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segunda-feira, 16 de setembro de 2019

Guiné 61/74 - P20150: Notas de leitura (1218): “O Massacre Português de Wiriamu, Moçambique, 1972", por Mustafah Dhada; Tinta-da-China, 2016 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Janeiro de 2017:

Queridos amigos,
Quem pretenda conhecer os rumos da historiografia atual, os modos de investigar e comunicar ao grande público algo que permanece enevoado e numa teia de contradições, este livro é de leitura obrigatória. Nenhum de nós desconhece o que se passou na manhã de 16 de Dezembro de 1972, num pequeno local do Tete, tem vindo a ser referido em artigos, reportagens, filmes e romances. A 6.ª Companhia de Comandos recebeu ordens de "limpar" aquele local, e o morticínio atingiu quatro povoações vizinhas ao longo do rio Zambeze, onde o território de Moçambique se estende para o Zimbabué, a Zâmbia e o Malawi. O historiador pega nos dados conhecidos e desconhecidos e desce ao local, conversa com os sobreviventes de diferente ordem: as vítimas, os missionários, os dirigentes políticos nacionalistas, os militares portugueses. O resultado é um documento prodigioso, que pode ser exemplo para outras vias da historiografia do período colonial. De leitura compulsiva, este massacre há de permanecer como um problema de consciência a aguardar apaziguamento, com a explicação e pedido de perdão.

Um abraço do
Mário


O massacre português de Wiriamu: uma extraordinária investigação

Beja Santos

Mustafah Dhada é um historiador moçambicano doutorado em Oxford e professor na Universidade da Califórnia. A historiografia da Guiné deve-lhe um importantíssimo trabalho, infelizmente nunca traduzido em língua portuguesa, Warriores at Work: How Guinea was really set free (Niwot: University of Colorado Press, 1993).

“O Massacre Português de Wiriamu, Moçambique, 1972", por Mustafah Dhada, Tinta-da-China, 2016, é uma peça da melhor filigrana dos métodos historiográficos atuais: mostrar o que é dado como consabido, pôr a nu omissões e contradições, gerar envolvimento levando os protagonistas ao local dos acontecimentos, contextualizar o que motivou o massacre e quais as suas consequências, do particular ao geral.

Na manhã de 16 de Dezembro de 1972, tropas coloniais portuguesas reuniram os habitantes da pequena aldeia de Wiriamu, perto de Tete, em Moçambique, na Praça Central e ordenaram-lhes que batessem adeus e que cantassem para se despedirem da vida. Em seguida, militares da 6.ª Companhia de Comandos abriram fogo e lançaram granadas. Incitados pelo brado “matem-nos todos”, os militares levaram a mortandade a quatro povoações vizinhas ao longo do rio Zambeze, onde o território de Moçambique se estende para o Zimbabué (Rodésia, à data dos acontecimentos), a Zâmbia e o Malawi – uma região designada pelos missionários católicos como ‘a terra esquecida por Deus’. No final do dia, perto de 400 aldeões tinha sido mortos e os seus corpos eram lentamente consumidos pelas chamas em piras funerárias pelos soldados com o capim que cobria as palhotas. Peter Pringle, um jornalista inglês que procurou apurar a verdade ao tempo, e que foi expulso pelas autoridades coloniais, descreve estes factos no prefácio da obra.

Quem conseguiu escapar relatou os acontecimentos aos missionários locais, a informação chegou a Espanha e ao Reino Unido. Sensivelmente meio ano mais tarde, a 10 de Julho de 1973, em vésperas da visita de Marcelo Caetano a Londres, o jornal inglês The London Times denunciava na primeira página o massacre. As autoridades portuguesas repudiaram a notícia, chegando mesmo a negar a própria existência do lugar. Seria por via deste artigo que Mustafah Dhada, então um jovem moçambicano em Londres, teria contacto com os acontecimentos que marcariam a sua vida académica. Ao longo da sua carreira de investigador, Dhada foi publicando diversos artigos sobre esta matéria, obteve depois uma bolsa que lhe permitiu trabalho no terreno, e foi assim que ele consolidou uma investigação de décadas.

