Timor Leste > Liquicá > Manatti > Boebau > Escola São Francisco de Assiz (ESFA)
1. Estamos a chegar ao fim... No dia 16 de junho de 2018 o Rui Chamusco empreenderá a viagem de regresso a Portugal... Desta vez, na sua segunda viagem a Timor, ele partiu em 25 de janeiro de 2018. Foram cinco meses de estadia.
De Timor Leste o Rui mandou-nos na altura as crónicas dessa viagem (a segunda, de cinco já feitas, de 2016 a 2024). Decidimos reproduzir uma seleção dessas crónicas, na medida em que elas nos ajudam a conhecer melhor a história recente e passada deste povo a que nos ligam laços linguísticos, culturais e afetivos. Laços que o própripo resume nestes termos: "Não sei explicar o que nos prende a esta gente"...
O Rui é membro da nossa Tabanca Grande desde 10 de maio último. Natural da Malcata, Sabugal, vive na Lourinhã onde durante cerca de 4 décadas foi professor de música no ensino secundário. Em Timor, o Rui tem-se dedicado de alma e coração aos projetos que a ASTIL tem lá desenvolvido, nas montanhas de Liquiçá, e nomeadamente a Escola de São Francisco de Assis (ESFA), em Manati / Boebau, no município de Liquiçá.
Em Dili ele costuma ficar em Ailok Laran, bairro dos arredores, na casa do Eustáquio (alcunha do João Moniz) , irmão (mais novo) do Gaspar Sobral,
Neste dia todos temos de ser criança. Porque é um dia especial, não há desculpa para nos alhearmos desta celebração. As redes sociais inundam-nos com publicações sobre o evento. Por todo o lado se ouvem os vivas e as palmas como sinal de festa. Pois que seja uma grande festa!
Sem esquecermos as crianças que, devido à guerra, aos maus tratos, às separações, à fome, à falta de escolas, às dificuldades económicas e tantas outras carências são
privadas dos festejos deste dia.
Cada um, à sua maneira, faça o que pode e deve fazer para que o mundo das crianças seja cada vez melhor. E, quem tiver oportunidade, ao menos neste dia pegue ao colo uma criança, para sentir bem junto a si o dom da vida a nascer e a crescer.
Hoje tive esta sorte: O Zé (uma criança de um ano de idade,o filho mais novo do Anô) foi trazido para o meu colo onde esteve brincando durante mais ou menos meia hora.
Entre mimos e mais mimos, o Zé ganhou tal gosto e descontração que não resistiu a
deixar-me de presente uma boa mijatada. Com certeza que não o irei esquecer
facilmente.
Como há dias combinámos amanhã dia 4 de junho regressaremos às montanhas de
Liquiçá, mais propriamente a Boebau, onde espero dar um reforço na aprendizagem do português e da música. Então não é que a minha perna esquerda voltou a estar emperrada nos movimentos! Bem temos tudo feito para que as dores me deixem em paz: massagens, massagens e mais massagens... mas, não sei não.
Quando prometo e não cumpro sinto-me interiormente revoltado. Pelos vistos já não foi hoje, nem amanhã, e eu sei lá se conseguirei mesmo ir a Boebau. O raio do joelho está a incomodar-me em demasia. Costuma dizer-se que “Deus escreve direito por linhas tortas”. Será algum aviso? Mas se não forem oito dias, que seja ao menos dois ou três.
Tenho que ir a Boebau antes de partir... E se não for? Ficarei mesmo desconsolado..
Tenho que dizer aquela gente, aquelas crianças que em breve voltarei, que não as
abandonarei, que a escola de São Francisco tem que funcionar, para o bem delas e para o bem destas povoações.
Esta tarde, a falta da luz elétrica obrigou-nos a pôr de lado o computador e a sair para o exterior tentando ocupar o tempo. Sentados como habitualmente no hall de entrada, dou comigo a observar uma cena que dá que pensar. Sem que ninguém esperasse, começam a chegar apressados galináceos de todas as idades. Pelos vistos, era a hora da sua refeição. O Eustáquio levantou-se e foi procurar uns punhados de arroz que projetou no chão em frente. Verifiquei então que havia uma hierarquia no acesso ao alimento, e ai de quem ousasse contra.
Onde é que eu já vi isto? Será que entre os humanos não acontece algo idêntico? Que significado têm as minorias? O caminho é duro, é difícil mas possível, pois não há sistema, sociedade ou grupo totalmente hermético, que não tenha alguns locais de fuga e de infiltração. E daí o provérbio “ os primeiros serão os últimos e os últimos os primeiros”. O que hoje é grande poderá amanhã ser pequeno; o que hoje manda amanhã terá de obedecer; o que hoje é rico amanhã poderá ser pobre. Todas as “torres de Babel” ao longo da história têm conhecido desmoronamentos; todos os “bezerros de oiro” idolatrados têm passado ao esquecimento.
Entretanto, logo aqui em frente, as crianças brincam alegres e indiferentes às nossas cogitações. Parecem “ bandos de pardais à solta”, os putos...os putos”.
Acabo de ver e ouvir no Youtube, interpretada na guitarra clássica pelo artista Michael Lucarelli a Sonata Moonlight de Bethoven, já ouvida várias vezes interpretada sobretudo ao piano.
Por coincidência ou não, a luz da lua cheia faz-se presente, e vêm -me à ideia uma série de imagens e sons que a lua e o luar suscitam: “Andar com a lua”, “lunático”, “aluado” são expressões que utilizamos frequentemente e que revelam a influência que este astro tem nas nossas vidas.
