Foto (e legenda): © A. Marques Lopes (2007). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Seguimos, respeitando-a, a seleção que ele próprio fez na sua página do Facebook, na postagem de 14 de outubro de 2022, às 16: 20: aqui a narrativa era já feita na 1ª pessoa do singular, assumindo o autor que o "Aiveca" do livro (edição de 2015) era o seu "alter ego", ou seja, o alferes Lopes
O Lopes e os outros alferes (nesta data, ainda mantinha os nomes fictícios dos seus 3 camaradas; Castro, Aprígio e Zé Pedro) da companhia, a CART 1690 (que ele nunca identifica), foram colocados no subsetor de Geba, em 1967. E andam há já meses no mato, O diálogo que se segue é a uma conversa, que tende a azedar, entre eles e o capitão, Mendonça (na realidade, o cap inf Manuel Guimarães. que irá morrer, na estrada Geba-Banjara, em 21 de agosto de 1967, na sequência de deflagração de uma mina A/C, que também irá ferir gravcemente o A. Marques Lopes).
– Estou farto disto. Vou pedir ao Mendonça para me mandar para um destacamento – abri-me com o Zé Pedro.
– Estás parvo, pá.
– Parvo, porquê?
– Os gajos estão lá isolados, cercados de arame farpado. Têm de amochar sem poder sair. Vá lá que o Aprígio tem alguma sorte porque tem uma tabanca ao pé e pode ver algumas bajudas.
– Quero lá saber. O isolamento não me perturba nada. Estava mais sossegado, podia ler uns livrinhos e escrever. Não me importava nada. Aliás, é o que mais desejo agora.
- Ias estar sossegado? Não penses nisso. Depois destas movimentações todas em que estão a ser apertados não há-de tardar muito que os comecem a atacar.
– Isso também não me importa. Prefiro ser atacado estando dentro de um abrigo e com arame farpado entre mim e eles. É melhor do que levar com morteiradas na cabeça a céu aberto e sem saber, a maior parte das vezes, se os gajos estão ou não já em cima de mim.
– Não sei se é melhor: Poder sair quando se quiser, andar por aqui à volta, ir até ao batalhão e ao Agrupamento, e mesmo andar no meio do mato, dá um sentimento de liberdade que não se tem quando amarrado sempre num só local.
Nesse mês de Julho o Mendonça ainda me mandou para mais três operações.
A primeira foi lixada, só porque o meu grupo de combate é que teve de fazer toda a picagem do itinerário em direcção ao destacamento do Castro. Os milícias tinham sido avisados, na véspera, para fazerem a picagem duas horas antes da coluna móvel iniciar a marcha. Mas a tabanca deles fora atacada nessa noite, sendo quase totalmente destruída, e eles não picaram. Foram várias horas a passo de caracol sob grandes chuvadas, com as ATM e GMC atrás em para e arranca. O Mendonça ainda tentara via PRC10 dizer ao Castro para ele fazer uma picagem a partir do destacamento dele até se encontrarem. Mas as comunicações não funcionaram. Foi estafante.
– É uma merda, mas não temos condições – acabou por dizer-me com ar agastado, depois de chegarem. – Era para irmos pelo mesmo percurso, aquele em que rebentou a armadilha, mas desta vez você ia mesmo até à base deles. Foram os gajos, de certeza, que atacaram a tabanca. Mas levaria várias horas e teria de regressar à noite
De arma a tiracolo, soergui os braços, cruzei os dedos das mãos e disse interiormente "Ótimo, haja Deus"
– Ó Lopes, não confunda as coisas. O papel das companhias como a do Lindolfo e do Guilhermino é intervir, por isso lhes chamam de intervenção, isto é, realizar grandes operações em áreas onde as companhias que lá estão não podem fazer, para isso têm os apoios necessários. E essas companhias não o podem fazer porque têm que estar repartidas para a ocupação dessas áreas, como é o nosso caso. Temos uma área que não é pequena, são cerca de mil e seiscentos quilómetros quadrados.
– Ó meu capitão, ocupar – abanou cabeça ceticamente – quer-se dizer... Eu ocupo este lugarzito aqui, o que está dentro do arame farpado, a quarenta quilómetros da sede da companhia, o Aprígio ocupa outro lugarzito da mesma maneira e também a quarenta quilómetros. Vocês, quando vêm aqui ou vão ao Aprígio vêm sempre com muitas cautelas e interrogações, pois sabem que podem apanhar com minas e emboscadas. Quer dizer que daqui e do sítio do Aprígio até à sede não se ocupa nada. Que raio de ocupação é esta, meu capitão?
