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sexta-feira, 19 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22731: O cruzeiro das nossas vidas (31): a minha viagem (pacífica) no N/M Ambrizete, de 3 a 9 de novembro de 1970, com partida (atribulada) oito dias depois do programado (Hélder Sousa, ex-fur mil trms, TSF, Piche e Bissau, 1970/72)


N/M Ambrizete, navio misto, da SG, Grupo CUF

Fonte: Álbum dos Navios da Marinha Mercante Portuguesa (Publicado pela Junta Nacional da Marinha Mercante em Junho de 1958). Reproduzido aqui com a devida vénia...

Construído em 1948 na Inglaterra, tinha cerca de 138 metros de comprimento e 5500 toneladas de arqueação bruta. Deslocava-se a uma velocidade de 13 nós (1 nó = 1 milha náutica/hora = 1,852 quilómetros/hora), tinha 37 tripulantes e pertencia à SG, a Sociedade Geral de Comércio, Indústria e Transportes, com sede em Lisboa (Grupo CUF). 

Recorde-se que a CUF - Companhia União Fabril estava representado na Guiné pela Casa Gouveia, adquirida na década de 1920 (1)... Eram cargueiros da SG como o Ambrizete que traziam para a Metrópole a mancarra com que a CUF fazia o seu famoso Óleo Fula (em 1929 conseguiu a autorização para produzir óleo alimentar, em regime de monopólio, e em clara concorrência, desleal, com os produtores de azeite) (*)

1. Texto enviado hoje pelo Helder Sousa (ex-fur mil trms,  TSF, Piche e Bissau, 1970/72):


A minha viagem para a Guiné no N/M “Ambrizete”



por Hélder Sousa


O nosso Amigo e Editor da “Karas”, da Tabanca do Centro, Miguel Pessoa, pediu-me colaboração com um texto para publicação. Entretanto, na procura de inspiração e de recordações, apareceu e li no Blogue “Luís Graça & Camaradas da Guiné” um conjunto de artigos e comentários sobre os navios que foram utilizados no transporte de tropas e de material e das memórias que isso concitavam (**).  A acrescentar, também o Amigo e Editor da Tabanca Grande, Luís Graça, me desafiou a relembrar a minha viagem com as suas particularidades.
Vinheta de propaganda da ARA,
referente à sabotagem do navio
de mercadorias Cunene, Lisboa,
em 26 de outubro de 1970.

Deste modo, juntando “as pontas” e as vontades, aqui me prontifico a fazer isso, tanto mais que as datas relacionadas não andam longe. Também devo referir que alguns aspetos da viagem, principalmente das circunstâncias anteriores à mesma, já foram referidos num dos primeiros artigos que escrevi para o Blogue e a que dei o título de “O último adeus”.

Começando pelo princípio devo dizer que a minha viagem, em rendição individual, estava marcada para
 a manhã do dia 26 de Outubro de 1970 (e ainda é a que figura na caderneta militar). Ora bem, como se podem lembrar, nessa madrugada ocorreu o chamado atentado ao N/M Cunene (**) e, nessa referida manhã, no Cais da Rocha, as dificuldades para os passageiros que deveriam tomar o transporte atribuído eram muitas. Não sei se por causa disso, não me recordo se foi ou não mencionado, a verdade é que o referido transporte, o N/M Ambrizete  estava ancorado no meio do Tejo e para lá chegar isso fazia-se nas lanchas da Sociedade Geral que serviam de comunicação.

O “Ambrizete” era um cargueiro que dispunha de 6 cabinas duplas, 
pelo que levava 12 passageiros, sendo 6 militares das Transmissões (3 Furriéis TSF e 3 TPF), ocupando no conjunto 3 cabinas; uma mãe, que a memória me sussurra ser cabo-verdiana, com 3 filhos,  ocupando 2 cabinas; e a restante era ocupada por dois civis, um homem já maduro que ia de contrato para ir trabalhar para a Tecnil e um outro, mecânico de automóveis, que não sei como, mas arranjou maneira de ir para a Guiné para fugir à perseguição que a sua mulher e o padeiro lá da terra lhe moviam a contas de uma alegada infidelidade conjugal entre ele e a mulher do tal padeiro, tendo a bordo
 apenas a roupa que tinha vestida, pois parece que não teve tempo para mais.

Na hora da despedida no Cais, o pessoal da lancha comentou baixinho para nós militares, que “não era preciso tanta despedida pois não íamos partir hoje”.

Ao chegar ao barco fomos convidados a escolher as cabinas e fomos informados que, devido a vários problemas, como por exemplo uma má distribuição da carga que fazia o barco adornar (inclinar) cerca de 13 graus a bombordo (à esquerda, tomando como referência a proa do navio) e também com uma avaria num dos frigoríficos. Não sei a que se devia a “má distribuição da carga”, se por o barco ter eventualmente largado o cais à pressa, devido à tal ação de sabotagem, para se colocar no meio do rio, ou por terem realmente depositado no porão vários materiais não tendo em conta os seus diferentes pesos, sendo que a carga era de natureza diversa, desde géneros alimentares (alguns chegaram lá à Guiné já em menores condições por não se ter conseguido colocar o frigorífico em boas condições), até bombas para avião, segundo disseram.