Seja como seja, o seu luar é encantador. É algo que muito se aprecia e usufrui. Recordo-me do refrão de uma canção do norte do Brasil “ Não há, ó gente, ó não - não há luar como este do sertão”.
Por isso, e em atitude de contemplação, utilizo as palavras de São Francisco de Assis para rematar este relato: “Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã lua e as estrelas, que no céu formaste claras, preciosas e belas”. (Cântico das Criaturas
As coisas acontecem, muitas vezes sem muito pensar ou programar. Tendo eu prometido às gentes de Boebau de que não regressaria a Portugal sem que voltasse a esta terra, e estando eu ansioso por cumprir a promessa pois via o tempo a passar, eis que, de um dia para o outro, se toma a decisão de partir.
Assim, neste dia sete de junho, depois dos preparativos necessários, pusemo-nos a
caminho, em carreta alugada, do nosso destino. Eu, o Eustáquio, o Aipeu (dono do
veículo), o chofer e mais dois moçoilos.
Primeira surpresa do percurso: saídos de Dili, mais ou menos a cinco quilómetros de distância, uma roda traseira esvaziou devido a um parafuso intruso. Paragem obrigatória para a mudança do pneu, mas impossível de realizar pois não havia macaco na carrinha..
Mais de meia hora à espera que alguém passasse e quisesse ajudar, até que, finalmente, um cireneu se decidiu parar para resolver a carência.
Depois, até Boebau, foram quatro horas de saltos e sobressaltos, algumas paragens de motor, buracos e mais buracos a decorar o caminho. Compensáva-nos a maravilhosa paisagem que nos era oferecida pelos cafeeiros abrigados pelas soberbas madrecacau em flor [ Gliricidia sepium]
Já chegados à escola, e depois das saudações calorosas dos amigos presentes, fomos almoçar a casa do Bôzé, onde o arroz com feijão foré, a papaia e o café alimentaram os nossos corpos.
Logo a seguir, mãos à obra, pois o tempo urge. A carreta não tinha faróis em condições para viajar de noite. Colocamos então no lugar certo os acrílicos identificadores da escola, e que dizem “Escola de São Francisco de Assis” em horizontal; e “Paz e Bem”, em vertical. O característico Tau com o qual Francisco de Assis assinava, por ser a última letra do alfabeto grego, e como tal queria ser o último, o mais humilde de todos..
A noite foi compensadora, com um sono repousante. E, como diz uma canção “ O dia chegou ao fim; silêncio... a noite desceu. Boa noite! Paz em Deus...”
Se há coisas que a montanha proporciona, é esta sintonia com a natureza o que mais aprecio. Então logo de manhã, antes que qualquer outro ser dê o alarme ou antes que qualquer objeto mecânico se arme em despertador, começa a sinfonia galinácea. Um senhor galo, que bate três vezes as asas e enche o peito de ar, dá o mote com a sua voz potente e bem sonante: “Có-co-ró-có-cóóóó!!!”
E toca a andar, que há muito para fazer.
Não, nãp sei explicar o que nos prende a esta gente. Cada vez que aqui vimos novos laços são criados, novas razões aparecem para gostarmos cada vez mais do que estamos fazendo.
Como já sabem que no dia dezasseis regressamos a Portugal, querem saber quando
voltamos a Timor. Sem darmos certezas informamos que, se Deus quiser, talvez na
segunda quinzena de Dezembro regressemos, porque queremos estar presentes no início do novo ano letivo, que será a partir do dia sete de Janeiro.
Quase sem querer, deixei escapar o desejo de pedir a nacionalidade timorense, sobretudo para evitar o pedido de renovação de visto ou de estadia. A alegria do Julito foi notória, dizendo que para o suco de Leotalá e para a gente de Boebau/Manati será uma grande honra.
Timorense ou não, continuaremos a prestar o nosso apoio a esta gente, a estas crianças. “ O que fizerdes a estes pequeninos é a mim que o fazeis”. E assim este mundo ficará um pouquinho melhor.
Sem que ninguém esperasse, logo de manhã, a professora Rita e o seu marido Julito
apareceram de “motor” para me fazerem um convite:participar na reunião de pais e
encarregados de educação que daí a instantes se iria realizar na escola primária de
Bantur/Kelor, a escola mais próxima daqui, a fim de esclarecer a situação da sua
colaboração na escola São Francisco de Assis. Há pais e encarregados de educação que não compreendem a sua colaboração connosco e reclamam a sua exclusividade para a escola dos seus filhos.
Pronto!, disse eu. E aí vamos nós de “motor”para a reunião. Muito bem recebido pelo professor coordenador e pelos presentes, tive a ocasião de explicar o porquê da Escola de São Francisco de Assis, como funciona, porque a professora Rita trabalha na nossa escola e, sobretudo, a vontade que temos de uma colaboração mútua.
Não houve questões, pelo que sou levado a concluir que o assunto está esclarecido.
Mais uma vez me dou conta de que, quando as coisas são bem explicadas, as pessoas são compreensivas e colaboradoras. Espero bem que, com esta ação, estas escolas se entendam e colaborem, para bem de todas as crianças que as frequentam.
Último poste da série > 23 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25872: II Viagem a Timor: janeiro / junho de 2018 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte XI: um futuro promissor, com mais de 60% da população abaixo dos 30 anos