sábado, 25 de fevereiro de 2012

Guiné 63/74 - P9532: As novas milícias de Spínola & Fabião (2): O CIMIL (Centro de Instrução de Milícias) de Bambadinca, criado em 5 de Agosto de 1971, ao tempo do BART 2917


Guiné > Zona leste > Setor L1 > Bambadinca > Centro de Instrução de Milícias (CMIL) > Setembro de 1973 > A Instrução de tiro na carreira de tiro, que era perto da ponte do Rio Udunduma, na estrada Bambadinca-Xime.



Guiné > Zona leste > Setor L1 > Bambadinca > Centro de Instrução de Milícias (CMIL) > Outubro de 1973 > Parada de final de instrução no CIMIL de Bambadinca. Em 1º plano, o Pel Mil 388. O Cmdt da Companhia de Instrução era o Alf Mil At Inf Luis Dias,  da CCAÇ 3491/BCAÇ 3872 (Dulombi e Galomaro, 1971/74) e o 2º Cmdt era o Fur Mil Gonçalves, da mesma companhia.



Fotos: © Luis Dias (2008). Todos os direitos reservados.



Guiné-Bissau > Zona Leste > Bambadinca > CIMIL > Carreira de tiro > 1971 > O Alf Mil Cav José Luís Vacas de Carvalho, comandante do Pel Daimler 2206, foi também instrutor de tiro de "duas ou três companhias de milícias", numa altura em que aumentava a escalada da guerra e se intensificava o esforço de africanização das NT. "Eu estou atrás do General Spínola. Ao meu lado direito está (parece-me) o Fabião e logo a seguir o Polidoro Monteiro. E atrás, de óculos escuros, parece-me ser o Tomé".

Foto: © J.L. Vacas de Carvalho (2006) Todos os direitos reservados.

Desenho: Tony Levezinho (1971) para a capa da História da CCAÇ 12.










1. Este era o Dispositivo militar do BART 2917, sediado em Bambadinca (Setor L1), durante o período de junho de 1970 a março de 1972. Podia ser calculado em cerca de 1350 homens, metade dos quais do recrutamento da província (CCAÇ 12, Pel Caç Nat 52, 53 e 54, 2º Pel Art, mais companhias de milícias). A população que vivia no setor era estimada em 20 mil (5 mil sob controlo do PAIGC, e os restantes 15 mil sob controlo das NT).


Em 5 de Agosto de 1971 foi criado o Centro de Instrução de Milícias (CIMIL) de Bambadinca.  Por lá passaram, como instrutores, camaradas nosso como o Paulo Santiago, o Luís Dias, o Vacas de Carvalho... 


Em 25out71, foram sediar em Candamã e Enxalé, os Pel Mil (Pelotões de Milícias) 308 e 309, respetivamente,  formados no  CMIL. 


Em 25dez71 após o término do 3º Turno/71 da instrução de Milícias em Bambadinca foi sediar no Enxalé o GEMIL 310 (Grupo Especial de Milícias),  formado neste CIMIL,  o qual  já tinha formado, além dos GEMIL 309, 310 e PMIL 308 atribuídos, ao seu Sector, os seguintes para outros sectores: os PMIL  315 e 316 para o Setor L-5,  GEMIL 323 para o Setor L-4. 


Em 17jan72 dava início à  instrução de pelotões de milícias para Deba, Campada e Ponta Augusta de Barros.

O BART 2917 também prestou o seu apoio ao Centro de Instrução de Comandos Africanos quando em funcionamento em Fá Mandinga.

Guiné 63/74 - P9531: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (10): As vozes da nova música popular portuguesa (incluindo o Zeca Afonso) que chegavam ao CAOP1 através das ondas hertzianas da rádio

1. Pela rádio chegavam ao TO da Guiné vozes, música, notícias... de todo o mundo. Captava-se, em onda curta,  a BBC, mas também-se a Emissor Nacional, a Voz da América, a Rádio Moscovo... Pelo menos, em Teixeira Pinto, Mansoa, Cufar, que foram sucessivamente sede do CAOP1...

 No seu diário, o António Graça de Abreu (ex-Alf Mil do CAOP1, 1972/74) dá-nos conta de alguns desses encontros hertzianos com o mundo... A internet ainda estava para nascer, dali a 20 anos, mas o mundo já era cada vez mais global. E em 1973 acabava a época dos 30 gloriosos, os trinta anos de crescimento económico ininterrupto, os anos do milagre económico do Ocidente... A primeira grande crise petrolífera, a de 1973,  era também o primeiro grande sinal de alarme sobre o esgotamento de um certo modelo de produção e de consumo... 

 José Afonso (1929-1987), que morreu fez agora  25 anos, em 23 de fevereiro de 1987, é referido pelo AGA como tendo passado na emissora nacional (Bissau) com o seu belíssimo Traz Outro Amigo Também, um verdadeiro hino à amizade e à camaradagem (Do álbum do mesmo nome, gravado em Londres, nos estúdios da PYE, e editado em 1970; o que muita gente não sabe é a forte ligação, emocional e musical, do Zeca Afonso, a Africa, e em especial a Angola e Moçambique).

Por gentileza, generosidade e camaradagem do AGA, aqui ficam aqui mais quatro excertos do seu Diário da Guiné, 1972/74, de que temos um ficheiro em word, o mesmo que serviu de base à edição do seu livro Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp) (*).



(....) Canchungo, 17 de Julho de 1972

Soube pelo “Diário Popular” de anteontem, que traz fotografia e tudo, que em Cabo Ruivo foram postas bombas em treze camiões Berliet destinados ao nosso exército que sofreram assinaláveis estragos. É um protesto contra a política bélica do Marcello Caetano.

Na rádio, ouvi também o relato do sucedido. Tenho no meu quarto uma ligação a uma antena com 40 metros de altura, montada pelo meu companheiro, alferes Tomé, o chefe das transmissões do CAOP. Com o rádio em onda curta captam-se inúmeros postos com uma nitidez sensacional, é a BBC, Moscovo, a Voz da América, Tirana, a Rádio Voz da Alemanha, Argel, etc. Mais um entretenimento útil de que benificio e sou rapidamente informado do que acontece nos quatro cantos do mundo.

