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domingo, 12 de setembro de 2010

Guiné 63/74 - P6975: In Memoriam (51): Djassió Soncó, mulher do guia Quebá Soncó (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Agosto de 2010:

Queridos amigos,
Foi exactamente assim que aconteceu.
A fotografia saltou de um livro, dias depois chegou o Abudu Soncó e deu-me a triste notícia. O terrível de tudo é olharmos para uma fotografia onde somos o sobrevivente e termos saudades daquelas pessoas que confiavam incondicionalmente em nós.
Uma saudade irremediável, a mais pungente de todas.

Um abraço do
Mário


De braço dado com a minha amiga Djassió Soncó

Beja Santos



Está rotundamente enganado todo aquele que pensa que tem os papéis em dia, dossiês organizados para a posteridade, recordações arquivadas porque elucidadas. Vem tudo isto a propósito de duas ferroadas do destino: uma fotografia totalmente esquecida e tão importante para os meus afectos, concomitante com uma notícia desabrida, com mais uma perda.

Naqueles anos em que simulei que a guerra andava num limbo, qualquer resquício da sua presença era metido numa profundeza, o futuro que o desencantasse. Como aconteceu com esta imagem. Saltou desabridamente de um livro, a surpresa deixou-me apatetado, a cismar. Não fosse o leitor levado a supor que disponho de uma memória de elefante, eu diria naturalmente: parece que foi ontem que tirei esta fotografia. Mas não foi, tudo se passou em fins de Maio de 1969, estamos em plena época heróica da reconstrução de Missirá. A máquina fotográfica não é minha é do Pires, ele virá depois a férias, mandou revelar na Fotopax, de Beja, no mês seguinte. A minha máquina fotográfica ardera em Março, nesta altura não tinha dinheiro nem para mandar cantar um cego. Estou de braço dado com Djassió Soncó, mulher de Quebá Soncó, irmão do régulo e nosso guia. No fundo, a morança do régulo Manlã, com um colmo lindíssimo. Ao lado de Quebá, pequenino e gingão, Trilene (soldado milícia que adorava camisas de terylene) fuma e olha, magano, para a câmara. Amanheceu, todos acreditam que vamos directamente para Bambadinca. É mentira, vamos a Mato de Cão, cerca das onze horas irão passar dois batelões e, inopinadamente, partiremos para o Enxalé, em duas viaturas. Djassió ia em pânico, toda a gente temia aquela viagem na estrada abandonada entre Mato de Cão e Enxalé.

Na fotografia estamos de braço dado, Djassió Soncó é uma estimável amiga, feições de grande beleza, um porte quase imperial. É mãe daquele Mamadu Soncó que vai viver para Bambadinca nos últimos tempos da minha comissão, lá para Julho de 1970. Estava convencido que eu o traria para Portugal, sempre me chamou Paizinho. E um Paizinho faz tudo pelos filhos.

Lembro-me de tudo ou de quase tudo. A boa disposição que eu tinha nesse dia, com Missirá a reconstruir-se. Ali está a base onde assenta o pau de bandeia com o distintivo do Pel Caç Nat 52. Vêem-se as trouxas habituais numa viagem, quer à ida quer no regresso.

Depois veio o desacerto do destino. Djassió irá ficar brutalmente sinistrada numa flagelação em Julho. Perderá um braço, uma roquetada trespassou o telhado, a viga mestra cedeu, derrubou-a, decepou-a. Estou a ver, na noite alta, Quebá Soncó a levar esse braço decepado para o enterrar. Parece que Quebá Soncó terá sofrido inúmeros vexames na prisão, em Bafatá, onde morreu, a seguir à independência.

Trilene foi fuzilado por engano, disseram-me que gritava em frente ao pelotão de fuzilamento, desorbitado: “O que é que eu fiz? Por quem me tomam?”.

O pior de tudo estava para vir. Visitei Djassió algumas vezes no bairro Benfica, em 1991, quando trabalhei como cooperante, em Bissau. É exactamente quando Abudu Soncó chega a minha casa (tinha eu descoberto a fotografia há escassos dias), para conferir a lista das visitas que pretendo fazer quando voltar à Guiné e lhe mostro a fotografia da Djassió, sua tia, que fico a saber que ela morreu há pouco tempo.

