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terça-feira, 5 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26117: (In)citações (268): Antigos combatentes e capelães... "Confessores da Pátria 'versus' Confessores da Fé" (Manuel Lopes, ex-cap inf, CCAÇ 3396, "Lenços Negros", Moçambique, 1971/73)



Foto nº 3 > Anadia > Moita > 42º convívio anual do pessoal da CCAÇ 3396, "Lenços Negros" (Moçambique, 1971/73) > 25 de maio de 20214 > igreja Matriz de Moita > Foto de grupo, no final da celebração litúrgica.


Fotos (e legendas); © Manuel Lopes (2024). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Por mail do passado domingo dia 27 de outubro, o cor art ref António J. Pereira da Costa, nosso tabanqueiro de longa data (12/12/2007) e  om 203 referências no blogue, chamou-nos a atenção para um curioso texto divulgado por um seu camarada do curso da Academia Militar, do ano de 1964, Manuel Lopes, e que tem por título "60º Aniversário da entrada na Academia Militar: Confessores da Pátria 'versus' Confessores da Fé".

O Tó Zé (TZ, como é conhecido por alguns de nós) ou PK (pelos seus camaradas da AM) sugeriu que o texto poderia eventualmente ter interesse para o blogue.

E até mais: "Lembrei-me de propor ao blogue a atribuição  [do título] de 'Confessores da Pátria' aos padres das Companhias que amparavam a malta nas suas diferentes dificuldades espirituais."

E uma vez obtida a autorização do autor (Manuel Maria Martins Lopes, cor inf ref, ex-cmdt da CCAÇ 3369, "Lenços Negros", Moçambique, 1971/73), aqui vão os dois textos em questão. 


 (i) 60º Aniversário da entrada na Academia Militar: Confessores da Pátria 'versus' Confessores da Fé

por Manuel Lopes (cor inf ref)

Caros camaradas:

No final da celebração da missa, adentro do programa das comemorações do 60º Aniversário da nossa entrada na Academia Militar, tive oportunidade de prestar uma singela homenagem à Igreja que esteve sempre presente durante a nossa atividade militar, lembrando também o Padre Gamboa, o nosso capelão que nos recebeu à chegada.

Evoquei depois o testemunho recente do Padre Vitor Espadilha, que na celebração da missa (dia 25 de maio, na Igreja Matriz de Moita,  Anadia) do 42º Convívio anual de ex-combatentes, revelou que a Igreja tinha uma distinção especial para aqueles que se sacrificaram e deram a vida pela causa da Fé. Chamam-se os 'Confessores da Fé'.

Por isso, para nós que nos sacrificámos e jurámos dar a vida pela Pátria, o Padre Vitor Espadilha distinguiu-nos com a designação de 'Confessores da Pátria'.

Assim, registar as nossas vivências militares faz parte da nossa condição de 'Confessores da Pátria'.

Abraço amigo.

Lisboa, 26 de outubro de 2024

Manuel Lopes

 

(ii) 'Lenços Negros', Confessores da Pátria 'versus' Confessores da Fé

por Manuel Lopes


À semelhança de anteriores convívios anuais organizados pelos ex-combatentes da CCaç 3396, 'Lenços Negros', mobilizados para Moçambique de 1971 a 1973, teve lugar na Moita, Anadia,  no passado dia 25 de maio, como tem sido habitual em todos os convívios, a
celebração de uma Missa por intenção daqueles que já partiram.

A passagem pela Igreja Matriz da Junta de Freguesia da Moita ficaria assim indelevelmente marcada pela saudação especial protagonizada pelo Senhor Padre Vitor Espadilha, na presença de ex-combatentes, familiares e amigos, que aqui destacamos:

“Ao ver os vossos cabelos brancos (alguns já os perderam!...), eu imagino vocês rapazinhos novos, há uns anos atrás, convivendo e sonhando e depois com a vida mais entroncada pelo problema da guerra!...

"Tivestes que ir para lá, sim, não, sim?!...

"Aquilo que foi o Portugal colonial e a separação da Mãe, do Pai, da esposa que ficava!...

"As notícias que chegavam e não chegavam!...

"Saudades da Terra!...

"As diferentes complicações que provocamos e dobramos nos sonhos de qualquer rapaz jovem!...

"Mas será que vocês estavam sós?!

"Agora está alguém ao vosso lado, a vossa esposa, os vossos filhos, os vossos netos!...

"Outros não chegaram, lembramo-los hoje também.

"Celebramos a gratidão e o dom da Vida!...

"Nósm na Igreja, temos uma distinção, com os mártires como São Sebastião. São os que morreram por causa da Fé, são representados com uma palma na mão, são os Confessores que foram para uma situação de luta, arriscando a Vida, prontos a morrer, fortes a dar
ajuda. Esses que estavam dispostos a dar a Vida, chamam-se na Igreja 'Confessores da Fé'.

"Então vocês são 'Confessores da Pátria', por quem lutaram, a quem estavam dispostos a dar a Vida.”


Continuando a celebração da Missa o Senhor Padre Vitor Espadilha convidou os ex-combatentes para se juntarem à sua volta no altar:

“Quando a gente vai num barco ou num avião, o destino do barco ou do avião, é o destino daqueles que lá vão, de todos que o ocupam!

"Ou chega ao porto ou não chega!...

"E vocês que estavam na Companhia, o destino era igual, não é?! Era uma Unidade que vocês criaram, que vos liga profundamente para o resto das vossas Vidas!!...

"Então quero que vocês dêem as mãos e rezem comigo!”




Foto nº 1 > Anadia > Moita > 42º convívioo anual do pessoal da CCAÇ 3396, "Lenços Negros" (Moçambique, 1971/73) > 25 de maio de 20214 > greja Matriz de Moita > Comunhão e partilha em torno do altar


E o Senhor Padre Vitor Espadilha continuou a surpreender-nos com o pedido seguinte:

“Queria que ficasse na Igreja um símbolo da vossa presença!...

"Eu vou pedir a um de vocês que me dê um Lenço Negro!...

"Quem me dá um Lenço Negro?!

"Por favor, não coloque aqui no altar, vai entregar a Ela, a Nossa Senhora de Fátima, para que continue sempre nas mãos Dela!"...


Carlos Costa, organizador do Convívio, subiu então para uma cadeira a fim de colocar um Lenço Negro nas mãos da imagem de Nossa Senhora de Fátima que tinha sido colocada no altar no início da celebração da Missa.

"A partir de agora ficará sempre na Paróquia!!", anunciou o Senhor Padre Vitor Espadilha.



Foto nº 2 > Anadia > Moita > 42º convívio anual do pessoal da CCAÇ 3396, "Lenços Negros" (Moçambique, 1971/73) > 25 de maio de 2024 > Igreja Matriz de Moita > Um Lenço Negro nas mãos de Nossa Senhora de Fátima



Seguiu-se o Cântico entoado e aplaudido por todos os presentes:

Miraculosa, rainha dos Céus,
Sob o teu manto tecido de Luz,
Faz com que a guerra se acabe na Terra,
Paz entre os homens, a Paz de Jesus!
Pelas crianças, flor em botão,
Pelos velhinhos, sem Lar, sem Pão,
Pelos Soldados que à guerra vão,
Senhora,  aceita minha oração!


No final o Padre Vitor Espadilha, qual Lenço Negro, juntou-se à fotografia à saída da Missa na Igreja Matriz, tendo à sua frente o Mateus, neto do Aníbal Duarte Santos, organizador local do Convívio   (Fot0 nº 3, vd. acima).

Alguns dias mais tarde tivemos oportunidade de enviar este email de agradecimento ao Senhor

"Padre Vitor Espadilha:

"Bom dia Senhor Padre Vítor, Lenço Negro:

"Só agora tive conhecimento do seu email, por isso aqui estou a dar notícias.

"Antes de mais os meus agradecimentos, em meu nome, de todos os ex-combatentes, familiares e amigos dos Lenços Negros. A sua benção no altar e a oferta de um Lenço Negro a Nossa Senhora de Fátima serão sempre referências indeléveis do nosso 45º Convívio anual.

"A CCaç 3396 que já tinha sido consagrada a Nossa Senhora em 1971, volta de novo ao seu Convívio, passados 53 anos, reconfortados com a sua mensagem de Paz.

"Obrigado. Vamos continuar em contacto. Vou convidá-lo para a nossa página de 'Moçambique, Lenços Negros' para nos continuar a acompanhar com a sua profunda mensagem de estima, compreensão e solidariedade.

"Obrigado. Abraço. Manuel Lopes"



O Senhor Padre Vitor Espadilha não tardou a responder assim:

"Boa noite. Fico muito honrado...vocês são nossos HERÓIS... contem comigo... sempre..."