(...) Canchungo, 31 de Agosto de 1972

Na Guiné existe apenas uma emissora de rádio, prolongamento da Emissora Nacional. É divertida, tem anúncios locais, passa discos pedidos, acção psicológica, etc.

Há dias ouvi por várias vezes o seguinte mimo, mais ou menos nestes termos: “A Casa Pinto lamenta informar os seus excelentíssimos clientes que a aguardada remessa de camisas Lacoste foi mais uma vez desviada entre a origem e a cidade de Bissau pelo que não poderá ainda desta vez satisfazer as encomendas dos seus estimados clientes e amigos.” Onde foram parar as Lacoste, desviadas para onde e por quem?

Ao fim de quase dois meses a ouvir música fraquíssima, fui hoje surpreendido ao ouvir o meu bom amigo e colega de faculdade António Macedo cantar o “Cavaleiro cavalgando no meu sonho” e o José Afonso, o homem da “Grândola”,  a cantar “Traz outro amigo também”. Quer isto dizer que os discos existem em Bissau, só que os passam pouco. Deve ser por causa do calor e dos mosquitos que pousam no vynil dos LPs.

Outra surpresa nas minhas leituras de hoje, foi encontrar uma citação do Antigo Testamento. Diz: 'Os teus seios são semelhantes a dois filhotes de gazela pastando no meio de lírios'. Isto foi escrito há dois mil e novecentos anos pelo rei Salomão, no Cântico dos Cânticos e publicado, quem diria!, no Jornal do Exército português, número de Junho de 1972.

(....) Mansoa, 1 de Março de 1973

Escrevo deitado na cama, a prancha de contraplacado a servir de escrivaninha, por cima tenho a ventoinha a mandar vento.

Ouvi o Festival da Canção em directo de Lisboa, via rádio de Bissau. Ganhou a “Tourada” do Fernando Tordo e do Ary dos Santos, e muito bem. Se há reacções dos reaccionários é sinal de que vale a pena espetar “as bandarilhas da esperança” na fera cavernosa que há tantos anos decide o destino político de Portugal, este regime velho e caduco. Seremos um dia livres, na “Praça da Primavera”.

A poesia do Ary dos Santos, “poeta castrado, não!”, mas engordado e feminino, parece-me por vezes demasiado fácil, demagógica. É inferior a muita outra poesia aparentemente “chata” que se escreve em Portugal, mas a do Ary tem uma vantagem, chega facilmente à compreensão de grande número de pessoas. É importante porque abala as gentes, intervém.


(...) Cufar, 7 de Março de 1974

Neste exacto momento em Portugal, há milhões de pessoas especadas diante do televisor à espera do Festival da Canção.

Aqui na guerra do sul da Guiné, acabou de morrer um homem, outro está moribundo. Oiço o roncar dos motores do Nordatlas que, com a pista iluminada acabou de aterrar e vai levar gente ferida para Bissau.

Lá longe, satisfeitos, os portugueses deliciam-se com melodias, músicas capazes de enternecer uma mula ou um burro. Neste pequeno lugar do mundo, em África, um homem retalhado tem o corpo a arfar nos estertores da morte. Vim há pouco da enfermaria, vi tudo, continuo a ver demais.

Foi em Caboxanque, os nossos vizinhos do outro lado do rio Cumbijã. (...)  Na noite de luar, os barcos sintex trouxeram os feridos para Cufar. Neste momento o Nordatlas levanta de voo levando os homens de Caboxanque para o hospital de Bissau. No rádio, no Festival da Canção, o Artur Garcia canta a “Senhora Dona da Boina”. (...)

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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 20 de fevereiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9511: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (9): Circo... e bombas que não eram de carnaval ... em 1974

Guiné 63/74 - P9530: Parabéns a você (387): Gumerzindo Silva, ex-Soldado Condutor Auto Rodas da CART 3331 (Guiné, 1970/72)

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 24 de Fevereiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9529: Parabéns a você (386): Agradecimento e esclarecimento (Fernando Chapouto)

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Guiné 63/74 - P9529: Parabéns a você (386): Agradecimento e esclarecimento (Fernando Chapouto)


1. O nosso Camarada Fernando Chapouto, ex-Fur Mil Op Esp / RANGER da CCAÇ 1426, que entre 1965 e 1967, esteve em Geba, Camamudo, Banjara e Cantacunda, enviou-nos em 20 de Fevereiro de 2012 a seguinte mensagem de agradecimento, relativa ao poste P9497 sobre o seu septuagésimo aniversário e um pequeno mas interessante esclarecimento do dia exacto em que nasceu.

Aniversário,

Quero agradecer aos ex-combatentes que me desejaram os parabéns aqui no blogue, no passado dia 17 de Fevereiro.

Para todos eles um forte abraço, extensivo a todos os demais ex-combatentes portugueses.

Fernando Chapouto
Fur Mil Op Esp / RANGER da CCAÇ 1426

2. Aproveito para enviar duas cópias, da Cédula Pessoal e do B.I., para esclarecer as confusões quanto ao dia do meu aniversário. 



Não sei o que se passou, pois sempre me foi dito que nasci a 17 de Fevereiro, como se pode ver na cédula. 

Só quando me preparava para fazer o exame da 4ª Classe, a professora me disse que o meu nome era FERNANDO SILVÉRIO CHAPOUTO e não como eu pensava: FERNANDO RAMOS SILVÉRIO CHAPOUTO. 

Como tinha só 10 anos, quem era eu dizer que não à professora?! 

E só quando tirei o 1º. B.I., para continuar os estudos, é que vi que a data não condizia com a da célula. 

Acreditem que nem os meus familiares sabem do 1 de Março. 

Uma coisa é certa: eu não tive nada a ver com esta confusão.
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Nota de MR:

Vd. também sobre o assunto tratado o poste:



Vd. último poste desta série em:


24 DE FEVEREIRO DE 2012 > Guiné 63/74 - P9524: Parabéns a você (385): Manuel Henrique Quintas de Pinho, Marinheiro Radiotelegrafista, LDM 301 e LDM 307 (Guiné, 1971/73)


Guiné 63/74 - P9528: Notas de leitura (336): Os Últimos Guerreiros do Império (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Janeiro de 2012:

Queridos amigos,
Recensão obriga a concisão, neste caso lastima-se a exiguidade do espaço porque há conteúdos suculentos, toca-nos o número dos heróis que dá a face pelos heróis que ficam no anonimato. Há heróis que nunca esqueceram os camaradas e a gesta da solidariedade. O importante é saber-se que já se fizeram levantamentos destes heróis e que há outros por fazer, antes que seja tarde ou que se esbata o rigor da mente. Não é de mais salientar que um elevado número destes heróis calcorreou a Guiné.