Pouco tempo decorrido da chegada a bordo, o cargueiro apontou à foz do Tejo, fazendo crer a quem estava no Cais que era a partida, mas na realidade o que se fez foi andar o resto da manhã e boa parte da tarde a “fazer agulhas” ao largo da baía de Cascais, com vista a tentar melhorar a distribuição da carga. Ao fim da tarde regressou-se ao ponto de partida e, como era 6ª feira, o Comandante do navio disse que quem quisesse podia ficar a bordo mas quem quisesse sair e passar o fim-de-semana em casa o podia fazer, pois durante o sábado e domingo não ia haver saída, mas com a condição de se voltar na 2ª da manhã.

Aqui voltou a haver aspetos que normalmente não aconteceram com a maioria dos que embarcaram nos diversos navios e que foi, por exemplo, o transporte gratuito entre as margens do Tejo nas lanchas que levavam pessoal para Cacilhas e ligavam a Lisboa, facilidades que utilizei.

Os meus outros dois camaradas TSF foram a Setúbal, a casa do Nelson Batalha, pois por coincidência nesse fim de semana o F.C.Porto, clube da simpatia do Manuel Martinho, jogava lá com o Vitória local. Voltaram na 2ª feira, conforme aprazado e já não saíram, a não ser umas escapadas rápidas a Cacilhas nas tais lanchas. 

Eu aproveitei para ir a Vila Franca surpreender e assustar a minha mãe e quando na 2ª feira, 29, voltei, disseram-me nos escritórios da SG que “podia voltar para casa, pois os trabalhos estavam demorados e o melhor era ir telefonando para saber quando seria”, coisa que fiz então diariamente até ao dia 3 de Novembro de 1970, quando recebi a indicação de que “era hoje à noite, e tinha que apanhar, o mais tardar, a lancha das 22:00”.

Durante esses dias do intervalo de tempo fiz várias coisas, sendo que no tal dia 3 de Novembro fui ver um filme no “Tivoli”, com Sophia Loren e Marcello Mastroianni, com o título original em italiano “I girasoli” mas que foi intitulado em Portugal de “O Último Adeus”  e que tratava da busca de uma jovem italiana pelo seu marido dado como desaparecido, quando integrado num batalhão italiano que participava na invasão da Rússia pelas tropas alemãs na 2ª Grande Guerra Mundial. 

Em dada altura do filme vê-se o protagonista, o Marcello Mastroianni, caminhando num campo gelado e encontra alguns corpos congelados de camaradas seus e, quando tenta pegar num deles por um braço,  o mesmo parte-se como um pedaço de gelo. Nesta altura o filme interrompe-se para o intervalo e como já eram cerca das 17:00 horas, hora mais ou menos combinada com os escritórios da SG para o contacto diário da tarde, precipitei-me para o telefone do “foyer” e lá fiz a chamada, referindo com as cautelas necessárias para diminuir a identificação, mas sendo claro que se tratava “do militar que queria saber se a partida para a Guiné estava ou não prevista para hoje”. De lá disseram que sim, com referi no final do parágrafo anterior. 

Não me apercebi que se tinha formado uma fila de pessoas que também queriam telefonar e quando me voltei deparei com vários olhares de comiseração e de quem estava a “olhar para um morto”, pois por esses tempos a palavra “Guiné” era sinónimo de complicações….

Acabado o cinema,  fui jantar com a então minha namorada, num pequeno restaurante próximo de Santa Apolónia, que ainda lá está e que tenho ideia de se chamar “O Farol”, a seguir ela foi apanhar o comboio e eu o transporte para o Cais, onde a lancha me levou ao “Ambrizete”, houve mudança de turno e lá seguiu rumo à Guiné, agora com “apenas” 7 graus de inclinação.

Os meus companheiros de viagem já estavam ambientados, já estavam no barco há muito tempo, mas eu tinha acabado de chegar, vinha de uma despedida, vinha de um filme dramático e não estava com muita disponibilidade para grandes brincadeiras, grandes alegrias e por isso isolei-me, encostado à amurada, a olhar de modo a absorver tudo o que via para poder depois fechar os olhos e rever, e pensar no que o “destino” me poderia reservar.

Nisto, sou surpreendido pela presença do tal homem da Tecnil que me vem pedir para fazer “uma oração de despedida e de pedido de bom acompanhamento para a viagem”, pois os “sacaninhas” dos meus camaradas TSF, que se encontravam no deck superior a gozar a cena,  lhe tinham dito que eu era muito religioso e até tinha estado num Seminário…

Como me apercebi da tramoia,  não quis desiludir, nem tratar mal, o personagem, e lá o deixei contente e satisfeito, com a minha homilia, apesar de por esses tempos me encontrar militantemente afastado da Igreja.