Ao fim de 45 Convívios anuais da CCaç 3396, "Lenços Negros", e em tempo de comemoração dos 50 anos do 25 de Abril, nunca nos tinham apelidado de HERÓIS, quais Confessores da Pátria.

A Igreja, como nenhuma outra Instituição através do Padre Vitor Espadilha, soube interpretar e sublimar o tempo de guerra e os sacrifícios que lhe estão intimamente associados.

Habituado a identificar os ex-combatentes como Heróis da Liberdade, foi reconfortante ouvir da parte do Padre Vitor Espadilha a sua identificação como HERÓIS, remetendo-nos para a importância da Igreja e dos valores religiosos a ela ligados que nos acompanharam nos
diferentes teatros de operações.

Bem haja,  Senhor Padre Vitor Espadilha.

Foi reconfortante, salutar e estimulante a nossa passagem pela Igreja Matriz da Moita, marco indelével das nossas vivências de guerra e de Paz.

Lisboa, 16 de junho de 2024.

Manuel Lopes

PS - No programa do Convívio estava a deposição de uma coroa de flores junto ao Monumento dos ex-combatentes, a visita ao Museu do Vinho e a realização de um almoço no Restaurante D. Sancho. Mas o essencial já tinha acontecido na Igreja Matriz da Moita.

(Revisão / fixação de texto, título do poste: LG)

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Nota do editor:

Último poste da série >31 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26100: (In)citações (267): Memorando sobre a Escola São Francisco de Assis, em Timor, entregue ao primeiro-ministro Xanana Gusmão através do embaixador Dionísio Babo Soares, representante do país nas Nações Unidas (João Crisóstomo)

quarta-feira, 24 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25773: O melhor de... A. Marques Lopes (1944-2024) (6): Et maintenant que vais-je faire / De tout ce temps que sera ma vie... ?!

A. Marques Lopes, s/l
(EPI, Mafra ?)
 s/d (c. 1966 ?)
1. Os seminários da Igreja Católica forneceram às forças armadas portuguesas, e sobretudo ao exército (mas também à FAP e aos paraquedistas), importantes contingentes de graduados, milicianos, durante a guerra colonial. Furriéis, alferes, capitães. Mas também cabos e soldados, que não quiseram dar as habilitações literárias (ou que não chegaram a completar o 5º ano). (*)

Em quantidade e qualidade. Em geral, eram jovens com boa formação humana, moral e intelectual, com hábitos de disciplina, sacrifício, resiliência e abnegação, mas também de treino físico e prática desportiva... E em princípio estariam mais protegidos contra as "ideias subversivas" (ou "dissolventes") que grassavam nos liceus e universidades, sobretudo a partir da crise estudantil de 1962…
 
Tinham, além disso, competências relacionais (liderança, trabalho em equipa, 
comunicação, gestão de conflitos,  do tempo e do stress) que eram relevantes para a condução de grupos de combate, em difíceis teatros de operação como o da Guiné.  Tinham também uma boa cultura geral (com bons conhecimentos de latim e  do grego, e da literatura da antiguidade clássica), a par do gosto pela música.   Alguns animaram os "jornais de caserna" no mato e escreveram a histórias das unidades…

Muitos eram oriundos do meio rural, ou de pequenas cidades e vilas do interior, mais conservador do que o meio citadino. Vinham de famílias pobres ou remediadas, um ou outro excecionalmente da elite ou da classe média alta.  Em geral, eram cooptados por toda uma vasta rede informal de professoras do ensino primário, catequistas e párocos, angariadores de potenciais vocações sacerdotais de entre os melhores alunos do ensino primário obrigatório.

Os seminários menores e maiores, tanto diocesanos como das ordens religiosas (salesianos, franciscanos, dominicanos, jesuitas...) , ofereciam a estes jovens oportunidades de educação e mobilidade social ascendente que, à partida, lhes eram vedadas pela sua origem sociofamiliar e a tacanhez da terra onde viviam. O acesso, nomeadamente ao ensino liceal, era limitado a certas camadas da população urbana. A barreira começava na preparação e nos exames de admissão ao liceu. As provas, escritas e orais, eram feitas em geral nas capitais de distrito, bem longe das pacatas vilas e aldeias do interior do país…

Está por estudar o papel dos ex-seminaristas na nossa longa guerra colonial (1961/74)… Muitos deles, depois da saída do seminário (em geral, na sequência de uma dupla crise, vocacional e de fé), eram rapidamente chamados para a tropa… 

Recorde-se que, por força da Concordata de 1940 (assinada entre Portugal e o Vaticano), os sacerdotes católicos estavam dispensados do serviço militar obrigatório, podendo depois servir a Pátria como capelães castrenses, dependendo da vontade do seu bispo e das necessidades das Forças Armadas. Os seminaristas gozavam do mesmo privilégio no período da sua formação.

Sobretudo os que deixavam de frequentar o seminário maior (curso de teologia, que se iniciava no 7º ano, de um total de 12 anos letivos) eram rapidamente chamados às fileiras do exército. Recorde-se que as suas habilitações literárias não eram automaticamente reconhecidas pelo sistema de ensino oficial. Davam equiparação apenas para efeitos de emprego público e para a tropa. 

Os ex-seminaristas, com o 7º ano ou mais, não podiam inscrever-se automaticamente (e prosseguir os seus estudos) na escola pública e muito menos na universidade. Ou seja, o 7º ano do seminário (equivalente a 11 anos de escolaridade) não tinha os mesmos efeitos legais do 7º ano do liceu, para efeitos académicos.

Não tinham, por isso, direito ao famoso "adiamento", de que beneficiavam  os estudantes universitários que não reprovassem (e que se "portassem bem", não se metendo em "encrencas")… Não admira, por isso, que em quase todas as unidades ou subunidades houvesse um ou mais alferes miliciano, furriel miliciano, ou 1º cabo, ex-seminarista.  

Faltam-nos histórias de vida, relatos autobiográficos, diários, depoimentos, entrevistas, trabalhos de investigação, estatísticas… Temos mais de meia centena de referências com o descritor "seminário", no nosso blogue. 

Há já alguns romances ou livros de cariz autobiográfico sobre este tema (o seminário e a guerra colonial): recorde-se aqui, entre outros, a talhe de foice (todos eles com referências no nosso blogue): 

(i) "Construção e Desconstrução de um padre", de Horácio Neto Fernandes  (Porto, Papiro Editora, 2009) 

(ii) "O Seminarista e o Guerrilheiro”, de Cândido Matos Gago (Grândola, edição de autor, 2015); 

(iii) "Cabra-cega: do seminário para a guerra colonial", de João Gaspar Carrasqueira (pseudónimo do nosso camarada A. Marques Lopes) (Lisboa, Chiado Editora, 2015);

(iv) "O Silvo da Granada, Memórias da Guiné", de José Maria Martins da Costa (Lisboa, Chiado Books, 2021);


2. Retomamos o livro do A. Marques Lopes, "Cabra Cega", que tem no subtítulo, de maneira explícita, a figura do seminário: "do seminário à guerra colonial" (**). 

Este excerto do seu livro de memórias, é retirado das pp. 219/223 , seguindo a seleção que ele próprio fez na sua página do Facebook, na postagem de 27 de setembro de 2022, às 16:32 (aqui a narrativa era já feita na 1ª pessoa do singular, assumindo o autor que o "Aiveca" do livro era o seu "alter ego"...). Mantemos a versão do livro de 2015 ("Cabra Cega", Lisboa, Chiado Books).

Aiveca e os outros alferes da companhia, acabados de serem promovidos (Zé Pedro, Aprígio, Castro) falam da "missa de despedida", a que o primeiro se furtou de ir, argumentando que estava farto de missas, e que era bem melhor que o capelão pegasse no tema do Gilbert Bécaud, que se cantava na instrução em Lamego, no curso de operações especiais: "Et maintenant que vais-je faire / De tout ce temps que sera ma vie..." (E, agora, o que é que eu vou fazer / De todo este tempo que vai ser a minha vida...)


Et maintenant que vais-je faire, de tout ce temps que sera ma vie... ?!

por A. Marques Lopes (1944-2024)


Fomos promovidos a alferes antes do embarque. Ia haver também aquilo a que chamaram cerimónia de despedida, a que se seguiria uma missa na parada.

Aiveca não tinha vontade nenhuma de assistir à missa quando soube que ia haver. Com muito menos ficou quando o capitão, que os tinha reunido para falar do que havia, acrescentou que era o major-capelão Euclides que ia celebrar a missa.

– Que filho da puta  sussurrou entre dentes.

Os outros alferes olharam para ele.