Um abraço do
Mário


Os últimos guerreiros do Império (2)

Beja Santos

O que é mais significativo nos depoimentos de militares condecorados por feitos de bravura é a desafeição, a ausência de pedantaria, o condicionalismo do ato heroico à equipa. Essa postura é ressaltada em “Os últimos guerreiros do Império” (coordenação de Rui Rodrigues, Editora Eramos, 1995), um registo de testemunhos de alguma gente valorosa. Como é evidente, há quem aproveite para fazer queixas, lamúria política, revelar azedumes. Mas no essencial encontramos ali gemas de exultação de grande camaradagem militar.

O coronel Maurício Saraiva escreve: “Resolvi passar à reforma extraordinária porque, por motivo de lei, não estava apto para todo o serviço. Ora eu perdi uma perna em combate mas não me sentia deficiente ou incapaz – um homem só fica incapaz quando perde a cabeça e eu não a perdi. Pedir a reforma custou-me bastante”. Esteve na Guiné em 1964, participou na operação Tridente, não esqueceu o Furriel Miranda, o 1º Cabo Cruz, o 1º Cabo Marcelino da Mata e o 1º Cabo Jamanca. Desembarcaram no Como sem problemas e depois veio a maré cheia, tiveram que ir fazer trincheiras mais adiante. Fez operações conjuntas com os Fuzileiros de Alpoim Calvão e com os paraquedistas. Foi depois desta operação que começou a formação dos Comandos. Diz o seguinte: “Constituímos três grupos: os Fantasmas era o meu, os Camaleões era o do Alferes Godinho e os Panteras era o do Alferes Pombo. Para mim, como para todos esses homens, foi uma autêntica honra termos sido os primeiros Comandos da Guiné. Um comandante não é ninguém sem os seus soldados. Eu tive muita vaidade nos meus soldados. E o que eu fui, foi à custa deles, com eles e por eles. Não vou referir atos isolados. Houve coisas que se passaram e que me deram condecorações e promoções por distinção; tudo isto se deve ao trabalho de um conjunto e ao verdadeiro espírito de equipa”. Só abre exceção para contar uma história que viveu na Ilha do Como. Na contagem dos militares, na hora do regresso, faltavam dois soldados. “Resolvi voltar à mata para ir buscar os soldados que faltavam. Levei comigo dois soldados, um meu e outro fuzileiro. Ao cruzar a clareira, foi um fogo infernal, mas lá conseguimos chegar à mata. O primeiro soldado que vimos estava morto. Trouxemo-lo até aos morros da baga-baga. Fomos outra vez ao outro lado e encontrámos um ferido. Era um homem enorme, um militar chamado Palha. Estava ferido na coluna e ficou paraplégico. Transportámo-lo até aos morros. Um morto transporta-se de qualquer maneira, mas um ferido é muito difícil. Uns anos depois, já eu tinha sido ferido em Moçambique, estava no Hospital Militar a fazer a barba, o homem não quis receber, eu insisti em pagar e ele disse-me que um dia eu tinha salvo a vida do sobrinho na Guiné, chamado Palha”.

Não menos tocante é a história que nos conta o Tenente-Coronel Nogueira Ribeiro esteve na Guiné de 1963 a 1966. Descreve o relevo, o fluxo das marés e o caminhar no tarrafo: “Andámos por ali enterrados no lodo até que nos apareceu um riacho cheio, havia que o transpor. A largura seria de 4 ou 5 metros e a profundidade cobria um homem de altura mediana. Quando chegou a minha vez, lancei-me, mas, devido ao cansaço e ao peso que transportava, quase fui ao fundo (meço 1,70 metros). A situação estava complicada e já me preparava para aligeirar a carga quando me sinto içado pela gola do dólman-camuflado e quase conduzido para a margem. Quem me auxiliou foi o Soldado 38, um felupe de quase dois metros: - Nosso Alfere não pode morrer, senão nosso ficar órfão. Era prática quase corrente que os comandantes tivessem um guarda-costas. Nunca quis nenhum, mas em operações anteriores reparei várias vezes que o 38, sem ninguém lhe dar ordem, assumiu-se como tal. 30 anos depois, não sei se está vivo, mas gostava de o reencontrar. Bem-hajas, 38!”.

O General Almeida Bruno realça a operação mais importante que comandou, a Ametista Real, comandava o Batalhão de Comandos Africanos, a operação destinava-se a aliviar a pressão sobre Guidage que estava isolada por terra, era impossível o reabastecimento aéreo e evacuação dos feridos. Dá conta do resultado: “O inimigo sofreu 67 mortos. As nossas tropas 14 mortos (dos quais dois alferes), onze desaparecidos, mais tarde confirmados como mortos e houve 23 feridos graves. Ao inimigo foram destruídos 22 depósitos de material de guerra”. E declara mais adiante: “Não posso nem quero deixar de dizer uma palavra sobre o que foi o destino desses homens do Batalhão de Comandos Africanos. Em 1974 estive em Londres, o Dr. Mário Soares, o Dr. Almeida Santos e com o Prof. Jorge Campinos, a negociar com o PAIGC, representado por Pedro Pires e pelo Dr. José Araújo. As indicações que levava do General Spínola eram muito claras e eram as mesmas que tinham recebido, na Guiné, o Major Carlos Fabião: aceitação pelo PAIGC de que ninguém tocava nos africanos, não só nos oficiais e sargentos do Batalhão de Comandos como nos Comandantes das Milícias. Nas nossas conversas com o PAIGC ficou sempre assente que haveria uma integração desse pessoal. Não foi isso o que o PAIGC fez. O PAIGC fuzilou barbaramente a maioria dos meus oficiais do Batalhão de Comandos”.