Eu não estava a conhecer o Castro todo prafrentex, todo decidido a cumprir sem dúvidas a sua missão de guerra. Esta não parecia dele. Apesar do isolamento e daquela floresta toda à volta parecia estar a ver melhor. Ou era capaz de ser isso mesmo que o obrigava a ter que ver mais longe, para além da cortina de ideias feitas que lhe ensombrava a cabeça. Mas o Mendonça pareceu não gostar.
– Não esteja com essas merdas porque você não percebe nada disto – e remexeu na pasta onde levava o mapa.
– Olha mais outro ignorante, afinal não sou só eu – pensei e ri-me.
– Até lhe vou ler isto para você saber o que é ocupação.
– Está a perceber? – continuou depois de ler. –É assim que fazemos a ocupação, é esta a nossa missão. E não só na zona da sede da companhia mas também aqui onde você está e onde está o Aprígio. Os locais onde estão servem-nos precisamente para apoio na execução dessa missão nas zonas onde estão. Foi, por exemplo, o que eu e o Lopes fizemos outro dia e devíamos fazer hoje.
O Castro ficara embatucado e não disse nada. Eu já tinha bebido três cervejas e estava naquele estado em que me dava vontade de falar. O que o capitão lera era a conversa estereotipada, o ram-ram que vinha em todas as ordens de operação que já lera. Não lhe ia dizer que eram tretas. Era o que achava mas não lhe ia dizer assim senão ele chamava-lhe também de ignorante e continuava com aquele tipo de conversa. Mas tinha que o entalar, tinha de lhe fazer ver que não era parvo.
– Pois é isso, meu capitão, acho que é isso. É a ideia que nos transmitiam lá na metrópole, o Salazar e o Governo, as tais acções de policiamento em que andávamos envolvidos. Apanhar os gajos que pensamos que são turras, dar-lhes umas tareias se for preciso para eles arrepiarem caminho, e até limpar o sebo aos mais renitentes. Também pegar fogo às casas deles, destruir as suas culturas, os tais meios de subsistência. Tudo isso para que os gajos amochem e não ajudem a subversão. Isso acho que podemos fazer. O problema é quando eles estão armados, e até acho que estão bem armados, já pude constatar isso.
– Se calhar é por isso que nunca ouvi falar em acções de policiamento lá em Mafra, só diziam que nos preparavam para a guerra. E, olhe meu capitão, até acho que foi bom porque eu pelo menos já andei metido nela e, naquela vez que sabe, quase me ia lixando. E outra coisa, meu capitão: andar por aí à cata deles, para baixo e para cima, sem conseguir nada porque eles só se mostram quando querem e vêem que nos podem lixar, o que é que adianta? Ou mesmo quando, outro dia, fomos lá acima queimar umas tabancas e destruir instalações deles. Nunca mais lá vamos voltar, se calhar, os gajos vão reconstruir tudo e continuar. Não me parece que é assim que estejamos a ocupar território, nem a restabelecer a autoridade e a ordem, como diz essa mensagem do Agrupamento.
Os olhos do Mendonça chispavam brasa e estava vermelho. Agarrava a garrafa com força parecendo querer parti-la.
Sabia bem de que eram acusados os comunistas, mas estava apenas a dizer o que me parecia que era. O Capitão levantou-se de modo abrupto, quase fazendo cair a garrafa ainda meia de cerveja, e apontou-me o indicador da mão direita.
– Daqui para a frente ponha-se a pau comigo porque eu vou estar atento a esse tipo de conversas.
Virou-me as costas e foi para onde estava o meu grupo de combate. O Castro ficara mudo, parecia aturdido. Ouvi o Mendonça dar ordem para subirem para as viaturas e levantei-me.
– Aguenta-te – disse em tom de despedida ao Castro– passa bem que eu tenho de ir andando. (...)
Último poste da série > 4 de julho de 2024 > Guiné 61/74 - P25773: O melhor de... A. Marques Lopes (1944-2024) (6): Et maintenant que vais-je faire / De tout ce temps que sera ma vie... ?!