A grande surpresa, observa Peter Pringle, é que cerca de 40 anos depois do massacre, muita bruma e desconhecimento continuada a rodear a verdade daquilo que se passou, di-lo claramente: “Ao longo dos anos – em artigos, livros, revistas académicas, dois romances e um documentário, diversos autores procuraram reconstituir o que de facto aconteceu. Todavia, não tem sido fácil recompor a história de Wiriamu. Os relatos são escassos. Documentos oficiais importantes perderam-se, foram deliberadamente destruídos ou nunca existiram. Os arquivos do movimento de libertação, a FRELIMO, são incompletos. O contacto com testemunhas foi e continua a ser problemático".

O que torna este documento uma obra ímpar, de leitura obrigatória, é a metodologia e o primor da escrita, com um pendor para a reportagem (que a tem) e uma análise rigorosa no trabalho do terreno, tudo estruturado como deve ser: quem era quem na luta nacionalista e como se processava a guerra, o leitor não iniciado ficará a aperceber-se de que a história da FRELIMO incluiu rancores, assassinatos e turbulência ideológica interna; apercebemo-nos da crescente importância de Tete na evolução da guerra e como a ameaça era pressentida pelas autoridades coloniais e militares, ali se viveu, como em muitos outros confrontos, o papel dramático das autoridades locais metidas entre dois focos, como escreve Dhada: “Wiriamu e o seu régulo estavam condicionados pelos imperativos da sobrevivência e da defesa do interesse colectivo. Não lhes restava outra alternativa senão permitir o acesso da FRELIMO aos seus desfiladeiros para transporte de armas, e autorizá-las a recrutar homens na região do triângulo para ingressarem nas suas fileiras”; é relevado o papel da igreja de Tete, também ela obrigada a respeitar a autoridade portuguesa e a dar cuidados aos seus fiéis, Dhada ilustra atos de violência anteriores e outros que se seguiram a Wiriamu e qual o comportamentos dos missionários; Dhada devolve humanidade a Wiriamu, conta a sua história, mas antes, mostra-nos o que logo constou da informação e se tornou público sobre o massacre e como aos poucos as próprias autoridades portuguesas tiveram que explicar que tinha havido excessos, mas nunca dizendo quais, na Operação Marosca; são páginas muito belas as que Dhada escreve sobre o triângulo de Wiriamu, será porventura a voz do sangue que o leva a narrativa tão primorosa que mete riachos, rios e charcos e mesmo feitiçaria, como era a vida a aldeia, como este microcosmo funcionou até que tudo se extinguiu em cinzas; temos depois a anatomia do massacre, a chegada dos Comandos comandados por Antonino Melo, é um texto horripilante onde até um sentimento de compaixão comparece:  
“Em Wiriamu, as execuções correram de forma expedita. Enquanto alguns militares incendiavam palhotas cheias de pessoas, Antonino Melo encaminhava, pessoalmente, outros habitantes para a palhota dos Tenente Valete, uma das maiores da povoação. Foi uma tarefa fácil, pois muita gente já se encontrava ali devido às festividades. Em determinado momento, Antonino Melo sentiu um puxão na perna. Baixou a cabeça e os seus olhos cruzaram-se com os dela. Uma menina com menos de dez anos agarrava-se a ele com força e recusava-se a avançar. Não conseguiu libertar-se. Melo ordenou, então, aos seus homens, que retirassem a mãe da criança do interior da palhota e disse a ambas para fugir dali. 23 anos mais tarde, ao ser informada que Antonino Melo seria entrevistado no âmbito do projecto, a menina, então uma mulher adulta, pediu que lhe fosse transmitido o seu agradecimento por lhe ter salvado a vida”.

A conclusão da obra é um monumento de síntese, por ali desfilam a lógica colonial, os constrangimentos da Igreja e os seus conflitos com o poder político e militar, a importância daquele local, o branqueamento que se pretendeu depois do massacre, o que era a vida e a identidade daquelas gentes de Wiriamu. Do lado português, permanece o silêncio. E assim termina o documento histórico: “A única resposta que oiço é o som ensurdecedor de um silêncio que me gela o sangue. De facto, diante de massacres como este, quem precisa de uma consciência?”.

É um livro magnífico, e até me apetece perdoar a Mustafah Dhada o incompreensível dislate de dizer que Amílcar Lopes Cabral era um engenheiro agrónomo natural de Cabo Verde.