Marcelino da Mata é um militar que não precisa de apresentações. Tirou o curso de Comandos que foi dirigido por Maurício Saraiva. O seu relato é sempre baseado nas suas façanhas. Ganhou a Torre e Espada numa operação ocorrida em 1967: “O Comandante chamou-me e contou-me que a Companhia do Capitão Caraça, que estava a fazer operações de patrulhamento na zona da fronteira fora toda apanhada à mão pelo PAIGC na véspera – 150 homens apanhados à mão! – e que eu tinha de lá ir buscá-los. Fomos 19 homens todos muito armados, menos eu, que ia vestido com uma tanga igual às que os senegaleses usam naquela zona. Entrei na vila, cheguei perto do arame farpado do quartel senegalês e vi os nossos homens todos sentados na parada, só em cuecas. Atirei uma granada ofensiva para o meio da parada e na confusão conseguimos tirar os nossos de lá todos. A tropa senegalesa fugiu rapidamente, mas o PAIGC vinha atrás de nós. Iam nove do meu grupo à frente a escoltar os nossos e dez atrás a aguentar o tiro do inimigo – foi assim até à fronteira e ainda eram mais de 40 quilómetros”. Não esconde a sua deceção com os acontecimentos do 25 de Abril: “Quando se deu o 25 de Abril a situação na Guiné estava controlada por nós. Eu dava a volta a toda a Guiné. Só faltava destruir a base do PAIGC de Kadiaf, porque a de Fulamore já o tinha sido, e no dia 25 de Abril eu estava nessa base que se situava em território da Guiné-Conacri. Quando chegámos a Quêpe, o 2º Comandante da Unidade local informou-me que a guerra tinha acabado. Ao almoço o rádio disse que havia cessar-fogo. No dia seguinte fui atacar Kadiaf”. Ele descreve a situação da Guiné da seguinte maneira: “Havia 60 mil tropas brancos e 40 mil africanos. Só havia mil operacionais. Quem fazia operações eram os Fuzileiros Especiais, os Comandos Africanos e os Pára-quedistas. Em cada destacamento em que havia uma Companhia branca havia 45 milícias. Nos sítios onde a tropa branca não metia o nariz, eram eles quem ia… Na Guiné havia 23 Companhias de Caçadores Especiais só de africanos e no fim, quando as Companhias de brancos se vinham embora, eram substituídas por pretos. Muitos brancos iam daqui já politizados e por isso não queriam fazer operações, só disparavam se eram atacados; a maioria dos capitães milicianos que ia para a Guiné, no fim, eram comunistas”.

São relatos cintilantes, alguns, outros de grande vibração interior e há até quem explique, uma a uma, as condecorações que recebeu. São testemunhos que não podem ser ignorados pelos historiadores.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 20 de Fevereiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9508: Notas de leitura (335): Os Últimos Guerreiros do Império (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P9527: FAP (65): Mísseis Strela, a viragem na guerra... (António J. Pereira da Costa)

A Viragem na Guerra

Por António José Pereira da Costa*
Coronel de Art.ª na reserva, na efectividade de serviço, ex-Alferes de Art.ª na CART 1692/BART 1914, Cacine, 1968/69 e ex-Capitão de Art.ª e CMDT da CART 3494/BART 3873, Mansabá, Xime e Mansambo, 1972/74

A revista "Mais Alto"** não veicula necessariamente a opinião, a doutrina ou o pensamento da Força Aérea, mas as opiniões que nela se contêm – da responsabilidade exclusiva dos seus autores – não divergem muito e, decerto, não contradizem as posições da FAP sobre as diferentes matérias. O tema da utilização dos mísseis portáteis Strela por parte dos guerrilheiros do PAIGC, analisado nas revistas n.º 392 e 393, pelo Dr. José Manuel Correia, merece algumas reflexões, já que esclarece, de um modo claro, o que sucedeu e como a FAP lidou com a nova situação.

Vejamos a perspectiva de um não-voador.

Sabemos que a introdução de uma dada arma pode modificar o curso de uma guerra, especialmente se apenas um dos beligerantes a possuir. Tal circunstância deve-se, essencialmente, ao facto de essa arma conferir a quem a possui uma nítida vantagem sobre o opositor ou anular uma vantagem de que este tenha vindo a dispor até então.

Desde o início da guerra que o apoio prestado pela FAP apenas conhecia como limites a sua disponibilidade em meios humanos e/ou materiais ou, como muitas vezes sucedeu, as condições meteorológicas. Na Guiné, o apoio aéreo nas suas diferentes modalidades, era fundamental e, muitas vezes, taticamente decisivo. Por outro lado, a capacidade de as aeronaves detectarem o inimigo e poderem atacá-lo, de imediato ou depois de um reconhecimento fotográfico, ficou bem marcada, durante o ano de 1968, quando surgiram as primeiras armas antiaéreas, mais exactamente no Quitafine, que o inimigo já anunciava como "zona libertada”.

Os guerrilheiros usavam então metralhadoras múltiplas ZPU 14,5mm, instaladas em espaldões em forma de caracol. Nesse ano, foi atingido com fogo antiaéreo o comandante do Grupo Operacional da BA 12, Tenente-Coronel Costa Gomes, que saltou em pára-quedas e foi recolhido perto da Aldeia Formosa. Fiquei com a impressão – por ter ouvido as comunicações rádio – de que armas antiaéreas eram atacadas e destruídas uma a uma, pelo então Capitão Jesus Vasquez e cheguei a ver as fotos antes e depois do ataque, a uma delas.

O inimigo não tinha conseguido, mesmo num dos seus santuários, superiorizar-se à ofensiva da FAP, através de uma postura primordialmente defensiva. Claro que não seria de supor que desistisse de neutralizar o meio ofensivo que “fazia a diferença”. A precisão e capacidade destrutiva da arma aérea era muito superior às da artilharia, já que esta, mesmo regulada com observação aérea, estava depois, no momento de prestar o seu apoio, completamente cega e fazia tiro, raramente com regulação terrestre ou em tiros pré-calculados para locais onde, “provavelmente”, os guerrilheiros se haviam instalado para combater ou se supunha que pudessem vir a fazê-lo.

Além disso, a regulação do tiro com observação aérea, de modo a levá-lo a um objectivo que eventualmente se revelasse não era prática corrente, nem seria muito eficaz, a menos que se pretendesse bater um objectivo de certas dimensões e com pouca possibilidade de mudar de posição, enquanto estivesse a ser atacado.