 Disse alguma coisa, Aiveca ?  
– perguntou o capitão.

Ainda bem que não o ouvira.

 Meu capitão, estava a dizer que não vou à missa – r
espondeu.

Agora eram todos espantados, inclusive o capitão. Viu que tinha de dar uma explicação, mas não ia dar a verdadeira.

 É que eu não sou católico  
– foi a razão mais rápida que encontrou.

Admiração geral. O capitão ficou hesitante, parecia embuchado, sem palavras.

 Tá bem, se é assim…   
– lá acabou por dizer, mas pareceu contrariado por não ter argumentos.

Ainda se lembrava da conversa parva do padre Euclides quando o encontrara no Cais do Sodré, estava ele a trabalhar no porto de Lisboa. Quando soube disso abriu os olhos horrorizado: "Cuidado com os comunistas!"... 

Era uma besta, não gostava nada dele. Já sabia que ele e o padre Gama tinham ido para capelães-militares, o Gonçalves dissera-lhe quando estava no RI1, mas estava longe de ver aquele gajo ali. Se fosse o Gama,  era diferente. Ele fora o seu professor da instrução primária no colégio dos padres, dera-lhe uma ou outra palmatoada, é verdade, mas fora sempre um bom amigo dos miúdos. Se fosse ele até iria à missa e gostaria de falar com ele no final.

Meteu-se no bar de oficiais durante a missa mas não se livrou de a ouvir e ao sermão do Euclides, porque os altifalantes gritavam para todo o lado. Nada de novidade, já sabia que daquele não sairia outra coisa. Fez uma bela dissertação sobre o amor à pátria, a defesa do património nacional, etc. Esqueceu-se é de falar contra os comunistas.

Passado algum tempo depois de tudo terminar, apareceram os outros alferes. O Zé Pedro olhou para o meu copo e disse ao barista para lhe trazer também um whisky.

 Então, gostaram da missa?
 perguntocau o Aiveca.

O Castro e o Zé Pedro disseram que sim, mas sem grande ênfase. "Estão com receio de ferir as minhas crenças", pensou com um sorriso irónico. Ficaram silenciosos depois.

 
– Olha lá – decidiu-se o Aprígio, que não dissera que sim nem que não  , afinal qual é a tua religião?”

 
– Estava a ver que não me perguntavam – riu-se.  – Eu vou dizer. Mas não vão bufar nada ao capitão, tá bem?

Todos abanaram a cabeça e disseram seriamente que nem pensar, pá.

 Ó meus amigos, eu tenho de ser católico, apostólico, romano. Batizaram-me quando era bebé, ainda não sabia dizer nem que sim nem que não, só me deu para chorar, é o que dizem os meus pais. Depois, quando era puto e andava num colégio de padres, fiz a comunhão solene e fui crismado. Se dissesse que não queria corriam comigo, mas nem pensar pois estava lá de borla e os meus pais não me podiam pôr noutra escola. Mas, olhem, na altura até achei piada àquilo, foi giro. É isto. Como vêem sou oficialmente católico desde a nascença, como a maioria em Portugal.

Ficaram perplexos. Aiveca percebeu-se que esperavam uma novidade, algo que desse para fazerem mais perguntas. O Aprígio, sobretudo, pareceu desiludido. Só o Zé Pedro reagiu.

 Ó Aiveca, mas, então, porque não quiseste ir à missa?

– Não quis porque já estou farto de missas, é isso.

Não quis dizer que não gostava do major-capelão para não ter que explicar porquê. Nem porque estava farto. Fizera contas e chegara à conclusão que assistira a mais de 4.200 missas, contando as do seminário e as do colégio dos padres. Nunca lhes dissera que tinha estado no seminário e não era agora que ia dizer.

 
– É a tua maneira de ver  – continuou o Zé Pedro.   – Mas eu acho que esta missa foi importante para malta que vai para a guerra. Deu-nos mais calma e confiança na ajuda de Deus.

 
– Talvez, no geral, uma missa tenha esse objetivo, tá bem, pode ser que sim. Mas o desta não foi este. Foi antes um apelo à guerra, bem patente no sermão do major-capelão, nada diferente do que disse o comandante do Regimento na cerimónia da despedida nem do que dizem os membros do Governo.

– Isso é verdade, é todos o mesmo  – disse o Aprígio.  – E olhem, se eu não fosse para a guerra é que era uma grande ajuda de Deus. Podem ter a certeza que assim é que ficaria bestialmente calmo.

– Ó Aprígio, estou a ver que tu e o Aiveca não estão a entender.

–  Diga lá, doutor Castro.

O Aiveca sorriu sem o hostilizar, embora imaginasse que ia sair dali palermice.

 Não gozes. Os discursos de Salazar visam mentalizar o povo para a necessidade de fazer a guerra e o que disse o comandante do Regimento e o sermão do padre tiveram como objectivo motivar os soldados para se empenharem nela. Acho importante isso.

 O coronel e o Salazar percebo, é o papel deles. O padre é que não tinha nada que se meter nisso, fazer pandã com eles, não é esse o papel dele. Era melhor que glosasse aquela do Gilbert Bécaud que tu conheces lá de Lamego.

Quis ser mau e cantou: “Et maintenant que vais-je faire, De tout ce temps que sera ma vie, De tous ces gens qui m’indiffèrent.”

O Aprígio e o Zé Pedro riam-se, o Castro estava sério.

– Disto é que ele devia falar
 disse Aiveca acabando de cantar. – Mas estou a ver que não percebem nada de francês, nem tu, Castro. Ouvias sem saber o que o Bécaud dizia. Só fazia que saltasses da cama.


António Marques Lopes

Página do Facebook do A. Marques Lopes | 27 de setembro de 2022, às 16:32 e livro "Cabra Cega" (2015, pp. 219/223)


(Seleção, revisão / fixação de texto, título, negritos, itálicos, parênteses retos: LG)

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Capa do livro "Cabra-cega: do seminário para a guerra colonial", de João Gaspar Carrasqueira (pseudónimo do nosso camarada A. Marques Lopes) 
(Lisboa, Chiado Editora, 2015, 582 pp. ISBN: 978-989-51-3510-3, 
Colecção: Bíos, Género: Biografia).



Capa do livro "Cabra-cega", de A. Marques Lopes, lançado no Brasil (Paperblur, São Paulo, 2019). Não está à venda nas livrarias, é impresso sob encomenda, é um novo conceito de edição.
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 26 de agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18954: (Ex)citações (343): porquê tantos ex-seminaristas nas fileiras do exército, durante a guerra colonial? (António J. Pereira da Costa / Virgílio Teixeira / José Nascimento / A. Marques Lopes / Juvenal Amado)

(**) Postes anteriores da série:

domingo, 26 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25562: Viagem a Timor: maio/julho de 2016 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte IV: um encontro, privado, com Ramos Horta, colega de escola do Gaspar Sobral


 Retrato oficial do atual presidente da República Democrática de Timor Leste, José Ramos-Horta (n. 1949): Fonte: Wikimedia Commons (com a devida vénia...)

Tem uma págna oficial na Net, em inglês: https://ramoshorta.com/ (Presidente de Timor Leste, Prémio Nobel da Paz em 1996, Construtor da Democracia). Foi também diplomata: conhece a Guiné-Bissau (ver aqui a entrevista que deu à Rádio ONU, quando deixou o cargo de enviado especial do secretário-geral da ONU na Guiné-Bissau em 29 de junho de 2014: parte I e parte II)



1. Continuação da publicação das crónicas do Rui Chamusco, relativamente à sua primeira viagem e estadia de dois meses em Timor-Leste (de 5 de maio a 7 de julho de 2016) (*).


O Rui Chamusco, nosso tabanqueiro nº 886, é professor de música, do ensino secundário, reformado, natural da Malcata,  Sabugal, a viver na Lourinhã. Tem-se dedicado de alma e coração a um projeto de solidariedade no longínquo território de Timor-Leste (a 3 dias de viagem, por avião, a cerca de 15 km de distância em li ha reta). É cofundador e líder da ASTIL - Associação dos Amigos Solidários com Timor-Leste.

A ASTIL irá construir e inaugurar, em março de 2018, a Escola de São Francisco de Assis (ESFA), nas montanhas de Liquiçá (pré-escolar e 1º ciclo).

A primeira viagem do Rui a Timor Leste, em maio de 2016, foi exploratória mas é nessa altura que ficará decidido construir-se uma escola nas montanhas de Liquiçá, em Manati / Boebau. Nesta viagem (e estadia de dois meses) , fez-se acompanhar do luso-timorense Gaspar Sobral, outro histórico da ASTIL, que há 38 anos não visitava a sua terra natal. Em Dili eles vão ficar na casa do Eustáquio, irmão (mais novo) do Gaspar Sobral. Acompanhamos também o dia a dia desta família, que vive no bairro Ailoc Laran, e que durante a ocupação da indonésia viu a sua casa incendiada, tendo-se refugiado nas montanhas como tantos outros timorenses.