Mustafah Dhada
Foto: Jornal Público, com a devida vénia

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Nota do editor

Último poste da série de 13 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20145: Notas de leitura (1217): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (23) (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Guiné 63/74 - P3942: Sr. jornalista da Visão, nós todos fomos combatentes, não assassinos (4): Camaradas, sei o que vos vai na alma (Virgínio Briote)

1. Mensagem de Virgínio Briote, nosso co-editor, ex-Alf Mil Comando, CCAV 489/BCAV 490, Cuntima, e CCmds, Brá, 1965/67, com data de 25 de Fevereiro de 2009:

Caros Luís, Carlos e Camaradas,

[Negrito, do editor, C.V]


Compreendo bem o que vos vai na alma. Quem deu o corpo e a alma por aquele Portugal de então, a troco de cigarros e cerveja (e uísque, para os mais favorecidos), sente-se ofendido, no seu mais íntimo, por tão apressada crónica.

E, no entanto, a opinião do Luís Almeida Martins, embora muito à tona (duas páginas também não davam para muito mais e, ainda por cima, com marcianos no filme), não me parece totalmente incorrecta. Massacres e acidentes de viação, são, na referida crónica, os aspectos mais discutíveis.

Massacres, é a palavra que mais nos dói e é injusta, felizmente, para a grande maioria de nós. Mas houve-os, comprovadamente. Para referir apenas dois: o assassinato dos "majores" e acompanhantes, no chão Manjaco, na Guiné, e o "Wiriamu", em Moçambique, ocorreram. Luís Cabral, Aristides Pereira e Pedro Pires referiram-se a esse facto com uma frase simples: era guerra, tratava-se de guerra.

O alferes de "Wiriamu", acidentalmente cmdt da CCmds e responsável pela operação, confessou-o para as câmaras. Pediu perdão às vítimas. Senti-me envergonhado quando o ouvi descrever como tudo se processou. Um jovem de 20 e poucos, com a mesma idade dos seus camaradas, com um historial de baixas na companhia... compreendi-o, mas confesso-vos que não fiquei orgulhoso.

Foram casos que não fazem exemplo, dirão muitos e eu também, mas existiram vítimas. Embora raros, casos desses fazem parte da guerra. E a guerra é um charco, quanto mais nos metemos nele, mais sujos ficamos.

Que as baixas eram mais devidas a minas fortuitas e a acidentes de viação... Não posso falar por Moçambique nem por Angola. O tipo de guerra era similar, diferentes eram o IN, as características do território e as populações. Da Guiné, temos, entre nós, infelizmente, gente mais habilitada para falar de como o IN se comportava no terreno. Apenas acrescento: é verdadeiramente invulgar que, sujeitos a uma guerra a sério, com testemunhas que, ainda hoje estão vivas e que trazem no corpo as marcas da luta, os INs de então sintam uns pelos outros uma compreensão e amizade tão grande.

Acima de tudo, da crónica do Almeida Martins, o que ressalta, para mim, é que reflecte a visão dos que têm, acima de tudo, privilegiado a chamada opinião politicamente correcta, a de que aqueles povos estavam submetidos a uma ocupação, que, embora histórica, lhes parece ilegítima.
Massacres só houve de um lado, pelo que depreendo da crónica. Não é novidade, é uma opinião recorrente, temo-la ouvido estes anos todos. E têm todo o direito, como qualquer um de nós, de expressar o seu ponto de vista. Diferente, para mim, é que, no seu afã de defenderem ou justificarem esse ponto de vista, deixam passar para último plano o que de melhor Portugal tem tido ao longo da sua História, os seus Soldados. Foi com eles que este pequeno País se fez e se tem mantido, há quase mil anos.

Mas este Portugal, da pena do articulista de que estamos a falar, é o que estamos a viver. Não sei é se há muita gente que gosta dele. Eu não.

Um abraço do
Briote
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 26 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3941: Sr. jornalista da Visão, nós todos fomos combatentes, não assassinos (3): Mário Fitas, aliás, Mamadu (CCAÇ 763, Cufar, 1965/66)

terça-feira, 16 de janeiro de 2007

Guiné 63/74 - P1435: Questões politicamente (in)correctas (17): Matei para não ser morto (A. Mendes, 38ª CCmds)


Guiné > Voz da Guiné > Folha de rosto da Separata do nº 203, de 30 de Junho de 1973, dedicada ao Dia dos Comandos. Na primeira página vêem-se duas fotos: à direita, do major João de Almeida Bruno, que cessava funções como comandante do Batalhão de Comandos da Guiné; e à esquerda, o novo comandante, o major Raul Miguel Socorro Folques.

Foto: Eduardo Ribeiro (2006). Direitos reservados.


