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domingo, 2 de outubro de 2016

Guiné 63/74 - P16546: Manuscrito(s) (Luís Graça) (98): Requiem para Iero Jaló, um bravo soldado

Requiem para Iero Jaló
um bravo soldado,

 

por Luís Graça





A guerra,
essa coisa tão primordial que é a guerra,
que estaria inscrita no teu ADN,
segundo dizem os sociobiólogos.
A guerra é a continuação da evolução

...por outros meios,
dirão os entomólogos,
especialistas em insetos sociais,
para quem a morte de um
ou de um milhão ou mais
de formigas, de alforrecas ou de seres humanos,
é-lhes totalmente indiferente.
Desde que triunfe o ADN,
um projeto de ADN,
forte e bem musculado.

Para ti, "tuga", 
a guerra é a aprendizagem da morte,
aos vinte e dois anos,
é a inocência que se perde para sempre
ao ver morrer pela primeira vez um homem, 

a teu lado.
É o impossível luto,
é a descoberta do mal absoluto.
─ Fight or flight!─
Não precisaste de fugir nem de lutar.
Recusaste o egoísmo genético,
recusaste a lógica absurda de matar ou morrer,
recusaste o cinismo,
recusaste a fria e calculista resignação
com que se juntam e amortalham
os cadáveres seguintes
e se contam nas paredes da caserna
os dias que faltam para a peluda.

Quarenta e cinco anos depois, venho dizer-te,
Iero Jaló, meu querido "nharro",
as palavras que ninguém te disse
no teu grotesco enterro:
– Descansa em paz, Ieró Jaló,
meu herói,
soldado atirador do 2º Grupo de Combate
da CCAÇ 2590
que virá mais tarde a chamar-se CCAÇ 12,
companhia de tropa-macaca,
o nosso bando de primatas sociais,
territoriais, 

predadores,
"tugas" e "nharros"...


Fazíamos parte da nova força africana
de Herr Spínola, o prussiano,
como eu lhe chamava, 

ao nosso Comandante-Chefe.
Não, não ligues, são outros contos,
outras histórias,
outros ajustes de contas
com as nossas doridas memórias.

Descansa em paz, Iero Jaló,
descansa em paz
debaixo do poilão secular,
sagrado,
na tua tabanca, 

no chão fula,
belíssimo poilão de uma triste tabanca,
cercada de arame farpado,
trincheiras 

e valas de abrigo.


Sei que eras do regulado de Cossé,
lá para os lados de Galomaro.
Desculpa-me ter esquecido o nome 

da tua tabanca
e a cara dos teus filhos
e o rosto das tuas mulheres,
agora órfãos e viúvas, sozinhos neste mundo.
Os teus campos estão tristes e inférteis,
já não dão o milho painço 

nem o fundo
nem a mancarra 

nem a noz de cola.
Os homens partiram para guerra,
voltam agora numa caixão de pinho.
Restam os feios e macabros jagudis,
poisados no alto da tua morança,
cheirando a morte,
pressagiando a desgraça.


Oito de setembro de 1969,
região do Xime.
operação Pato Rufia.

Progredimos toda a noite,
desde as 1h30 até ao amanhecer.
Morreste em linha,
aprumado como o teu poilão,
no assalto a um aquartelamento temporário do IN,
próximo da antiga estrada da Ponta do Inglês.
IN ?
Que estranho termo ou expressão,
uso-o por força do hábito,
por comodidade,
por lassidão,
por economia de análise.

Regressamos ao Xime com o teu cadáver às 16h00.
O heli só levou os feridos, incluindo o Malan Mané...

Curioso, nunca soube a tua idade,
não tinhas bilhete de identidade
de cidadão português.
Eras um fula preto,
um fula forro, não creio que fosses futa-fula.
Mas eu e o teu comandante de pelotão

levámos-te a enterrar na tua aldeia,
mais os teus camaradas, cristãos e muçulmanos,
que foram dizer-te o último adeus.
Com honras militares,
tiros de salva,
e a bandeira verde-rubra dos "tugas" 

por cima do teu caixão.
De pinho,
do verde pinho de Portugal.
Nem isto te deixaram fazer, o teu enterro,
à boa maneira dos teus,
o corpo embrulhado num pano branco,

metido na vertical...
sem o inútil caixão de verde pinho.

Portugal ? 

Ainda te lembras, Iero Jaló ?
Os brancos, os "tugas",
os senhores que vieram do norte e do lado do mar.
Não, já não tens que saber de geografia,
nem de história,
nem de geopolítica,
no sítio onde moras, debaixo do teu poilão.
Mas eu, mesmo ao fim destes anos todos,
eu deveria saber o nome da tua aldeia, no chão fula.
O teu nome, esse não esqueci: Ieró Jaló.
Esqueci foi o lugar onde nasceste,
e onde foste enterrado,
talvez Sinchã ou Sare qualquer coisa,
mas não faz mal.

O que interessa é que chorei por ti,
confesso que chorei por ti,
que morreste a meu lado,
e que levavas um prisioneiro,
teu irmão, negro, pela mão.
E que não eras meu irmão,
nem grande nem pequeno,
nem tinhas a mesma cor de pele,
nem a mesma religião,
nem a mesma língua,
nem a mesma pátria,
nem o mesmo continente.
Não comias carne de porco
nem bebias água de Lisboa.
Eras apenas um guinéu, um "nharro",
soldado-atirador de 2ª classe,
ganhavas 600 pesos de pré,
mais um saco de arroz por mês para alimentar a tua família.
Para mim, eras apenas um homem,
da espécie "Homo Sapiens Sapiens",

o que em latim quer dizer homem duplamente sábio,
a única que chegou até aos nossos dias,

o que primeiro que eu vi morrer a meu lado.


Nunca mais chorei por ninguém,
chorei por ti, Ieró Jaló,
chorei de raiva,

pela tua morte e pelo teu enterro.
Nascemos meninos,
mas fizeram-nos soldados,
azar o meu e o teu,
por termos nascido no sítio errado,
no tempo errado.
Imagino-te "djubi", 

à volta da fogueira,
na morança do marabu ou do cherno da tua tabanca,
decorando o Corão.
Uma das cenas mais lindas que eu trouxe da tua terra,
e que eu guardo na minha memória,
são os "djubis" à volta da fogueira,
soletrando tabuinhas em árabe ou coisa parecida.
Lembro-me de quereres aprender as letras dos "tugas"
para poderes ser soldado arvorado
e um dia chegares a primeiro cabo,

e, quem  sabe, sargento, alferes, capitão 
dos comandos africanos.