Se as metralhadoras antiaéreas, pela sua pouca mobilidade, eram armas essencialmente defensivas, os mísseis portáteis, de guiamento passivo, tinham características que permitiam ao PAIGC passar à ofensiva. O Strela era um míssil portátil, podendo por isso acompanhar qualquer grupo de guerrilheiros em deslocamento apeado, de manejo fácil e quase intuitivo, por combatentes pouco letrados e que não necessitava de qualquer acção depois do disparo. Esta circunstância poderá, de certo modo, explicar o relativamente baixo rendimento tirado do Strela (36 disparos para atingir 6 aviões) e o facto de os primeiros dois disparos terem tido origem junto à fronteira Norte faz supor que tenham sido levados a cabo por conselheiros estrangeiros.

Há, porém, um aspecto do problema que não pode ser negligenciado. É que, tal como sucede na luta entre os anticarro e as viaturas blindadas, uma das armas, relativamente barata e fácil de produzir, destrói ou põem fora de combate uma outra mais cara e difícil de substituir. E que dizer dos homens que operam as armas?

No caso em apreço, um guerrilheiro decidido e moralizado, embora quase analfabeto, só teve que aprender a usar uma arma feita de acordo com as suas características psicofísicas, para com ela destruir uma máquina caríssima – no nosso caso “paga a peso de ouro” – de produção lenta e, principalmente, operada por um técnico cuja formação e evolução técnica-literária é muito considerável e obtida através de um demorado processo de formação. Estamos também perante uma vantagem que os guerrilheiros conseguiram obter com relativa facilidade e, como habitualmente, a custo zero.

A reacção da FAP não poderia ser muito diferente da que foi, quer a nível TO, quer a nível nacional, embora se soubesse que a hipótese que acabava de se materializar sempre fora de considerar, dada a facilidade com que o PAIGC se armava e reabastecia de armamento e munições.

Uma análise detalhada das medidas tomadas pela ZACVG, no que respeita ao apoio aéreo próximo às forças terrestre, e um pequeno esforço de memória para quem estava no terreno, naquele ano, leva à conclusão de que o apoio proporcionado pelos aviões T6 desapareceu completamente e o apoio por FIAT G91 ficou reduzido a acções sobre o In bem referenciado com granadas de fumos de morteiro. Sabemos bem que a acção dos primeiros, pela sua precisão e possibilidade de permanência à vertical da força apoiada era muito determinante. Havia até quem os preferisse aos segundos. É relativamente fácil a uma força em contacto próximo com inimigo sinalizá-lo. Todavia, o apoio terá de ser muito preciso e imediato, de forma a materializar a superioridade táctica, sem perigo para a unidade apoiada. Não é possível que a intervenção dos aviões seja imediata e o tempo que medeia entre o pedido de apoio e a chegada dos meios aéreos ao local é sempre “demasiado longo”.

Por vezes tão longo, que os guerrilheiros, no seu procedimento habitual, já abandonaram o local da refrega, cabendo apenas aos aviões uma acção de retaliação realizada sobre algo que, a 2.000 de altitude, se resume ao fumo de umas granadas lançadas com muita estimativa e pouca precisão. As acções de reconhecimento visual desapareceram e o reconhecimento fotográfico, já de si raro, também. Desse modo, a possibilidade se irem colectando informações sobre as posições inimigas anulou-se. Também no âmbito das acções de reabastecimento, transporte e evacuação, com a “interdição de inúmeras pistas ao DO 27” e as outras restrições adoptadas, a situação geral piorou, ficando as guarnições dispersas pelo TO reduzidas aos seus meios auto para estes tipos de actividade.

As forças terrestres ficaram assim a dispor de um apoio aéreo muito reduzido, não só em quantidade, mas também, em qualidade, o que só poderia ter más consequências no moral das tropas. Como será fácil de adivinhar, começou a ser sentido um certo isolamento – real ou psicológico – em certas guarnições, formando-se a ideia de que cada uma estava, cada vez mais, dependente das suas capacidades.

Em resumo poderemos dizer que o aparecimento dos mísseis Strela, na Guiné, constituiu uma conquista decisiva para o PAIGC e a perda de um apoio essencial para as forças terrestres especialmente para as unidades do Exército dispersas no interior do TO. Não haja dúvidas de que “a sobrevivência militar da província depende(ia) e assenta(va) na Força Aérea” como dizia, então, o comandante da ZACV.

O passo seguinte seria algo que se previa, também de há muito: o “fornecimento” de aviões MIG 17 ao PAIGC, operados por pilotos estrangeiros. Nunca chegou a ser dado, mas o “número de sobrevoos não autorizados” não parava de subir, em todos os documentos de informações recebidos nas unidades e não nos esqueçamos do Antonov que apodrecia na placa da BA 12, com os distintivos da Guiné Conacri (que nunca o reconheceu como seu) depois de ter aterrado, por engano, em território da Guiné Bissau.

A BA 12 era particularmente vulnerável a um ataque aéreo com consequências imprevisíveis, especialmente se a unidade não conseguisse reagir projectando força contra o atacante. E se fossem as instalações portuárias onde podemos incluir as da SACOR? E se no momento do ataque estivesse um navio a desembarcar ou a embarcar tropas? Estes dois objectivos eram extremamente sensíveis e estavam desprotegidos, mas se o inimigo pretendesse apenas “causar um problema” poderia atacar uma guarnição militar de média envergadura, não muito longe da fronteira. Com aviões “descaracterizados” ou arvorando os símbolos do PAIGC estaria criada uma situação em que só restava retaliar.