1. Texto enviado, em 13 de Janeiro corrente, pelo Amilcar Mendes (ex-1º cabo, 38ª Companhia de Comandos, Guiné, Brá, 1972/74; hoje, taxista da praça de Lisboa):

A Guerra da Guiné e os Direitos Humanos
por A. Mendes

Vitor Junqueira, Luís Graça e demais membros da nossa tertúlia:

De há uns tempos a esta parte tenho sido mais leitor que interveniente, porque algumas coisas que vou lendo no Blogue, sobre o tempo da guerra da Guiné, me obrigam a estar calado. De facto, os comentários que vou lendo confundem-me ao ponto de não saber se falamos da mesma guerra e da mesma Guiné.

Primeiro que tudo estou no Blogue porque sou um ex-combatente da Guiné e é essa a razão deste Blogue. Trocarmos impressões sobre o que passámos é saudável. A razão por que é que passámos, isso é já história política. Para isso existem os letrados e iluminados que escrevem sobre as causas e consequências.

Vem isto a propósito dos comentários que aqui li sobre a Convenção de Genebra, Operação Mar Verde, Massacres, Direitos dos Combatentes e dos coitadinhos dos guerrilheiros do PAIGC! (1)

Por favor, não insultemos a memória dos que morreram em combate. Alguém que lá esteve pode achar que os turras eram meninos de coro? Será que o Vitor Junqueira e eu estivemos na mesma guerra ?

No ano de 1973, na estrada de Mansoa -Mansabá, numa emboscada a uma coluna junto ao chamado Carreiro da Morte, os senhores guerrilheiros do PAIGC apanharam à mão três agressores militares portugueses e, cagando para direitos ou convenções de guerra, cortaram-lhe o sexo e enfiaram-lho na boca depois de os matarem a sangue frio!

Se tal, como nós, cumpriam o direito defendendo a Pátria (não sei se a minha ou a deles), expliquem-me por favor quem é que era santo?

Fui combatente, como vocês, matei para não ser morto. A forma como, não tem a ver. Ou será que o Vitor ia para a mata com a Bíblia numa mão e a arma noutra ?

Enfim, relembremos Guidaje, Guileje, Canquelifá, Boruntuma, Gandamael, etc. porque o PAIGC não se limitou a defender a sua (deles) Pátria.

O Vitor fala em stresse de guerra, mas já tentou saber se tem a ver com a forma ou o conteúdo? Quem sabe o que se passou em Wiriamu ? Vamos condenar à pena de morte quem lá esteve? Para expiarmos todas nossas culpas, como combatentes, vamos ter que julgar toda a humanidade? Eu posso apresentar ex-comandos que lá estiveram, para o Vitor, o Luís e os demais tertulianos ouvirem a outra parte da história...

Já agora, e a propósito de direitos, olhemos para o que está a acontecer na Guiné e com a herança do PAIGC.

Vitor, Luís e restantes tertulianos, um abraço.

A. Mendes

2. Comentário do editor do blogue:

Meu caro Amílcar:

A gente ainda não se conhece pessoalmente mas já temos falado várias vezes ao telefone, e até lá temos apalavrada uma ida à sede dos Associação dos Deficientes das Forças Armadas, aqui mesmo ao lado da minha chafarrica, para dar um abraço a um amigo comum, o Patuleia...

Há muitas feridas de guerra, no corpo e na alma, que não saram e que vão morrer connosco. É o caso do Patuleia, que é uma figura conhecida, que dá a cara (e que cara!) pela ADFA, e por todos nós. É uma problemática dolorosa, essa, a do deve-e-haver da nossa guerra em África (sem esquecer a Índia, Timor, etc., como muito bem nos chamava ontem à atenção o António Rosinha) (2).

Como qualquer membro da nossa tertúlia, tu tens direito à palavra. Não preciso de te dizer que o teu testemunho, como homem e como operacional, me sensibilizou, e tem enriquecido o nosso esforço colectivo para reconstruir e divulgar a nossa memória da guerra na Guiné.

Como sabes, aqui - naquilo a que eu chamo a nossa caserma virtual - tratamo-nos por tu, o que não quer dizer menos respeito uns pelos outros, respeito pelas vivências, valores, sentimentos, memórias e opiniões uns dos outros (assumindo o que fomos ontem e o que somos hoje, sem culpa, sem complexos, sem acusações). Mas também sendo capazes de manifestar, de maneira franca e serena, os nossos pontos de vista, e sobretudo as discordâncias... Saudavelmente, como amigos, como camaradas... Na prática, como sabes, estas regras não fáceis de aplicar... Mas esforçamo-nos por consegui-lo...