Dessas crónicas de 2016, sob a forma de diário, decidimos publicar uma boa parte dos apontamentos, dado o interesse documental que nos parece ter para os nossos leitores que, tal como nós, ainda sabem pouco da história, da geografia, da cultura  e dos usos e costumes  dos nossos amigos e irmãos timorenses. Para além da grande generosidade humana e do talento literário do autor, são crónicas com "cor, sabor e humor", que acrescentam algo mais sobre a sociedade timorense de ontem e de hoje, incluindo pequenas histórias de vida.


Viagem a Timor: maio/julho de 2016 - Parte IV:   um encontro, privado,  com Ramos-Orta  

por Rui Chamusco (*)



Rui Camusco e Gaspar Sobral (2017).
A família Sobral tem um antepassado
comum que foi lurai, régulo,
no tempo dos portugueses.
As insígnias do poder (incluindo a espada)
estão na posse do Gaspar,
que vive em Coimbra.
Foto: LG (2017).

(Continuação)



1 de junho de 2016, quarta feira– Dia Mundial da Criança

Quase não me dava conta da efeméride, caso não fosse a Adobe (sobrinha do Gaspar, filha do Estáquio e da Aurora) a lembrar-me quando chegou da escola.

Com tantas crianças à minha volta, imediatamente dou comigo a pensar nas crianças de todo o mundo e particularmente destas crianças que tanto necessitam do nosso apoio para poderem crescer em estatura, sabedoria e graça.

Penso também nas crianças de todo o mundo, particularmente nos países super desenvolvidos, que apesar de terem tudo o que 
precisam, vivem infelizes e sempre a exigirem 
coisas demais. Nada as satisfaz, e por isso 
são birrentas, agressivas, mandonas, difíceis 
de contentar e de educar. (...)

2 de junho de 2016, quinta feira – Contagem decrescente

Daqui a um mês será o regresso a Portugal. Os dias vão passando e a nossa missão vai sendo cumprida. Da minha parte está quase tudo resolvido. Por isso posso partir em paz. Da parte do Gaspar muito falta ainda fazer: entrevistas, contatos, mais isto, mais aquilo. (...)

Quanto a mim, gostava de ir visitar o meu primo Quim, que está na Austrália, mas as complicações de viagens estão a desmotivar-me. Tenho de admitir que os preços dos voos são um exagero, propriedade de gente rica. Neste momento em que precisamos do dinheiro como de pão para a boca, devido aos projetos em curso, não me sinto à vontade para gastar tantos dólares em viagens. Será mais prático e económico viajar diretamente de Lisboa para Melbourne que de Dili para Melbourne. A não ser que mude alguma coisa bem me parece que a visita ao Quim ficará para outra vez.

Entretanto, vamos andando na implantação da escola e no programa de apadrinhamento que são neste momento ações mais importantes. Desculpa, Quim!...

Dia 3 de junho de 2016, sexta feira - Preparando a viagem de regresso

Até parece que estou com pressa. Estes sentimentos contraditórios de querer estar aonde não estamos corroem o corpo e a mente. Será a saudade, sentimento tão português?... Mas não. Como cantava António Variações, “ eu só quero estar… aonde eu estou.” Ou então como diz o povo: “Quem está mal que se mude”.

Então porquê todo este frenesim com a viagem de regresso? Ora o nosso amigo Gaspar decidiu alterar os seus planos. Tem a viagem de regresso marcada para fins de setembro e agora quer antecipá-la para princípios de julho, aquando da minha marcação. E vai daí “telefona à tua sobrinha para proceder à alteração”. Azar! Não há disponibilidade para o mesmo voo nem para o mesmo dia. De modo que os amigos terão que viajar separados, a não ser que algo aconteça em contrário.

5 de junho de 2016, domingo - Esta salutar promiscuidade

Quem pensar que já viu tudo no caminho do progresso e que voltar às origens é um atraso está completamente enganado. Aqui, em Ailok Laran, tudo é diferente. A natureza é maestra e tudo dirige em harmonia perfeita, com acordes dissonantes às vezes, num entendimento permanente entre pessoas, animais, aves, plantas, etc…

Todos são livres de circularem por onde lhes apetecer. A privacidade não é coisa que se preze. Portanto não é de estranhar que galinhas, pardais, lagartixas (teque-teque) ou outros seres em liberdade te visitem em qualquer parte onde estiveres, e livremente te saúdem (outros dirão, incomodem) sem qualquer protocolo. O acesso aos espaços é comum, as crianças em grande número, como pardais à solta, são presença constante, o encontro com familiares e vizinhos é natural. Quem chega é da casa, e é convidado natural para participar na ação presente: conversar, cantar, comer…e outras.

Para o conceito de um europeu evoluído é difícil entender e conviver com a falta de comodidades e as privações deste povo. Mas há valores humanos que esta gente ainda tem que superam todas as carências. Tanto me dá que digam que é uma sociedade que reporta aos anos cinquenta como que rejeitem a lição que este povo nos presenteia. A verdade é que os seus valores são intemporais, ficam bem em qualquer sociedade humana a caminho do desenvolvimento…

Crenças e rituais

Da repente, enquanto estávamos a jantar, mais ou menos pelas 20h30, começou a ouvir-se um toque contínuo de metal que mais parecia uma jante de um carro ou um prato imitando um gongo. Claro que o meu ouvido absoluto captou logo essas ondas sonoras e, perante a pergunta o que é isto, veio de imediato a resposta do Eustáquio: 

"Esta noite com a lua em quarto crescente está a decorrer um eclipse parcial. Quando algo de estranho acontece ()tremor de terra, eclipse ou outros fenómenos naturais) é de tradição tocar, fazer barulho com estes objetos sonoros para avisar Deus de que ainda há homens, gente, cá em baixo, em Timor."

Quem puder entender que entenda!...

O Gaspar com a corda toda

Já não é a primeira vez que me refiro ao Gaspar como pessoa eloquente que usa e abusa da palavra sempre que a oportunidade lhe surja. Com ou não sentido, ele diz que a bandeira de Timor entre os símbolos que ostenta (martelo, arma,….) tem também uma caneta.

Portanto sente-se legitimado para utilizar a palavra escrita e oral como meio de combate e luta pelo seu povo. Até aqui tudo bem. O problema é que quando ele liga o motor, nunca mais se cala. Fala, fala, fala que se farta, com registo de voz grave, incomodativo para quem não quer ouvir mais ou pretende descansar. As suas pilhas “duracel” são de uma validade interminável. (...)

Esta é uma descrição de um amigo e companheiro que, mais que uma ofensa, é um ato de carinho e de estima. Longe de mim denegrir ou difamar seja quem for, muito menos o Gaspar que é uma pessoa muito culta e com um gabarito moral intocável. Umas pancadinhas em tempo certo só fazem bem.

8 de junho de 2016, quarta feira - Emoções fortes


A tarde de hoje foi carregada de fortes emoções. O Museu da Resistência em Dili foi a primeira visita. Inaugurado em 2012, é uma visita obrigatória para quem queira inteirar-se e compreender a história recente deste povo.

Desde a ocupação indonésia em 1975, muito sofreu esta gente. O suporte multimédia do tempo da guerrilha mostra-nos em pormenor as lutas, os ataque, os mortos, os feridos, os suores e os cansaços de um punhado de heróis que, a troco de uma nação independente, arriscaram ou deram as suas vidas abnegadamente. Dizem que em todo este processo de independência morreram mais de 200 mil pessoas.

Neste ambiente carregado de emoções, um episódio para quebrar a “rigidez” de um museu: no átrio, um bando de crianças rodeavam um segurança que, num gesto altruísta, ajudava os pequenos a varejar com um cana os tamarinhos (frutos) da grande árvore que ali mora. Coisas de Timor: o grande e o pequeno, a criança e o adulto, o forte e o fraco, o simples e o complexo… uma amálgama de atitudes e de sentimentos que coexistem em perpétuo devir ou movimento. E assim se vai edificando a nação.

Visita à igreja de Motael

Já por diversas vezes me perguntaram se já tinha visitado a igreja de Motael. Para além de ser um lugar lindíssimo no seguimento da baía de Dili, só hoje me dei conta do valor simbólico que este templo representa no processo da resistência e da independência.