Não sei se isto é pura casualidade, se eu estou a fantasiar que podia ter sido ontem que eu tirei esta fotografia, que estou feliz de braço dado com esta amiga, tão castigada pela vida. Na fotografia estou feliz segurando o guarda-mão em baquelite da G3. Aquele mundo é meu, pertence-me integralmente, ali respondo pela guerra e pela paz.

Já morreram todos, os que estão a meu lado. São cerca de sete horas da manhã, vejo a sombra de alguém em cima do Unimog 404 que vai seguir ajoujado até ao Enxalé e, no regresso, deixaremos muita gente em Finete.

Olho sem melancolia este tempo tão intensamente vivido, cercado de vítimas da guerra. Sem melancolia mas cheio de saudade, à portuguesa. Por isso me estou a preparar para percorrer por todo o Cuor, em jeito de despedida. Todos os actores da fotografia, afinal, vão partir.
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(*) Vd. poste de 10 de Setembro de 2010 Guiné 63/74 - P6966: Notas de leitura (148): Transição Democrática na Guiné-Bissau, por Johannes Augel e Carlos Cardoso (Mário Beja Santos)

Vd. último poste da série 10 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P6965: In Memoriam (50): João Baptista (1938-2010), um camarada, um amigo, um irmão (Octávio do Couto Sousa)

sexta-feira, 30 de maio de 2008

Guiné 63/74 - P2904: Memória dos lugares (8): Missirá, Cuor, cemitério mandinga: sepultura do guerreiro Quebá Soncó (Sales Moreira / Beja Santos)

Guiné-Bissau >Região de Bafatá > Bambadinca > Regulado do Cuor > Missirá > 2006 > Cemitério mandinga de Missirá, sepultura de Quebá Soncó.


Foto: © Beja Santos (2008). Direitos reservados.


1. Mensagem do Beja Santos;


A fotografia é do tenente-coronel Henrique Jales Moreira, que foi 2º comandante do BART 3873 (penúltima unidade militar em Bambadinca, até ao início de 1974).

É assim que se referencia um túmulo, na Guiné. Bacari Soncó, um dos filhos de Quebá Soncó, primogénito do régulo Malã, indica a sepultura de seu pai, um grande e destemido combatente que ficou gravemente ferido numa incursão a Madina do Cuor, antes de eu chegar a Missirá.

Quebá Soncó apresentava-se como "guerreiro africano da Guiné Portuguesa".


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Nota de L.G.:

(1) Vd. poste de 24 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2880: Memória dos Lugares (6): Missirá, Cuor, região de Bafatá, 2006 (Jales Moreira / Beja Santos)

quarta-feira, 25 de julho de 2007

Guiné 63/74 - P1996: Bibliografia (9): Nas Terras dos Soncó, um livro saído do nosso blogue, em próxima edição do Círculo de Leitores (Beja Santos / Luís Graça)

1. Eis a boa notícia que o Beja Santos traz hoje:

Luís e todos os tertulianos, apresentei-me ontem no Círculo de Leitores, para ter uma reunião com a Dra. Guilhermina Gomes, a sua editora-chefe. Enviara-lhe a versão provisória do primeiro volume da Operação Macaréu À Vista, já que decidira que a sua edição devia comportar dois volumes, um ano de comissão cada.

Logo no início da reunião, a Dra. Guilhermina revelou-me que lera de um só fôlego todo o manuscrito e que o livro vai ser editado em Fevereiro ou Março do próximo ano. Acordei com ela que o livro terá a estrutura de um diário, tal como está a ser publicado no blogue (1) . Haverá uma sessão pública de lançamento, na data de Fevereiro ou Março [de 2008]. O título escolhido para este primeiro livro será Nas terras dos Soncó. Tenho agora que rever toda a ortografia, pôr subtítulos, polir.

Pedi à Dra. Guilhermina que sugerisse à pessoa que vai gerir este projecto que consultasse o nosso blogue (e as demais páginas do nosso sítio) para acertarmos num caderno de fotografias (o livro incluirá um caderno de fotografias, não sei se a cores, se a preto e branco).