Durante a viagem as refeições normais (geralmente muito boas) mereciam a companhia do Sr. Comandante do navio mas dada a falta de higiene do tal mecânico, que não tinha roupa para mudas, ele comentou haver um cheiro desagradável, o que fez com que se tivesse que “tomar medidas” e explorando a natural curiosidade do “nosso mecânico”,  houve quem o levasse a ver o “veio da hélice”, havendo então elementos da tripulação que aproveitaram para lhe proporcionar um banho de agulheta e depois, enquanto a roupa era lavada e posta a secar, houve que lhe emprestar alguma roupa interior, embora isso o obrigasse a ter as refeições no camarote.

A viagem em si mesma, ressalvando a tal inclinação a que nos habituámos depressa, correu bem. Tenho ideia que se navegou a 13 nós (não sei confirmar), que passámos por entre dois grupos das Ilhas Canárias, que aconteceu por várias vezes sermos presenteados com a companhia exibicionista de peixes-voadores e que durante a noite de 8 para 9 de Novembro ultrapassámos o “Carvalho Araújo” que seguia pachorrento com a sua “carga humana”, sendo que por isso chegámos a Bissau na manhã cedo do dia 9.

Ainda durante a viagem, por força do bom relacionamento e interação que se foi fazendo com a tripulação, numa das primeiras manhãs, aquando do que seria o pequeno almoço, perguntaram se não queríamos um “mata-bicho”. Pensando que se trataria de aguardente ou coisa assim, recusámos, mas lá nos explicaram que era uma refeição mais forte para o pessoal que saía de turno e que à hora do almoço estaria a descansar. Então venha de lá esse “mata-bicho”! Bem… recordo que o primeiro deles foi um “arroz à valenciana” bastante bom, o qual antecedeu então o café e o pão com manteiga habituais.

Pois, sei que nesses aspetos fui bastante beneficiado e protegido pelos “deuses”, com uma viagem quase particular, com uma cabina sem luxos mas funcional e apenas para duas pessoas, com refeições condignas, com a amável companhia do Comandante e suas palavras de conforto, nada comparado com os relatos das miseráveis condições em que viajaram inúmeros militares, principalmente os que tiveram a desdita de ocupar os porões “adaptados” dos navios, mas tendo sido essa a minha realidade, é essa que relato.

A aproximação à Guiné, na penumbra da pré-alvorada, com a visão da vegetação mal definida, o bafo quente que de lá vinha, os sons abafados que, entretanto, também chegavam, ajudavam a criar uma aura de mistério e de apreensão. Depois o barco ficou ancorado ao largo (mais uma vez),  deixando vago o cais acostável para o “Carvalho Araújo”, sendo que a passagem para terra se fez por meio daquelas espécies de pirogas, não sem que o Sr. Comandante se despedisse de todos e de cada um com simpatia e de modo a que o “Ambrizete” ficasse para sempre na memória.

Hélder Sousa
Fur Mil Transmissões TSF


2. Informação complementar do editor:

Reproduz-se aqui, com a devida vénia, a sinopse do filme, acima referido, com a devida vénia ao CineCartaz do jornal Público:

O Último Adeus

Título original:I Girasoli

Género: Drama
Classificação:M/12
Outros dados: ITA/URSS, 1970, Cores, 96 min.

Foi com este I Girasoli que Vittorio De Sica realizou o primeiro filme ocidental rodado na URSS, uma história de amor entre as personagens de Marcello Mastroianni e Sophia Loren. Ela é uma mulher italiana que procura o marido dado como perdido em acção durante a II Guerra. A travessia faz-se por paisagens urbanas e campos de girassóis. Foi o filme mais famoso da dupla de actores. Texto: Cinemateca Portuguesa

Vd. aqui o trailer do filme I Girasoli (1970).
___________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 6 de fevereiro de  2008 > Guiné 63/74 - P2509: Estórias de Bissau (15): Na esplanada do Pelicano, a ouvir embrulhar lá longe (Hélder Sousa)

Vd. também poste de 14 de janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2438: História de vida (9): O Último Adeus ou as peripécias da minha partida no N/M Ambrizete (Helder Sousa)

(***) Vd. 16 de novembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22722: A nossa guerra em números (5): o Vera Cruz, o Niassa e o Uíge foram, de um frota de 15 navios, requisitados à marinha mercante, os que asseguraram o transporte de 3/4, da tropa mobilizada para o Ultramar

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Guiné 63/74 - P2509: Estórias de Bissau (15): Na esplanada do Pelicano, a ouvir embrulhar lá longe (Hélder Sousa)

Guiné-Bissau > Saltinho > Abril de 2006 > Um olhar de esperança no futuro... É, pelo menos, o que gostaríamos de adivinhar neste olhar inocente de uma criança às costas de sua mãe... O que mudou na Guiné-Bissau, desde que o Hélder Sousa desembarcou, em Bissau, do Ambrizete, em rendição individual, em 9 de Novembro de 1970...

Foto: © Hugo Costa (2006). Direitos reservados.