Foi aqui que o jovem Sebastião Gomes foi fuzilado pela tropa indonésia, quando, fugindo da perseguição, tentava esconder-se junto ao altar lateral direito. Confesso que senti uma forte emoção, quase chorei, ao pisar o mesmo chão. O Sebastião foi sepultado no cemitério de Santa Cruz e, uma semana depois, foi organizada uma marcha (manifestação) com deposição de flores na campa do jovem abatido.

O pior estava para acontecer. A tropa indonésia seguiu-lhes os movimentos até que, num ato de brutalidade, disparou inclemente sobre aquela multidão presente no cemitério. Mais de 200 mortos, mais de 200 feridos, mais de 200 desaparecidos, resultado do massacre de Santa Cruz.

Gostemos ou não de Timor, tudo isto nos emociona profundamente. Mas, como diz o provérbio, “por cada flor estrangulada há milhões de flores que florescem “. Timor é um país em vias de desenvolvimento mas com um futuro muito promissor, sem esquecer os seus heróis.

Visita ao sr. Alexandre e família

O senhor Alexandre é o padrinho de batismo do Gaspar, que há dezasseis anos não se viam. De modo que se justificava plenamente esta visita. A família desfez-se em amabilidades não só com o Gaspar mas também com o Eustáquio e comigo, que sou o intruso.

Conversa puxa conversa, sobretudo do eloquente Gaspar, que mais uma vez repete os discursos já ouvidos por mim há não sei quantas vezes. Tudo bem, os outros também precisam de ouvir e de conhecer a sua visão da vida e dos problemas deste mundo. Acabamos por lá jantar, iguarias que ainda nunca tinha provado: sagu (uma espécie de crepes em que a massa provém do miolo do tronco da palmeira), peixe com molho de tamarinho, e outros.

O senhor Alexandre, com 79 anos feitos em maio passado, fez questão que eu soubesse que ele e a família andaram fugidos quase quatro anos nas montanhas enquanto houve a ocupação indonésia. Perdeu dois filhos (machos, como ele diz) e um outro presente completa o relato dizendo que nem chinelos tinham, andaram sempre descalços.

Enfim, as provações e dificuldades estão passadas e vivem neste momento bem, como eu pude testemunhar. Pelo andar da conversa vim a saber que Berta, filha que esteve a estudar Geologia em Coimbra, já tinha estado em Malcata, Sabugal, por duas vezes com a família Gaspar. Berta casou ainda há pouco tempo com um ex-seminarista com o qual travei animada conversa uma vez que sentia alguma afinidade devido ao meu passado e presente. Combinámos encontrar-nos para lhe dar umas lições de acordeão. Que aproveite até 7 de julho…

À família do senhor Alexandre um grande obrigado pela forma como me fizeram sentir: à vontade, como se fosse da casa.



Dia 10 de junho de 2016, sexta fdeira - Dia da portugalidade

Hoje é dia de Portugal, de Luís de Camões, da portugalidade, dos que vivem em territóriportuguês ou na diáspora. Esta é a quarta vez que passo esta efeméride fora do país; em Timor e, para minha surpresa, parece-me que é a vez que mais profundamente esta celebração me atinge, mesmo sem celebrações oficiais, condecorações, desfiles e outras coisas mais.

Logo de manhã, no terreiro da cozinha da casa do Eustáquio, com toda a simplicidade foi cantado o hino como se se tratasse de um grupo coral bem afinado. Não admira pois esta família é toda musical.

Rui Chamusco, o homem dos sete
instrumentos, aqui tocador de acordeão.
Lourinhã (2012). Foto do autor.
Logo de tarde vamos ser recebidos pelo ex-presidente da República Ramos Horta, mas sem qualquer formalidade. Depois de conversar com estes amigos que me rodeiam chego à conclusão que este sentimento de ser português está mais arreigado em Timor Lorosae do que em muitas localidades do território continental.

Será que a opção do atual presidente da República com a comunidade portuguesa de França / Paris tem alguma coisa a ver com esta constatação?... “Oh mia pátria si bella é perduta !", onde estão as tuas conquistas?... Nem Camões, nem Fernando Pessoa, nem Agostinho da Silva estarão contentes com esta perda de memória coletiva. É saudade, é sentimento, é nostalgia. É o que quiserem mas, por favor, não deixem morrer Portugal…


Mais uma festa de anos

Desta vez foram os 59 de uma irmã da Aurora, 
a esposa do Eustáquio, em Bébora. Depressa 
a família ficou junta. Ao toque do acordeão foram 
cantados os parabéns, seguindo-se uma fausta refeição onde nem o vinho faltou. O casal que acolheu o festim foi de uma simpatia sem limite, até no esforço de falarem em português. O acordeão entrou nos corações dos presentes que foram ouvindo algumas interpretações de músicas conhecidas ou não. Não me livrei de muitas palmas e, como era o dia de Portugal, até a “Portuguesa” foi tocada e cantada. Mais umas músicas a pedido e o serão acabou por volta das 23.30h.

Registo com muito agrado a ideia e quase pedido de se criar aqui uma escola de acordeão. Nunca se sabe!...

11 de junho de 2016, sábado

(...) Os políticos também mentem

Sem surpresa, não é verdade? Hoje era um dos dias muito esperado pelo Gaspar – o encontro com o seu antigo companheiro Ramos Horta. Até eu estava um pouco entusiasmado. Mais ou menos à hora combinada lá chegamos nós à Casa (quartel) do ex-presidente da República de Timor. Casa bem guardada, com escolta policial, tivemos que ficar um bom quarto de hora à espera que alguém nos chamasse e deixasse entrar. Engano! Chegou um mensageiro a comunicar-nos que o sr. doutor não nos poderia receber por ter uma agenda sobrecarregada.

Mais uma desilusão, inexplicável para quem não está habituado a estas geringonças. Ainda comentei com o Gaspar:” ou tu entendeste mal ou então isto é uma bagunçada”. Disse o homem de recados para apareceremos segunda ou terça que vem. Sem hora marcada, sem dia certo, será que vale mesmo a pena a visita? O Gaspar já anda a dizer que, perante tantos obstáculos que se deparam em obter as entrevistas desejadas, vai desistir das mesmas. Mais, começa a convencer-se de que não é desejado, talvez figura não grata, entre os poderes timorenses. Vou tentar convencê-lo a ir à entrevista…



A estátua de Cristo Rei. Fonte:
com a devida vénia...


Há males que vêm por bem


Para amenizar as contrariedades que surgiram decidimos fazer uma caminhada até ao Cristo ReCristo Rei. Nada menos que subir 570 degraus, mas que compensa o esforço despendido. Paisagens encantadoras, idílicas que se conseguem avistar ao longo de todo o percurso mas sobretudo lá do morro de Cristo Rei: Ataúro, Indonésia, a antiga ilha das Flores que em tempos foi vendida aos holandeses como forma de o Governador fazer face às despesas correntes, uma vez que de Lisboa não chegava a remessa de dinheiro necessário.

Comentava-se que afinal os indonésios ainda fizeram muita coisa durante a invasão: a catedral, o Cristo rei com todo o caminho do calvário ilustrado pelas cenas da via sacra, etc…etc…

O que é estranho é que, sendo a Indonésia um país onde o islamismo é a religião predominante, tenha presenteado os timorenses que são católicos com obras manifestamente de cariz cristológico. Também há quem diga que isto terá sido uma jogada política para atrair a simpatia pelos indonésios mas que a jogada saiu-lhes ao contrário.

Muitas coisas boas fizeram e deixaram em Timor, mas cometeram um erro muito grave, a saber: a utilização da violência e os mortos que causaram durante a invasão e a permanência. Recorde-se que houve mais de 200 mil mortos, feridos e fugitivos sem conta.

Enfim, só Deus conhece os seus desígnios… mas bem melhor seria que não houvesse vidas perdidas e que os benfeitores deste povo contribuíssem desinteressadamente no bem e no progresso deste país.

A cereja no topo do bolo

Já a noite era entrada quando, ao jantar, o Eustáquio se sai com esta: “Ti Rui, faz uma casa cá que eu dou o terreno, em Liquiçá”.

Confesso que me deixou baralhado mas dou-me conta do grande desejo desta gente que eu fique por cá. Já dizem que eu não sou malaio (estrangeiro) mas timorense. Estão com receio que eu parta para Portugal no dia 7 de julho e que não volte mais. Sofrem já por antecipação, pois dizem que as saudades vão ser muitas.