E
de repente, o capim,
o capim alto,
o sangue,
o capim pisado e empapado de sangue.,,
Pobre Ieró,
morto por um dilagrama dos nossos.
Alguém branqueou a tua morte,
alguém salvou a honra da companhia.
Um dilagrama rebentou no ar,
na tua cara,
na nossa cara.
Defeito de fabrico, alegou o autor do relatório, 

acidente de serviço no auge da batalha,
quando avançávamos em linha, no assalto
ao acampamento do IN,
levando pela corda o teu "turra",
o teu guia, o teu prisioneiro,
ainda mais jovem do que tu.
Malan Mané, mandinga,
tão crente como tu,
tão observador dos preceitos corânicos
como tu, meu querido "nharro".

E agora, Ieró,
que foste poupado à humilhação da derrota
e provavelmente até ao poilão dos fuzilamentos de Bambadinca,
e não viste o teu país sentar-se de pleno direito
à falsa mesa redonda do mundo...
Que farias tu com esta independência
contra a qual lutaste
sem querer,
sem saber,
sem poder ?
Onde estarão os teus filhos ?
E as tuas mulheres ?
E os teus netos ?

E os homens grandes da tua tabanca do Cossé ?
E os líderes do teu povo
que te obrigaram a combater ao lado dos "tugas" ?


Spínola, o homem grande de Bissau,
esse já morreu há uns anos largos atrás.
Não lês os jornais,
não chegaste a aprender o alfabeto latino
e a juntar as letrinhas e ler,
com a torre de Belém ao fundo:
– Esta é a minha pátria amada…
Pois é, o homem grande da Guiné morreu,

o Caco Baldé, 
como os "tugas" lhe chamavam, morreu,
não de morte matada, como a tua,
mas de acordo com a lei natural das coisas.
Quanto ao teu régulo,
devem-no tê-lo miseravelmente fuzilado
na parada de Bambadinca,
tal como aconteceu ao poderoso régulo de Badora,

Mamadu Bonco Sanhá,
tenente de milícias,
que havia trocado o cavalo branco
da gesta heroica do Futa Djalon,
por uma prosaica motorizada japonesa de 50 centímetros cúbicos...
Dono de centenas cabeças de gado, dizia-se,
e de uma harém de cinquenta mulheres,
uma em cada aldeia de Badora…
(Sei que não é verdade, 
segundo me jurou um dos seus netos,
nem o nosso puto Umaru Baldé era filho dele,
o Umaru que também já lá está  na terra da verdade, 
como a maior parte dos nossos camaradas guineenses,
da CCAÇ 12).

Hoje o que resta dos heróis do passado sucumbem
sob o peso das cruzes de guerra
ou pedem esmola nas ruas de Bissau,
tal como os teus filhos e netos.
Ou morrem de desespero e insolação
às portas do templo da deusa Europa,
em Ceuta e em Melilla,
em Lampedusa,
em Lisboa ou em Paris
e até em Lesbos, ilha grega à porta dos otomanos.


Que voltas o mundo deu, meu soldado,
desde esse dia já distante
em que a tecnologia da guerra
ou a lotaria do ADN te ceifou a vida.
Porquê tu, meu herói,
três meses depois de jurares bandeira
e te comprometeres,
por tua honra,
a defender uma pátria,  que não era tua,
até à última gota do teu sangue ?!
E do Malan Mané não tenho notícias,
se é isso que queres saber,
duvidava que ele tivesse sobrevivido
aos graves ferimentos do dilagrama dos "tugas".
Mas alguém me disse,
um camarada de Mansambo,
que sim, 

que o vira no hospital de Bissau,
em novembro de 1969.

E agora deixa-me dizer-te, amigo e camarada,
à laia de despedida:
não sei se um dia ainda terei coragem de voltar
à tua terra, ao teu chão.
Mas se porventura o fizer,
gostaria de perguntar pela tua aldeia,
e de procurar-te
e de ter tempo para conversar contigo,
só tu e eu, debaixo do teu poilão,
tendo apenas como testemunhas
Deus, Alá e os nossos bons irãs.

Guiné, Bambadinca, 8/9/1969
V9 24set 2016


PS –Voltei à tua terra, Iero Jaló, 

em março de 2008, 
mas não pude ainda, dessa vez, 
cumprir a minha promessa... 
Atravessei Badora e Corubal, a caminho do sul, 
mas não o Cossé, 
onde imagino que seja a tua tabanca...

___________

Nota do editor:

Último poste da série > 23 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16519: Manuscrito(s) (Luís Graça) (97): O 'prisioneiro' Malan Mané... a quem cedo, talvez demasiado cedo, deram um arma e uma bandeira e um hino

sexta-feira, 24 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14928: Manuscrito(s) (Luís Graça) (62): "I want you, dead or alive"




Vídeo (0' 06'') > Alojado em You Tube > Luís Graça


Lourinhã, Vimeiro, 18 de julho de 2015_Reconstituição histórica da batalha de 21 de agosto de 1808 e mercado oitocentista. Vídeo: Luís Graça (2015)




"I Want you, dead or alive"
por Luís Graça (*)


À memória do Umaru Baldé, (que morreu de sida e tuberculose, no terminal da morte que dá pelo nome de Hospital do Barro, em Torres Vedras);

do Abibo Jau (, o gigante do 1º Gr Comb da CCAÇ 12., fuzilado em Madina Colhido);

do Abdulai Jamanca (, cmdt da CCAÇ 21, fuzilado em Madina Colhido);

do Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015);

do Iero Jaló (, o 1º morto em combate, da CCAÇ 12, em 8/9/1969);

do Manuel da Costa Soares (, sold cond, da CCAÇ 12, morto em Nhabijões, em 13/1/1971, por uma mina A/C, sem nunca ter chegado a conhecer a sua filha);

do Luciano Severo de Almeida ( que terá morrido de morte violenta, já como paisano);

e dos demais camaradas da CCAÇ 12 e da CCAÇ 21,
brancos e pretos,
mortos em combate
ou abandonados à sua sorte,
depois do regresso a casa
ou da independência da Guiné-Bissau;

ao José Carlos Suleimane Baldé,
felizmente ainda vivo, espero,
a morar em Amedalai, Xime
(e o único camarada guineense da CCAÇ 12
a integrar a Tabanca Grande);

a todos os demais camaradas da Guiné
que ainda hoje estão (sobre)vivos.




Foderam-te, meu irmão!
Enganaram-te, irmãozinho!
Traíram-te, amigo!
Deixaram-te para trás, camarada!

Não, não era este país milenário
que vinha no cartaz de promoção turística,
com montes, vales e charnecas,
com rios, praias e enseadas,
com fama de gente patriótica,
riqueza gastronómica
e forte sentido identitário.

“I want you”,
disseram-te eles,
e tu respondestes sem hesitar:
“Pronto!”.

Meu tonto,
disseste "presente!",
mesmo sem poderes avaliar
todas as consequências presentes e futuras
da tua decisão,
em termos de custo/benefício.

