Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Dezembro de 2015:
Queridos amigos,
Ao longo destas últimas duas décadas, um conjunto de voluntários decidiu fazer férias solidárias na Guiné, partiram com a ideia de cuidar dos outros, nomeadamente nos campos da educação, saúde e
comunicação. Foram programas organizados pela Fundação João XXIII/Casa do Oeste. Lendo estes testemunhos, entende-se a aprendizagem deste voluntariado: a saber distinguir melhor as coisas que são essenciais à vida e as que são perfeitamente supérfluas; a tomar consciência de que tudo o que possuem não pode ser gasto de qualquer maneira, quando milhões de seres
humanos, todos os dias lutam desesperadamente pela sobrevivência.
Solidariedade na criação de clínicas, cooperativas, infantários, plantações, centros culturais, bibliotecas, até uma canoa para tirar Pecixe do isolamento. Projetos que tocam o coração e que ajudam um povo a crescer; gestos que são momentos únicos de felicidade.
É um livro que pode ajudar-nos
a mudar a nossa vida.
Um abraço do
Mário
“Férias solidárias”: o espírito de cuidado com a Guiné-Bissau
Beja Santos
É um livro de testemunhos e memórias como não conhece igual. Durante anos, grupos solidários com impulso na Fundação João XXIII chegaram à Guiné-Bissau para fazer bem, ajudando jovens, pondo de pé estabelecimentos escolares, apoiando trabalho da maternidade, de pediatria, despistando tuberculose, assistindo centenas de pessoas com problemas de visão, erguendo uma biblioteca, um infantário, adquirindo um barco para chegar à Ilha de Pecixe, mas há muito mais.
É uma impressionante mobilização de cristãos, vemos católicos de mão dada com evangélicos, confrontados com a pobreza extrema e envolvidos em serviço voluntário, é difícil imaginar comoção maior daquela que é dada nestes testemunhos, nos olhos reparados, nas mães que puderam dar à luz em condições de higiene e segurança… E tudo começou no longínquo ano de 1990 em que um grupo de amigos quis fazer uma férias diferentes, umas férias pautadas pelo voluntariado e pela solidariedade. Bateram à porta dos padres franciscanos, assim começou este projeto maravilhoso de “férias solidárias”. Ao longo de anos, de colaboração com a Associação dos Guineenses em Portugal, foram construindo benfeitorias indispensáveis: o centro social de
Ondame, pensado para dispor de um posto de saúde, uma biblioteca e uma escola para alfabetização de adultos, foi utopia a mais, puseram então de pé o centro materno-infantil de Ondame, hoje Clínica Bom Samaritano, espaço que havia sido criado, em 1957, por duas irmãs evangélicas inglesas; deu-se depois início a um apoio aos jovens quadros de Cachungo. O ativo destes grupos solidários é impressionante: reparação de casas da paróquia da Sé de Bissau, no bairro de Santa Luzia, e beneficiação das casas deste bairro; construção do primeiro pavilhão da Cooperativa Escolar de S. José de Mindará, em Bandim e reparações na Missão da Cumura; capacitação de animadores do mundo rural; construção do Centro Social de Ondame; formação de professores da Cooperativa Escolar de S. José de Mindará; início da cooperação com a Clínica Bom Samaritano; formação na área de Fisioterapia de Enfermeiros na região do Biombo; organização da farmácia da Clínica Bom Samaritano; entrega de um trator aos jovens da Cooperativa Agrícola de Cachungo; acabamento das instalações da rádio “Voz do Biombo”; chegada de um bloco operatório à Clínica Bom Samaritano e respetiva eletrificação da clínica; intervenções oftalmológicas, consultas de clínica geral e pediatria, entre outras iniciativas.