Guiné-Bissau > Bissau > 1996 > Rua onde ficava a célebre cervejaria Solmar, aqui evocada pelo Hélder Sousa.... "Após o jantar, uma voltinha para desmoer e reconhecer os vários locais de interesse, Solmar, Solar do 10, Ronda, o inevitável Café do Bento (5ª Rep.), a casa das ostras na rua paralela à marginal, o Pelicano" (HS).

Foto: © Humberto Reis (2005). Direitos reservados.

Guiné-Bissau > Bissau > Abril de 2006 > Um velho Toca-Toca (transporte colectivo) que morreu no asfalto, numa das ruas da capital guineense... Em 1970, apesar de militarizada, Bissau ainda era uma pequena cidade, com ar pacato, limpa, bonitinha, colonial... Como comentou o Hélder nouro poste, afinal Bissau sempre era maior do que a nossa aldeia: (...) "Bissau era o que mais se aproximava à realidade da maioria daqueles jovens que estavam espalhados no TO do CTIG (era também assim que se dizia) e que, naqueles idos dos finais de 60, inícios de 70 - excepção feita aos habitantes da grande Lisboa, Porto, Coimbra e limítrofes - não tinham a vivência de grandes metrópoles e para eles aquilo já era um grande movimento"....

Foto: © Hugo Costa (2006). Direitos reservados.

Navio de carga Ambrizete > Construído em 1948 na Inglaterra, tinha cerca de 138 metros de comprimento e 5500 toneladas de arqueação bruta. Deslocava-se a uma velocidade de 13 nós, tinha 37 tripulantes e pertencia à SG, a Sociedade Geral de Comércio, Indústria e Transportes, com sede em Lisboa (Grupo CUF). Recorde-se que a CUF - Companhia União Fabril estava representado na Guiné pela Casa Gouveia, adquirida na década de 1920 (1)... Eram cargueiros da SG como o Ambrizete que traziam para a Metrópole a mancarra com que a CUF fazia o seu famoso Óleo Fula (em 1929 conseguiu a autorização para produzir óleo alimentar, em regime de monopólio, e em clara concorrência, desleal, com os produtores de azeite)...

Fonte: © Navios Mercantes Portugueses, página de Carlos Russo Belo (2006) (com a devida vénia...). O autor foi oficial da marinha mercante. A página, alojada do Sapo, deixou entretanto de estar disponível.


1. Texto do Helder Sousa (ex-Fur Mil de Transmissões TSF, Piche e Bissau, 1970/72), em que ele descreve a sua chegada a Bissau, no navio da marinha mercante Ambrizete, em rendição individual, e as suas primeiras impressões da cidade, dos seus lugares mais afamados e da sua fauna humana (2).

Luís Graça e Caros Co-Editores:

Há algum tempo atrás enviei-vos a história da minha partida para a Guiné (3), a qual foi precedida pela ida ao Tivoli assistir ao filme O Último Adeus.

Pois bem, agora pretendo relatar a minha chegada à Guiné, mais propriamente a Bissau.

A partida ocorreu então cerca das 22 horas do dia 3 de Novembro de 1970, quando o velho Ambrizete rumou à foz do Tejo com destino a Bissau, navegando com uma inclinação de 7º para estibordo motivada por uma qualquer má distribução da carga que consistia, para além de géneros alimentícios, em material de guerra diverso e sobressalentes para manutenção.

A viagem correu bem, com mar sem causar problemas (vaga larga, como nos explicaram), gozando aqui e ali da companhia dos peixes voadores que faziam questão de acompanhar e, aparentemente, rivalizar com o navio.

A aproximação à costa da Guiné deu-se pela madrugada do dia 9 de Novembro, com todas as sensações que aqui no Blogue já foram descritas por outros camaradas, como a visualização da linha do que parecia ser uma mata cerrada, o bafo quente e húmido de que lá emanava, os sons e os silêncios, tudo isto ainda mais ampliado pelo facto de estar a nascer o sol em contra-luz em relação à nossa posição.

Durante a madrugada tínhamos ultrapassado o Carvalho Araújo que seguia carregado de militares mas que nos disseram ter tido um conjunto de problemas (fogo a bordo?) que o fazia navegar muito lentamente. Deste modo, todos aqueles que seguiam no Ambrizete (como tinha dito, 6 militares, todos Furriéis de Transmissões, 3 TPF (transmissões por fios) e 3 TSF (eu, o Nélson Batalha e o Manuel Martinho)) desembarcámos a meio da manhã desse dia 9, enquanto que o desembarque do pessoal do Carvalho Araújo só ocorreu no dia seguinte, dia 10 de Novembro, dia de S. Martinho, o que nos fez ficar com velhice acrescida em relação a todos os que viajaram naquele barco, nomeadamente os nossos camaradas de curso e especialidade, Furriéis Milicianos Eduardo Pinto, Luís Dutra Figueiredo, António Calmeiro e José Manuel Fanha, sendo que, como era sabido, "a velhice era um posto"!

O episódio do desembarque teve algo que me marcou e que me deixou de pé atrás, como se costuma dizer...