Por mais que agente lhes diga que havemos de voltar para a inauguração da escola em Boebau, parece-me que não acreditam. Isto é mesmo assim. Quando abnegadamente nos entregamos a uma causa, encarnando a vida dos pobres, corremos o risco de sermos como eles fazendo parte das suas vidas. Como diz a canção do Ricardo Canta la Piedra, “no queremos a un hombre pregonero; queremos a un hombre que se embarre com nosotros, que viva com nosotros, que beba con nosotros el vino en las tabernas. Los otros no interessan, los otros no interessan…”

Pela parte que me toca só tenho a agradecer estes gestos de estima e de aceitação.

Ailok Laran - abundância de Ailok

Este é o nome da aldeia onde estamos sediados, povoação dos arredores de Dili, no complexo do Bairro Pité. Foi das zonas mais martirizadas pela invasão indonésia. Muitos mortos, feridos, fugitivos, desaparecidos. A maioria das casas foram arrasadas e o seu recheio queimado. Ainda hoje se encontram habitações com esses sinais. A casa dos Sobral também foi arrasada e queimada. Esta habitação foi a primeira a ser construída em Ailok Laran, por isso é um ícone para a família. O Eustáquio procedeu à reparação, que ainda não está concluída por falta de verbas, fazendo assim jus à memória coletiva.

Mas porquê o nome Ailok Laran? Ailok é o nome de uma árvore abundante nesta região e que por isso caracterizou e deu o nome à aldeia. Ailok + Laran que em tétum quer dizer muito.

Ora vim a dar-me conta que eu já conhecia esta árvore em Alter do Chão (e na Lourinhã levada por mim).  Perante esta constatação, e tendo-a eu comunicado ao Eustáquio e ao Gaspar, logo o sr. doutor de leis quis desmentir-me dizendo que era impossível. Perante tanta prosápia propus-lhe uma aposta, ao que ele imediatamente acedeu. Pronto, fica assim: quem perder, paga o almoço ou o jantar. Aguardemos portanto pelas provas, mas a aposta já está ganha para o meu lado.

Em prol dos benefícios para a saúde a casca do Ailok é utilizada em chá ou em masque para dores intestinais (dores de barriga) contra a diarreia. Verifiquei com o amigo Eustáquio que é verdade.

Usos e costumes - influência da religião católica

Timor é um país fortemente influenciado pela religião católica, fruto do longo período de colonização mas sobretudo da presença e testemunho da igreja católica em instituições de ensino e das igrejas espalhadas por todo o lado.

Os timorenses são por essência seres religiosos que, sem vergonha nem complexos, expressam a sua fé naquilo em que acreditam. Quase em todas as casas o “ oratório “ ocupa um lugar de relevo. Imagens de santos, velas, flores preenchem cantos e espaços iluminados todos os dias ao cair da noite.

Uma religião repleta de ritos muito ligados à tradição, que lhe dão um colorido característico, mas devidamente “agiornada” pelos agentes da pastoral eclesial. O respeito e veneração pelo clero é notável. Clero, nobreza e povo são elementos fundamentais a ter em conta no processo de desenvolvimento em curso.

A par de toda esta organização, o povo vai espontaneamente manifestando atos de fé. Quase todos os dias deparamos com ruas enfeitadas (marcadas) indicando que vai haver uma vigília de oração, que dura toda a noite, em que se reza e se canta, se come e bebe, se conversa e se ri. Em maio e outubro é à Senhora do Rosário; no mês de lunho é ao Coração de Jesus. Cada família que o deseje informa a paróquia que atempadamente elabora o calendário das visitas. Ontem, dia 12 de junho, foi mesmo aqui ao lado e tive a oportunidade de ouvir as rezas e cantorias até altas horas da noite.

Mesmo ao lado o sr. Felisberto, homem que já descrevi anteriormente, que não professa religião alguma porque segundo ele o Messias é ele mesmo, teve de aguentar e mais nada. É que aqui ainda não vigora a lei do ruído. Cada um ouve o que quer, como e onde quer. Outros usos, outros costumes…

Dia 13 de junho de 2016, domingo - As árvores morrem de pé!...


Vem este slogan a propósito de uma visita que fizemos ao senhor Silvino que, segundo dizem, é a pessoa mais velha da região. Não sabe quando nasceu mas diz-nos que, quando começou a II Guerra Mndial guerra já tinha 20 anos ou mais. Perguntamos-lhe a idade e ele responde sempre “ tudo acima de 100 “.

Perdeu a conta ao número de netos, bisnetos mas todos sabem que a família é grande. Vive com um neto na sua casa, com dois filhos a morarem nas redondezas. Come bem e dorme pouco, sempre de olho aberto não venha por aí a irmã morte. “omo bem, sinto-me bem, ainda não quero morrer”.

Todos os dias, encostado ao seu cajado, vai até a casa do filho para jantar ( por volta das 18h00). O Ti Silvino tem resistido a tudo ao longo de tantos anos de vida. Não fugiu dos indonésios e, talvez pela sua coragem, a sua casa não foi destruída e queimada. A última prova que teve de superar foi a morte do filho mais velho que, devedores sem escrúpulo, decidiram envenenar, para se livrarem do pagamento das dívidas.

Mas este homem continua com uma enorme vontade de viver, a fazer lembrar a saudosa Palmira Bastos que, também já velhinha, gritava em palco a plenos pulmões: “ As árvores morrem de pé!!!” Obrigado Ti Silvino por nos lembrar que a vida é um dom de Deus e que, por mais anos que a gente viva, nunca a devemos descuidar. Obrigado pela oportunidade de o conhecer, de o ouvir e de lhe apertar a mão. Não o irei esquecer…

Dia 14 de junho de 2016, segunda feira - Laços emocionais muito fortes

Com tantos anos de história a criar laços não será de estranhar que o nome de Portugal seja aqui tão venerado. Se não bastassem os nomes e apelidos que encontramos na maioria dos timorenses, existe nos nossos dias uma forte ligação emocional que tem expressão religiosa, cultural e desportiva. Hoje vou falar evidentemente da desportiva, uma vez que, às quatro horas locais, vão transmitir o jogo de Futebol Portugal-Islândia, jogo de estreia de Portugal no campeonato europeu 2016.

Já estávamos previamente avisados das fortes manifestações sempre que há jogos que envolvem Portugal. Em caso de vitória gritam, cantam e até tiros chegam a dar para o ar. Desta vez não se ouviram disparos pois Portugal empatou, mas sempre que o ataque provocava situações de perigo, a gritaria ecoava pele noite a fora.

Que em Portugal, na França, no Brasil ou qualquer outro país onde houver portugueses se sinta esta vibração forte naturalmente compreensível. Mas aqui tão longe, a vinte cinco e tal mil quilómetros de distância, como é possível haver tanta gente sem ligação direta com o nosso país a vibrar desta maneira? Que laços afetivos são estes que mantêm tamanha transcendência? Se ao menos fosse dada alguma correspondência por parte dos poderes governativos de Portugal!... Aí está: nos corações ninguém manda; ou se gosta ou não se gosta. E viva Timor! E viva Portugal!...

Dia 15 de julho de 2016. terça feira - Visita ao Ramos-Horta

Desta foi de vez! À hora marcada, 16 horas, mandaram-nos entrar para o desejado encontro com esta figura pública timorense, que já foi presidente da República, 1º ministro, ministro dos negócios estrangeiros e que até já ganhou o Prémio Nobel da Paz em parceria com o D. Ximenes Belo.

O encontro foi informal e por isso aconteceu de tudo: piadas, perguntas, respostas, pareceres, notícias, revelações – uma hora e meia de conversa que nos permitiu conhecer melhor esta personalidade. Até o corso, animal bem tratado que faz parte dos habitantes desta mansão, se quis associar ao encontro, concretamente estabelecendo uma relação de lambidelas no meu braço esquerdo e procurando festinhas no lombo.

Tudo estava a decorrer pelo melhor até que o espertalhão do Gaspar tirou o seu amigo e companheiro de escola do sério. Então não é que cometeu a asneira de lhe dizer que pretendia fazer um programa com a entrevista que estava a ser gravada na Rádio Coimbra?

Reação imediata: 

“Estão proibidos de utilizar qualquer declaração minha para fins de campanha ou de publicidade. Se acontecer algo diferente, ser-vos-á movido um processo por rutura de confiança. Isto foi uma conversa entre amigos e nada mais. Entendidos?... Queres uma entrevista para a rádio então manda-me as perguntas por email, e marcamos outro encontro para a entrevista.”

De minha parte está tudo bem porque eu não quero imiscuir-me em politiquice. Da parte do Gaspar, duvido. Tem o coração ao pé da boca e não sei se terá juízo suficiente para calar aquilo que ouviu. Ele já é grande o suficiente para provar que é responsável. Mas confesso que tenho algum receio…

Keos – uma das palavras mais ouvidas em Ailok Laran

Keos é a abreviatura de kiosque. Aqui quase todas as casas têm um pequeno negócio de sobrevivência. Cada um vende o que lhe dá mais jeito, sem necessidade de licenças ou pagamento de impostos. 