Decidiste com o coração,
não com a razão,
deste um passo em frente,
abnegado e generoso,
mesmo sem saberes
onde era o distrito de recrutamento,
e sem sequer conheceres
o teatro de operações,
o estandarte,
o fardamento,
a ciência e a arte da guerra,
o comandante-chefe
ou até mesmo a cara do inimigo.

Um homem não vai para a guerra
sem fixar a cara do inimigo,
sem reconhecer a voz do inimigo,
pode ser que seja teu pai,
mãe, irmão, irmã,
vizinho, amigo,
ou até mesmo um estrangeiro,
um pobre e inofensivo estrangeiro,
apanhado à hora errada no sítio errado.

Camarada,
um homem não mata outro homem
só porque é estrangeiro,
ou só porque não pensa ou não sente como tu,
um homem não puxa o gatilho
ou saca da espada,
sem perguntar quem vem lá!

Enfim, não se mata um homem,
de ânimo leve,
gratuitamente,
só porque alguém o elegeu como teu inimigo.

Não, meu irmãozinho,
não eram estes outdoors
e muros grafitados,
ao longo da picada,
não, não era este trilho,
que era pressuposto levar-te
do cais do inferno
às portas do paraíso.

Sim, porque no final, 
meu irmão,
há sempre alguém a prometer-te
o paraíso,
o olimpo,
o panteão nacional
ou cruz de guerra com palma,
em troca da dádiva suprema
da tua vida,
do teu corpo,
da tua alma.

Todos te querem,
todos te queremos,
“I want you”,
sim, quero-te, mas por inteiro,
quanto mais não seja
para tirar uma fotografia contigo,
não vales nada
cortado às postas,
decepado,
decapitado,
ou, pior ainda,
perdido, errático,
com stress pós-traumático
sem bússola nem mapa,
apanhado à unha pelo inimigo,
ou fuzilado no poilão de Bambadinca
ou de Madina Colhido.
Fuzilado, és um cadáver incómodo,
apanhado, és um embaraço diplomático,
pior do que tudo isso,
doente psiquiátrico.



Não, não foi este destino
que compraste,
com o patacão do teu sangue, suor e lágrimas,
enganaram-te, os safados,
os generais
e os seus ajudantes de campo,
os burocratas da secretaria,
os recrutadores,
a junta médica,
os instrutores
e até os historiadores.

“Guinea-Bissau, far from the Vietnam”,
alguém escreveu no poilão de Brá
ou na estrada de Bandim,
a caminho do aeroporto, tanto faz,
“Tuga, estás a 4 mil quilómetros de casa”.
Ou então foi imaginação tua,
pesadelo teu,
deves ter sonhado com essa placa toponímica,
algures,
numa noite de delírio palúdico,
deves tê-la visto
a sul do deserto do Sará.

Alguém sabia lá
onde ficava a Guiné,
longe do Vietname,
alguém se importava lá
com o teu prémio da lotaria da história,
mesmo que em campanha
te tenhas coberto de glória!

Acabaram por te meter
num avião “low cost”
ou num barco de lata,
ferrujento,
deram-te um pontapé no cu
ou cravaram-te a tampa do caixão de chumbo.
"Bye, bye, my friend.
Fuck you, man”.
Nem sequer te desejaram
"Oxalá, inshallah, enxalé,
que a terra te seja leve!"

País de merda"...
Tinha razão o polícia, racista,
que te quis barrar a entrada
no aeroporto de Saigão
(ou era Lisboa ?
ou era Amsterdão?).

Quem disse que os polícias
de todo o mundo
são estúpidos ?
Até o polícia racista
entende o sofisma
do país de merda:
“Pensando bem,
soletrando melhor,
país de merda,
país de merda,
só pode ser o meu”.

Os gajos estavam fartos de ti,
meu irmão,
meu camarada,
meu amigo.
Os gajos pagavam-te,
se preciso fosse,
para se verem livres de ti,
vivo ou morto,
devolvido à procedência.

“I want you, alive ou dead”,
porque na contabilidade nacional
tudo tem de bater certo,
diz o cabo arvorado.
Todo o que entra, sai,
é o deve e o haver
do escriturário, encartado,
mesmo que seja merda:
“Garbage in, garbage out”,
se entra merda, sai merda.

Procuraram-te por toda a parte,
do Minho ao Algarve
do Cacheu ao Cacine,
só te queriam bem comportado,
escanhoado,
ataviado,
de botas engraxadas,
se possível herói de capa e espada,
medalhado, condecorado,
de cruz de guerra ao peito,
mesmo que viesses amortalhado.

E tu ?
Sabias lá tu
o que era a pátria,
onde ficava a tabanca da pátria,
onde começava e acabava o chão da pátria ?
Muito menos sabias
a geografia da guerra,
Aljubarrota,
Alcácer Quibir,
Vimeiro,
Waterloo,
La Lys,
lha do Como,
Guidaje,
Gadamael,
Dien-Bien-Phu,
Madina do Boé,
Ponta do Inglês,
Madina Belel...

Conhecias lá tu
da pátria a anatomia e a fisiologia ,
o intestino grosso e delgado,
o que é que a pátria comia,
o que é que a pátria defecava,
ou até mesmo o que é que a pátria sentia e pensava,
se é que a pátria deveras sentia e pensava.

Queriam-te sedado,
anestesiado,
amnésico, de preferência,
sobretudo amnésico.
alienado,
aculturado,
desformatado,
paisano,
só assim eles te queriam de volta
ao teu anódino quotidiano,

Meu irmão,
meu pobre camarada,
fizeste por eles
o trabalho sujo
que compete a qualquer bom soldado
em qualquer guerra.
Mas nem como soldado eles te trataram,
nem sequer como mercenário
te pagaram,
em espécie ou em géneros.

Afinal a guerra acabou,
como todas as guerras acabam,
até mesmo a guerra dos cem anos
teve um fim
com o seu rol de mortos, feridos e desaparecidos.
“Para quê mexer agora na merda, ó nosso cabo ?”,
pergunta o sorja da companhia.
“Boa pergunta, meu primeiro,
mas há muito já que eu não cheiro,
a guerra embotou-me os sentidos”.

Luís Graça
Lourinhã, Vimeiro, 18/7/2015,
Reconstituição histórica da batalha do Vimeiro (21/8/1808)
____________

Nota do editor:

Último poste da série > 8 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14846: Manuscrito(s) (Luís Graça) (61): Poema interpretativo da batalha do Vimeiro (, dedicado ao Eduardo Jorge Ferreira)

terça-feira, 15 de maio de 2012

Guiné 63/74 - P9905: Blogpoesia (187): Descansa em paz, Iero Jaló... Poema de Luís Graça, com dedicatória ao Zé Carlos Suleimane Baldé, nosso novo grã-tabanqueiro



Guiné > Zona Leste > Contuboel > Junho de 1969 > CCAÇ 2590/ CCAÇ 12 > O 2º Grupo de Combate da CCAÇ 2590 (futura CCCAÇ 12), ainda em período de instrução da especialidade.

