença e segurança, ali estávamos a tentar descansar, já sentindo um certo cheiro a pó africano.

De repente, sinto qualquer coisa nas traseiras da tenda, que davam para a vedação de arame farpado, um som que correspondia a corte na lona. Mesmo na penumbra, vejo uma lâmina a entrar e a sair, lentamente, com cuidado, a cortar a lona, junto ao chão de terra castanha com tom avermelhado.

Consigo resvalar para o lado contrário, a saída da tenda, e rastejar de faca de mato na mão, a única coisa de defesa que tinha, pois ainda não tínhamos recebido as armas. Quando chego ao lado de trás, só vejo um vulto, africano, a correr em direcção ao arame farpado, dando um salto de peixe na primeira linha e novo salto na segunda linha, desaparecendo no escuro…

Logo chamei a atenção do sargento Moreira, no sentido de providenciar a distribuição de armas para o dia seguinte, logo de manhã, pois não se sabia que mais nos estava reservado, mesmo dentro do Depósito de Adidos.

Entretanto, tínhamos de aguardar disponibilidade de LDG (lancha de desembarque grande), com transbordo para LDM’s (lancha de desembarque média) e para LDP’s (lancha de desembarque pequena) ou batelões, caso apanhássemos a maré vazia, um grande problema.

O Daniel está a ver que lanchas são estas, as tais utilizadas no desembarque das forças aliadas, EUA, Inglaterra, França Livre e aliados, na Normandia, durante a Segunda Guerra Mundial, em 1944, considerada a maior invasão marítima da história, episódio que quase era dos nossos tempos. Parece que partiram todos de vários portos de Inglaterra, atravessaram o Canal da Mancha e invadiram a França ocupada pelos alemães, a Normandia.

Como eu ia dizendo, enquanto esperávamos pela hora da partida para o Sul, dava para umas visitas ali perto, Engenharia, Força Aérea, Comandos e à cidade, onde podíamos comer e beber umas coisas melhores do que no quartel, enquanto não nos avisavam da hora de partida para Gadamael Porto.

Na Força Aérea, encontrei um amigo da Figueira da Foz, o Flórido, que estava a acabar a comissão, logo, a preparar o regresso à Metrópole. Ficou contente por me ver e, ao mesmo tempo, preocupado comigo, quando lhe respondi que ia para Gadamael Porto, e isso respondeu à minha dúvida sobre o que nos tinham dito quando chegámos, ‘colónia penal…’.

Na cidade, além de tomarmos contacto com alguns locais que nos diziam interessantes e úteis, sinceramente, nada de jeito, tivemos a primeira noção de realidades estranhas, como produtos de consumo corrente com preços distintos, conforme procedentes da Metrópole ou importados, ou produtos inexistentes, sem justificação, para nós. Por exemplo, não havia água de Castelo, sumos e refrigerantes, logo, nacionais.

Havia água Perrier, coca-cola, logo, estrangeiras. Whisky, Gin, Licores de Whisky, por exemplo, imensas marcas, tudo original, importado - mais baratos do que qualquer bebida idêntica na Metrópole. Na esplanada de um café, um cálice balão de Whisky, Pesos 2,50 e uma água pequena Perrier, Pesos 7,50.

Os armazéns e retalho, principalmente, propriedade de portugueses, embora alguns de propriedade libanesa, pela tradição de comércio instalado, que era feito entre os países africanos, passando pela Guiné Conacry, atravessando a Guiné Bissau e seguindo pelo Senegal.

Vasta gama de equipamentos de alta-fidelidade e fotografia, pelo que adquiri um leitor gravador Hitachi, de boa qualidade, e uma máquina fotográfica Olympus.

Ainda me recordo de algumas casas, como a Casa Ultramarina, ligada ao BNU, a Casa Gouveia, ligada ao grupo CUF, a Casa António Pinto, conhecida por Pintosinho.

E fomos sabendo de algumas das etnias indígenas que encontraríamos pela Guiné, como Bailundos, Nalús, Sossos, Manjacos, Futa-Fulas, Fulas, Papeis, Balantas, Mandingas, Beafadas, Bijagós, Mancanhas, Felupes, Banhus, Tandas… Cada etnia tinha a sua própria cultura e estou a lembrar-me dos Manjacos que se distinguiam pelos panos que produziam em teares artesanais, os panos coloridos muito apreciados, as danças e sons muito característicos, só a título de exemplo.

E, apesar da grande confidencialidade, conseguimos um ’cheirinho’ sobre a razão da demora em partirmos para Gadamael Porto: qualquer coisa relacionada com as tais lanchas, ao mesmo tempo que davam a entender qualquer coisa de operações em curso, enfim, coisas que nada nos diziam, mas tinham todo o sentido, pelo que veio, a seguir…


(Continua)
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Nota do editor

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