Na casa da família do Eustáquio há uma panóplia de artigos que se vendem: pulsas, chocolates, leite indonésio empastado, tabaco, etc…etc… Ou seja, durante o dia e à noite, não há horário de abertura ou de encerramento, ouvem-se constantemente crianças e adultos gritando á janela de serviço: “Keos! Keos!”…

E de um a um lá vão sendo atendidos os pedidos por quem está de serviço. Uma animação constante sem necessidade de megafones, que se junta à animação dos vendedores ambulantes que todos os dias percorrem os becos e ruelas cá da aldeia com os pregões e as bandas sonoras a anunciar a sua passagem e os seus produtos. Grão a grão enche a galinha o papo…

(Continua)

(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos: LG)

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Nota do editor:

sexta-feira, 30 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23656: Notas de leitura (1501): "Ussu de Bissau", por Amadú Dafé; Manufactura, 2019 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Fevereiro de 2020:

Queridos amigos,
Como é evidente, a literatura universal possui relatos de altíssima qualidade sobre crianças que terão passado longos calvários até atingirem a libertação, tudo culminando com o futuro radioso pela frente, basta lembrar Oliver Twist e David Copperfield, de Charles Dickens. Amadu Dafé é cuidadoso, terno, socorre-se de um intenso lirismo e captura o leitor do princípio ao fim pela via mais eficaz da indignação: solta-se a voz da criança espancada e aviltada, em tanto confiante, mal sabendo que caiu numa teia de vis traficantes, e quando se despede do leitor avisa-nos que nada será como dantes, há o saber de experiência feito, Ussu de Bissau fora sujeito a riscos barbários, é hoje um homem livre, está escrito no seu coração. Amadú Dafé é uma grande promessa para a literatura luso-guineense, fica comprovado com este documento literário terno, vibrante, tantas vezes a magoar-nos nas vergastadas e no espezinhamento de uma criança que sonha voltar para casa. Que venha mais boa literatura da tua portentosa imaginação, Amadú Dafé.

Um abraço do
Mário



Um vulto literário emergente na Guiné-Bissau: Amadú Dafé (2)

Mário Beja Santos

Ussu de Bissau, por Amadú Dafé [foto à direita], Manufactura, 2019, é uma inesperada surpresa: encontrar uma criança tão emotivamente registada por um escritor que denuncia, em toda a sua crueza, o tráfico de crianças sujeitas às mais degradantes humilhações e atentados à dignidade humana.

Ussu é recambiado para o Senegal, a mãe conta fazer dele um ser humano que faça pela vida, que ganhe bases culturais, a criança sai da miséria para bater à porta do Inferno, um canalha que parece dirigir uma escola corânica tem dezenas de crianças por sua conta que pedincham pelas feiras, que vivem como animais e são pasto de um negócio de pedófilia.

É neste cosmos de maus tratos que Ussu encontra um oásis, a bondade do tio Lamine e a estima do seu filho Adulai. É nesse contexto que alguém se lhe apresenta como treinador de futebol e ele é despertado para um sonho, prometem-lhe uma madrinha disposta a levá-lo para a Europa para jogar futebol ou estudar. Está sonhador, mas mostra-se hesitante: “Valeu a pena ter vindo para Senegal, pedinchar nas ruas e nos becos, para, no fim, ser compensado com uma madrinha que se propunha levar-me para a Europa! Ou valeria igual se tivesse ficado ao lado da minha mãe, lutando contra os feiticeiros e contra os invejosos? Não sei. Só sei que enquanto a morte não me chega, a minha vida tem de permanecer esperançosa e certa”. Vai dar a boa-nova ao tio Lamine, ele sugere que Ussu estabeleça o contato com a dita senhora. Pelo caminho, prosseguem as vergastadas na escola corânica, os tratamentos torpes, a mendigação.

Se até agora Amadú Dafé usa de uma grande segurança na descrição de todos estes emaranhados de miséria, de sadismo religioso, de exploração infantil, triunfa pela forma delicada com que vai tratar a pedofilia, são parágrafos em que ele discorre a infâmia em cima de uma lâmina afiada, Ussu insurge-se, grita e dá às vilas Diogo, almas caridosas aconchegam-no, Adulai comunica ao tio Lamine o que se está a passar, procura-se então o treinador. Entretanto aguarda-se pela senhora que iria levar Ussu para a Europa, aparece Raja, entra num barco, registam-se estranhas anomalias, vai aparecer a polícia, afinal a dita senhora fazia parte de um gangue de raptores. A narrativa acelera-se, os diálogos são velocíssimos, aquela inocente criança não consegue entender os enredos daquele crime, é na esquadra da polícia que ele é informado de que servira de isco para apanhar a teia de criminosos.

Tem aqui lugar, num momento que o autor intitula Posto, um dos mais belos monólogos desta prodigiosa narrativa:
“A pressão social prefere farsa a sinceridade. Prefere ilusão a realidade. Prefere mentiras e aparências. A minha mãe sujeitou-me a tudo o que passei, não por vontade própria, mas porque se sentia pressionada a fazê-lo para não ser isolada e para não ser vista como incapaz de criar um filho.
Que ganhou ela com isso?
Ou melhor, o que ganharam as pessoas que a pressionavam com tudo o que passei? E se a Raja me tivesse conseguido levar para a Europa? E se tivesse continuado a ir para a horta e a seguir os meus colegas para dar o cu por uma côdea? E se tivesse continuado na escola e apanhado o hábito de mendigar para sobreviver?
A partir do momento em que terminei a conversa com a Fámata, acordei, saí da ilusão, afastei a obscuridade e a falta de determinismo que era a minha vida. Mais ninguém decidirá por mim o que quer que seja, mais ninguém irá ter em suas mãos a minha felicidade e os meus sonhos, nem a minha própria mente, muito menos pressão social alguma.

Ela será apenas um órgão dentro do meu corpo, como os demais, e a sociedade será sempre a comunidade a que pertenço livremente, não o contrário. Tomei totalmente o controlo de tudo e da minha vida particularmente (…) Toda a minha vida foi um drama dramático. Tinha vindo para o Senegal aprender Alcorão. Sim, era esse o propósito e era essa a inequívoca vontade da minha mãe. A minha tia e outros familiares fizeram-na pensar que só longe dela poderia eu ser gente. E no que me tornei depois de tantos anos, era inimaginável.
Formei-me nas ruas, como um rato, e cresci sobrevivendo como um gato. A minha maturidade emancipou-se e a minha formação foi de um gato caçador (…) Tinha ganhado uma vida cheia de experiência e vivência. Tinha-me emancipado e formado em vida. Que mais poderia levar de volta para os meus? Poderia encontrar a morança cheia, mas infelizmente a minha mãe não estava.

‘A tua mãe não se aguentou, Ussu. Ela não se aguentou’, disse-me a minha tia, à porta, choramingada.
Os que encontrei apareceram à porta com abraços, de muitos braços abertos, talvez cheios de saudade. Abraçaram-me, com força que lhes parecia de arrependidos, mas era do coração. Deveria isso bastar para aceitar a ausência da minha mãe? Até porque sinto que ela se tornara numa estrela, a mais brilhante.
Será para sempre o meu sol. Será a minha lua, para me seguir em todas as direções e condições? Irá saber como iluminar o meu caminho.
Pelo menos houve alguém em casa à minha chegada que me serviu água e arroz. Que me consolou e transmitiu as suas últimas palavras”
.

Jamais saberemos como Ussu se fará homem, somos levados a crer que agregou positivamente toda aquela via-sacra de criança traficada, pronta a ser raptada, sujeita à degradação suprema, mas que aprendeu os escaninhos por onde passam os raios da liberdade. Ele escrevera que tinha ganhado uma vida cheia de experiência e vivência, abria-se agora a estrada para que Ussu de Bissau, que embarcara em tantas ilusões, pusesse os seus sonhos em prática, como homem de bem.