O 2º Gr Comb era comandado pelo Alferes Miliciano Carlão (co-optado do Curso de Oficiais Milicianos=, se bem me lembro...) que aparece na fotografia, na primeira fila, ajoelhado, olhando no sentido oposto ao do fotógrafo (rectângulo a amarelo). Vive hoje em Fão, Esposende. É casado com a Helena, a única "mulher branca" da CCaç 12 que viveu connosco em Bambadinca. O Carlão é transmontano, não sei se de Mirandela ou Miranda do Douro...

Atrás dele o soldado Arménio, hoje conhecido taxista no Portp (era cabo, antes de embarcar mas foi despromovido, por ter apanhado uma porrada de não sei quem). Um reguila do Porto...

De pé, na terceira fila, os furriéis milicianos António (Tony) Levezinho e Humberto Reis . Na segunda fila, meio agachados, os 1ºs cabos Branco e Alves (de alcunha o Alfredo)

Um grupo de combate da CCAÇ 2590 (mais tarde, CCAÇ 12) era constituído por 30 homens. Havia 4 Gr Comb. Cada grupo de combate, comandado por um alferes, tinha três secções (1 furriel e 1 cabo e oito soldados, estes africanos).

Casa secção era especializada. Havia a secção dos lança-granadas, com o respectivo apontador e municiador (1 LGFog 8.9, 1 LGFog 3.7). Havia a secção do Morteiro 60 (apontador e municiador ). E havia ainda a secção da Metralhadora Ligeira HK 21 (apontador e municiador). Cada combatente estava equipado com a espingarda automática G-3 e granadas defensivas. Em geral havia ainda dois apontadores de dilagrama (neste caso, 1ª e 3ª secção). O Iero Jaló, que não consigo identificar na imagem, pertencia à 3ª secção, comandada pelo Tony Levezinho.

Foto: © António Levezinho (2005). Todo os direitos reservados

1. Poema que dedico ao Zé Carlos Suleimane Baldé [, aqui na foto comigo, ao centro, e com o Umaru, em Finete, 1969], o primeiro e o último  preto da Guiné, da CCAÇ 2590/CCAÇ 12, que irá figurar na lista alfabética dos membros da Tabanca Grande... 



Publicado originalmente na I Série do nosso blogue, no  poste de 10 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLII: A galeria dos meus heróis (2): Iero Jau









Descansa em paz, Iero Jaló


A guerra.
Essa coisa tão primordial que é a guerra.
Que estaria inscrita no teu ADN,
segundo dizem os sociobiólogos.
A guerra é a continuação da evolução
por outros meios,
dirão os entomólogos,
especialistas em insetos sociais,
para quem a morte de um
ou de um milhão
de formigas ou de seres humanos,
é-lhes totalmente indiferente.
Desde que triunfe o ADN,
um projeto de ADN
musculado.

Para mim, a guerra é
a aprendizagem da morte.
Aos vinte e dois anos.
É a inocência que se perde
para sempre
ao ver morrer pela primeira vez
um homem, a teu lado.
É o impossível luto.
É a descoberta do mal absoluto.

Fight or flight.
Não precisei de fugir nem de lutar.
Recusei o egoísmo genético.
Recusei a lógica absurda
de matar ou morrer.
Recusei o cinismo.
Recusei a fria e calculista resignação
com que se juntam e amortalham
os cadáveres seguintes.
E se contam nas paredes da caserna
os dias que faltam para a peluda.

Trinta e tal anos depois,
venho dizer-te
as palavras que ninguém te disse
no teu grotesco enterro:
- Descansa em paz, Iero Jaló,
meu herói,

meu camarada,
soldado atirador
do 2º grupo de combate,

3ª secção.
nº 82117869,
da CCAÇ 2590
que virá mais tarde a chamar-se
CCAÇ 12,
companhia de tropa-macaca,
A minha companhia,
os meus camaradas,
o meu bando de primatas sociais,
territoriais, 

predadores.
Fazíamos parte da nova força africana
de Herr Spínola, o prussiano,
como eu lhe chamava,
ao nosso Comandante-Chefe.
Não, não ligues,
são outros contos, 

outras histórias,
outros ajustes de contas
com as nossas doridas memórias.

Dscansa em paz,
Iero Jaló,
debaixo do poilão secular
na tua tabanca,
no chão fula,
belíssimo poilão de uma triste tabanca fula,
cercada de arame farpado,
trincheiras,
valas de abrigo.
e cavalos de frisa.
Julgo que eras do regulado de Badora.
Ou seria Cossé,
lá para os lados de Galomaro ?

Desculpa-me ter esquecido
o nome da tua tabanca.
E a cara dos teus filhos
e o rosto das tuas mulheres,
agora órfãos e viúvas,
sozinhos neste mundo.
Os teus campos estão tristes e inférteis,
já não dão o milho painço nem o fundo,
nem a mancarra,
a semente do diabo,
nem a noz de cola.
Os homens partiram para guerra,
voltam agora numa caixão de pinho.
Restam os macabros jagudis,
poisados no alto da tua morança,
cheirando a morte,
pressagiando a desgraça

Sete de Setembro de 1969.
Região do Xime.
Operação Pato Rufia.
Morreste em linha,
aprumado como o teu poilão.
No assalto a um aquartelamento temporário do IN,
uma baraca, como eles diziam,
próximo da Ponta do Inglês.

IN ? Que estranho termo ou expressão…
Uso-o por força do hábito,
por comodidade,
por lassidão,
por economia de análise.

Curioso, nunca soube a tua idade.
Não tinhas bilhete de identidade
de cidadão português.
Eras um bravo futa-fula

e eu levei-te a enterrar na tua aldeia,
mais os teus camaradas,
que foram dizer-te o último adeus.
Com honras militares, 
tiros de salva,
hino nacional,
e a bandeira verde-rubra dos tugas
por cima do teu caixão.
De pinho,
do verde pinho de Portugal.
Nem isto te deixaram fazer
à maneira dos teus.
Só faltou o corneteiro
para o toque a finados.

Portugal ? 
Ainda te lembras,
os senhores que vieram do norte
e do lado do mar ?
Não, já não tens que saber de geografia.
Nem de história. 
Nem de geopolítica.
Nem de guerra fria.
No sítio onde moras, 

debaixo do teu poilão,
já não tens que saber de nada.
Mas eu, mesmo ao fim destes anos todos,
eu deveria saber o nome da tua aldeia,
no chão fula.
O teu nome, esse não esqueci,
Iéro Jaló.
Esqueci foi o lugar onde nasceste,
talvez Sinchã,
ou Madina, 
ou Sare qualquer coisa...
Que importa agora ?
Serás mais um dos milhares de soldados desconhecidos daquela guerra.