Devido à tal situação do posicionamento relativo dos dois barcos que estavam a chegar ao cais de Bissau, o Ambrizete ficou um tanto ancorado ao largo para dar a primazia ao Carvalho Araújo, razão pela qual a passagem dos passageiros do barco para terra foi feita por intermédio de pequenas embarcações do tipo que lá se usavam para fazer as cambanças mas que no nosso imaginário eram pirogas dirigidas por nativos, sendo aí o primeiro contacto (desconfiado) com os naturais.

Quando o barquito manobrava na aproximação à rampa, estando nós naturalmente a um nível mais baixo do que aqueles que se encontravam no cais, um militar que lá se encontrava procurou saber se "algum de vós é o Furriel Hélder Sousa ?". Após a confirmação de que eu "era eu", o militar em causa, de que eu era o substituto, desesperado pela demora da minha chegada (não esquecer que oficialmente parti a 23 de Outubro, embora só o tenha feito realmente em 3 de Novembro e, sendo das Transmissões, sabia que eu já tinha embarcado) começa aos saltos e aos gritos de É ele!, é ele!, é ele!", o que fez aumentar a minha preocupação sobre onde me vinha meter para suscitar tanta alegria pela partida...

Hoje já não me lembro do seu nome, ele que fez tanta questão em me acompanhar em todas as voltas que foi necessário dar para me apresentar no Quartel, de me levar a uns amigos de Vila Franca que me tinham guardado um lugar para ficar, de me levar a almoçar à messe de sargentos, etc., mas a imagem que tenho é de um macaquinho aos saltos (era o que me parecia, já que o via de baixo para cima e ele estava acocorado), feliz da vida por ter encontrado o seu pira e safar-se dali o mais depressa possível, provavelmente na viagem de regresso do Carvalho Araújo.

Depois das apresentações fiquei a saber que os Comandantes da Companhia de Transmissões e do STM (Serviço de Telecomunicações Militares) eram respectivamente os Capitães Cordeiro e Oliveira Pinto (excelentes pessoas), que eram cunhados e contemporâneos da minha (nossa) passagem pelo B.T., no Quartel da Graça, quando fazíamos a especialidade, o 2º Ciclo do C.S.M., e eles eram Tenentes a fazer o tirocínio para capitães, período de alguma agitação pois ocorreu no último trimestre de 1969, quando tiveram lugar as chamadas Eleições de 69.

Igualmente o 1º Sargento que supervisionava o STM em Bissau e que nos iria instruir preparando-nos para as tarefas que teríamos que desempenhar quando fossemos destacados para os postos no interior era meu velho conhecido, já que tinha sido ele a orientar o meu estágio da especialidade em Tancos, na EPE (meu e do Manuel Martinho que também foi para a Guiné, bem como do Miguel Rodrigues que foi para Angola, salvo erro, e do Fernando Marques que ficou cá em Portugal, na CHERET).

O camarada que fui substituir deixou-me depois aos cuidados dos meus conterrâneos vilafranquenses, Furriéis Milicianos José Augusto Gonçalves e Vitor Ferreira, o primeiro deles meu colega da Escola Industrial e o outro das tertúlias do Café A Brasileira, mais parceiro que adversário das partidas de bilhar, os quais estavam integrados nas Transmissões (nessa ocasião ainda estava em criação o futuro Agrupamento de Transmissões) os quais arranjaram um espaço para me acomodar no quarto que compartilhavam nas instalações para sargentos em Santa Luzia, juntamente com outro Furriel, de apelido Pechincha, que tinha estado numa Companhia de Caçadores Nativos e que estava agora destacado numa repartição qualquer do Q.G..

Levaram-me a jantar à Meta (já li algumas referências no Blogue mas não me parece que lhe tenham dado o relevo que de facto tinha naqueles finais de 1970), lugar muito frequentado, com uma zona de Bar, zona de restauração e uma enorme pista de minicarros, muito maior que as que conhecia cá na Metrópole e que era palco de acesas e renhidas disputas de competição dos vários miniaceleras que por lá iam gastando o seu tempo e dinheiro.

Após o jantar, uma voltinha para desmoer e reconhecer os vários locais de interesse, Solmar, Solar do 10, Ronda, o inevitável Café do Bento (5ª Rep.), a casa das ostras na rua paralela à marginal, o Pelicano.

Aqui no Pelicano, quando para me integrar saboreava a minha Coca Cola com uísque (era um privilegiado, já tinha tido a oportunidade de beber aquela coisa quando em 1968 estivera em França, Bélgica e Inglaterra), tive contacto directo com mais algumas das realidades do mundo onde estava a entrar...