Nunca escondemos uns dos outros que não pensamos todos pela mesma cabeça, nem sentimos todos pelo mesmo coração... A nossa riqueza está justamente no nosso pluralismo e na capacidade de gerir as nossas diferenças... É certo que nem sempre lemos o que outro escreve... Tu, por exemplo, se calhar não entendeste bem o que o Vitor quis dizer, ou então foi o Vitor que não comunicou bem... Compete a ele esclarecer-te, se for caso disso. Mas eu insisto: temos que aprender a ouvir os outros...

Para trás ficaram, entretanto, as velhas rivalidades entre infantaria, cavalaria e artilharia, entre a terra, o mar e o ar, entre a tropa-macaca e a elite da tropa, entre tropas africanas e metropolitanas, entre pessoal do quadro, do contigente geral e milicianos, entre operacionais e pessoal de apoio...

Aqui também não há bons nem maus, heróis ou cobardes, gente politicamente correcta ou incorrecta, letrados e iletrados... Somos camaradas, ponto final. A mim, compete-me dar igualdade de oportunidades a todos os que me escrevem, o que nem sempre seguramente consigo.

Não me compete tomar posição a favor de A ou B. Não sou juiz nem fiel da balança. Mas, confesso, que não gostaria que o nosso blogue fosse uma arena de combate. Não cultivo nem gosto de cultivar a polémica. Acho que podemos (e devemos) dizer olhos nos olhos (neste caso, no ecrã do computador) o que nos divide, o que nos separa... De preferência, com elegância, sem insultos, e com factos a fundamentar o que escrevemos... Esta pedagogia tem funcionado. E eu acho que podemos orgulhar-nos do nosso blogue, da nossa convivivência, e até da gente da nossa geração.

Não temos de estar acordo sobre questões dolorosas, dolorosíssimas (e ainda polémicas), do nosso passado recente (para não falar da nossa vasta e riquíssima história enquanto povo, estado e nação): os massacres de 1961 (em que morreram milhares de portugueses e angolanos, inocentes), os excessos (e crimes) que se cometem em todas as guerras, de um lado e de outro, Nambuangongo, Mar Verde, Wiriamu, Nó Górdio... Não estaremos de acordo seguramente sobre as razões por que fomos parar à Guiné, a Angola ou a Moçambique. Ou sobre a descolonização. Como a guerra foi conduzida pelos nossos chefes, políticos e militares.

Não podemos evitar falar de tudo isso, dessas e doutras questões ditas fracturantes. Podemos fazê-lo, mas de preferência evocando a nossa condição de protagonistas, testemunhas ou historiógrafos... Por exemplo, eu não estive em Wiriamu, nem estou suficientemente documentado para ter opinar sobre o que lá se passou... Eu nunca passei no Carreiro da Morte, na estrada de Mansoa-Mansabá e já não estava na Guiné, em 1973, mas gostava de saber quem (do lado do PAIGC e das NT) esteve envolvido nessa macabra cena que tu relatas...

Eu também não estive no chão manjaco mas quem lá esteve (o Afonso M.F.Sousa, o João Tunes) pode dar o seu testemunho (ou opinar) sobre o massacre do PAIGC que vitimou três dos nossos três melhores oficiais superiores do tempo do Spínola... Um historiador, como o Leopoldo Amado, também tem autoridade para falar sobre esse assunto, porque fez investigação de arquivo ou entrevistou dirigentes do PAIGC... Eu, confesso, que não tenho autoridade para o fazer, é uma questão de honestidade intelectual... (E a propósio, vamos abrir em breve um dossiê sobre este melindroso e doloroso tópico da guerra da Guiné, sob a direcção do Afonso M.F. Sousa)...

Por fim, queria só lembrar que também é nosso apanágio respeitar (ou tentar respeitar) o nosso inimigo de ontem... Eles, de facto, não eram meninos de coro. Mas não nós também não éramos turistas. Dito isto, concordo com o Pedro Lauret e o Vitor Junqueira: a guerra, todas as guerras, têm regras. E quanto ao Amílcar, queria só acrescentar: Todos matámos para não morrer... Afinal, todos fomos para a Guiné com "licença para matar e morrer"...