O que interessa é que chorei por ti,
confesso que chorei por ti,
que morreste a meu lado,
e que levavas um prisioneiro,
teu irmão,
pela mão.
Chorei por ti,
e não tenho vergonha de o dizer,
mesmo se um homem não chora,
muito menos um tuga ou umn fula.
Chorei por ti,
que nem sequer eras meu irmão.
Nem grande nem pequeno.
Nem tinhas a mesma cor de pele.
Nem a mesma religião.
Nem a mesma língua.
Nem a mesma pátria.
Nem o mesmo continente.
Não comias carne de porco
Nem bebias água de Lisboa.
Eras apenas um guinéu,
Um nharro,
soldado-atirador
de 2ª classe.
Ganhavas 600 pesos de pré.
Um saco de arroz por mês
para alimentar a tua família.
Mas, para mim, eras apenas um homem,
da espécie Homo Sapiens Sapiens.
A única que chegou até aos nossos dias.
A única que conheço.
Foste o primeiro homem que eu vi morrer a meu lado.
Nunca mais chorei por ninguém,
chorei por ti, Iero Jaló.
Chorei de raiva.
Chorei de imensa raiva.

Nascemos meninos,
mas fizeram-nos soldados.
Azar o meu e o teu,
por termos nascido
no sítio errado,
no tempo errado.
Imagino-te djubi,
à volta da fogueira,
na morança do marabu ou do cherno
da tua tabanca,
decorando o Corão.
Uma das cenas mais lindas
que eu trouxe da tua terra,
e que eu guardo no fundo da  minha memória,
são os djubis à volta da fogueira,
soletrando tabuínhas em árabe,
ou pseudo árabe, não interessa.
Lembro-me de quereres aprender
as letras dos tugas
para poderes ser soldado arvorado
e um dia chegares a cabo,
e quem sabe sargento,
e quem sabe oficial,
e quem sabe general.

E de repente, o capim.
O capim alto.
O sangue.
O capim pisado e empapado de sangue.
Pobre Iero,
morto por um dilagrama dos nossos.
Alguém branqueou a tua morte.
Alguém salvou a honra da companhia.
Um dilagrama rebentou no ar,
na tua cara.
Acidente de serviço
no auge da batalha,
quando avançavas em linha,
no assalto ao acampamento
do IN, do turra,
Levando pela corda
o teu turra, o teu guia, o teu prisioneiro,
ainda mais djubi do que tu.
Malan Mané, mandinga,
tão crente como tu,
tão observador dos preceitos corânicos
como tu, 
meu querido nharro
Iero Jaló.

E agora, meu camarada,
morto e enterrado,
que foste poupado
à humilhação da derrota
e não viste o teu país
sentar-se de pleno direito
à mesa do mundo,

dos senhores do mundo...
Nem tiveste que fugir para o Senegal...
Que farias tu com esta independência
contra a qual lutaste
sem querer,
sem saber,
sem poder ?

Onde estarão hoje os teus filhos, 
e as tuas mulheres ?
E os teus netos ?
E os homens grandes da tua tabanca de Badora ?
E os líderes do teu povo
que te obrigaram a combater ao lado dos tugas ?
Herr Spínola, o homem grande de Bissau,
esse já morreu há uns anos atrás.
Não lês os jornais,
não chegaste a aprender o alfabeto latino
e a juntar as letrinhas 
e ler,
com a torre de Belém ao fundo:
- Esta é a minha pátria amada…
Pois é, o homem grande de Bissau morreu,
não de morte matada, como a tua,
mas de acordo com a lei natural das coisas.
Quanto ao teu régulo,
foi miseravelmente fuzilado
na parada de Bambadinca,
o poderoso régulo de Badora,
tenente de milícias,
que havia trocado o cavalo branco
da gesta heróica do Futa Djalon,
por uma prosaica motorizada japonesa
de 50 centímetros cúbicos,
oferta do Homem Grande Bissau...
Era dono de centenas cabeças de gado
e de uma harém de cinquenta mulheres,
uma em cada aldeia de Badora…
Dizia-se que o puto Umaru
era filho dele,
o Umaru e mais djubis da CCAÇ 12.

Hoje os heróis do passado sucumbem
sob o peso das cruzes de guerra.
Ou pedem esmola nas ruas de Bissau,
tal como os teus filhos e netos.
Ou morrem de desespero e inanição
às portas do templo da deusa Europa,
em Ceuta e em Melilla,
em Lisboa ou em Paris.
Que voltas o mundo deu, meu soldado,
desde esse dia já distante
em que a tecnologia da guerra
ou a lotaria do ADN
te ceifou a vida.
Porquê tu, meu herói,
três meses depois de jurares bandeira
e te comprometeres, por tua honra,
a defenderes uma pátria 
que te disseram ser a  tua,
até à última gota do teu sangue ?

E do Malan Mané não tenho notícias,
se é isso que queres saber,
mas duvido que ele tenha sobrevivido
aos graves ferimentos do dilagrama dos tugas.
E agora deixa-me dizer-te, amigo,
à laia de despedida:
não sei se um dia
ainda terei coragem de voltar
à tua terra, 
ao teu chão.
Mas se porventura o fizer,
gostaria de perguntar pela tua aldeia,
e de procurar-te
e de ter tempo para conversar contigo,
só tu e eu,
debaixo do teu poilão.
Descansa em paz, Iero Jaló.

Luís Graça,

[revisto nesta data]


2. Originalmente este poema foi escrito tendo por tema a morte do sold at inf nº 82117869, Iero Jaló, de etnia futa-fula, do 2º Gr Comb, 3ª secção, da CCAÇ 2590/CCAÇ 12, ocorrida em 8 de setembro de 1969, no decurso da operação Pato Rufia, na região do Xime... Este meu camarada morreu ao meu lado, no meu próprio batismo de fogo.

Mais tarde emendei o nome, e substitui-o pelo nome do Iero Jau, apontador de dilagrama, do 3º Gr Comb, 1º secção, nº mecanográfico,82109569, este sim, fula. Na realidade fui induzido em erro pela história da unidade (a CCAÇ 12), escrita por mim próprio: no relato da Op Pato Rufia, vem o nome do Iero Jau... Mas quem morreu de facto foi o Jaló, futa-fula: aliás, é o Iero Jaló, nº mecanográfico 82117869, que vem no fim na lista dos mortos da companhia... Foi a nossa primeira vítima mortal. E aliás é este nome que consta da lista oficiosa dos nossos mortos no Ultramar.