É sabido que em sociologia, leia-se guerra (subversiva), não à há “ses”. Todavia, esta última hipótese não se concretizou, mas, num conflito velho de 13 anos, será que a deveríamos descartar? Por mim creio que perdemos 9 homens e 5 aparelhos em 10 dias, por termos subestimado a possibilidade de o inimigo poder obter e utilizar a arma decisiva e assim virar uma página no conflito.
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Notas de CV:

(*) Vd, poste de 11 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8888: Filhos do vento (9): Tenho por mim que são mais as vozes que as nozes (António Costa)

(**) Vd. postes de:

22 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8806: Recortes de imprensa (48): Strela, a ameaça ao domínio dos céus do ultramar português - Revista da FAP, Mais Alto, n.º 392 , Jul / Ago 2011

16 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8912: Recortes de imprensa (51): Strela, a ameaça ao domínio dos céus do ultramar português - II Parte - Revista da FAP, Mais Alto, n.º 393 , Set / Out 2011
e
25 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8945: (Ex)citações (152): Strela, a ameaça ao domínio dos céus do ultramar português - Apreciação de António Martins de Matos ex-Ten Pilav, Bissalanca, 1972/74

Vd. último poste da série de 16 de Abril de 2011 > Guiné 63/74 - P8111: FAP (65): Falando do nosso destacamento em Nova Lamego (Gil Moutinho)

Guiné 63/74 - P9526: As novas milícias de Spínola & Fabião (1): excerto do depoimento, de 2002, do Cor Inf Carlos Fabião (1930-2006), no âmbito dos Estudos Gerais da Arrábida (Arquivo de História Social, ICS/UL - Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa)




A nova força africana... O major Fabião, na altura (1971/73) comandante do Comando Geral de Milícias, e o gen Spínola, passando revista a uma formatura de novos milícias.


In: Afonso, A., e Matos Gomes, C. - Guerra colonial: Angol,a Guiné, Moçambique. Lisboa: Diário de Notícias, s/d. , pp. 332 e 335. Autores das fotos: desconhecidos. (Reproduzidas com a devida vénia).




1. Vários camaradas nossos , que estiveram na zona leste como alferes milicianos (estou-me a lembrar do Paulo Santiago, do Luís Dias, do J.L. Vacas de Carvalho...) participaram ativamente na formação das novas milícias criadas no tempo do Gen Spínola, integrando a "nova força africana". 

Carlos Fabião (1930-2006) terá sido o pai do novo corpo de milícias, na sua 3ª comissão de serviço no CTIG (abril de 1971-abril de 1973). No depoimento que prestou no âmbito dos Estudos Gerais da Arrábida (A descolonização portuguesa > Guiné > Depoimento do Coronel Fabião, 11 de abril de 2002), a criação das novas milícias é abordado com algum detalhe. 


Muitos de nós (, foi o meu caso do leste,) convivemos com estes homens que tiveram um papel ativo na guerra, não só defendendo as suas tabancas como participando, integradas no nosso exército, em colunas logísticas, nas picagens de itinerários, fazendo segurança e montando emboscadas, servindo de guias, bem como também acompanhando-nos em patrulhamentos ofensivos. 


Com a devida vénia ao valioso Arquivo de História Social do ICS - Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, publicamos alguns excertos do Cor Carlos Fabião, que a morte levou prematuramente aos 76 anos. Os parênteses retos são da responsabilidade dos editores do portal (ICS/UL); os parênteses curvos são nossos.


Mas também há o outro lado, perverso, da militarização da Guiné, tanto por nossa parte como por parte do PAIGC. G3 e Simonov estavam distribuídos a todos os elementos válidos da população da Guiné, no meu tempo (1969/71). Houve, por  certo, consequências a nível, não apenas militar, mas também económico, social, cultural e político, decorrentes da militarização da população guineense... O depoimento de Fabião também é interessante por isso.


Recorde-se entretanto alguns dados estatísticos sobre a população da Guiné em 1960 e 1970:


(i) População da Guiné: 519 mil (1960); 487,5 mil (1970).
(ii) Principais grupos etnicolinguísticos: balantas (30%), fulas (20); manjacos (14%) e mandingas (12,5%). Os brancos e os mestiços somavam apenas 3000 e 5500, respetivamente em 1960 e 1970.
(iii) População fora controlo das NT (segundo estimativa das autoridades militares, em 1971): 160 mil: (a) 60 mil no Senegal; (b) 20 mil na Guiné-Conacri; (c) 80 mil no interior do TO da Guiné nas regiões sob controlo do PAIGC… [No setor L1 - Bambadinca, a proporção seria de 1 para 3: 5 mil,  balantas, beafadas e mandingas, do lado do PAIGC; 15 mil, sobretudo fulás, mas também balantas e mandingas, do nosso lado].


 Fonte: Guerra Colonial (1961/74) [, em linha,]> Estatísticas > Teatro de Operações: Guiné. [Consult em 24/2/2012. Disponível em: http://www.guerracolonial.org/graphics_detail?category=10.



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(…) Manuel de Lucena: O senhor coronel, a certa altura, falou nas «minhas milícias». Pôs-me a pensar se há algo em relação às milícias.


Coronel Fabião: Fui eu que as organizei e que as criei, digamos assim. Havia milícias, mas o Spínola, a certa altura, quis … Como disse há bocado, a maioria dos nossos camaradas, dos meus camaradas, a concepção que tinham de guerra era fazer a vontade ao António [Salazar] e repor a situação na mesma. Conclusão: aquilo não dava, realmente não dava. E era costume, quando uma tropa era rendida, fazer um discurso que terminava dizendo: «missão cumprida». Quando chegou lá o Schulz, ao primeiro que diz «missão cumprida», ele pergunta: «O senhor cumpriu alguma missão?» E dá um balde ao homem … Mais ninguém disse que cumpriu a missão.


Luís Salgado de Matos: Foi o Schulz que disse isso?


Coronel Fabião: Não! O Spínola. Tem graça. No meio dessas coisas todas, eu era um dos meninos bonitos do Schultz e passei por o único que saiu incólume do Spínola.


Manuel de Lucena: Voltando às milícias, como é que as organizou? Quem eram exactamente?


Coronel Fabião: A concepção do Spínola era esta: as milícias tinham que ter uma ligação às populações a que pertenciam. Milícias, misturadas com tropa, para ele não dava. Portanto, a concepção de milícia era diferente de tropa. A milícia era o homem duplamente empregue como guerreiro e como economista.


Manuel de Lucena: Administrador?


Coronel Fabião: Não, era o homem que defendia a tabanca e a aldeia e aquilo tudo e, ao mesmo tempo, nas horas vagas, produzia. Era lavrador, camponês, portanto, era um homem com dupla função: combatente e colono, para o desenvolvimento da terra. Viviam lá nas suas aldeias e defendiam-nas quando o inimigo atacava.


Manuel de Lucena: O inimigo atacava muito as aldeias?


Coronel Fabião: Um bocado.


Manuel de Lucena: Mas como represália por não serem seus partidários?


