Guiné > Bolama > Agosto de 1935 > A chegada do vapor "Moçambique", com os participantes do 1.º Cruzeiro de Férias às Colónias, entre os quais se contaria Ruy Cinatti (1915-1986), engenheiro agrónomo, poeta, antropólogo que iria mais tarde estabelecer uma relação especial com Timor.
Fonte: O Mundo Português, Vol II, nºs 21-22, Setembro-Outubro de 1935 (Exemplar pessoal de Mário Beja Santos; digitalização e edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné).
Queridos amigos,
Entre chuviscos intermitentes, aquele sábado de manhã na Feira da Ladra permitiu-me adquirir esta preciosidade, ao longo dos anos em que entabulei grande amizade com o Ruy Cinatti, este nunca me fizera referência à sua visita à Guiné e muito menos mencionara existir texto de tal viagem. A sua grande recordação fora a Ilha do Príncipe, deu-lhe fulgor para escrever uma pequena gema literária, o conto "Ossobó".
É bom recordar que este antropólogo e poeta tinha 20 anos quando escreveu estas recordações de viagem.
Um abraço do
Mário
Ruy Cinatti e uma viagem a Bolama, 1935
Beja Santos
O 1º Cruzeiro de Férias às Colónias, coordenado por Marcello Caetano, constituiu uma novidade pelo modo como se pretendia atrair a juventude aos conhecimentos das parcelas do império. Guardaram-se vários testemunhos dessa viagem em que o regime procedera a uma rigorosa seleção de universitários de elevada craveira.
Um dos escolhidos foi Ruy Cinatti (1915-1986) que se irá afirmar como grande poeta, etnólogo, antropólogo e defensor da causa timorense. Tive o privilégio de receber alguns dons da sua amizade benfazeja. Conheci-o quando era membro da direção do jornal “Encontro”, a publicação da JUC – Juventude Universitária Católica, em 1966, fui pedir-lhe um poema, ofereceu-nos “O cego”, o primeiro dos seus “Sete septetos”, livro que viria a ser premiado com o Prémio Nacional de Poesia.
O meu livro “A Viagem do Tangomau”, arranca com um encontro em sua casa, convidar-me para jantar na véspera de eu partir para Mafra, para frequentar a recruta. Leu-me poemas de safra recente, que virão a ser publicados a título póstumo. E na correspondência que com ele troquei na Guiné, deu-me sábios conselhos, foi um lenitivo para a minha alma, daí o ter tratado sempre por “Dear father”.
Encontrei em “O Mundo Português”, revista de cultura e propaganda, arte e literatura coloniais, o seu número 24, de Dezembro de 1935, o seu texto “A Mocidade Académica e o 1º Cruzeiro de Férias às Colónias”. Chamou-me à atenção, na chegada a S. Vicente, a descrição crua que nos faz da vida dolorosa do cabo-verdiano:
“A vegetação em S. Vicente está reduzida a pequenos oásis de verdura – as ribeiras – regiões sobrejacentes aos leitos de ribeiras subterrâneas, onde se desenvolvem plantas dos climas quentes, e a pequenas extensões de vegetação arbórea cuja ramaria, passada certa altura, se estende, se inclina horizontalmente, se prostra ante a fúria niveladora do vento do deserto, que sibila, que ecoa doidamente nos recôncavos da rocha.
O resto são campos de calhaus partidos, triturados, onde a vida vegetal é impossível, porque as águas que nas épocas de chuva se despenham em torrentes pelas encostas arrastam o pouco húmus que se tenha depositado ou os materiais terrosos provenientes da desagregação da rocha.
Todos estes aspetos, geológico, climático, ausência de vegetação na maior parte das ilhas, motivada ou pela falta de chuvas ou pelo seu desperdício quando cai, conduzem à grande tragédia do arquipélago – a fome.
Em 1924, só em S. Tiago morreram à fome 20 mil pessoas. No Fogo, o colmo é arrancado das casas indígenas para ser cozido e servir assim de alimento. As crioulas levavam os filhos já mortos ao colo, iludindo os administradores, para receberem maior ração”.
E conclui:
“Foram S. Vicente e depois o Príncipe, as ilhas que, no desfilar tumultuante de visões sucessivas, mais indelével recordação deixaram no meu espírito”.
E assim chegaram à Guiné, registará a sua viagem a Bolama:
“O mar muda de cor. Já não é azul ultramarino nem azul-cobalto. As águas são barrentas, com reflexos esverdeados provenientes dos aluviões arrastados pelo Geba e outros rios. A ondulação é mínima, apenas provocada pelo deslocamento do navio.
Atravessámos o dédalo das ilhas Bijagós, cobertas de intensa vegetação verde-amarelada, que me dá uma sensação muito diferente do que eu supunha vir a encontrar.
Costas baixas, em praia, abundantes em recortes e braços de mar, prolongando-se a perder de vista, a ponto de se julgar que a vegetação nasce das águas.
Era já tarde e o sol velado pela fímbria das nuvens caminhava para o ocaso. Não bulia uma folha. Estava tudo parado, tudo embebido num banho morno.
Caminhava ao longo de uma rua de Bolama, com os muros e as casas cobertas de musgo, onde o branco da cal há muito tempo dera lugar ao cinzento esverdeado da terra e das plantas. Andava e não via ninguém. Tudo estava deserto. Só ouvia o ecoar das minhas passadas no cimento do passeio.
Envolvia-me um silêncio sepulcral. Invadia-me um aniquilamento absoluto. Qualquer coisa me amolecia, tornava mais vagaroso o andar. Com a face, com o corpo a escorrer suor, bebi grandes golos de água do cantil; quanto mais bebia mais a sede me torturava.