É minha indeclinável vontade que os direitos de autor venham a reverter para o blogue, pelo que convirá estabelecer-se uma discussão quanto à forma como podemos receber e distribuir dinheiro.

Confesso que estou muito orgulhoso por esta aprovação. Recai muita responsabilidade na preparação agora do segundo volume e temos que pensar a sério no que vamos fazer enquanto editores de livros.

Um abraço do Mário.


2. Comentário de L.G.:

Já aqui tínhamos dito que, no blogue, se haviam revelado, no espaço de dois anos e picos, vários talentos literários. E sempre acarinhámos os projectos de edição de nossos amigos e camaradas, alguns dos quais já com livros publicados sobre a temática da guerra colonial, quando para cá entraram (v.g., Carvalhido da Ponte, Renato Monteiro, António da Graça Abreu, Mário Vicente ou Mário Fitas, Rui Alexandrino Ferreira, Padre Mário de Oliveira, cito de cor!)...

Quanto a livros de bloguistas, já temos dois na calha: um, ainda em fase exploratória, resultante da tese de doutoramento do Leopoldo Amado (há contactos com a editora Campo das Letras, do Porto, por iniciativa do A. Marques Lopes); é um trabalho diferente, de investigação historiográfica, que só muito parcialmente tem a ver com o nosso blogue: será um filho da tese do Leopoldo, para o grande público; e agora este, mais concreto, saído directamente do nosso blogue, do nosso camarada Beja Santos, cujas negociações com o Círculo de Leitores foram bem sucedidas, para nosso contentamento.

O mérito é, em grande parte, pessoal, devido não só ao grande talento do Mário, mas também à sua enorme capacidade de trabalho e à sua persistência. Desde há um ano a esta parte que o Mário levou a peito este tremendo desafio que foi reconstituir as suas vivências e as suas memórias do Cuor, da sua querida Missirá, dos seus homens do Pel Caç Nat 52, das suas milícias (Missirá e Finete), da sua grande família do Cuor, dos Soncó aos Mané, sem esquecer Bambadinca e a sua ambiência, os camaradas milicianos com quem conviveu e fez operações.

Eu sou testemunha, insuspeita, de que o Mário trabalho de maneira sistemática, disciplinada, quase obsessiva... Como nos nos bons velhos tempos, em que ele era o verdadeiro senhor do Cuor... Em suma, o nosso Tigre de Missirá continua em grande forma, a malta de Bambadinca que se cuide!...

Não tenho dúvidas que vai ser um grande dia de festa o lançamento, já anunciado para o 1º trimestre de 2008, do primerio livro, filho do nosso blogue... O Mário está de parabéns, mas também todos nós que, de uma maneira ou de outra, temos alimentado (com as nossas estórias, apontamentos, comentários, fotografias, mapas, relatórios, etc.) essa torrente, esse macaréu de emoções, sentimentos e imagens que dão vida, côr, consistência, humanidade e dramatismo aos mais de meia centena de episódios já escritos, semana a semana, pelo Beja Santos... O Mário será o autor mas nós, todos nós, temos lá as nossas dedadas...

Deixemos, entretanto, as questões mais comezinhas e práticas (direitos de autor, créditos fotográficos, etc.) para mais tarde.

PS - Espero que o exemplo do Beja Santos seja seguido por outros amigos e camaradas: há para aí montes de estórias fabulosas (do Mário Dias à Gilda Pinho Brandão, do A. Marques Lopes ao Virgínio Briote, do Jorge Cabral ao Zé Teixeira, passando pelo Victor Tavares e pelo Idálio Reis, do Rui Felício ao Paulo Raposo, do João Tunes ao Raul Albino, só para citar alguns de nós que de repente me ocorrem...). Sem esquecer os nossos poetas...

O que me orgulha é que este blogue está uma alforge de talentos, de gente que sabe contar estórias, e é dotada de grande sensibilidade e humanidade, mesmo escrevendo só com um dedo, como é o caso confesso do Paulo Santiago... (LG).
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Nota de L.G.:

(1) Vd. último post da série > 20 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1978: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (55): Mataste uma mulher, branco assassino!