Coronel Fabião: Eu aí teria de estar a falar um bocado sem ter assente. Eu penso que eles se ligavam a nós e estavam connosco por uma razão muito simples. Naquele tempo a força estava connosco, o poder económico estava connosco. Quer dizer, eu nunca tive dificuldades de recrutar gente, recrutava a que quisesse. Por uma razão muito simples, é que o pouco que lhes pagava (e era pouco relativamente, eram 700$00 por mês a cada um) era suficiente para eles viverem.

Um dos falhanços do Spínola (falhanço relativo), foi que as milícias passaram a viver como combatentes. Irem com a enxada para o campo, não foram realmente, não precisavam. As mulheres deles ganhavam muitíssimo bem, muito mais que eles, porque eram as lavadeiras dos soldados. Cada um de nós tinha a sua lavadeira, para alguns a lavadeira tinha vários empregos e esse dinheiro da lavadeira e o dinheiro deles como milícias dava para viver com um nível de vida que nunca tinham tido, imagino eu. Portanto, quando o PAIGC ia lá cheirar, ia prejudicar… E eles defendiam-se bem.


(…)Manuel de Lucena: Milícias, em 1971? Mas em 1968-1970 também já tinha tido algum trabalho com milícias, ou não?


Coronel Fabião: Não, andavam por lá, desgarradas.


Manuel de Lucena: O Spínola só em 1971 é que lançou a sério as milícias?


Coronel Fabião: Porque depois ele passou a fazer isto: eu arranjava-lhe aquela tropa, que era uma tropa fandanga, realmente era. E […] aqui está um outro grande triunfo do Spínola. O Spínola vai buscar milícias que fundou e vai com elas ocupar postos que estão ocupados pelo Exército português. Os pontos mais sensíveis estão ocupados pelo Exército português. Ele diz-me: «Vê se consegues arranjar milícias para […].» E assim aconteceu de facto. Eu consegui, realmente, arranjar tropas e as unidades de milícias passaram a ir ocupar os postos do Exército português. […] e assim ele conseguiu fazer uma arrancada no Sul e reocupar algumas áreas. Mas nessa altura já a gente sabia que estava tudo perdido, porque já o Marcello tinha dito que não.


Luís Salgado de Matos: Já havia tropas de milícias antes dessas?


Coronel Fabião: Com certeza que havia.


Luís Salgado Matos: Há alguma relação entre as suas milícias e as milícias anteriores?


Coronel Fabião: Foram incorporadas as anteriores nas novas […].


Luís Salgado de Matos: E as antigas milícias adaptaram-se bem ao novo [sistema]?


Coronel Fabião: Adaptaram. O velho era praticamente só de fulas. A Guiné foi pacificada em 1914, 1915, e as tropas utilizadas foram milícias fulas. Eu ainda falei com alguns combatentes fulas de 1914 e eles diziam: «É a velha filosofia da caminheira, não tem que saber». Eles, quando havia um levantamento ou uma guerra a fazer, vinham duas caminheiras [camionetas], uma só para mandingas e outra para [fulas?]. Há um termo qualquer que significa «banda», ou coisa do género. Metiam os fulas lá para dentro, eles vinham por ali acima e eram despejados já na área que estava revoltada e faziam eles a guerra.

Essa gente ainda existia algures. Nós o que quisemos foi fazer isso com balantas, mandingas e outros que não tinham nada a ver connosco […]. Aceitaram ser integrados, e foram muito bem.


(…) Luís Salgado de Matos: Voltando um bocadinho atrás, às novas companhias de milícias africanas. Eles viviam isolados? Numa dada aldeia, havia uma secção, havia um grupo, havia só um? Como é que era a organização. E como é que era a cadeia de comando militar, digamos, para eles?


Coronel Fabião: A cadeia de comando deles era um grupo, uma companhia e chega. Em cada aldeia havia, em princípio, um grupo de milícias. Quando a situação era muito má, pedia-se uma companhia de milícias. Quem comandava o grupo era o comandante militar da área, quem comandava a companhia era o comandante da companhia. Na parte final, a certa altura, começámos a ter uns rendimentos tão grandes, digamos, uma série de resultados tão bons, que o Spínola criou grupos especiais de milícias, poucos, três ou quatro, que fizeram um jeitão.


Luís Salgado de Matos: O que eram esses grupos especiais de milícias?


Coronel Fabião: Eram as milícias vulgares de Lineu, simplesmente não tinham outra função, nem de tomar conta da tabanca, nem de plantar a terra. Estavam ali para fazer golpes de mão, assaltos, coisas desse estilo.


Luís Salgado de Matos: Porque é que fixaram os salários dos milícias em 700$00? Era uma enormidade, para a época. Um professor de liceu, na altura, ganhava 900$00, quando começava cá em Portugal. 700$00 não era nada mau. Quem é que teve a ideia dos 700$00?


Coronel Fabião: Isso eu não sei dizer. Não faço a mínima ideia. Eu pensava que era pouco, está a ver.


Luís Salgado de Matos: Pode ser o meu lado financeiro; eu acho que os ordenados são sempre muito altos.
(…)


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Nota de L.G.: Os parênteses retos são da responsabilidade dos editores do Arquivo de História Social. Os parênteses curvos são nossos. As respostas de Carlos Fabião vêm a itálico. As perguntas dos entrevistadores, a negrito. Corrigimos o apelido Schulz (e não Schultz).

Guiné 63/74 - P9525: Em busca de... (184): Finalmente uma notícia do Armando do Hospital Militar de Bissau 73/74 (Luís Gonçalves Vaz)



1. O nosso Camarigo Luís Gonçalves Vaz, membro da nossa Tabanca Grande e filho do Cor Cav CEM Henrique Gonçalves Vaz (último Chefe do Estado-Maior do CTIG - 1973/74), colocou em 18 de Fevereiro último, no poste: "Guiné 63/74 - P1977: Em busca de... (4): Camaradas do Hospital Militar nº 241, Bissau (1972/74) (Carlos Américo Cardoso, o Cardoso RX)", o seguinte comentário/apelo.

Finalmente uma notícia do Armando do Hospital Militar de Bissau 1973/1974


Caro camarigo Carlos Cardoso:


É com muita satisfação que li este seu poste em que fala no Armando do Hospital de Bissau, na altura a cuidado de todos vocês que trabalhavam no Hospital Militar de Bissau. Como o conheci muito bem, pois durante um ano, entre 1973 e 1974, ia várias vezes durante a semana vê-lo e muitas vezes ia comigo e com os meus dois irmãos para nossa casa em Sª Luzia, brincava muito connosco, comia e dormia lá em casa. 