Corrigi, nesta data, o título e o corpo do poema... Espero que, no Olimpo dos guerreiros, o Iero Jaló me perdoe. O mesmo peço ao Iero Jau, que muito provavelmente já não estará entre nós. Estima-se que mais de 80% dos soldados do recrutamento local que tiraram a recruta e a especialidade em Contuboel, em 1969, e vieram depois integrar a CCAÇ 2590 (futura CCAÇ12), já tenham morrido.
______________

Nota do editor:

Último poste da série > 15 de abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9749: Blogpoesia (186): Registo (Felismina Costa)

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Guiné 63/74 - P7048: A minha CCAÇ 12 (7): Op Pato Rufia, 7 de Setembro de 1969: golpe de mão a um acampamento IN, perto da antiga estrada Xime-Ponta do Inglês, morte do Sold Iero Jaló, e ferimentos graves no prisioneiro-guia Malan Mané e no 1º Cabo António Braga Rodrigues Mateus (Luís Graça)







Esposende > Fão > 1994 > A primeira vez que me  reencontrei com a malta de Bambadinca (1968/70), incluindo os meus camaradas da CCAÇ 12, e outras subunidades adidas ao comando do BCAÇ 2852. 


Na foto, estão alguns camaradas que participaram comigo na Op Pato Rufia, 7 de Setembro de 1969, agora aqui evocada... Não tenho a veleidade de ter boa memória, mesmo assim arrisco uma legenda: na primeira fila, da esquerda para a direita: Fur Mil MAR Joaquim Moreira Gomes [, vivia no Porto, na altura ];  sold cond auto Diniz Giblot Dalot [, empresário, vive em Aljubarrota, Prazeres]; um antigo escriturário da CCS/ BART 2917 (morava em Fão, Esposende); Alf Mil Inf António Manuel Carlão [,casado com a Helena,  comerciante, vive em Fão,  Esposende]; Fur Mil Arlindo Teixeira Roda [, natural de Pousos, Leiria; professor em Setúbal; damista, grande jogador de king e de lerpa, no nosso tempo, a par do Humberto Reis];  Fur Mil Armas Pesadas Inf Luís Manuel da Graça Henriques [, prof univ., fundador deste blogue,  vive em Alfragide / Amadora]; Arménio Monteiro Fonseca (taxista, no Porto, da empresa Invictuas, táxi nº 69, mais conhecido no nosso tempo como o "vermelhinha"); Fur Mil José Luís Vieira de Sousa [, natural do Funchal, onde vive, agente de seguros]...


Na segunda fila de pé, da esquerda para a direita: Fernando Carvalho Taco Calado, Alf Mil Trms, CCS/BCAÇ 2852; Alf Mil Manutenção Ismael Quitério Augusto, CCS/BCAÇ 2852;  Fur Mil António Eugénio Silva Levezinho [, Tony para os amigos, reformado da Petrogal, vive em Martingal, Sagres, Vila do Bispo];  Capitão Inf Carlos Alberto Machado Brito [, Cor Ref, vive em Braga, passou pela GNR]; n/s; major Cunha Ribeiro, mais conhecido por "major elétrico", 2º comandante do BCAÇ 2852; Fur Mil Op Esp Humberto Simões dos Reis [, engenheiro técnico, vive Alfragide / Amadora; na foto, escondido, de óculos escuros]; n/s; Alf Mil Cav José Luís Vacas de Carvalho, Pel Rec Daimler 2206; Alf Mil Inf Mário Beja Santos, Pel Caç Nat 52;  Fur Mil António Fernando R. Marques [, natural de Abrantes, vive em Cascais, empresário reformado];  Manuel Monteiro Valente (de bigode e de perfil, ex-1º Cabo, 1º Gr Comb, CCAÇ 12, apontador de dilagrama; Abel Rodrigues (hoje bancário reformado, ex-Alf Mil, 3º Gr Comb, CCAÇ 12); Alf Mil Op Esp Francisco Magalhães Moreira [, vive em V. N. Famalicão ou Fafe, se não erro]; Fur Mil Joaquim Augusto Matos Fernandes [, de óculos escuros, engenheiro técnico, vive no Barreiro]; 1º Cabo Carlos Alberto Alves Galvão [, o homem que foi ferido duas vezes numa operação, vive na Covilhã];  Fernando Sousa (ex-1º Cabo Enf, CCAÇ 12, vive na Trofa); e, por fim, 2º Sarg Inf Alberto Martins Videira [, vive ou vivia em Vila Real].


Foto: © Luís Graça (2010). Todos os direitos reservados






Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Paúnca > CCAÇ 11 > Pós-25 de Abril de 1974 > O ex-Fur Mil Op EspJ. Casimiro Carvalho, empunhando um RPG2 (ou 7 ?), e posando para a fotografia com um roqueteiro do PAIGC. O Malan Mané, aqui referido no texto a seguir, também era apontador de RPG2, na altura em que foi feito prisioneiro no decurso da Op Nada Consta (*).


RGP em russo quer dizer Ruchnoi Protivotankovii Granatomet (lança-granadas anti-tanque). Era uma temível arma que datava dos finais de 1940 ou princípios dos anos 50. Deixou, entretanto, de ser usada pelo exército russo por volta de 1960, sendo substituída pelo RPG 7, mais sofisticado e eficaz. 


Esta arma era muito popular entre os grupos de guerrilha existentes em todo o mundo. Era a bazuca dos pobres... Na Guiné, era uma arma de má memória, altamente temida por nós (e pelo próprio PAIGC, quando usada com eles); matou e estropiou muitos camaradas nossos... 


É uma arma muito leve (tubo= 2,86 kg.; tubo + granada= 4,48 kg.) e de fácil manobra: 0, 95 m de comprimento (o tubo) ou 1,20 m  (tubo + granada). Rapidez: Até 6 tiros por minuto. Velocidade máxima: 84 m por segundo. Alcance efectivo= 100 metros. Munição: PG2, granada altamente explosiva, de pólvora preta. Penetração em chapa blindada: até 180 mm. (Agora imagine-se em pele, carne e osso...).


Especificações técnicas / Technical details: Fonte/Source: Cortesia de/ Courtesy of The Sword of Motherland Foundation (2000-2007) 


Foto: ©  J. Casimiro Carvalho (2007). Todos os direitos reservados




Resumo: A CCAÇ 2590/CCAÇ 12, composta por quadro metropolitanos, chegados à Guiné em finais de Maio de 1969 , e por soldados africanos, praticamente todos oriundos do chão fula que tinham feito a sua instrução básica e de especialidade em Contuboel, é dada como operacional, a partir de 18 de Julho de 1969.


Colocada em Bambadinca (Sector L1), como unidade de intervenção, fica pronta a actuar às ordens de qualquer um dos sectores da Zona Leste da Guiné (em especial dos Sectores L1, L3 e L5). Tem o seu baptismo de fogo logo imediatamente a seguir, em Madina Xaquili, ainda em Julho de 1969 e em farda nº 3, no sub-sector de Galomaro .