O primeiro foi a sensação estranha de estar ali na esplanada a ouvir embrulhar lá longe, do outro lado do grande e largo Geba, diziam que era em Tite, ou Fulacunda ou qualquer outro nome que para mim naquela ocasião não assumia personalidade, coisa que mais tarde já não era assim, os nomes tinham depois uma identidade própria, acho mesmo que havia até uma como que espécie de hierarquia, no que respeita à forma como eram identificados pelas dificuladdes de vida que lhes eram inerentes. Estar ali a ouvir os rebentamentos abafados pela distância e a ver alguns clarões deu logo um arrepiozinho na espinha, com aquele misto de temor e de ansiedade que nessas ocasiões nos assaltam, mas também com um pensamento de solidaridade e angústia pela impotência de quem só pode assistir e não intervir.

O segundo contacto foi mais do género de constactar a degradação moral que a permanência em situações daquelas podia produzir em espíritos mais fracos. Já se falava do que acontecia no Vietnam com os soldados americanos consumindo droga para resolver os seus problemas mas ali no Pelicano não foi esse o caso. Tratou-se apenas do facto de que em determinado momento um desgraçado qualquer acercou-se da mesa onde estávamos e procurou vender uma fotos "de gaijas nuas". É claro que recusámos mas fui depois esclarecido de que não se tratavam de "gaijas" mas sim de "uma gaija", a própria mulher dele, a quem ele (diziam que era um fulano já bastante apanhado do clima) enviava fotos que tirava a si mesmo sem roupa e pedindo que ela lhe enviasse fotos do mesmo jeito, que ele depois reproduzia e tentava vender.

Fiquei bastante impressionado com aquela demonstração prática da alienação a que o clima de guerra e o consequente improviso da vivência podiam produzir em seres humanos e jurei a mim mesmo que haveria de sair da Guiné são de cabeça e mais determinado em contribuir para as mudanças inevitáveis que haveriam de ocorrer na nossa sociedade.

Cumprimentos
Hélder Sousa
Ex-Furriel Mil
Transmissões TSF
__________________

Notas dos editores:

(1) Vd. o interessante blogue do jovem Ricardo Ferreira, 26 anos, estudante de história, O Grupo CUF - Elementos para a sua História e o primeiro poste que é dedicado à memória do seu fundador Alfredo da Silva (1871-1942):

(...) Em 1918 sobe ao poder Sidónio Pais, é conhecido o seu apoio pelo industrial, que durante este período será eleito senador, e também designado para o Conselho Superior Económico. Com a guerra terminada, lança-se na criação de uma nova empresa, que será crucial para o futuro da C.U.F., de seu nome Sociedade Geral de Indústria Comércio e Transportes. Esta empresa fundada em 1919, iria ainda antes de se lançar no ramo dos transportes marítimos (1922), estava apta a adquirir ou fazer parte do capital de outras empresas que interessassem ao projecto de expansão da C.U.F., foi esse o caso da Casa Gouveia na Guiné. Assentava na exploração agrícola, centrada na palma, no mendobi (amendoim) e gergelim, que passariam a ser carregados em barcos da S.G. e passariam a ser transformadas em óleos comestíveis no Barreiro (...)

(2) Vd. postes desta série Estórias de Bissau:

11 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1266: Estórias de Bissau (1): Cabrito pé de rocha, manga di sabe (Vitor Junqueira)

11 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1267: Estórias de Bissau (2): A minha primeira máquina fotográfica (Humberto Reis); as minhas tainadas (A. Marques Lopes)

14 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1278: Estórias de Bissau (3): éramos todos bons rapazes (A.Marques Lopes / Torcato Mendonça)

17 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1286: Estórias de Bissau (4): A economia de guerra (Carlos Vinhal)

18 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1288: Estórias de Bissau (5): saudosismos (Sousa de Castro)

18 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1289: Estórias de Bissau (6): os prazeres... da memória (Torcato Mendonça)

18 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1290: Estórias de Bissau (7): Pilão, os dez quartos (Jorge Cabral)

24 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1314: Estórias de Bissau (8): Roteiro da noite: Orion, Chez Toi, Pilão (Paulo Santiago)

22 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1391: Estórias de Bissau (9): Uma noite no Grande Hotel (José Casimiro Carvalho / Luís Graça

2 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1484: Estórias de Bissau (10): do Pilão a Guidaje... ou as (des)venturas de um periquito (Albano Costa)

10 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1512: Estórias de Bissau (11): Paras, Fuzos e...Parafuzos (Tino Neves)

31 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1639: Estórias de Bissau (12): uma cidade militarizada (Rui Alexandrino Ferreira)

19 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2281: Estórias de Bissau (13) : O Pilão, a Nônô e o chulo da Nônô (Torcato Mendonça)

21 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2290: Estórias de Bissau (14) : O Pilão, a menina, o Jesus e os pesos que tinha esquecido (Virgínio Briote)

Vd. também:

17 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2272: As nossas (in)confidências sobre o Cupelom, Cupilão ou Pilão (Helder Sousa / Luís Graça)

14 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2264: Blogue-fora-nada: O melhor de... (3): Carta de Bissau, longe do Vietname: talvez apanhe o barco da Gouveia amanhã (Luís Graça)

(3) Vd. poste de 14 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2438: História de vida (10): O Último Adeus ou as peripécias da minha partida no N/M Ambrizete (Helder Sousa)

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Guiné 63/74 - P2438: História de vida (9): O Último Adeus ou as peripécias da minha partida no N/M Ambrizete (Helder Sousa)


Guiné > Bissau > s/d [1970-1972] > O Hélder Sousa no seu quarto em Bissau... Sinais dos tempos: um poster do 'Che' Guevara, um ícone da juventude da época, mas também um grande amigo do PAIGC... Ao ler a história de vida do Hélder, podemos perguntar-nos se o Exército não foi ver a ficha dele na PIDE/DGS, para saber se ele era um tipo de confiança para trabalhar em transmissões...