Biblioteca de Ondame
Seguem-se testemunhos de grande alegria, daqueles que apoiam a construção dos equipamentos, daqueles que põem as escolas a funcionar, daqueles que trabalham num pequeno jardim botânico, daqueles que reparam maquinaria. Há depoimentos que se constituem como verdadeiras exaltações à vida, este passou-se na Clínica Bom Samaritano:
“Loida, a enfermeira responsável, estava atarefadíssima a meio de um parto difícil e com necessidade de uma evacuação para a maternidade de Bissau. Era urgente fazer uma cesariana. Questionada por que não ia respondeu que não havia dinheiro para o gasóleo e a família também não tinha meios. Olhámos uns para os outros e agimos dizendo que íamos levar a parturiente a Bissau. Depois de uma viagem alucinante dentro de uma ambulância a cair de velha, algumas paragens para tentar que o parto fosse feito, a chegada ao Hospital Central de Bissau não foi menos alucinante. Deparámo-nos com fatores nunca antes imaginados, as condições em que tinham e têm que parir as mulheres em Bissau. Depois da ajuda imediata que se converteu em mudança de espumas/colchões que fomos comprar a Bissau, pinturas com o pouco material que tínhamos em casa, forrar o chão com linóleo e limpeza em geral (…) participámos todos na aventura de comprar oito espumas/colchões e o linóleo. Quinze dias de trabalho, muita vontade de mudar”.
É muitíssimo tocante o projeto Visão Guiné. Só no início de 2011, um grupo de 32 voluntários operaram 142 pessoas, cirurgias oftalmológicas que privilegiaram pacientes com cataratas bilaterais em fases muito evoluídas e que se encontravam num estado de cegueira. Um dos solidários depõe de forma emocionante:
“Descobri muitas coisas: que dez pessoas podem viver todas juntas em seis metros quadrados; que as casas não têm casa de banho; que as refeições são só uma por dia; que o chá príncipe é usado para combater o paludismo, que é muito fácil viver com o que temos; que é muito fácil fazer sorrir alguém; que tomar banho de púcara é fabuloso”.
Mercado de Ondame
Há os perfilhamentos e os apadrinhamentos, há os casais que vão à Guiné para adotar crianças, muitos têm fé cristã, outros avançam para estas férias solidárias em nome do humanismo. Fica a lição das várias equipas que trabalharam em regime de voluntariado, costeando as despesas das suas deslocações. Cooperaram em diferentes áreas: da construção civil, da educação, da saúde, movidos pela promoção do desenvolvimento integral da pessoa humana. O cristianismo guineense não faz barreira com os outros credos, mormente o islamismo, há comprovadamente diálogo.
Em Abril de 2012, após um novo golpe de Estado capitaneado por António Indjai, os bispos da Guiné-Bissau lançaram um apelo aconselhando:
a) Que, antes de mais, façamos apelo à nossa fé comum, pois acreditamos no Deus Criador e Pai que intervém para proteger, ajudar e ensinar-nos a viver como irmãos. Também agora queremos elevar os nossos olhos para esse Deus providente e misericordioso;
b) Que formemos corretamente a nossa consciência moral, de modo a promover a defender o bem-comum, e a evitar comportamentos negativos que têm prejudicado enormemente a nossa convivência pacífica, nomeadamente: a busca desenfreada e ilegal do poder e da riqueza; a corrupção, nas suas variadas formas, a impunidade perante os crimes cometidos, a falta de transparência na gestão dos bens públicos, a espiral de violência, que leva à morte de várias pessoas, o desleixo generalizado no exercício da própria profissão, etc.
Quem ouve o clamor desta igreja parte sem hesitação para ajudar aqueles que precisam na desventurada Guiné.
Fotos:
Fundação João XXIII, com a devida vénia
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Nota do editor
Último poste da série de 3 de Fevereiro de 2017 >
Guiné 61/74 - P17018: Notas de leitura (926): "Diálogos Interditos, A Política Externa Portuguesa e a Guerra de África", II Volume, por Franco Nogueira, Editorial Intervenção, 1979 (Mário Beja Santos)