1. A minha CCAÇ 12 >  Op Pato Rufia: golpe de mão a um acampamento do IN, perto da antiga estrada Xime-Ponta do Inglês, morte do Sold Iero Jaló, e ferimentos graves no prisioneiro-guia Malan Mané e no 1º Cabo António Braga Rodrigues Mateus


por Luís Graça


O guerrilheiro Malan Mané que foi aprisionado pelos pára-quedistas, na Op Nada Consta (*), realizada em conjunto com a CCAÇ 12 e outras forças, ficou depois à disposição do comando do  BCAÇ 2852, na sede do sector L1, em Bambadinca. Sujeito a interrogatório (e explorando-se o seu estado psicológico), forneceu informações que levariam à localização de um outro acampamento IN, desta vez  no sub-sector do Xime.


Tratava-se de um destacamento avançado,  a escassas horas do Xime, composto por 5 cubatas paralelamente à estrada Xime-Ponta do Inglês, do lado oeste, internadas na mata cerca de 150 metros.


O prisioneiro estivera lá três meses antes, e na altura os efectivos eram de cerca de 40 homens (mais ou menos um bigrupo), incluindo um grupo especial de roqueteiros que todas as manhãs se deslocavam para a Ponta Varela afim de atacar as embarcações em circulação no Rio Geba. O armamento era constituído por seis RPG-2  e armas ligeiras.


Com base nestas informações planeou-se imediatamente Op Pato Rufia afim de executar um golpe de mão sobre o acampamento em referência, com o prisioneiro a servir de guia.


O início do golpe de mão estava previsto para a madrugada do dia 25 de Agosto, mas o guia , o prisioneiro Malan Mané, perdeu-se, alegadamente devido à escuridão e à altura do capim. Foi decido então fazer um prévio reconhecimento da área.


A 27 de Agosto, o 2º Gr Comb da CCAÇ 12 e forças da CART 2520, do Xime, detectariam uma casa de mato abandonada e uma granada de morteiro 60 que não foi levantada por não apresentar garantias de segurança, a escassas centenas de metros do acampamento IN cujos trilhos de acesso foram devidamente reconhecidos pelo prisioneiro.


No regresso ao Xime verificou-se que o trilho, feito pelas NT dois dias antes, estava minado nos pontos de confluência com a estrada da Ponta do Inglês, tendo os picadores detectado cinco minas anti-pessoal. Tornava-se evidente que o IN fora alertado da presença das NT e que entretanto redobrara de vigilância.


A 7 de Setembro de 1969, repetia-se a Op Pato Rufia, com  a duração previsível de dois dias, e com a seguinte composição e articulação das forças:


(i) Destacamento A: CCAÇ 12 (Bambadinca) a 3 Gr Comb (+);


(ii) Dest B: CART 2520 (Xime) a 2 Gr Comb (+ 1 Secção do Pel Mil 145, de Amedalai)


(iii) Dest C: PEL CAÇ NAT 53 (Saltinho), 63 (Fá Mandinga) e 52 (-) (Missirá).




A missão era executar um golpe de mão sobre o acampamento IN erm Xime (3C7 -28), por parte do Dest A, conjugado com emboscadas, ao cuidado dos Dest B e C.


Desenrolar da acção:


(i) A progressão iniciou-se, a partir do Xime,  pelas 1.30h da noite, atingindo-se as proximidades do local do acampamento IN já perto da madrugada.


(ii) Os Dest B e C dirigiram-se para os seus locais de emboscada, enquanto o Dest A formava em linha paralelamente à estrada, a uns 200 m.


(iii) Sabia-se que o IN tinha uma sentinela avançada e que os elementos do grupo dormiam com as armas à cabeceira. A aproximação através do capim alto e da mata densa facilmente denunciava as NT.


(iv) E, de facto, ainda mal o Dest A (CCAÇ 12) tinha iniciado a progressão em linha quando foi alvejado por duas rajadas de pistola-metralhadora que deram o sinal de alarme.


(v) Imediatamente as NT começaram a ser batidas por fogo de lança-rockets, morteiro 60 e armas automáticas a que reagiram prontamente.


(vi) Foi nessa altura que um dilagrama, ao ser descavilhado, rebentou à boca da arma, por deficiência da alavanca de segurança, tendo atingido o prisioneiro Malan Mané e o Soldado Iero Jaló (2º Gr Comb) que o conduzia e que teve morte quase instantânea.


(vii) Entretanto já tinham sido feridos o 1º Cabo Mateus (3º Cr Comb) com um tiro no joelho e dois picadores da milícia do Xime.


(ix) Continuando a progressão, e tendo ficado 1 Gr Comb (-) a montar segurança aos feridos, atingiu-se o acampamento constituído por 9 cubatas, para quatro a cinco homens cada, e que o IN tinha abandonado precipitadamente.


(x) Na fuga urn pequeno grupo foi cair na zona de emboscada do Dest B que abriu fogo, tendo o IN reagido com um disparo de RPG-2 que causou vários feridos ligeiros às NT.


(xii) Entretanto já os Gr Comb do Dest A tinham literalmente saqueado as casas de mato, recolhendo documentos, livros didácticos, folhetos de propaganda e objectos pessoais (inclusive maços de tabaco russo), além de material de guerra.


(xiii) À ordem, as forças dos 3 Dest reuniram-se no local do acampamento e colaboraram numa batida minuciosa à zona a fim de detectar os vestígios deixados pelo IN que retirou, disperso, em debandada, na direcção de Buruntoni e Ponta Varela.


(xiv) Além de vários feridos prováveis, o IN sofreu 2 mortos confirmados (posteriormente).


(xv) Feita a evacuação dos feridos, os 3 Dest receberam ordem de retirar.


(xvi) Entre Gundagué Beafada e Madina Colhido foram ouvidos vários rebentamentos na área do acampamento. Presumindo que as NT ainda estivessem no local, o IN fizera fogo de reconhecimento na direcção do Buruntoni.


(xvii) Por volta das l6h do dia 7, as nossas forças chegavam ao aquartelamento do Xime, tendo o Dest A transportado em maca o cadáver do soldado Iero Jaló.


(xviii) O material capturado pelo Dest A (CCAÇ 12), no valor de 10.825$00, foi o seguinte:


Granadas de RPG2= 30
Granadas de Mort 60 = 6
Granadas de mão defensivas = 2
Minas anti-pessoal = 3
Munições 7,62 Pist Metr PPSH = 610
Munições 7,62 Esp Aut Kalashnikov e Met Lig Degtyarev = 88
Carregadores Esp Aut Kalashikov c/bolsa = 3
Carregadores Metr Lig Degtyarev=2
Carregadores Pist Metr PPSH = 2
Cartuchos propulsores = 9
Cargas suplementares de RPG-2 = 34
Saco de campanha = 1
Cantil = 1
Marmita = 1
Almotolias =2


(xix) Baixas das NT: 


- Soldado do recrutamento local, nº82115969, Iero Jaló (CCAÇ 2590 / CCAÇ 12);


- Feridos graves /(evacudos para o HM241): 1º Cabo António Braga Rodrigues Mateus (3º Gr Comb, 1ª Secção, comandada pelo Fur Mil Arlindo T. Roda, CCAÇ 2590/CCAÇ 12); prisioneiro-guia Malan Mané;


- Feridos ligeiros:  Sold At José Rosa Franciso (CCAÇ 2520); Sold Mil  nº 385/64, Iero Só (Pel Caç Nat 145); Sold Mil nº 394/67, Alseine Canté (Pel Caç Nat 145).