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Notas do editor

Poste anterior de 26 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23645: Notas de leitura (1498): "Ussu de Bissau", por Amadú Dafé; Manufactura, 2019 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 29 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23653: Notas de leitura (1500): Algumas (breves) notas sobre missionação (III) - Reflexão do Prof. Justino Mendes de Almeida, profundo estudioso da “missionação”, reitor que foi da Universidade Autónoma de Lisboa (Paulo Cordeiro Salgado, ex-Alf Mil Op Especiais)

segunda-feira, 26 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23645: Notas de leitura (1498): "Ussu de Bissau", por Amadú Dafé; Manufactura, 2019 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Fevereiro de 2020:

Queridos amigos,
Amadú Dafé, estou seguro, vai ser um grande escritor, este Ussu de Bissau é eloquente comprovativo. Oxalá que ele não perca esta veia esplendorosa de escrita luso-guineense, por onde perpassam feiticeiros e balobas, mufunessas, poilões e bambarans. É uma denúncia vigorosa que ele nos dá nesta narrativa que se lê e relê com gosto, uma denúncia do tráfico de crianças que são exploradas, obrigadas a pedinchar, submetidas a negócios de pedofilia, tudo a pretexto de que frequentam escolas corânicas. Não sei como é que o islamismo reage a tais situações criminosas, a religião e os governos, como é óbvio, o que aqui se conta tem a ver explicitamente com a Guiné-Bissau e o Senegal. A escrita é admirável, é uma brisa de revelação, um escritor de formação universitária que não enjeita os problemas do seu povo humilde, a sofrer toda a casta de infortúnios, Ussu é um porta-bandeira de um crime que precisa de ser mais denunciado e castigado.

Um abraço do
Mário



Um vulto literário emergente na Guiné-Bissau: Amadú Dafé (1)

Mário Beja Santos

Estou absolutamente convicto que Ussu de Bissau, por Amadú Dafé [foto à direita], Manufactura, 2019, vai ficar no pódio das melhores narrativas da novel literatura deste país irmão. Melhor surpresa no arranque deste ano de 2020 não me podia ter sido dada. No dizer do autor temos aqui uma história aficionada de um aluno de escolas corânicas, faz parte daquele pesadelo de milhares de crianças da costa ocidental africana que são sujeitas aos terríveis maus-tratos onde não faltam a mendicidade, o viver nas condições mais abjetas, a escravatura pedófila.

Não é um romance, nem novela nem noveleta, é um relato em que uma criança é entregue a um escritor, ainda muito mal conhecido em Portugal, que esgrime o pensamento dessa criança com intensa vibração, levando-nos, na plenitude, aos recantos da miséria, tudo isto feito numa linguagem em que se desossa o português vernacular posto ao serviço de um idioma específico a que chamamos luso-guineense. Ussu tem uma mãe exigente, que sonha alto, quer este filho lançado na vida, no presente tudo é mais negro para a criança do que a cor da sua pele. É um mundo animista entrelaçado dessa esperança que uma escola corânica possa pôr o menino num patamar mais elevado. São episódios sucessivos dessa história que tem títulos condizentes: despatriado, escolhido, descartado, mendigo, faminto, punido, desperto, prevaricado, evadido, compaixão, suborno, norteado, pasmo, confuso, livre, elucidado, espectro, posto.

Não é só o tráfico de crianças que é denunciado em toda a sua extensão, é um mundo de curandeiros, de uma vertente do islamismo que precisa de ser execrada e perseguida no continente inteiro, por permitir que escroques aufiram dinheiro fingindo que educam crianças, no fundo escravizadas, não muito longe da escravidão antiga, tudo isso aparece posto em causa numa criança que conta a sua saga pelo punho de Amadú Dafé, numa das mais belas escritas que conheço.

Dura é a vida de Ussu, com aquele pai ausente, como se conta:
“Ademais, porque a minha mãe não me devolveu ao meu pai ainda estou por entender. O meu pai parecia ter-me abandonado, não ignorava esse facto, mas não me parecia capaz de me rejeitar caso ela decidisse que eu fosse viver com ele. Tenho memórias dos telefonemas dele e das suas palavras mélicas a perguntarem-me se a minha mãe me tinha sovado. Eu sempre respondi, prontamente, que sim, e nunca o vi fazer nada a esse respeito.
Às tantas achava-o mentiroso e fantoche, e desculpei-o sempre como uma pessoa muito ocupada. Que nem tem tempo de me telefonar sempre tinha, quanto mais de me ir visitar de quando em quando.
Cresci esperando por um convite seu para ir passar uns dias com ele, por uma prenda simples para o eternizar como um pai querido, por um acontecimento memorável por forma a nunca o perder nos meus sonhos. Nunca pude contar com ele e talvez por isso mesmo é que a minha mãe decidiu sempre sozinha tudo sobre a minha vida”
.

Se maus-tratos recebia, se havia sovas e açoites, lá no seu chão de origem, o que o espera do dito mestre corânico, aproxima-se do inferno, o ambiente doméstico é desolador, as crianças que vê cirandar dão-lhe a antevisão do mundo tétrico que o espera:
“As crianças que passavam por mim ali sentado, que entravam e saíam com latas penduradas no pescoço e roupas sujas e retalhadas, não me parecia pertencer à casa. Continuei, porém, sentado no meu cantinho, já não chorava, continuava a não sentir a minha alma, mas o estado de ausência total de mim mesmo não me permitia mais sentir a minha tristeza.
Não sabia se tinha fome, se tinha sono, se estava cansado de tanto andar, se estava desesperado ou se apenas queria a minha mãe de volta. O meu mundo resumia-se à minha vaguidade, ao meu estado leve de alma e à minha perdição. Tudo o que tinha, tudo o que sabia, de tudo o que me lembrava estava ali resumido e refletia-se nos olhos daquelas crianças que entravam e saiam com latas vermelhas e roupas esfarrapadas. Era esse o meu destino, o meu mundo era a minha fome, o meu sono e o meu cansaço. O meu mundo era também o desprezo e a indiferença daquelas pessoas em relação à minha pessoa”
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Leva pontapés e passa fome, tem que andar na mendicância, leva açoites e vergastadas, e vamos saber como é que se aprende o Alcorão naquele ambiente sórdido:
“O senhor levou-me para a casa, a suposta escola, e mandou-me ficar sentado na rua à espera até o sol levantar-se. Quando os outros alunos começaram a aparecer, mandou-me segui-los para o quintal, onde se encontrava, afinal, a sua escola de Alcorão. Os alunos tomaram lugar em círculo à volta de um empilhado de lenhas e cinzas no centro. Dava para perceber que as lenhas estiveram a arder no dia anterior. Tentei olhar, por forma a fixar a cara de cada um deles, mas não fui capaz de reter nada. Todos tinham quase o mesmo aspeto. Esbranquiçados de pele, roupas esfarrapadas, cabelos encaracolados e empoeirados, corpos magros e olhos fundos de tristeza. Liam em voz alta, cada um levava uma tábua escrita a tinta preta à mão e todos com lições diferentes. Era um caos, uma dessintonia total, como jogo de sortilégio”.

Ussu é chicoteado, vergastado por aqueles jovens à ordem do senhor. E mandado a caminho da feira, vai pedinchar, ai dele se voltar para casa sem dinheiro ou arroz. E Amadú Dafé, no mais belo recorte lírico, dá-nos o estado de alma de Ussu no seu pedinchar:
“Aqui, a minha cama é o meu chão, o meu manto é a areia, a minha casa é a terra. A lua continuava a guiar-me, a correr atrás de mim e a andar ao meu lado em todas as direções e condições, iluminando-me.
Comia o vento enquanto tinha a companhia da lua. Não podia ser mais grato à natureza e a Deus. Às tantas, não queria largar a vida de talibé (aluno), realizava-me de alguma forma. Era uma vida engraçada que aprendi a ter. Ganhei-a à custa das minhas costelas, das minhas lágrimas, sobretudo da minha alma, dura e persistente”
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E era aquele terror de voltar sem dinheiro ou arroz, o prémio das chibatadas. Tem a felicidade de conhecer Lamine, mas até lá chegar teve que descer ao fundo da existência:
“Meti-me no lixo da feira e procurei, até que encontrei, uma lata vermelha igual à que os meus companheiros portavam no pescoço. Cheirava a caca, mas não me importei, nesta vida, caca é preferível a chibatadas, caca alterna nas refeições”. É neste vórtice da degradação que ele encontrou o tio Lamine, faz-se amigo do seu filho, Adulai, enquanto mendigava o tio Lamine dava-lhe de comer. “Com a barriga cheia era mais fácil pedir esmolas e as forças nas pernas eram maiores para visitar várias lojas e casas da cidade e da feira onde sabíamos que, com sorte, conseguíamos sempre um pouco de arroz ou uma moedinha. No entanto, sempre nos mantínhamos preparados para fugir às ameaças de porrada que nos prometiam, à água quente que nos atiravam, ou às humilhações que nos submetiam”.

Temos aqui a promessa de um grande escritor.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23640: Notas de leitura (1497): "Orgulhosamente Sós - A Diplomacia em Guerra (1962-1974), por Bernardo Futscher Pereira; Publicações D. Quixote, 2022 (2) (Mário Beja Santos)