Foto: © Helder Sousa (2007). Direitos reservados.



1. Texto do Hélder Sousa (ex-Fur Mil de Transmissões TSF, Piche e Bissau, 1970/72) (1):


História de vida > "O Último Adeus"

Caro Luís e ilustres co-editores:

Conforme prometi, pretendo agora ser um pouco mais proactivo e, para isso, nada melhor do que começar pelo princípio.

Mas o que é o princípio?

Disse, na minha apresentação, que tendo vivido a minha infância e juventude em Vila Franca de Xira, fui naturalmente infuenciado pelas suas muitas e variadas escolas.

Podia então começar por aí, falando como fui formado no meio do gosto pela tauromaquia, nos ecos (e não só...) das lutas operárias da região, dos camponeses do outro lado do Tejo, do Ribatejo e Alentejo, da observação da vivência dos Avieiros, do facto de se estar no seio onde o neo-realismo materializou maior expressão, das Tertúlias das discussões sobre a política que se vivia e que se queria mudar, discussões essas levadas para outros locais, Nazaré, Foz do Arelho, etc.. Depois podia continuar pela descoberta da vida na cidade grande, o natural integrar no movimento associativo estudantil, o serviço militar nas suas etapas, 1º Ciclo do CSM em Santarém, 2º Ciclo em Lisboa, no BT, estágio em Tancos, na EPE, colocação para dar instrução e formação no Porto, no RT, a mobilização, etc.

Podia, de facto, começar por aí, onde certamente algumas coisas melhor se explicariam, mas é sempre bom deixar alguma coisa para dar largas à imaginação, para cada qual encontrar a sua leitura e, por isso, vou começar pelo último adeus.

E o que é isso? Pelo menos colocado deste modo?

Trata-se simplesmente de relembrar o que foi para mim a despedida dos familiares aquando do embarque para a Guiné, certamente idêntica à de tantos de nós que estão representados na Tabanca e dos outros também.

A minha teve algumas particularidades. Se na essência foi igual à de muitos outros, teve a vantagem (ou desvantagem) de ser quase confidencial pois, por minha vontade, foi restringida aos familiares mais chegados (pais, irmã e namorada) já que me tinha despedido do círculo de amigos e companheiros em tempo oportuno. Por esse aspecto não se reuniu do dramatismo que estavam associados ao grande aglomerado de pessoas que eram presentes aquando da partida dos Batalhões e cujo clamor eu ouvia distintamente, aumentando de forma a assumir um tom angustiante, nas manhãs em que chegava cedo a Lisboa e passava algum tempo no Jardim sobranceiro ao Cais.

A partida/despedida ocorreu na manhã do dia 23 de Outubro de 1970, 6ª feira, data em que oficialmente embarquei para a Guiné mas, na verdade, não foi assim.

Fui em rendição individual, como relatei quando me apresentei à porta da Tabanca, e o transporte designado foi um velho cargueiro, o Ambrizete, que foi abatido ao serviço algum tempo depois, sendo que esse cargueiro dispunha de 6 cabinas duplas para passageiros e, desse modo, levava nessa viagem 6 civis e 6 militares.

Os seis civis eram uma mulher grande e seus três filhos que ocupavam duas cabinas sendo a outra dos civis lotada com um homem já com uma idade relativamente avançada (pelo menos era isso que me parecia, naquela altura em que eu tinha 22 anos) que tinha estado emigrado em França e que ia agora para a Guiné trabalhar por conta da Tecnil na construção duma estrada qualquer e um outro indivíduo, mecânico de automóveis, da zona da Malveira, que encontrou na entrada naquele barco para um serviço qualquer à aventura na Guiné a solução para o problema que tinha pelo facto de se ter tomado de amores pela legítima esposa dum padeiro o qual, tendo descoberto a paixão e não concordado com ela, queria limpar-lhe o sebo, situação para a qual encontrou uma aliada na esposa do mecânico, razão do nosso homem se encontrar a bordo apenas com a roupa que tinha no corpo. Durante a viagem, e porque já tresandava, lá arranjámos maneira de, conluiados com a tripulação, lhe darmos um banho forçado ....