De repente, em poucos minutos, o céu tapou-se de nuvens; uma ligeiria brisa baloiçou a folhagem dos poilões; começou a chover torrencialmente e a água, rejeitada pela terra saciada de humidade, corria em regatos para as margens lodosas do mar. Ali, refrescando a alma, refrescando o corpo com a deliciosa chuva a escorrer-me pelos cabelos e pela face, reagi.
Com outra alma, caminhei com energia, embebendo-me na paisagem tropical verde cinzenta. Nas margens do rio, onde o lodo borbulhava, o mangal de folhagem miúda muito cerrada estendia-se indefinidamente numa estreita faixa, com as raízes brutescas saindo da água.
Com o mesmo imprevisto com que tinha aparecido, as nuvens foram-se, e de novo o sol inundou a terra. Atravessei a cidade; segui por uma estrada onde, dentre o verde brilhante das bananeiras, das árvores de fruta-pão e dos poilões, surgiam as tabancas cor de argila.
Em volta, em porções de terreno sem área nem contorno definido, estendem-se as plantações de mancarra cultivada pelos negros. Grupos de indígenas, diferentes na aparência física e no vestuário, seguiam ao longo da estrada e estacionavam à porta das tabancas.
Uns, quase nus, com as costas tatuadas em relevo, com folhas de palmeira-leque e um grande cutelo nas mãos. Outros, vestidos com grandes camisas grandes que quase chegam ao chão, com o peitilho bordado e um alfange pendente a tiracolo. Mulheres, ora de tanga, ora envoltas em grandes panos, caminhavam com os filhos às costas e com grandes cabaças sobre o lenço amarelo enrolado em volta da cabeça.
Entrei numa tabanca de Fulas. Casas retangulares e circulares, o telhado de colmo estendendo-se para fora das paredes a servir de alpendre ou galeria. Sentados em volta os homens conversam, as mulheres entram e saem. As crianças brincam indiferentes ao que em volta se passa.
Lá ao longe, mas dentro da tabanca, o barulho de muita gente junta a falar atraiu-me. Fui lá.
Formando uma roda, homens e mulheres olhavam, gesticulando, o começo de um batuque. O tambor começou a suar e logo um negro despindo a camisa branca, descalçando as chinelas vermelhas, saltou para o meio, os músculos salientes a brilhar, exibindo o corpo atlético de um deus grego queimado pelo sol.
Começou a andar em volta, olhando a multidão que o cercava, saracoteando o corpo, batendo ritmicamente os pés, em flexões que iam aumentando com rapidez. Dirigiu-se às raparigas que em monte o olhavam embevecidas, num conjunto de cores em que o vermelho e o amarelo predominam.
Cantava a mesma frase com intervalos em que o som fica suspenso no ar e continuava cada vez mais excitado, na sua movimentada dança, dando saltos mortais.
De vez em quando chegava-se ao pé do tocador de tambor, dobrava-se, batendo com os dedos no chão e levantava-se me seguida bem alto, apontando para alguns dos que ali estavam. Era o desafio para a luta.
Ninguém veio. Mais alguns saltaram para o centro e com as mesmas atitudes desafiaram outros. Ninguém veio. Tudo se parecia temer. Em volta, homens e mulheres procuravam animar, batendo compassadamente as palmas, acompanhamento o canto intermitente dos lutadores. Nada conseguiram. Em breve começaram a dispersar. O sol já tinha desaparecido lançando apenas no horizonte um pálido clarão, que mais fazia realçar a beleza eternas das palmeiras.
Em redor os homens, sentados à porta das cubatas, lavavam os pés, preparando-se para a oração muçulmana”.
Ruy Cinatti escreve este texto com 20 anos. Chamou-me à atenção a dedicatória que ele apõe:
“Para o muito caro José Vaz Pinto, esta recordação do nosso cruzeiro de maravilha com a amizade de Ruy Cinatti Vaz Monteiro Gomes”.
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Nota do editor
Último poste da série de 5 de Maio de 2017 > Guiné 61/74 - P17321: Notas de leitura (953): "Buruntuma - Algum Dia Serás Grande - Guiné-Gabú - 1961-63", por Jorge Ferreira (Mário Beja Santos)
3 comentários:
Em 1935 já o Estado Novo tinha dois anos de vida.
Já se faziam uns "passeios" às colónias portuguesas, já não iam só os deportados, os colonos, os missionários evangelistas e católicos.
Embora fossem também militares, mas era só para fazerem currículo para promoções.
O Estado Novo tinha boas intenções em proporcionar estas viagens a futuros doutores.
Agora os futuros doutores e doutoras vão para as praias espanholas para umas noitadas.
Beja Santos como sempre, incansável.
Por pouco, os meninos de Marcelo não apanhavam a expedição punitiva, contra os bijagós que se recusavam a pagar o "imposto de palhota", também conhecida por "quarta e última campanha de Canhabaque"...Decorreu de 10 de novembro de 1935 a 20 de fevereiro de 1936... LG
É injusto que as palhotas paguem Imposto, o que nós chamamos IMI aqui em Portugal, e duvido mesmo que tal como os Bijagos na Guiné, os Cuanhamas e Mucubais em Angola e na Cova da Moura todos os portugueses paguem IMI, hoje em dia.
Assim como na Quinta do Mocho, (Loures) aqueles que lá moram.
Quem inventou este IMI em África foi a Rainha Vitória e os seus primos portugueses monárquicos, como sempre imitaram-nos tal como imitaram as fardas caqui dos chefes de posto e da tropa colonial inglesa.
Só que aos ingleses qualquer trapinho lhe fica bem.
Como dizia aquele emigrante tuga "que os ingleses são uns racistas muito educados"
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