Até ao fim do mês de Setembro de 1969, os grupos IN do Xime manifestar-se-iam três vezes:


(i) a 24,  emboscando na área de Poindon/Ponta Varela (Xime 3D2-30)  forças da CART 2520 (Xime) que tiveram um ferido; o grupo IN, não estimado, fez fogo,  durante 3 minutos, de LGFog, Mort 60 e Armas Automáticas, tendo retirado na diercção de Baio;


(ii) a 28, flagelando em Darsalame/Baio com costureirinhas (pistolas metralhadoras PPSH) e rockets o 1º e o 3º Gr Comb da CCAÇ 12 durante a Op Prato Raso;


(iii) e a 29, desencadeando uma emboscada contra forças da CART 2339 (Mansambo) que sofreram um morto e um ferido grave, na estrada Mansambo-Bambadinca (Xime 8B4-72); o grupo IN estimado em 15 a 20 elementos fez fogo, durante 15 minutos, de LGFog, Mort 60 e Armas Automáticas.




2. Comentário de L.G.:


O dilagrama que provocou este trágico acidente era empunhado por um alferes da CCAÇ 12, que não era, obviamente, o  apontador habitual de diligrama do seu grupo de combate (o apontador da 1ª Secção do 2º Gr Comb era o Sold nº 82116369 Sidi Jaló que, há quem diga, terá sido fuzilado pelo PAIGG em 1975). 


O alferes, como se tratava do seu primeiro assalto,  em linha, a um objectivo IN, fez questão de ser ele próprio a levar o diligrama...  Tentou jogar a arma para longe quando se deu conta que a cavilha de segurança da granada se soltara prematuramente. Nem todos nós, que íamos em progressão, em linha, tivemos tempo de nos lançarmos ao chão... Foi um acontecimento trágico, que pessoalmente me marcou muito. O Iero Jaló foi o primeiro homem que ue vi morrer ao meu lado (**).


No relatório da operação  omitiu-se, deliberadamente ou não, por razões que desconheço, o facto de o apontador do diligrama não ser o Sidi Jaló, mas sim o seu comandante... (Vd. excerto, a seguir, da História da Unidade, BCAÇ 2852, Bambadinca, 1968/70, Cap II, p. 106).








 O Iero Jaló, de etnia fula, morreu ao meu lado. Fomos no dia seguinte enterrá-lo na sua aldeia, no regulado do Cossé (se não me engano...). Teve honras militares. Lembro-me do ridículo atroz da cerimónia (, pelo menos para mim, para a minha sensibilidade).


Por sua vez, o Malan Mané, o prisioneiro, de etnia mandinga, foi também gravemente ferido, tendo sido evacuado para Bissau.  Soube, em Maio de 2006, através do Torcato Mendonça, que o Malan Mané  conseguira sobreviver aos ferimentos... Não sei, porém, se hoje é ainda é vivo e, se sim, onde vive... Gostava muito de saber dele.


Eis o que na altura, ao entrar para o nosso blogue,  me escreveu o Torcato:


(...) "Fui alferes miliciano na CART 2339 [Fá Mandinga e Mansambo, 1968/69]. Li certos eventos que os vivi: por exemplo, o Malan Mané estava vivo em Novembro de 1969 e recebia tratamento no Hospital Militar de Bissau. Abracei-o, causando espanto ao fuzo que o guardava. Só que eu estive na mata com o Malan Mané, soube que foi ferido... (Eu usava como arma, quando se justificava, o dilagrama)" (...)


Quanto ao ex-1º Cabo António Braga Rodrigues Mateus, julgo que todos lhe perdemos o rasto. Há tempos, fazendo uma pesquisa na Internet, encontrei um nome igual, numa página do sítio da Câmara Municipal de Matosinhos, que não consegui abrir... Será que o Mateus vive para esses lados ?
 
Fontes consultadas:


História da CCAÇ 12: Guiné 69/71. Bambadinca: Companhia de Caçadores nº 12. 1971. Cap. II. 11-13. Selecção e notas de L.G.


Blogue Luís Graça & Canaradas da Guiné, I Série > 8 Agosto 2005 > Guiné 63/74 - CXLVI: Setembro/69 (Parte I) - Op Pato Rufia ou o primeiro golpe de mão da CCAÇ 12


Diário de um Tuga (notas pessoais de L.G.)
_________________


Nota de L.G.:


(*) Último poste da série > 7 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P6948: A minha CCAÇ 12 (6): Agosto de 1969: As desventuras de Malan Mané e de Mamadu Indjai... (Luís Graça)


(**) Vd. Luís Graça > Blogpoesia >  Dezembro 8, 2005 > Blogantologia(s) II - (22): Esquecer a Guiné


(...) Descansa em paz,
Ieró Jaló,
Soldado atirador nº 812117869,
Da 3ª secção do 1º Grupo de Combate
Da CCAÇ 2590
(Mais tarde CCAÇ 12).
Descansa em paz, 
djubi,
Debaixo do poilão da tua tabanca,
No chão fula....
Belíssimo poilão frondoso
De uma triste tabanca fula,
Cercada de arame farpado,
Trincheiras e valas de abrigo.
Sete de Setembro
De mil novecentos
E sessenta e nove.
Região do Xime.
Operação Pato Rufia.
Morreste em linha.
Organizado.
No assalto a um aquartelamento do IN.
Estupidamente.
Morto por um dilagrama.
Por um dos nossos.
Um dilagrama nosso
Que explodiu na tua cara.
Por defeito de fabrico,
Disse o relator do relatório.

Nunca soube a tua idade.
Mas eu levei-te a enterrar
Na tua aldeia.
Com honras militares,
Tiros de salva,
Discursos patrioteiros,
Estúpida verborreia,
E a bandeira verde-rubra
Dos 
tugas
Por cima do teu caixão.
Chorei por ti,
Que morreste a meu lado,
E que levavas um prisioneiro,
O Malan Mané,
Que também ficou gravemente ferido.

Tu, que não eras meu irmão.
Nem grande nem pequeno.
Nem tinhas a mesma cor de pele.
Nem a mesma religião.
Nem a mesma língua.
Nem a mesma pátria.
Nem o mesmo continente.
Eras apenas um soldado-atirador
De 2ª classe.
Não eras 
turra, eras uma nharro.
Mas, para mim, eras apenas um homem.
O que primeiro que vi morrer a meu lado.
De morte matada.
Nunca mais chorei por mais ninguém.
Chorei por ti, Ieró Jaló.
De raiva. (...)