Os militares eram todos Furriéis de Transmissões, sendo 3 TPF de cursos posteriores ao meu e que não conhecia nem me lembro hoje como se chamam (disso me penitencio e peço-lhes desculpa) e os outros 3 eram, para além de mim, o Nélson Batalha que levei ao encontro em Pombal, que esteve em Catió onde foi ferido num ataque ao quartel, em Abril de 1991, e o Manuel Martinho Martins que esteve em Tite, os quais mais tarde, apartir de Agosto de 1991, formaram comigo e também com os Furriéis Eduardo Santos Pinto e José Manuel Lopes Fanha, o núcleo duro do Centro de Escuta do Agrupamento de Transmissões.

Acontece então que na época tinham ocorrido algumas acções que procuravam corporizar a oposição ao esforço de guerra através de actos como a sabotagem das Berliets e a bomba no navio Cunene, razão pela qual o nosso Ambrizete, para mais carregado com material de guerra, para além de géneros alimentícios e outras peças e maquinarias, estava ancorado ao largo, no meio do Tejo. Quando abandonámos o cais, com os familiares a dizerem o último adeus, e entrámos na lancha que nos levaria ao transporte, os elementos da tripulação que iam fazer a rendição dos que estavam lá de serviço confidenciaram-nos que "não vale a pena tanta lamúria na despedida porque não vamos hoje de certeza". E assim foi!

O barco estava com problemas de arrumação e distribuição da carga, tinha uma inclinação para a esquerda que nos fazia andar de lado, tendo o Comandante informado que iríamos largar para navegar ao largo da baía de Cascais para tentar resolver o problema, voltaríamos ao porto de Lisboa para manutenção das câmaras frigoríficas e, na melhor das hipóteses, sairíamos então a partir da 2ª feira seguinte, dia 26. É claro que os familiares, no Cais, não sabiam nada disto e ficaram a ver o barco manobrar, aproar à barra do Tejo e lá ficaram a acenar o último adeus.

Bem, encurtando a narrativa, posso adiantar que a partida aconteceu apenas no dia 3 de Novembro, mais de uma semana depois do que o Comandante previra e, durante esse tempo, não voltei mais ao barco. Todos os dias de manhã apresentava-me na Companhia de Navegação, informava-me das previsões e ia acompanhando as indicações: se era só para o dia seguinte já não contactava mais, se diziam "talvez logo à tarde já se saiba",então telefonava com as devidas cautelas para efeitos de identificação.

E assim fui andando até que no dia 3 de Novembro, dia em que efectivamente embarquei, fui com a minha namorada, ainda hoje minha mulher e companheira, ver um filme que tinha estreado na véspera, no então cinema Tivoli, com o sugestivo e felizmente não premonitório título de O Último Adeus, filme com o título original de I Girasoli, de Vittorio de Sica, com Marcello Mastrioani e Sofia Loren, que relatava a odisseia de uma mulher italiana numa desesperada busca pelo seu marido, soldado considerado desaparecido algures na Rússia quando integrava um dos Batalhões de italianos que acompanharam os alemães na invasão e acções bélicas naquele imenso território gelado.

Por ocasião do 2º intervalo estava na hora de contactar para saber das novidades quanto à partida. De manhã tinham-me dito que era muito provável que fosse o dia, mas para ligar por volta das 17 horas. Assim fiz, do foyeur do 2º Balcão (não havia dinheiro para plateis), telefonando dum daqueles orelhões que por lá havia, tendo sido o primeiro a chegar e nem tendo reparado que depois se formou uma pequena fila à espera de vez. É que eu já estava a ver as horas a passar, já seriam 17.10, quando o intervalo ocorreu e precisamente numa daquelas interrupções em situação dramática, que deixam os mais sensíveis a retomar o fôlego, quando o protagonista, alvo da busca pela mulher, é retratado em flashback andando perdido no meio da estepe gelada (andava às voltas) e reencontra o cadáver congelado dum camarada seu e ao tentar erguê-lo quebra-se o braço congelado, ficando com uma parte separada do corpo.

Certamente que essa cena estaria na mente das pessoas que estavam atrás de mim para telefonar e que me ouviram identificar como "O Furriel que ia para a Guiné no barco avariado", confirmando então que a partida seria nessa noite. Quando acabei de telefonar, pousei o telefone e me virei, deparei com três ou quatro rostos com olhos muito abertos a olhar para mim, fazendo-me sentir como a próxima vítima. Para além da ida p'ra guerra em si, a palavra Guiné era na altura já sinal de uma angústia maior.

Felizmente não foi assim. Nem sempre o último é o último. Pelo menos naquela ocasião O Último Adeus foi apenas o título de um filme, e o nosso último adeus foi apenas o último daquele dia.

Outros dias se sucederam!


Até breve

Hélder Sousa
Fur Mil Transmissões TSF

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Nota dos editores:



(...) Chamo-me Hélder Valério de Sousa, vivo actualmente em Setúbal, fui Furriel Miliciano de Transmissões, do STM, cumprindo a comissão de serviço na Guiné entre 9 de Novembro de 1970 e 10 de Novembro de 1972, tendo estado cerca 7 meses em Piche (contemporâneo do BCAV 2922) e o resto da comissão ao serviço do Centro de Escuta e de Radiolocalização do Agrupamento de Transmissões da Guiné (...).