No início teria sido o meu próprio pai, o coronel Henrique Gonçalves Vaz, CEM/CTIG, que o convidou para ir passar uns dias lá a casa para poder brincar com miúdos como ele, eu tinha 13 anos e o meu irmão mais novo, o Paulo tinha apenas dez anos. Lembro-me dele como um miúdo muito alegre, inteligente e bem disposto. Ainda me lembro, quando no meu quarto, o Armando tirava a prótese (da perna) e continuava a saltar, brincar e falar, sem constrangimentos nenhuns, sim falava muito, demonstrando sempre vontade de saber, de apreender, pois lembro-me muito bem que o Armando (para nós ficou sempre apelidado de Armandinho) demonstrava uma grande curiosidade e uma grande alegria de viver, apesar de ter perdido os pais numa explosão de uma mina, facto responsável pela sua evacuação para o Hospital Militar, penso que em 1972. 

Sempre me disse que era MUITO BEM TRATADO PELOS MILITARES DO HOSPITAL MILITAR DE BISSAU. Gostava muito de saber onde se encontra e contactar com ele, como tal agradeço-lhe, eu caro Américo Cardoso, que me desses qualquer pista sobre o nosso "Armandinho", pois o meu regresso à Metrópole foi um "pouco abrupto", devido ao 25 de Abril, fiquei sempre com saudades dele, e disseram-me que o Armando teria vindo em 74 com um médico militar para Portugal , para frequentar uma instituição em Portugal! 

Tenho uma irmã (a Teresa) que há dias, quando lhe pedia fotografias do Armando na Guiné, pensava que eu o tinha encontrado... ficou eufórica por breves momentos, pois pensava que o tinha encontrado e eu... apenas lhe solicitava as fotos... Como tal, tanto ela como eu gostaríamos muito de saber notícias dele, para o contactar, pois ele, nunca foi esquecido por todos nós, até a minha mãe com 87 anos ainda fala nele, quando relembramos a nossa "estadia" na Guiné! Se tu Armando, por acaso leres esta mensagem, liga-me para o meu telemóvel 936262912 ou manda-me notícias para o meu email: luisbelvaz@gmail.com


Grande Abraço
Luís Beleza Gonçalves Vaz

2. Curioso por saber mais pormenores sobre o Armando, enviei uma mensagem ao Luís Vaz, solicitando-lhe mais alguma informação, nomeadamente pormenores sobre o acidente que matou os pais e mutilou o miúdo, se seria resultado da deflagração de uma mina, em que região e em que circunstâncias. 

A resposta não se fez esperar e quase de imediato recebi a seguinte resposta:

Caro Camarigo Magalhães Ribeiro:

Em tempos soube muito mais, com o passar dos anos ficou apenas parte...

a saber:


O Armando com cerca de 7/8 anos seguia com a sua família numa coluna das NT, penso que seria apeada, e alguém da sua família, o pai ou a mãe pisou uma mina anti-pessoal que matou imediatamente algumas pessoas, duas delas foram os seus pais.


O Armando devia ir como é tradição na região, nas costas da sua mãe, como tal, apesar de ter ficado muito mal da perna esquerda (acabou por ficar sem ela, não sei se foi no local ou no Hospital militar de Bissau!) e na cabeça, onde ficou muito ferido, foi evacuado da zona do "acidente fatal para seus pais" e não sei se para terceiros, e no Hospital salvaram-no e como era órfão e de uma zona do interior da Guiné (já não me lembro a zona de onde era natural), acabou por ficar na Instituição que lhe salvou a vida, sendo "uma espécie de mascote", no melhor sentido, pois era uma criança muito bem tratada segundo me pareceu na altura, e com base no que ele me dizia, quando nós o íamos buscar ao HMB, para passar uns dias connosco para brincarmos, apesar de ele ser um pouco mais novo do que eu, ele teria uns 9 anos no máximo e eu tinha 13 (mas o meu irmão mais novo, o Paulo tinha 10 anos).

Ao longo de um ano, convivemos bastante, pois algumas vezes ficava lá em casa. No final, já não me lembro a última vez que o vi, foi tudo um pouco abrupto, vim com um irmão mais velho em Julho de 1974 para Portugal, mas como o meu falecido Pai ficou até Outubro de 74, disse-nos que ele em princípio viria com um médico obstetra do Hospital, o Dr. Fidalgo de Matos (penso que era este médico, pois era amigo do meu pai), mas posteriormente vim a saber, que não teria vindo para Lisboa com ele, mas acho que alguém o teria trazido para a Metrópole, não tenho a certeza! Só ele poderá contar com rigor o seu percurso de vida pós 25 de Abril! Tanto eu como toda a minha família teríamos muito gosto e alegria em saber dele, do "Armandinho", foi assim que ele ficou na nossa memória! Se souberem dele, agradecia muito as notícias e o seu contacto.

Grande Abraço

Luís Gonçalves Vaz


Guiné > Bissau > Hospital Militar 241 > 1972 > O 1º Cabo Radiologista Cardoso, com um miúdo, o Armandinho, a quem foi amputado parte do membro inferior, e que era a mascote do Hospital. Hoje será médico, segundo informações que o Cardoso terá recebido. A ser verdade, é uma estória fabulosa, de luta contar o destino, de determinação, de coragem!
Foto minha, tirada na altura, não com o Armando, mas com o "Leôncio", um menino que era filho do Soldado Fernando, que servia lá em casa do CEM/CTIG, de etnia Manjaco. Com o Armando só uma irmã minha é que tirou várias, mas ainda não me as enviou.


Bissau > 1974 > Luís Beleza Gonçalves
Bissau > 1974 > Luís Beleza Gonçalves
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Nota de MR:

Vd. também sobre o assunto tratado o poste: 


Vd. último poste desta série em: 

18 DE FEVEREIRO DE 2012 > Guiné 63/74 - P9503: Em busca de... (183): Manuel da Conceição Clemente, a viver em França, procura um seu camarada ex-1.º Cabo Radiomontador, de Cantanhede ou Anadia, ambos ex-combatentes do Esq Rec 693 (Bafatá, 1964/66)