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Notas de L.G.:

(1) Vd. posts de:

13 de Janeiro de 2006 < Guiné 63/74 - P1425: Questões politicamente (in)correctas (16): na guerra, de facto, não vale tudo, também há regras (Vitor Junqueira)

12 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1423: Questões politicamente (in)correctas (15): Na guerra não vale tudo (Pedro Lauret)

(2) Vd. post de 15 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1432: Pensamento do dia (10): Honrar os que morreram no Ultramar (António Rosinha)

sábado, 13 de janeiro de 2007

Guiné 63/74 - P1425: Questões politicamente (in)correctas (16): na guerra, de facto, não vale tudo, também há regras (Vitor Junqueira)

Mensagem do Vitor Junqueira, ex-alferes miliciano da CCAÇ 2753 - Os Barões (Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá , 1970/72), médico, residente em Pombal, comentando o último post do Pedro Lauret (1):

Caro Luís Graça,

Acabo de ler no Blogue um comentário do Pedro Lauret que de uma forma sucinta aborda a questão da ética na frente de combate, invocando preceitos que relevam do Direito Internacional e das Convenções, em particular a SOLAS 1974 ( Salvaguarda da Vida Humana no Mar), e as de Genebra que são quatro e não apenas uma como muitos supõem, e respectivos protocolos. Como exemplos, o Pedro Lauret apresenta o caso geral do combate marítimo entre forças embarcadas e concretiza uma situação de envolvimento terrestre com a Operação Mar Verde.

A minha reacção a quente a este comentário é a seguinte:

Em primeiro lugar e como ser humano, sinto-me feliz por constatar que, nesta caserna, alguém com autoridade e firmeza vem lembrar que, em qualquer guerra, passada ou presente, há barreiras que jamais podem ser ultrapassadas independentemente de ordens ou circunstancialismos. Isto é: não vale tudo, há regras.

E em segundo lugar, meus caros amigos, porque andando eu um pouco às aranhas, reencontrei-me finalmente! Sim, posso dizer que foi nesta guerra, a do Pedro, que eu participei. Porque foi esta conduta que me foi ensinada desde o berço até às salas de aula da EPI. Porque nunca recebi nenhuma ordem de operações em que o principal item fosse "matar" e menos ainda torturar ou seviciar.

Porque não faz parte da tradição das (modernas) forças armadas de Portugal atentar contra os direitos humanos de quem quer que seja, ainda que do IN se trate. Porque é na frente de batalha que a verdadeira estatura do homem se revela e sabemos (eu sei) que abnegação, magnanimidade e generosidade produzem altíssimos dividendos.

E finalmente porque todos temos uma consciência que, uma vez violentada, nunca mais nos deixa em paz. Será por isso que entre nós, como em outros povos (devidamente estudados), envolvidos em guerras recentes, há tantos inadaptados, psicopatas, suicidas, criminosos, stressados de guerra? Não se ofendam, porque a relação está provada!

E já agora, permitam-me um último desabafo. Eu não sou tão ingénuo como pareço. Tontos, sempre os houve na população em geral. Mais tonto ainda foi quem permitiu a sua incorporação e lhes entregou funções de comando. Casos como aquele de que Wiriamu é um terrível exemplo, não sendo porventura o pior, e muitos outros que a História silenciará, talvez pudessem ter sido prevenidos através de adequado filtro médico(?). Mas se não estão ou estavam doentes, estes indivíduos deveriam ser julgados, sendo o único caso em que admito a reintrodução da pena de morte. Não pode haver desculpas, estes casos não ficam resolvidos com peregrinações patéticas aos locais do crime por parte dos seu autores, com um batalhão de repórteres de TV atrás, como eu já vi. Um milhão de ex-combatentes sentem-se enxovalhados por estes indivíduos.

Às minhas mãos e às minhas ordens, com dignidade, muito respeito e uma profunda dor no meu coração, morreram seres humanos. MAS NUNCA NINGUÉM TEVE QUE MORRER. Nem foi maltratado ou humilhado.

E já agora, deixemo-nos de desvalorizar os direitos do adversário, chamando-lhes Turras. Eram soldados do PAIGC que tal, como nós, cumpriam o seu dever defendendo a Pátria. Tal como eu e outros.

Um abração e p. f. passa ao Pedro.

Vitor Junqueira

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Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 12 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1423: Questões politicamente (in)correctas (15): Na guerra não vale tudo (Pedro Lauret)